Diacrítica_23-3 [sobre Herberto Helder]

download Diacrítica_23-3 [sobre Herberto Helder]

of 321

Transcript of Diacrítica_23-3 [sobre Herberto Helder]

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    1/321

    U N I V E R S I D A D E D O M I N H O

    23.32009

    REVISTA DOCENTRO DE ESTUDOS HUMANSTICOS

    diacrticasrie cincias da literatura

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    2/321

    DIACRTICA(N. 23/ 3 2009)

    S CinCiaS da Literatura

    DIReCOANA GABRIeLA MACeDOCARLOS MeNDeS De SOUSA, VTOR MOURA

    COORDeNADOR

    CARLOS MeNDeS De SOUSA

    COMISSO ReDACTORIALANA GABRIeLA MACeDOCARLOS MeNDeS De SOUSACRISTINA LVAReSeUNICe RIBeIRO

    JOSePH eUGeNe MULLINMARIA eDUARDA KeATINGORLANDO GROSSeGeSSe

    COMISSO CIeNTFICA

    ABeL BARROS BAPTISTA (Univrsidad Nova d Lisboa), BeRNARD McGUIRCK (Univrsity of Nottingham),CLARA ROCHA (Univrsidad Nova d Lisboa), FeRNANDO CABO ASeGUINOLAZA (Univrsidad d Santiago dCompostla), HLDeR MACeDO (Kings Collg, London), HeLeNA BUeSCU (Univrsidad d Lisboa), JOO

    De ALMeIDA FLOR (Univrsidad d Lisboa), MARIA ALZIRA SeIXO (Univrsidad d Lisboa), MARIA IReNeRAMALHO (Univrsidad d Coimbra), MARIA MANUeLA GOUVeIA DeLILLe (Univrsidad d Coimbra),NANCY ARMSTRONG (Brown Univrsity), SUSAN BASSNeTT (Univrsity of Warwick), SUSAN STANFORDFRIeDMAN (Univrsity of Wisconsin-Madison), TOMS ALBALADeJO MAYORDOMO (Univrsidad Autnomad Madrid), VITA FORTUNATI (Univrsit di Bologna), VTOR AGUIAR e SILVA (Univrsidad do Minho), ZIVABeN-PORAT (Tl-Aviv Univrsity)

    PUBLICAO SUBSIDIADA PeLA

    Os artigos propostos para publicao dvm sr nviados ao Coordnador.

    No so dvolvidos os originais dos artigos no publicados.

    DePOSITRIO:LIVRARIA MINHOLARGO DA SeNHORA-A-BRANCA, 664710-443 BRAGATeL. 253271152 FAX 253267001

    CAPA: LUS CRISTVAM

    ISSN 0807-8967

    DePSITO LeGAL N. 18084/87

    COMPOSIO e IMPReSSOOFICINAS GRFICAS De BARBOSA & XAVIeR, LIMITADARUA GABRIeL PeReIRA De CASTRO, 31 A C 4700-385 BRAGA

    TELEFONES 253 263 063 / 253 618 916 FAX 253 615 350e-MAIL: [email protected]

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    3/321

    NDICe

    NOTA De APReSeNTAO ..................................................................................... 7

    Herberto HeLder

    A ANTROPFAGA FeSTA. MeTFORA PARA UMA IDeIA De POeSIA eM

    HeRBeRTO HeLDeRAna Lcia Gurriro ....................................................................................... 9

    O SOMBRIO TRABALHO DA BeLeZA (NOTAS SOBRe O BARROCO eMHeRBeRTO HeLDeR)eunic Ribiro ................................................................................................ 23

    HeRBeRTO HeLDeR: UMA IDeIA De POeSIA OMNVORAHlna Carvalho Buscu .............................................................................. 49

    A fAcA no cortA o fogo: CONTeXTOS POTICOS De UMA BIOGRAFIAJoo Amadu Olivira Carvalho da Silva ...................................................... 65

    ACOLHeR NA BOCA, DePOIS NO CHO DOS OLHOS: O POeMA. ou o diAem que Herberto Helder de umA quedA foi Ao cHo dAmo de fiAmA HAsse PAis brAndoJorg Frnands da Silvira ........................................................................... 83

    O CONTO INSOLVeL De HeRBeRTO HeLDeR: DUAS PeSSOAS

    Llian Jacoto .................................................................................................... 101

    (77 14) + 2009: 38BeLeZA (HeRBeRTeqUAO)Lus Mai ..................................................................................................... 113

    HeRBeRTO HeLDeR: O POeMA CONTNUO NA PRIMeIRA DCADA DO2. MILNIO (PRePARATIVOS)Manul Gusmo .............................................................................................. 129

    AS FRONTeIRAS DO POTICO NA POeSIA De HeRBeRTO HeLDeR

    Nuno Jdic .................................................................................................... 145

    eM qUe LNGUA eSCReVe HeRBeRTO HeLDeR?Rosa Maria Martlo ........................................................................................ 151

    INVeSTIGAeS POTICAS DO TeRROR

    Silvina Rodrigus Lops ................................................................................. 169

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    4/321

    vria

    A RePReSeNTAO LITeRRIA De UMA NOVA IDeNTIDADe CULTURAL:A SUBVeRSO De eSTeReTIPOS NO ROMANCe lA cArtedidentitBnvinda Lavrador ......................................................................................... 181

    ALGUNS PROBLeMAS De CRTICA TeXTUAL NASrimAs De CAMeSFrdrico Lourno ........................................................................................ 199

    AINDA A PROPSITO DO SONeTO o diA em que eu nAsci mourAe PereAHlio J. S. Alvs ............................................................................................... 213

    O nonsense qUe FAZ SeNTIDO(S): SOBRe OS JOGOS De LINGUAGeMNAS LRICAS De RUI ReININHOIsabl ermida .................................................................................................. 227

    e O TeMPO NO PASSA: AS CARTAS DA GUeRRA De ANTNIO LOBOANTUNeS

    Lus Mouro .................................................................................................... 259

    SINGULARIDADeS De UMA MOA e NARCOTIZAO DO HeRI eM o sAnto dA montAnHA Srgio Guimars d Sousa ........................................................................... 275

    reCenSeS ............................................................................................................ 301

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    5/321

    NOTA De APReSeNTAO

    As rvistas univrsitrias no tm u s limitar por ora slpids clbrativas aos rpositrios d invstigao sobr cannicosautors dsaparcidos.

    A publicao, no prsnt ano, da obra potica d Hrbrto Hldr,runida sob o ttulo o caa (ond s inclui s amplia a partindita dA faa ca f, livro sado no inal d 2008), cons-titui um dos mais rlvants acontcimntos dos ltimos tmpos, nopanorama da dio d posia m lngua portugusa.

    O dossi sobr Hrbrto Hldr, do nmro 23 da rvista da-a/laa, aprsnta um conjunto d nsaios u rvisitam admi-

    ravlmnt a obra do pota, dialogando muitos dsts studos comos ltimos pomas publicados plo autor, nas dis acima rridas.

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    6/321

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    7/321

    Herberto HeLder

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    8/321

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    9/321

    a pg s.M p m ps

    m H Hl

    ANA LCIA GUeRReIRO

    asc

    In 1968, Hrbrto Hldr announcd his maturity and radinss or silnc.

    Still, in 1971,Apaa, composd o twlv txts, was publishd. Ths txtscan b rad as a way o agring with th concpt o litrary dissolution alsorrrd to by Borgs who considrs litratur as th only art which courts itsown nd. Thror,Apaa may b considrd th courtsan o Hrbrtiansuicid. Ths txts, which th pot himsl dos not considr to b poms, crat alink btwn potry and anthropophagy.

    By rading Hrbrto Hldrs poms, mtapotic pros and short storis,svral charactrs can b idntiid as taking part in symbolic cannibalism: thanthropophagic pot who dvours xprinc; th anthropophagic radr; andth potry o this author, which is shapd through dirnt dvourings. Thmtapotic natur oApaa allows it to b considrd ana pa sinc itxposs th writing o Hrbrto Hldr basd on th annihilation o th author, thlanguag and its own writtn body. Hnc ths txts ar also ana , that is,a dsprat dialogu that struggls or a radr worthy o th dancing cannibalismto which h/sh is invitd.

    p pa apa ah a a a .

    Hrbrto Hldr

    No ndic do actual o caa, nnhum ttulo xp toclaramnt a idia da mort implcita num poma como a palavra

    Apaa. Sob st tma, agrupam-s doz txtos d 1971, m u

    DIACRTICA, cinciAs dA literAturA, n. 23/3 (2009), 9-22

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    10/321

    10 diAcrticA

    um pota vai dialogando com um suposto grupo d litors discutindo

    nos d potica como discurso, palavra, stilo, gramticaou vocabulrio, por xmplo. O primiro dsts txtos oi ditadona rvista caa1, antcdido d uma introduo m prosa u, maistard, s autonomizaria m Pha & Vx, sob o ttulo d (v-a a). A, o autor dclarava-s disposto a lvar a lin-guagm carniicina, liuidar-lh as rrncias ralidad, acabarcom la rpor nto o silncio (Hldr, 2006a: 126). Tomava assima mort nas prprias mos. qustionava-s s no staria bastant

    maduro ruidosamnt pronto (i) para no scrvr mais noltimo poma, u dizia tr abandonado m 1968. A opo d Hrbrtoplo silncio rlaciona-s com uma utpica ormulao d Borgs,num dos artigos u intgram as suasd2. Rlctindo sobr ostado das ltras argntinas m 1930, o autor idalizava u s lss msilncio u xistiss uma scrita puramnt idogrica dirctacomunicao das xprincias no dos sons (Borgs, 1989: 211).O lvantamnto d tal hipts coloca a litratura prant a vidnciad no sr vrdadiramnt a dircta comunicao d xprincias(i), uma vz u ntr o scritor o litor s intrp a lingua-gm u, invitavlmnt, aasta a orma txtual, scrita ou sonora, dapaixo do assunto tratado u manda no scritor (i). O actod s srvir da lngua, sistma artiicial arbitrrio, vota a litra-tura ao racasso da intno xprssiva. Tal conscincia justiica, naobra hrbrtiana, a dsa do silncio como justa xprsso potica parc, por isso, lgitimar a citao d uma msma ras, m dois dostxtos d Pha & Vx, (va a) (ap-

    aa) (Hldr, 2006a: 124-128). A considrao d Borgs rcolhidaplo pota portugus a d u: A litratura uma art u sabprotizar aul tmpo m u tr mudcido, ncarniar-s coma prpria virtud, namorar-s da sua dissoluo ncontrar o im(i, 126).

    O silncio anunciado por Hrbrto Hldr no s vriicou m1968, mas os anos u s sguiram pautaram-s pla xpanso do xr-ccio mtapotico d andar namorado pla dissoluo da litratura

    d participar na procia do su im. O crim arvorado plo pota

    1 caa 2 (rvista litrria coordnada por J. P. Grabato Dias Rui Knopli),Lourno Marus, Novmbro d 1971, pp. 31-33.

    2 Jorg Luis Borgs, A Suprsticiosa tica do Litor, d (trad. JosColao Barriros, colco Obras Compltas), Lisboa, Crculo d Litors, pp. 209-212.

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    11/321

    A AntroPfAgA festA 11

    no oprou a carniicina silnciadora da obra, mas transormou-a.

    O trabalho potico passou a conigurar-s como uma nomao usivada mort, vndo o suicdio d vrios lados (i, 127). Aps 1968,mais do u ncontrar o im, a obra d Hrbrto Hldr alimntou-sdssa nomao, dbruando-s sobr o su prprio corpo prp-tuando a xistncia nssa msma spculao. A mtaposia pod sra idia por dtrs do ttuloApaa. O conjunto d txtos d 1971no o nico u xp o movimnto auto-spculativo do pota.No livro Pha & Vx, possvl ncontrar uma constlao d

    txtos u, plo su pndor mtapotico varidad gnolgica, srlacionam com os dApaa, ou com os sus sguidorsetc.(1974) exp (1977). Tambm a publicao d ca (1975-76)uacionou a idia da mort potica da tndncia litrria paraapontar a alibilidad xprssiva. Assim s comprnd u o potaustionass a validad d uma citao d tal poma: o u cit-

    vl d um livro, d um autor? Dcrto, a sua mort pod sr citvl.e, sobrtudo, o su silncio (Hldr, 1978: 46).

    na ac silnciosa apaixonant da palavra u s ixa o olhard Hrbrto Hldr. Do outro lado da linguagm, h umaa u opota, litor d si msmo, procura no xrccio mtapotico. O alvo dtal dmanda situa-s muito mais no plano primrio do u na supr-ci civilizada d uma lngua h uma vontad xprssa d ncontrarum impulso slvagm por dtrs do rosto humano das palavras:

    Forc-s algum a aastar as palavras, ssa olhagm d ouro implantadanos olhos nos ouvidos, para dscobrir o rosto zoolgico u nm uma

    cmara d ilmar tornaria capturvl domstico (Hldr, 2006a: 152).

    est movimnto do pota do litor na dirco d uma slv-tica (Hldr, 2009: 287) matria potica abr caminho para a mtoraantropogica como sboo d uma toria da posia, ou sja, comocontributo para o dsnho d umaa pa m Hrbrto Hldr. Talcomo o acto canibal alia a barbri a civilizao, tambm a posia dHrbrto sublima a uso ntr a nossa dimnso zoolgica humana.A antropoagia conhcida na Amrica consistia num acto d natu-

    rza tribal inligido contra o inimigo, como airmao d podr, ou,dntro da prpria tribo, visando a protco do grupo contra orassobrnaturais. em ualur um dos casos, a dvorao ra singular proundamnt simblica, concrtizando uma transrncia do podrdo dvorado para o dvorador u assim s ortalcia. Tambm auih um parallo com a posia, ancstralmnt ligada magia ou rli-

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    12/321

    12 diAcrticA

    gio, como um modo d nrntar, subjugar ou tocar o divino. Tanto um

    ritual antropogico como um poma so rgulados por convns ,no caso do ltimo, h lis vrsiicatrias ou rtricas u o condicio-nam, msmo u o grau d librdad ormal sja lvado. A naturzacomunitria outro dos traos u ligam antropoagia posia, uma

    vz u uma outra prssupm a partilha d um alimnto spiritual,num ritual stivo ond o spctculo da mort dlagra uma algriano vncdor, u s banutia com o corpo do outro. Para HrbrtoHldr, o podr rgnrador do canibalismo prptuado por dntro

    d pomas (Hldr, 2006a: 153). els contm, assim, um podr simul-tanamnt dstruidor salvico. O acto antropogico uma situaoxcpcional u conronta o Homm consigo msmo, xpondo-lh, nocorpo da vtima, a sua prpria ragilidad prmitindo-lh, na dvo-rao, uma vitria contra a mort. Tambm o pota u s olha a siprprio m Apaa s ncontra nss limit da sobrvivncia.Viv da obsrvao d actos alimntars ncadados m u o pota, opoma o litor so dinidos por mscaras canibalscas.

    o p pg1.

    No circuito potico, h uma primira aa, no momnto uantcd a criao do poma. Corrspond xprincia do sujito,autor m dvir, ainda jovm, m dscobrta inaugural d si msmo noconronto com o mundo. em Brandy, d Pa Va, uma dvo-rao vida caractriza uma as inicial da biograia do sujito:

    Tudo stava chio, poru o mu corao vido tudo rcbia: ra umspao palpitantmnt vazio. Agora no, agora stou chio d pssoas,lugars, acontcimntos, idias indciss. () qu angustiosa, sta

    voracidad, sta uso analabta com a instvl matria do mundo!Agora sou intlignt. existo, xist o univrso (Hldr, 2006b: 181-182).

    ncssrio dvorar para xistir para intgrar a instvl mat-ria do mundo. Pssoas, lugars acontcimntos transitam do xt-

    rior para o intrior, como u numa primira mort, passando assima vivr no plano ntimo do sujito. Dssa voracidad inicial, rsultaum caos pssoal u rclama uma organizao. Cdo vm a rsposta dsordm a procssa-s m antasia scrita. O hommmbriagado d Brandy xplica-o ao mprgado d balco: Todas asnoits invntava as mulhrs, uma grand mulhr prita, a mstra

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    13/321

    A AntroPfAgA festA 13

    da loucura. Alimntava-m disso apnas, d loucura. Nada mais

    (i, 183).Alm da xprincia, a ducao do pota junto dos sus antcs-

    sors tambm assum contornos d uma dvorao dsprvnida:

    A juvntud alimnta-s do u as garras apanham, os antigos dn-dm-s das gras insacivis, atirando carn podr. Mas carnond s insinuam ainda o gosto do sangu, um tigr juvnil nodcorou to bm a idntidad u s no conunda dsprvnidamntcom uma jovm hina (Hldr, 2006a: 10).

    embora o alimnto s possa rvlar apnas carn podr, ststdio da ormao do pota tm alguma utilidad, uma vz u alitura prpara a scrita. O pota iniciado atravs da obra d outros,antigos ou modrnos, acrdita-s um salvador sm rconhcrainda u apnas uma nova imitao d Cristo na lucirina vrsod alguns radicais, antigos ou modrnos, para um a posia oiuma aco trrorista, uma tcnica d oprar plo mdo o sangu

    (i, 11). A ignorncia pssoal do pota assumida no limit asd d conhcimnto rvla-s um tormnto smpr uivocado(i). No a posia um conhcimnto, apnas um jogo d sp-lhos m u o pota no v mais do u o su prprio rosto atal-mnt capturado no poma:

    No sou vtima d nada; no sou vtima da iluso do conhcimnto.escrvr litralmnt um jogo d splhos, no mio dss jogorprsnta-s a cna multiplicada d uma carniicina mtaisica-

    mnt irrisria. As caadas clsts, o sotrico pntagrama corporal,a antropoagia mgica, imprimiram-s no ilm docmnt truculntodo cinma gral do bairro condnado ruio analabta (i, 12).

    o pm pgc2.

    O spctculo truculnto da posia acciona a cadia d dvora-

    s implcitas na idia d antropoagia. Num primiro nvl, ocorra dvorao do mundo plo sujito; num sgundo, o pota scr-

    vnt dvorado plo txto, passando a xistir apnas naul corpolitral (i, 38). em 1968, Barths substitua a noo daplad p, dizndo u a voz prd a sua origm, o autor ntra nasua prpria mort, a scrita coma (Barths, 1987: 49). em Hrbrto

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    14/321

    14 diAcrticA

    Hldr, o canibalismo do poma garant a sobrvivncia do sujito

    prmit u, uarnta anos aps 1968, o autor tnha scrito:

    tu, Cano, s algum t prguntass como no morro,rspond-lh u porumorro,() nst mistrio u como no morrou poru morro, scrvoa linha u m custa o rino no passa pla agulha, mbora as rutas s movam nas colinas,stou a morrr a lngua u no curda nm inglsa,a morr-la cada dia ao rs das unhas da boca. (Hldr, 2009: 583)

    O autor assassinado no txto dixa-s ali assinado, pronto a dar osu corpo ao litor, para u o gozo bsico d star a sr (i,284) no s xtinga s transorm no u, m 1973, Barths diniucomo a litura d : no txto, d um crto modo, sj oautor: tnho ncssidad da sua igura (u no nm a sua rprsn-

    tao nm a sua projco), tal como l tm ncssidad da minha(Barths, 1997: 66). A contradio patnt d u o autor vivrdpois da sua prpria mort. As dinis m Hrbrto Hldr admi-tm smpr o su contrrio , nst caso, dizr u o pota morr nopoma tambm dizr u l viv a msmo, simbolicamnt. A sua

    voz rliga-o vida prptua a sua nrgia no corpo dos uturos antro-pagos (o txto o litor). Rsid num tmulo u podmos visitar,dsd u saibamos lr o su pitio humild rspitosamnt.A nrgia gravada no txto a hrana autoral, a matria dixada paranosso alimnto.

    Como rsultado da carniicina potica, o u vai d ralidadno poma apnas ragmnto, mtonmia d um e do a usmpr s scapam litura. Nst mbito, a sindou, a mtora,a imagm, a hipotipos, a algoria so as iguras d rtrica u, umpouco por toda a obra, nrgizam o su crn invntivo (Blo, 2002:189). A posio patnt no discurso d Hrbrto a d u a rprsn-tao s distancia do ral. Nas primiras sis Apaa, h vrios

    procdimntos para xpor uma toria u invalida ualur hiptsd a posia sr vista como uma art a. Por um lado, constata-sa arbitraridad sausurrana ntr signo signiicado, ntr xprsso intno xprssiva (no tntamos criar abboras com a palavraabboras Hldr, 2009: 273). Por outro, privilgia-s a imagmcomo matria potica , assim, airma-s u sta apnas prmit

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    15/321

    A AntroPfAgA festA 15

    analogias com o ral u passvl d montagns ininitas ( uma

    spci d cinma das palavras / ou uma orma d vida assustadora-mnt juvnil i, 274). A par das potncialidads imagticas, aspossibilidads combinatrias da linguagm constitum-s como umaora invntiva insgotvl librtria, como um ilm, como um

    jogo d imagns criativamnt montado. Mais do u uma via parao conhcimnto, o poma abr-s como spao ldico rsultant doprazr d mauinar o univrso numa strita / organizao d linhas

    vivida m iminncia / d imagm m imagm (i, 284).

    O canibalismo dsta posia, alm d atntar contra o a contra o su prprioa, obdc a um stilo alarmant (Hldr,2006a: 75) praticado ao rs das unhas da boca (Hldr, 2009: 583). discusso m torno do contdo d um poma, os doz txtos d

    Apaa acrscntam uma rlxo sobr a sua orma, igualmntdstrutiva, tanto no plano lingustico como strutural. No Txto 3, opoma-acto uma dana:

    Ainal a idia smpr a msma o bailarino a pr o pno stio uma coisa muito ortna caba no corao nos intstinos no nosso prprio ppod imaginar-s vntania ur dizro u acontc ao ar a dana[]somos obrigados a vr issou az o p ort no stio ort o p lv no stio lvo stio rtmico no p rtmico? (i, 277)

    Part da rlxo mtapotica xposta m Apaa unda-s no ntndimnto da posia como uma movimntao rrtica.O adjctivo orc-s a uma rtil intrprtao. A ualidad d srrrtico a d um vagabundia, d um viv na margm, d ums dsorintou prdu o Nort. em Hrbrto Hldr, o carctr rr-tico do su movimnto marcado pla conscint marginalizao, plaprtica d dsvios ortogricos da amlia dos carnvoros / antro-poagias gramaticais pgadas / ainda rvnts (i, 279), tudo

    intligncias para o uvoco ps dscalos / u chgam para iludira iluso d iludir (i, 292). H uma prtica agrssiva do rro, uacontc a nvl smntico a nvl sintctico. O projcto da carnii-cina potica driva d uma inuita rlao do pota com a lngua. Chgaa prguntar: um no uria uma lngua dntro da prpria lngua?(i, 572). O dsjo d uma lngua nova -lo tornar lstico o su

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    16/321

    16 diAcrticA

    prprio idioma, no s pla prtica da subvrso ormal, mas tambm

    pla suprao do u possa sr ntndido como a norma da LnguaPortugusa. Tal atitud particularmnt xprssiva nos pomasditados m 2008 3, ond Hrbrto Hldr s srv d strangirismos,

    varia os rgistos lingusticos, usa vocabulrio ou struturas do Portu-gus do Brasil, pontua como um castlhano, voca a posia provnal driva o ttulo da obra d um provrbio grgo. A sua busca xaspradad uma lngua analabta, plna (i, 573) rvla um pota us ur snhor do dom das lnguas (i, 575). Um poma intrn-

    sco dito a portugus dnts (i, 577) dsnha a mtora antro-pogica, aprsntando um sujito u s prd apaixonadamnt napalavra: Mordidos por dnts caninos, u substantivos! / Assim mncontr u prdido numa grand scrita (i, 539). A rlao coma lngua matrna , assim, um misto d amor dio, violntamntxprsso: a acrba, unda lngua portugusa, / lngua-m, puta dlngua, u azr dla? / scorch-la viva, a cabra! (i, 576). A tn-tativa d ncontrar a palavra vingativa pura rvla uma rptiotrgica do rro, um alhano contnuo d um pota u tnta supraras limitas da linguagm. A scrita ncontra assim um modo d vi-dnciar-s como rro ltal. A posia corrspond a uma dana antro-pogica rsultant d uma vocao homicida (Hldr, 2006a: 35),uma movimntao rrtica, ita d rros ironicamnt votada aorro. O xcutor dssa dana , no Txto 11, um pota u nuncaazia bm o u azia bm / ra mstr na art longa d prdr gra-mtica (Hldr, 2009: 294) u, apsar da mstria transgrssora,nunca ncontrara a contas com ualur casa / ualur oprrio

    to dsavindo com a sua obra / como l (i). A insatisao, aprmannt condnao ao movimnto o dstino do rrant, a lida sua dana. em Hrbrto Hldr, o canibalismo danant prptua--s, a dana az-s d passos nunca crtos, poru o rro smpr ocrto disso (i, 576).

    A posia aprsntada nos txtos dApaa tr no apnasos passos prprios, rrants rrnos, mas tambm um modo parti-cular d xcutar a sua corograia u alia dlicadza violncia.

    O pota alrta-nos, rvla a sua ncnao: No s suam duma nrgia bruta d uma crta / manira dlicada d coloc-la nospao (i, 283). Do ponto d vista ormal, os doz txtos d

    3 Hrbrto Hldr,A faa n ca f: a & a, Lisboa, Assrio& Alvim, 2008.

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    17/321

    A AntroPfAgA festA 17

    1971 so, s por si, a aplicao concrta dst msmo nsinamnto.

    Diz-nos o autor u sss txtos no so pomas (Hldr, 2006a:127). Sro dilogos por trm como intrlocutors um conjunto dlitors imprparados para sta dana, ou nsaios, por discutirmnos d potica. O pso da toria v-s ali transormado m lvza apartir do momnto m u, no sndo pomas, sts txtos s tornamprosa ubrada com aparncias pomticas. Por causa d um sntidortmico poru sim (i, 128).

    em Hrbrto Hldr, o ocio danant dsnha-s m torno

    do ritmo o alimnto partilhado ntr o pota, o poma o litor.O ritmo atribui corporalidad ao poma, prmit u possamos danaro canto:

    A posia no ita d sntimntos pnsamntos mas d nrgia dosntido dos sus ritmos. A nrgia a ssncia do mundo os ritmosm u s manista constitum as ormas do mundo.

    Assim:a orma o ritmo;

    o ritmo a manistao d nrgia. (i, 137)

    Ao longo do poma contnuo d Hrbrto, a dimnso rtmica trabalhada no vrso na ocorrncia d cos u ganham valor drro. qum olhi msmo u aprssadamnt a obra do potanotar crtamnt u h vocbulos rptidos uas m todos ostxtos. qum lia um pouco mais dmoradamnt suspitar u, por

    vzs, vocbulos dirnts podm sr agrupados como sinnimos dum msmo sntido. Por xmplo, poma mtaorizado m casa,pdra, paisagm, campo ou lugar. Todas as mtoras so auicolocadas como substituvis umas plas outras, todas transvrsais unssonas, impulsionadas ortalcidas por uma nrgia slvagm(Hldr, 2009: 274) u as atravssa rliga. Colocadas num dtr-minado contxto, gram um sntido u s dsloca ntr las, dntroda obra. Havr algum u j tnha lido o Pa c ouPha & Vx sm s tr surprndido a rcuar algumas pginasou a avanar outras tantas? Os txtos citam-s uns aos outros, rcolo-

    cando palavras-chav m novos contxtos, actualizando o su signi-icado, prmitindo u os vocbulos s iluminm uns aos outros adcirao dsta posia sja possvl. ess movimnto transvrsal rprsntado no Txto 6 pla imagm d uma bola, num jogo dhui, disparada plo spao da obra ora, impulsionada pla nrgiaa u somos convidados a assistir a incorporar. Nssa mdida,

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    18/321

    18 diAcrticA

    o Txto 6 contribui para a dscrio d um stilo: o da ritrao

    u r-contxtualizao. Como s a obra oss um calidoscpio,os vrios ragmntos do univrso ragrupam-s, sgundo uma lgicaintrnsca. Para st pota, a rptio rcomposio vo muitoalm da auto-citao so v. um modo d autoagia criativa simultanamnt crtica, pois cada vz u o pota s rpt valida orptido invalida o ocultado. esta tndncia autogica tm marcadosingularmnt a obra do pota. embora no tnha xrcido a mortpotica anunciada m 1968, o crto u oprou punas dstrui-

    s ao longo do su prcurso: xcluiu livros como Va AaouApa r; publicou duas smulas da Pa ta, m2001 2008, indicando tr ali apnas o ssncial da sua posia, comou num acto d apagamnto d todos os outros pomas. ectuourptidas rviss da obra potica m prosa, rivindicando prma-nntmnt o podr da dstruio da rgnrao. H algumaalgria antropogica (Hldr, 2006a: 128) no acto rtroactivo da rvi-so da obra a rnovada publicao dss xtnso poma sob o nom

    d o caa m 2009 atsta ainda agora a partilha dss caniba-lismo danant.

    o l pg3.

    embora s ric contra o litor, a obra d Hrbrto Hldr nuncao dmit do su papl. em vrios momntos, uma igura lgitimada,ou sja, o antropago autorizado plo pota a continuar o su stim:Diria um pota: a autoridad do autor, ou: a litura do litor ormas alotrpicas do msmo n originrio. A cada um compt a suacomptncia (i, 60).

    O litor dvr sr capaz d um stilo to voraz como o do pota.Como num ritual inicitico, m (v), o litor dspoja-s paracomungar da xprincia u lh orcida, num acto d clra,sucimnto humildad:

    Um stilo bruto, voraz, trmndo: rido a um tmpo prigosamntrido pla paixo. Mas is agora o trabalho inovador d sucr odiar. Dpois, com a boca nos tumultos da gua: bbr, bbr. e nca-minhar o strangiro visitador por corrdors uartos ond possa,com os ddos grands orts, mtr-s pla massa viva do nossocorao dntro. Dormir nto dbaixo d uma rvor muito brilhant.Mas primiro: clra, sucimnto, humildad. Comr o prprio

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    19/321

    A AntroPfAgA festA 19

    corao colrico, sucido, humild. Um stilo alarmant, muito para

    nos no dixar dormir sno dpois d compltamnt cumprido. e unto no dixass dormir o mundo. (i, 75)

    Os txtos dApaa convidam o sub-grupo d litors sp-cializados, sntados na msa antropaga snhors d uma vilcincia, a abandonar a distraco (i, 105) ou a alta d scr-pulos (i, 35), pois os pomas ho-d prmancr chados apstodas as dsocultas ho-d sr abrtos para um nls ntrcomo numa casa orcida (Hldr, 1999: 90). O litor dv dixar d

    sr gtico prparar-s para sr lvado por dntro do poma, nopara o vr d ora,pa, diramos, aui ali o u mlhor con-

    vir. Prcisa d ntrar no txto, sm tr nada nas algibiras biogr-icas, smiticas, psicanalticas, idolgicas, simbolgicas (i),no pod sr um dos acrobatas tricos (i). Tm d vir dlong, dotado d um talnto virgm, a virtud d manjar prguntasu m si msmas [achm] rspostas (i). esta voracidad du o autor ala no smlhant a um piuniu (Hldr, 2006a:

    60), mas a uma mort do prprio litor para u possa rcbr ounivrso do txto. H u no sr distrado, h u abandonar-sao poma, dixando-s lvar por dntro dl colhndo, nto, no sucntro, a magia da idntiicao do corpo com a matria asormas (Hldr, 1990: 3). No Txto 5 cria-s a algoria d um umhomm u abandonass a amlia / apnas para sr um obscurants-simo pintor d cavalos (Hldr, 2009: 282). Sria um rtornado linguagm mtica da naturza, um xilado, um sucido d si, ntr-gu ao momnto rvlao potica. ess pintor sria um pota ouum litor ou um crtico com sprito d pota. eis a cumplicidad(Hldr, 2006a: 146) dsjada.

    Msmo u ao longo da obra d Hrbrto Hldr os crticossjam conotados d modo ngativo, no possvl comprnd-la smtr como rrncia ss msmo univrso d prsonalidads com ula vai dialogando. A contmporanidad d Hrbrto Hldr tm algoa aprndr com o pota sobr a sua linguagm. Os possvis intrlo-cutors d Apaa no sro s os crticos mas tambm os

    potas a um a posia ocupa como tma d rlxo. Comtm u-vocos u o autor, pacintmnt, corrig nuanto os conduz, comou por dntro da sua casa, como s lhs nsinass o corrcto modo dxrcr a antropoagia a u s chama litura d posia.

    Ao srvio dssa intno pdaggica, a utilizao d aspas nstsdoz txtos um rcurso particularmnt signiicativo. S por um lado

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    20/321

    20 diAcrticA

    assinalam o discurso dircto, dsss supostos intrlocutors, por outro,

    assinalam uma citao. H momntos m u o autor cita concitosu prtncm lngua corrnt os submt sua prpria intnoxprssiva. Cita os lugars-comuns, ao msmo tmpo u assinala a suainsuicincia. S podro sr usados s no houvr outros mlhors,por isso dvm sr notados -apa (por honstidad intlctual,talvz). O uso dst sinal grico indica, assim, a dsaduao do r-rnt rrncia, a impotncia do locutor d ncontrar o trmo justo,a palavra vingativa pura (Hldr, 2009: 31). As aspas apontam

    tambm para a naturza scrita do discurso , por isso, artiicial. Almdisso, constitum um dos rcursos prprios da crtica, u s srv daspalavras d um autor para dpois as comntar. O trabalho do crtico

    viv dss minucioso dsmmbramnto txtual. qur o uso das aspasindiu discurso dircto ur apont o lugar-comum, a insuicincialingustica ou a notao crtica, consist num modo d apropriao dapalavra d outrm , nssa mdida, pod sr considrada um modo d

    apaa, assinalado na prpria rdaco do txto. Ao srvir-s dasaspas, o autor dos doz txtos d 71 transorma-s m crtico, rivindi-

    cando para si o dirito citao dsncontrando nos sntidos(Hldr, 2006a: 127), dstabilizando as crtzas d uma vasta comu-nidad ducada numa antiussima tradio u associa a litura cincia. Rduca os litors crticos; labora umaa aduada sua obra. Avisa-os: A ignorncia muito mais brilhant u a cin-cia. Sab muitssimo mais (Hldr, 1999: 90). A ras uma amaapara ualur crtico, mas tambm uma mo orcida u o con-

    vida obscura dana antropogica.

    Hrbrto Hldr tambm prtnc drradiramnt comunidaddos litors antropagos volta a xprimntar com ls o pasmo(Hldr, 2009: 292) u a sua posia provoca. A cada xrccio mta-potico tnta trinar o mdo como uma oca (i, 293). Olha assimo su rosto no splho assum-s como antropago, um mino-tauro ntrgu a um stim antropo-auto-gico (Hldr, 2006a:149). Pratica a cincia slvagm d invstigar a ora / por dntro dosolhos, abismando-s diant d uma dana inlamada u s rgu

    prant um olhar magniicamnt alimntado. entrga-s antro-paga sta / d star sobr si (Hldr, 2009: 292). O sujito us obsrva uma igura d litura (Pimntl, 2007: 36), uma prso-nagm sada do txto, como s indica no Txto 10:

    agarra-s a ss dstino a prsonagm sadado trabalho das palavras dobra-s sobr ss mdo

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    21/321

    A AntroPfAgA festA 21

    ss pasmo algria ssa antropaga sta

    d star sobr si d ssa obscura dominaostar m cima dla (Hldr, 2009: 292)

    O sujito d-s conta da sua mort, na posio d dvorado alimnta-s dss vnto, como dvorador. Ao modular a sua voz nopoma, o pota prd-a prd-s nl. Mtaoricamnt, morr a.S xist, dntro do txto por isso s a partir dl u nos podalar, como xcutor, obsrvador vtima d uma clbrao unsta:

    A a a a- a pa a a pa p a a a , paa a a a pv aaa. na- a a aa paa, a ha paa , j a , aa a pp-a, av a a a v. (Hldr, 2006a: 153)

    O autor u s airma inxistnt, votado ao silncio, d lugar prsonagm u d pota s z litor, crtico d si msmo, paransinar os crticos a srm apnas litors. A ausncia do autor

    pdaggica s por si. Furtando-s a xplicas do u so airma-s d princpio muito bvias (i, 152), Hrbrto Hldr coloca-sno lado sombrio do silncio aasta-s da obra, rcusando ntrvistasou ualur outro tipo d possibilidad d s podr stablcr pontsntr biograia posia.

    Alm da sua ausncia, nsina-nos ainda a sua a nossa humil-dad. O su discurso sobr potica, u podria considrar-s umatoria, rsist a ss statuto ao airmar uma ignorncia pssoal,

    ngando para smpr a crtza rcusando rspostas a uaisur pr-guntas u s aam a sta posia. Ao msmo tmpo u nos autoriza,dixa-nos um trgico aviso: lia-s como s uisr, pois icar smprrrado (i, 153).

    blgf

    Helder, Hrbrto, (1971), Movimntao errtica, caa 2 (rvista litrria

    coordnada por J. P. Grabato Dias Rui Knopfi), Lourno Marus, Novm-bro, pp. 31-33.

    (1978), A posia vitaliza a vida: carta a eduardo Prado Colho, Abril,n. 1, Lisboa, p. 46.

    (1990), Posia Toda: Hrbrto HldrA Phaa, n. 20, Outubro/Novmbro,Lisboa, Assrio & Alvim, pp. 1-4.

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    22/321

    22 diAcrticA

    (1999), Por xmplo,A Phaa, n. 69, Lisboa, Assrio & Alvim, p. 90.

    (2004), o Pa c, Lisboa, Assrio & Alvim.

    (2006a), Pha & Vx, 4. d., Lisboa, Assrio & Alvim..

    (2006b), o Pa Va, 9. d., Lisboa, Assrio & Alvim.

    (2008),A faa n ca f: a & a, Lisboa, Assrio & Alvim.

    (2009), o caa, Lisboa, Assrio & Alvim.

    Farra, Maria Lcia Dal (1986), A Aa a la la a c-

    a Pa H H, Lisboa, Imprnsa Nacional-Casa da Moda,Colco Tmas Portuguss.

    Pimentel, Diana (2007), V a V, l r, ua pa H H,Porto, Campo das Ltras.

    BartHes, Roland (1973), o Pa tx (trad. Maria Margarida Barahona),Lisboa, edis 70.

    (1984), A Mort do Autor, o r a la (trad. Antnio Gonalvs),

    Lisboa, edis 70, pp. 49-53.Belo, Ruy (2002), Posia Art Potica m Hrbrto Hldr,na sa a Pa,

    Lisboa, Assrio & Alvim, pp. 178- 193.

    Borges, Jorg Luis (1989), A Suprsticiosa tica do Litor, d (trad. JosColao Barriros, colco Obras Compltas), Lisboa, Crculo d Litors,pp. 209-212.

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    23/321

    o sm lh lz1

    (s s c m H Hl)

    eUNICe RIBeIRO(Univrsidad do Minho)

    asc

    Th potics o continuity undrlying Hrbrto Hldrs litrary

    writing, as wll as th powrul and divrs intrtxtual dialogusit kps nourishing, justiis th dvlopmnt o a possibl barourading o his potic work. Mor than pursuing a thmatic or a stylisticproil, our ocus is on th visual uality o Hldrs potry, namly onth stratgis that undrli a crtain dramatising o his potic look,and on his distinctiv mods and contxts o prcption. This lads us,on th on hand, to dirnt approachs basd on photographic andcinmatographic visual grammars, or still li painting tchnius andintrprtativ cts. On th othr hand, it also implis rligious and

    visionary barou imagry, all smingly summond by Hldrs -v writing and his procssual undrstanding o bauty.

    Olhando, do ponto m u nos ncontramos, para a vasta biblio-graia ditada d Hrbrto Hldr, ica a snsao d uma disputaintrminvl ntr o u sja scrvr o u, aparntmnt, tmu sr a scrita. entr Poma posia. O u rvrt dirctamnt do

    modo como o pota tm comprndido o su oicinal: um art-sanato u s az com o corpo contra l, u lida com sangu carnmbora s suiv uas smpr a, spacialmnt organizada

    1 extrado d um poma d a ca d Hrbrto Hldr (c. Hldr,2009: 413).

    DIACRTICA, cinciAs dA literAturA, n. 23/3 (2009), 23-48

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    24/321

    24 diAcrticA

    stabilizada, para s traduzir m a, m propulso giratria, num

    aah aa2 u conronta aronta a organizao aspctualda smlhana, dduzindo-s num saldo uilibrado d cundidad agonia. [P]ratica-t como contnua abrtura (Hldr, 2009: 537):a injuno hrbrtiana, tocando d um s golp a carn do pota ado poma, dsloca-s m dinitivo d uma dimnso pidrmica diconicidad rlatvl m dirco a um procsso (u tmporalidaddsmdida) d dlagrao d suspnso ormal como condio dingrsso no -ado potico, no ulgor calcinant innarrvl

    da sua matria trmnda.O p, u a posia hrbrtiana tm acolhido intrnamntcom continuada prsistncia tmtica (s lgtimo alar-s auim tma, como ustionara Pinto do Amaral 3), rsolv-s, no urspita o conjunto imprmannt da obra, m igura litralizada,ds-igurada, no j igura mas vrdad nomnica: o corpo (o da)obra, a obra corpo no u a ambos s az comportar d rrncia, ddslocamnto, d mutao, d combusto num sntido u sobr-tudo procssual apnas longnua ou rsidualmnt gstltico. Umcorpo astral, pulsant, u chantagia prmanntmnt o suportstagnado u o contm: m sinal d si. esta idia do potico vivo,dopa, u rsist obra ita ao rgisto da scrita, ur dizr,s invitabilidads da sua auto-rprsntao, tm ditado stratgiasd publicao pculiars, como a d dsnrolar no tmpo, digamossrialmnt, rtratos (anamricos) do todo potico dado, d cada

    vz, como uno intiro. estratgias u no xclum portanto algumanarratividad, no su gsto (a)prsntativo uma narratividad mais

    circunvolutiva do u linarmnt historiogrica, crto , nm umadimnso rtrica muito vidnt, plo u aplam a uma rlaoprormativa prsistnt ntr txto dstinatrio (cada um dls) naconstruo do u possa sr o sntido dsta posia, msmo uandos diz ita contra todos, por um s (Hldr, 2006a: 153).

    2 Tomo os trmos na acpo ort u lhs d Didi-Hubrman: Ouvrir st unava au sns ort du trm: cst un procssus d transormations multipls o strasorm constammnt la rgl mm d cs transormations. Cst un travail ui, tour tour, dploi un condit (travail d lacouchmnt) t impos un puismnt, unprocssus d dstruction (travail d lagoni) (Didi-Hubrman, 2007: 37).

    3 Rcordo, d passagm, o dsconorto crtico d Pinto do Amaral uanto aplica-bilidad d catgorias comuns da anlis litrria posia d Hrbrto Hldr: A pr-pria idia d a dicil d adaptar a uma posia u progrid por ondas mtaricas,por vagas d irradiao vrbal m u surgm, d vz m uando, palavras condnsa-doras d nrgia, autnticos plos aglutinadors do discurso (Amaral, 1991: 60).

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    25/321

    o sombrio trAbAlHo dA belezA 25

    o caa (2009) j pois a stima vrso dss corpo m

    movimnto u a posia hrbrtiana (para trs, contam-s uatrodis d Pa ta, um primiro o caa com pomasrunidos m 1967, as notas imprtrvis d o pa m 2001, a a & a d A faa a , d 2008),um corpo u vm rcompondo a sua anatomia ao msmo tmpo urtarda a promssa d silncio para u smpr tndu. No dixa dsr curioso notar como o impulso auto-rtratstico (riro-m simul-tanamnt posia ao pota u por la scrito) convoca gstosou atituds ains m autors u podro parcr-nos rmotamntcorrlacionvis: pnso nss v a a u Rgio, m 1929, uischamar baa para ond oi sucssivamnt importando txtosoriundos d outros sus volums poticos ultriors, como umcomp, scrvi m tmpos, vitral a vitral a sua rosca biogra-ant (c. Ribiro, 2002). Um livro continuadamnt rito, ond srundm, rordnam acrscntam novos txtos, sgundo um caract-rstico princpio rgiano d mobilidad intrtxtual d tatralizaod scritas. enim, um livro prcrio,p, dscntrado ou x-cn-

    trado: uma no-obra. Ainda u a vocao do sja clara m Rgio,como alis m H.H. Nst, porm, a suspnso biogrica parc dii-cilmnt dirimvl, j no usto d tmpo ou d mort (a mort up im ao tmpo biogrico ao su rlato); ants drivao dirctad uma a do biogrico, nuanto txto provisrio ouimpossvl, dond um xcsso d dio como gsto cntrugo ddclarado protlamnto (c. Diogo, 1990): as sucssivas incoinci-dnts smulas poticas u tm vindo a lum (a mtora torna-s

    aui particularmnt justa) do a prcbr uma axa paradoxal-mnt movdia (c. Rubim: 2008), assmlhando-s mais a xplosivaspulvrizas auto-rtratsticas do u a soros d concntraocumulativa: o cntro rcntrando-s para ora m vz d rluir con-cntricamnt. O cntro nrgtico, na vz do cntro topolgico.O a d Hldr d rsto, sabmo-lo, brbaro, incndirio: xpan-sivamnt, transormativamnt. Lavra-s, dglut-s, digr-s,sguindo a biologia clular dos organismos at assimilao complta,i.. a ualur coisa como um dsaparcimnto. D dio m dio,

    tm-s alguns litors uixado da rptida incompltud dauilo ua xpctativa ditorial aria tomar por complto, apontando para umaspci d raud u j tm ditado algum azdum d mrcado 4.

    4 A ttulo xmpliicativo, rgisto st comntrio d um litor auando da rcntdio d o caa: Tudo muito bonito, mas parc-m havr um constant

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    26/321

    26 diAcrticA

    Pnsando tambm (mas no apnas) nst undamntal princpio

    procssual, ou nsta pa a a, nos trmos d Rubim,u toma o potico m dvir nuanto ormao d idioma,dtr-m-i aui num crto barrouismo u a scrita hrbrtianam parc prmitir acalntar como possvl (ainda u insuicint)curso d litura: no tanto no u tocaria uma dimnso stritamnttmtica ou stilstica, mas ants m rlao a prssupostos strutu-rais a stratgias d produo litrria daa visual. Da dicopotica hrbrtiana tm-s dito sr la tndncialmnt

    a: part d dntro para ora, m sintonizada rspirao com oviscral, com o animal, com o scatolgico; racnd, por outro lado,uma ancstralidad um primitivismo u, podndo sr modrnos,no dixam d propndr a uma crta dngao d um crto modr-nismo mais aim d um mtadiscurso razoavlmnt ndogmico. alis o prprio pota um tm aianado a sua no modrnidadao msmo tmpo u oi tcndo uma vasta irmandad potica(c. Mai, 2007: 9 5) na ual todos s ncontram com todos, todasas coisas com todas as coisas. nst sntido u Lus Mai (.)

    alar d uma posia d xa aaa m rlao a Hldr ou d va aaa, s pgssmos na palavra do pota dsconstrangida da contmporanidad sus dcoros, u praticaa todo o momnto, sob graus vrios d conscincia, o roubo cita-cional, a mudana, uma htroglossia intnsa poruanto diusa diicilmnt pnsvl m trmos stritos d inluncia, dntro dum uadro d rrncias culturais stticas alargadssimo. Smprporm rvlia do modlo do cnon, azndo-s inclinada-

    mnt, aha aa. crto u, na irmandad u otxto intrnamnt avrba, no s contam com runcia sintomticarrncias barrocas xplcitas (rgistm-s aluss rpidas a Bachou a Handl, por xmplo, na sco indita d A aa a

    ) ainda u a hipts tnha j parcido convincnt oprativa at ond o pod s-lo a divrsos crticos litors da posia d H.H.6.

    dsrspito d Hrbrto Hldr plos sus litors, a um, priodicamnt, obriga aabrir a cartira para u possam aduirir mais uma dio da sua obra complta u,no im d contas, s rvla smpr incomplta. Cornt oi, rcntmnt, Frnandoechvarra, u intitulou os sus pomas runidos Posia incomplta. Ruy Vntura, a14 d Janiro d 2009, s 16:02 [http://lr.blogs.sapo.pt/252755.html].

    5 Agrado a Carlos Mnds d Sousa a cdncia, m vrso digital, do txto dLus Mai u constituiu a sua dissrtao d doutoramnto, ainda por publicar.

    6 em 88, Gasto Cruz apontava a ualidad barroca da art potica contida ma ca; Jorg Hnriu Bastos (2000), considrou Hldr um pota gnuina-

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    27/321

    o sombrio trAbAlHo dA belezA 27

    Proponho-m prossgui-la aui, sguindo o corpo pomtico hrbr-

    tiano pla vrso mais rcnt d o caa7,tomando-o comolugar hrmnutico coso (sm procupas prioritrias d dmar-cao d possvis ass ou tndncias), dtndo-m m particularna viso potica na spcica dramaturgia do olhar u acolh, nossus modos contxtos prcptivos.

    um lh p

    A ualidad das imagns hrbrtianas tm suscitado divrsosparallos, por vzs mais ou mnos dsncontrados, com os univrsosplsticos da pintura particularmnt do cinma da otograia.No su studo d 87 sobr o surralismo portugus, Maria d FtimaMarinho rr xmpliica o u toma por imagns caractristica-mnt surralistas na obra d H.H., ainda u sobr a spciicidaddas msmas nos lv to-s a supor alguma spci d rlao comum tipo d linguagm modlar ou cannica, dinidora da sttica(1987: 284 8), a ual linguagm adjctivar, mais rnt a prop-sito dos pomas m prosa dra mv Va Aa,como ousada plo u nla abunda o inslito o stranho(.: 286). embora o suposto surralismo prtico advogado por Marinhopara a obra hrbrtiana tnha sido alvo d ruacionamntos matizs por part d outros litors da posia do pota, como NunoJdic ou Manul d Fritas, j ali a atno s cntra m crtos

    mnt barroco; na sua dissrtao doutoral, Lus Mai (2007) prsta uma atnodtida a divrsos aspctos da posia hrbrtiana u nuadra no univrso ilosico sttico-cultural do Barroco (o vasto lgo dos pomas, a mistura grotsca d stilos,a prmannt convocao d Dus da mort, a mrgncia do Trror, a atno msica m su ncurvamnto harmnico com o mundo).

    7 Todas as citas da posia d Hrbrto Hldr ao longo dst studo rmtmpara a dio d 2009 d o caa, salvo s pontualmnt acompanhadas d outraindicao bibliogrica.

    8 Rlia-s a dita passagm do txto d Marinho: O poma o A Vapossui imagns caractristicamnt surralistas: Dai-m uma jovm mulhr, comsua harpa d sombra / su arbusto d sangu, Mu dsjo dvora / a lor do vinho,nvolv tuas ancas com uma spuma / d crpsculos cratras. Nas obras sguints,continuamos a dparar com um tipo d linguagm u no ica nada a dvr dosautors surralistas consagrados: Cidads so janlas m brasa com cortinas / puras, practas com chuva ntr aspas, gograia m plvora / solitria brancura / dla-grada, a lor das lmpadas, poira / a rmir por canos inos (), e o corpo umaharpa d rpnt.

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    28/321

    28 diAcrticA

    ()itos rtricos d dslocamnto (lndo ousadia como v)

    vrbal, msmo s hipotticamnt autnticado por um particular pro-grama sttico, ond viro dsmbocar divrsas lituras da mtorahrbrtiana, na suapa9 d rsultados imagticos, ou aindarlxs outras sobr umapa a a singularmnt pr-pria scrita potica d H.H. Assim, para Jdic, o visionarismo daposia d Hldr, sguindo na linha alumica da potica rimbaldiana,radicar num mtaorismo d absoluta librdad u az do pomaum sr sico, d palavras d carn, sm u nunca as suas imagns

    rsval[]m para o spao do arbitrrio ou do absurdo da imagmsurralista (ap Machado, 1996: 238). Fritas insistir igualmnt,por su turno, numa conscincia hrtica d suprao do surra-lismo por part d H.H., cuja scrita potica carrga uma rgida suocant constlao d imagns u nada dv ao mito surralistada scrita automtica (Fritas, 2001: 28).

    Ainda assim, smpr a propsito do domnio da capacidad dinovao lingusticos dmonstrados plo txto hrbrtiano, Jdic norsist a convocar a pintura d Magritt d Hoppr para aludir a umspcico aa do xrccio litrrio do pota:

    Nos contos d o Pa Va (1963), o domnio da linguagmaduir uma mstria m u a capacidad rtrica do pota s con-

    juga com a xplorao d situas d um uotidiano ntr o ral oantstico. Nsss txtos, a comunicao dircta, com uma xprssou az aplo oralidad d um modo uas tatral ou, at, cinmato-grico, produz um ito ralista u lmbra a pintura d Magritt comos traos crus do visualismo d um Hoppr, a s ncontrando uma das

    mais altas manistas da inovao lingustica litrria d HrbrtoHldr (ap Machado, 1996: 239.)

    O ralismo diga-s talvz xcssivo ou, pgando no voc-bulo d Jdic, visionrio, o u xplicar m part as analogiaspictricas vocadas ainda u o ito visualista produzido noprocda j, aparntmnt, d particulars dslocamntos smicosou mtaricos, ssncialmnt abstractos, mas d uma situao d

    pa lingustica m dircto m u a palavra aduir umspcico andamnto cnico mais concrtamnt obsrvvl ou

    9 O ostnsivo culto da sumptuosidad das imagns, rrido por Gasto Cruz(1988) a propsito do ulgor da posia hrbrtiana, talvz s prmita prcbr, ualita-tiva uantitativammnt, como gradincia d dslocao smntico-contxtual rlati-vamnt a um ou a mais do u um padro litrrio.

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    29/321

    o sombrio trAbAlHo dA belezA 29

    audvl10. A idia d tatralidad ou, mais xactamnt, d aa-

    a ocorrria tambm a Manul d Fritas ao discorrr sobr crtosincompatvis na xposio da intimidad (suposta) m Ap-a r (2001: 39). e a convocao da imagm cinmatogricasurgir-lh-, coincidntmnt, logo a sguir, m pondrao acrcada tactilidad viscosa do mmorialismo onrico do livro:

    Uma outra rtrica da intimidad, talvz mnos compromtdora,pod sr ncontrada nas vrias dscris onricas ( no ncssaria-mnt surralistas) u parcm ampliar prvr, rspctivamnt,

    a sttica do psadlo m Brgman David Lynch. Mas o crn dstasviss viscosas ( stranhamnt lcidas no sio do trror) dv srprocurado m mmrias d inncia no u nstas possa havr dmonstruoso dsmsurado (.: 40.)

    No si s dscrio ou onrico, a par d surralista, sroos trmos mais justos para nomarmos a obliuidad pouco nomvlda sugsto auto-rtratstica m Ar. D momnto, intrssam-msobrtudo as rrncias substncia dsta scrita: sua cnograia, matricidad invocada, viscosidad, ao modo como inscrv otmpo. So muito idnticos os trmos com u Mik Bal, no suassinalvl xcurso crtico sobr o barroco contmporno, s rra uma particular ualidad das imagns barrocas no sntido d nvol-

    vrm o obsrvador numa xprincia intrcorporal do tmpo: stickyimags: imags thath th viwr, norcing an xprinc o tm-poral variation (Bal, 1999: 166). Na sua intrprtao da poticabarroca, Bal insistir na importncia dop va na co-dpn-

    dncia u por l s instaura ntr sujito objcto, d sort u auma clssica rlao d autoridad do primiro sobr o sgundo ssubstitui um nxo d corrlatividad d transormas corrlativasntr os dois plos abrangidos no contacto prspctico. O u vm aconirmar, por um lado, a indxalidad ssncial da imagm barroca, asua podrosa propnso dctica, notavlmnt obsrvada por Marin,m 77, a rspito d Caravaggio (c. Marin, 2008); por outro lado, arotizao vidnt do ocio do olho do olhar. As viss viscosas

    assinaladas por Fritas sugrm um rlxo, uma adrncia d

    10 Sobr o txto hrbrtiano tm alguns crticos arriscado comparas musicais:Joauim Manul Magalhs voca Philip Glass Stv Rich (Magalhs, 1989: 128),Manul d Fritas, o lbum th V Ja la baaa d Morton Fldman (Fritas,2001: 30). No dixa d sr curioso notar a contmporanidad radical do intrtxtomusical, artstico, prrncialmnt slccionado pla litura crtica d H.H.

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    30/321

    30 diAcrticA

    suprcis u visa, porm, alm dlas, para dntro d uma mmria

    da matria: talvz isso u, pnsando na manira caravaggsca, Baldsign por a pay (.: 188).

    u implacvl podr o dsta ordm das matrias,a ordm do acssvl, o prodgio ohdo ar na luz rvolvidos d um spao para outro, d rpnt ntnd-su um corpo s um corpo: prova do improvvl, ou

    impossibilidad, ousplndor, ouu alta tnso! diz-s:toca-m, toca-s, os ddosdspdaam-s, auilo m u s toca alumia-sat ao intacto, o intocvl (Hldr, p. 539)

    Suicintmnt dbatido oi j o alcanc simblico do tou dos ddos na posia d Hldr no sntido do gnsaco, do sminal,

    do cundant, do lico. Anotaria, a propsito do xcrto apontadod A aa a , o u m parc star aui rlativamntprximo d umaa comprndida dntro dos parmtros da

    a tolgica11. No s trata apnas, julgo, d acdr, plos ddos,a uma intrioridad matrica viscral, a um avsso do corpo comolimit prcptivo (v. . um hptico baconiano); nm apnas d xpri-mntar uma prormatividad dsigurant prcbndo-a como distor-o ou dormao anatmica, uro dizr, como smlhana ngativa.Trata-s, m ltima instncia, d dmolir a possibilidad da igura

    da prcptibilidad, d pr m jogo uma iccia trans-rprsntativa

    11 Volto a Didi-Hubrman aos distintos parmtros igurais u dscrv nombito mais lato da concpo tolgica crist da, ntndida sta ora do aspctoigurativo, nos trmos d uma vaaa. Aa rr a m particularuma prturbao da rprsntao u abrica imagns dissmlhants como procdi-mnto ncssrio para projctar para ora ou para cima o trmo da smlhana(sobrnatural) visada. O procsso consist, portanto, numa puriicao da igura, rla-tivamnt rprsntao dircta do divino, mpurrando-a para a sra do ou do dsjo mstico: [] l pch adamiu ayant dchir ou murtri laa d la sul ui vaill, n c contxt , cst un a a ulhomm sst vu condamn n attndant la in ds tmps. Dun part, lhomm st vouau dissmblabl ds uil touch la matir (c uil ait lorsuil compos un imagvisull). Son sul rcours sra d volontairmnt abriur ds a a dissmblabls la natur pour touchr, pour visr au moins, linvisibl imag dDiu ui ait son plus proond dsir (Didi-Hubrman, 2007: 224.)

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    31/321

    o sombrio trAbAlHo dA belezA 31

    cujo podr visual ou imagtico assnta, contraditoriamnt, na virtua-

    lizao da imagm intocvl ( os ddos / dspdaam-s), o untra por crto na linha do protlamnto do potico autogico, spnsarmos no spcico tou da scrita. O tou to criacionistauanto dstrutivo: curto-circuita a smlhana, a possibilidad do

    visvl, nuanto a viso, luz, ao dsjo. A abrtura prcb-s como nvolvimnto dinmico: h um princpio d rvrsibilidadno tocar (toca-m toca-s) u maranha transund sujito objcto, o u toca o u tocado, uma nrgia usionant, mta-

    igurant u projcta um spao, ou talvz mlhor, um aaluci-natrio, d spra d xpctativa. Um lugar intnsivo protnsivo,aurtico, clbrativo: um lugar cinmatogrico.

    Comunidad das punas salas d cinma, no muita gnt, au houvr tocada m chio como o corao tocado por um ddo vi-brant, tocada, a puna assmblia humana, por um sopro nocturno,uma aco stlar. No s vai l m busca d catars dircta mas darrbatamnto, cguira, trans. Vo alguns m busca d blza, dizm. uma cincia dos movimntos, a blza, cincia d ritmo, ciclo, luz

    miraculosamnt rgulada, uma cincia d spssura transparnciada matria? D todos os pontos a todos os pontos da trama luminosa,ao undo da assmblia sntadamnt muda morrndo rssuscitandosgundo a rspirao na noit das salas, a mo instruda nas coisasmostra, uintuplamnt sprta, a volta do mundo, a passagm dcampo a campo, ogo, ar, trra, gua, tr (thr), vrdad transmu-tada, orma. A blza a cincia crul, impondrvl, smpr rtil, damagia? ento sim, nto ssa nrgia solta, conduzida, a blza(Hldr, 1998: 7.)

    Noit luz, spssura transparncia, mort rssurrio, cin-cia magia, a volta do mundo: prgunto-m, por ntr as rptidasprgas do txto, s no sr o cinma, a imagm lmica, d um p

    va hrbrtiano, o modo da imagm contmporanamnt maischgado imagm barroca ur nuanto proposta prcptiva, urnuanto lugar intrplativo litrgico12. o ppa: assim

    12 Sm intno dircta d alargar o lnco j volumoso dos possvis intrtxtuaisna posia hrbrtiana, mas sobrtudo m abono da hipts sobr a particular aptn-cia da linguagm da tcnica cinmatogricas para rpor o tipo d prcpo sobrs-saltada undamntalmnt contra-discursiva convocada plo objcto visual barroco(pictrico ou scultrico), pnso no caso (tambm contmporno) d Antonioni, nasua to brv uanto arrbatadora curta-mtragm l a mha (2004),ralizada pouco ants da mort do cinasta. Filmada no silncio absoluto do intriorda igrja romana d San Pitro in Vincoli, ond s acolh o m d Migul nglo,

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    32/321

    32 diAcrticA

    vm a rrir Hldr a tcnica cinmatogrica, mais alm, nst txto

    indito d 98 u intitula ca. O plural convoca particularsainidads com a scrita u a sua posia smpr acalntou: A scritano substitui o cinma nm o imita, mas a tcnica do cinma, nuantoocio propiciatrio, suscita modos srogricos d azr clbrar(.). Passam tais modos pla prtica d uma sabdoria d olhar d vr assnt numa atno ardnt (.). Aa sr, ainda,

    aa, posto u dsncssitada ou dsntndida da visibilidad( suprci), da continuidad ou da contiguidad normalizadora

    homognizadora do visvl. Os olhos, na posia d Hldr, trabalhamno abismo, abrupta mrgulhadamnt:

    [] Nadador louco, vrtical,srgo,s abr os olhos no abismo. S uando icacgo, ntr varais d sal, no undo.quando uma bolha, l todo, luzindo dos pulms cababbda. Ou ntr as natasu mo a mo tcm no bloco rgido as corolas

    vlocssimas. uma art da sncop,arborscnt, uma to ngrmart d cgar rnt s plpbras das ostras.e os olhos drontam as pupilashipnticas, dicis. essa art d lunaodas prolas. Uma art d olhar rvlta, abrupta,mrgulhadamnt.D cgar um as olha. (Hldr, p. 431)

    O conronto mdusant, u rp sacriicialmnt (as pupilasso ) a corrlatividad d agnts prcptivos, dir-s-ia alisobrpor uma xprincia-limit a uma rprsntao-limit (auilou, no contxto spcico da pintura contra-rormista spanhola,Stoichita aria corrspondr justamnt ao a v13): a

    a plcula no s rgista como incorpora la prpria o spao-tmpo d uma xprin-cia contmplativa mditativa, sica mtasica, traando-s ao ritmo dos trajctosprcptivos/corporais/passionais u s stablcm ntr o olho da cmara, por umlado, , por outro, o da sttua d Michlanglo, o do su obsrvador intrno u ,tambm l, Michlanglo (Antonioni), inalmnt o do spctador, ora do ilm,maranhado na rd tctil dos olhars dos nigmas.

    13 Rtomo aui as concluss inais d Victor Stoichita a propsito da rprsn-tao da xprincia visionria, no caso particular do a v siscntista:el intrs d los cuadros u rprsntan una visin rsid n l problmtico statusd la imagn n rlacin con su objto. []. est caso limit d iguracin (l cuadro d

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    33/321

    o sombrio trAbAlHo dA belezA 33

    xtriorizao d uma xprincia da a com a di-

    rna (c. Stoichita, 1996: 153). A cguira u p visual assgura ainda assim a prsna (rtrica) d uma dirna oud uma distncia m si msma no-igurvl. Alm d u s dixacolocar num uadro d intns porvntura ainda aprcivl porrmisso a uma nomnologia do corpo mstico uma gramtica doxtas. Vai-s ao cinma como s nada para o abismo: a dssato ngrm / art d cgar ual s chga, parc podr prcbr--s, mdiant uma gstualidad activa14 u a provou.

    A usto da intncionalidad, com dircta rlao a uma poticado azr artstico, raparc na posia d Hldr com signiicativa r-uncia, o u dsilud razoavlmnt o dbat sobr a contingncia,o acaso ou a inconscincia no u toca a oicina potica imagticahrbrtiana. Uma crta gstualidad prparatria ou antcipatria, umcrto suma ou stratgia d aco potica, ainda u sob a ormu-lao uturant ou oracular do dsjo, torna-s, m crtos casos, muitovidnt: o p ava, d Apaa, (cor)rspond a umainuvoca (conuanto impossvl) indispnsabilidad programtica.

    prcisava-s d um pintor d cavalosum homm u abandonass a amlia apnaspara sr um obscurssimo pintor d cavalosuma criatura viva d ddos vivos longnua d corao longnuonada mnos u um slvagm u viu monstros dourados a si msmo dissss ntrga-t ao u mlhor t pod sucrou dz ddos ainda assim xtnso para um tm uma vidaanimais blocos d ouro uma nrgia inxplicvltoda a luz sugria nl uma pulsao nocturna

    uma blza indomvl uma lvzal ntrava na poss d uma viso uma hrana d ritmosnto podria dstruir tudo numa dvassido aracndao prto o long o cavalo no campo l o brbaroapnas um pintor d cavalos o impossvl (Hldr, p. 282)

    Nm smpr sr to ntida, porm, a rontira ntr a no intn-cionalidad uma intncionalidad ngativa. Apsar d tudo, a

    visin) s la scniicacin d una xprincia xtrma (l acto d la visin). Si, d nustrosurzo pudn drivar-s conclusions vlidas, stas concirnn a la conluncia ntrxprincia-lmit y rprsntacin-limit (Stoichita, 1996: 183).

    14 Sguindo o msmo crtico, a prtica da dvoo nvolvia um complxo d rla-s instvis ntr uma linguagm gstual passiva uma linguagm gstual activa: aprimira ntndida ssncialmnt como da toania, a sgunda, dstinada sobr-tudo aao sagrado (.: 164 ss.).

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    34/321

    34 diAcrticA

    uao d causa gramatical, prsnt nos vrsos u a sguir trans-

    crvo d A aa a , talvz prmita vrtr a a(u aui induzida) nos trmos d uma altrnativa d inocnciaintncional a uma rchaada no-intncionalidad radical do olhar:cguira sr portanto modalizao. Para acrtar p no vr:

    s m vndam os olhos, u, o aruiro! acrtom chio no alvo poru no o vjo:[] cgo

    acrto m chio:poru no uro (Hldr, p. 607)

    P j

    Modalizao podr tambm urr dizr: montagm.Rtrocdamos ainda ao txto d 98: tndncialmnt rordna-

    dora da prspctiva, a montagm, cuja matriz potica, sup um agir

    procssual aui dsnlaado d uma strita tlologia das ormas dirigido a va.

    Crtas montagns pomticas ditas spontnas, inocnts (d umalcias disp a inocncia?), procssos d transrir blocos da vista aproximas, uss xtnss, dscontinuidads, contiguidads vlocidads transitaram d pomas para ilms circulam agorantr uns outros, comandados por arroubos d iccia. O arroubo uma atno votada s midas cumplicidads com o mundo, o mundo

    m rass, m linhas osorscnts, m txto rvlado, como s diz us rvla uma otograia ou s rvla um sgrdo (Hldr, 1998: 7-8.)

    Aa visa pois uma iccia dir-s-ia hirontica ou oto-grica u apnas uma rgulada inocncia (a inconscincia pticad Bnjamin?) staria apta a suscitar. As possvis implicas bnja-minianas do modo d prcpo u o txto potico d Hldr instituioram j obsrvadas por Diogo a propsito dexp d um crtoito d arrasto vrbal ali graicamnt obsrvvl: um corpo txtual

    procssa-s cinticamnt por rprsntao translativa ou projctivad blocos vrbais objctivamnt assinalados (por aspas) movimn-tados. Uma pj inibidora da obra da sua contmplao, promotora d a dinvl como prdicado ostnsivo ouobsrvacional (c. Diogo, 2001: 180-197). S, m Hldr, os olhoss usam como uma cmara, imitando o olho mauinicamnt roz

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    35/321

    o sombrio trAbAlHo dA belezA 35

    das objctivas ( nto commos a usar os olhos com a rocidad

    das objctivas / sm truus capturando tudo slvaticamnt; p. 305),trata-s d postular uma crta a da imagm u a xtrma

    vlocidad prcptiva rduz a p (c. Diogo, 2001: 185). O uparc dssintonizar com a intrprtao cubista do sntido da monta-gm hrbrtiana avanada por estla Guds15. A havr aui dscons-truo da ralidad, como rr na sua litura do pota, no parcu la s aa no sntido d uma r-conigurao (por dslocaoou hibridao d parts u s saldass, nim, num tratolgico

    luxuoso ou abjcto ainda u o monstruoso maru um lugar impor-tant nsta posia) nm no d um simultansmo das dimnss, sintti-zadas m orma stvl. Mais concordant com o u chama apa

    a a hrbrtiana parc-m sr a litura da montagm plavia lmica d Godard proposta por Rosa Martlo (2002: 43-58), umalitura u situa discursivamnt a vlocidad intnsiva, comtndo-aao prprio acto d scrita. O poma mrg, assim, lio a nsasta,d um momnto nomnolgico, no ual no s situa mimtica-mnt ac xprincia poru constitui a prpria xprincia, xp-rincia ssa u s torna indissocivl da ormulao discursiva uo poma (.: 50). Lsprit mprunt la matir ls prcptionsdo il tir sa nourritur, t ls lui rnd sous orm d mouvmnt,o il a imprim sa librt: cito, dsta ita, do ilm d Godard tho Pa (1999). Aui vm dar, outrossim, a litura d Diogo, u hpouco sguamos, u atribui como intno noo hrbrtiana dmontagm total a continuidad absoluta do tmpo (a. .: 185).Ou a d Frnando Pinto do Amaral uando s rr a a

    d H.H. como um mio d criar ulgurantsa va(1991: 58).

    O poma cinmatogrico d Hldr prtnd-s como uma ing-rncia sobr o tmpo, sobr as ormas no tmpo, algo u a imagmcoagulada da otograia podr simtrizar por ora d umha ,na acpo barthsiana, d uma combusto prounda u roubo auma tmporalidad cntruga. Talvz tambm a pintura s rsrv, s

    vzs, modos algo ains dss acrcamnto vrtiginoso do u a

    ou a , o ulgor. No s suam d uma nrgia bruta

    15 [] xist um cubismo vrbal m Hrbrto Hldr, por xmplo, um dsloca-mnto d parts do corpo, alis xist igualmnt um procdimnto d collag, uandossa dslocao arrasta os rgos d um corpo para um spao stranho a l. J chamihibridao a sts procdimntos, ainal rdutvis a stilos particulars d mtora,u um transport. (Guds, 2009a)

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    36/321

    36 diAcrticA

    d uma crta / manira dlicada d coloc-la no spao (Hldr,

    p. 283): pintar o anjo.

    quria pintar os anjos.Lvara algumas palavras altas, msica.Ningum pinta os anjos, mas uma ora, as ormas dssa orapor xmplo: sopram os tomos,acnd-s o cablo, mos ascam: cadacoisa u tocam ssacoisa asca. eu prcisava d silncio, diss l.[]

    Pinta-s s vzs, sim, s vzs lvita-s, outras algum sussurra aoouvido.D rpnt ica-s ouscant.Por mais janlas u s ponham nsss lugars opacos u nos dramningum sab.[][] Foi para dsntranhar da coisa mntal u a pintura:os anjos. qu anjos?Colinas chgam junto caba, a caba ica, isto :Girando do ombro surdo para o ombro dirito,a lua silvstr. Um anjo?A mort tm uma doc habilidad domstica:abr cha as torniras prpara a roupa limpa os splhos.Anjo.[]Podria pintar os anjos brilhando.S ao ddo tirass o anl, s ao cablo cortass a madixa viva,s vrtss no papl uma gota do mu sangu.Trabalho no orno at icar calcinadoloucosobrano como um ngro com boca d ouro,rodado por uma tribo d anjos com boca d ouro.s vzs basta uma palavra: Dus.e ouo a msica, pinto o inrno. uma spci d inocncia ardnt, um modo d ir para long.Sou lmntar, anjos so os primiros noms. (Hldr, pp. 453-4)

    O anjo dsntranhou-s do mntal: no a ita imagm, nmrlato algorizado, mas sopro, cintilao, msica. Ou uas-corpo,

    ualur coisa como uma igura-ora, uma prtrio pictrica nototal: sobra um vstgio d incandscncia, uma abrtura, uma bocaaurra u inciso ou chaga crstica16, ntrada para a/na carn

    16 Didi-Hubrman rcorda u, na tradio artstica d lst, a chaga d Cristo sistmaticamnt rprsntada como uma boca (c. 2007: 50) o u sugriria a convr-

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    37/321

    o sombrio trAbAlHo dA belezA 37

    da pintura, para o/no orno da matria o inrno. O anjo, not-s,

    tribal, lmntarmnt ngro (dmonaco?): o assomo do divino az-spla via va ou hrtica, na linha do u tambm Mai consi-draria um rdimnsionamnto do mstico. Com obra a cumprir, opintor (ou o pota) protagoniza uma manista a h; porm,a imitao ali um trabalho sobr o cristo (Mai, 2007: 310), a suaconvrso slvagm para um tmpo/spao nocturno d iniciao ,diria, d indirnciao. A narrativa da origm17, nuanto rlato daciso dos sxos dos mundos, tnd sistmaticamnt a rluir, m

    H.H., at ula grand scrita (Hldr, p. 539) u anti-rlato pr-idioma dsdirnciador. Nos pomas d A aa a ,torna-s muito vidnt ssa mmria hiprrgrssiva transgrssora:o gsto do a, rptidamnt inscrito no txto, aponta a, hrtica-mnt, para um canto comum-d-dois (., p. 540), uma unanimi-dad das matrias, uma simtria dos ocios (., p. 559). A usodos corpos, sxualmnt ncnada, ou a xtraordinria montagm d

    vozs linguagns u pod azr convrgir, no msmo txto potico,o romanc popular, a modinha brasilira ou a lrica mdival raz no

    poma os ritmos coalscnts do caos primordial. A ssa contnuamtamoros da matria rria-s j Pinto do Amaral, m 91, con-cluindo por uma radical solvncia das intns das idntidads atu todo o ral conlua para uma zona ond no distinguimos sujito objcto (Amaral, 1991: 60).

    A a do anjo rtoma, m crta mdida, o motivo runt dosoricios corporais prprio a uma prspctiva a, cruzadamntscatolgica, rtica rligiosa, nuanto provoca colatralmnt

    uma tica da viso: dngao da suprci u dsaia o olhar a no olhar. Projcta-s, m sombra intrtxtual, aa vnuma possvl vrso caravaggsca [Fig. 1] u m Hldr conta, alis,com mais dirctas rlituras18. A toria da suprci, como pl outxtura ond rcai a prspctiva, rprsnta, sgundo Bal (p. .),

    so d uma postura passivamnt spctadorista numa xprincia carnal do sacricio,i.., numa incorporao do visvl crstico.

    17 Manul d Fritas sugr como um dos intrtxtos undamntais m Ap-a r o rlato do g, ainda u, sgundo o crtico, ironicamnt glosado(c. Fritas, 2001: 44).

    18 Tomando os vrsos inais do poma d Hrbrto Hldr Mo: a mo, dA aa a (c. Hldr, pp. 375-79), Lus Mai sugr uma xclnt litura intr-txtual com o conhcido uadro d Caravaggio t, (Mai, 2007: 307-8).Rcordo os ditos vrsos hrbrtianos, d manisto alcanc mtapotico: [] e u massom Dus s parts / gravs: com sua luva sbita / no abismo, / ao mu nom u

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    38/321

    38 diAcrticA

    Fg. 1 Caravaggio,A ia s. t (c. 1601-02).lo sobr tla, 107146 cm. Sanssouci, Potsdam.

    uma constant das poticas barrocas u prmit congrgar outrosmotivos rcorrnts: o da prga, o do tou, o da luz. Mais do us valncias colorsticas sondadas por estla Guds19 na posia d

    H.H., atnho-m usto lumnica u aui m parc particular-mnt rlvant nuanto motivo trico na dinio d um modoprspctico transormativo alucinatrio u p prova nos dscala, d distncia, d xtrioridad , cumulativamnt, a prpriastabilidad das catgorias d sujito d objcto.

    rgrsso: amaa / A limpidz / atravssa-m plos uros naturais / ardidos, / entra umastro / por mim dntro: / az-m potncia dana, / qu toda a noit do mundo t tornhumana: / obra.

    19 Cito palavras da autora: No mu cadrno A posia na ptica da ptica, di contada palta das cors, dominada plo vrmlho da oa a . No signiica isto uas cors as ormas d um poma sjam visvis ou prcptvis como paisagns. No,no so prcptvis nm sur como as imagns d um uadro cubista, abstrato ouauvista. Signiica, sim, u o pota trabalha com a linguagm u az ops lxicaismais importants ou signiicativas umas do u outras. (Guds, 2009a) C. ainda otxto da msma autora oa a , disponvl m vrso digital (Guds, 2009b).

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    39/321

    o sombrio trAbAlHo dA belezA 39

    Rcorda-nos Stoichita u os paradoxos inrnts a um sacro

    visualizado s rlctm por norma m strtipos antitticos ouoximricos, contrapsando luz sombra: a , a

    aa, a rprsntam rmulas d avrbamnto d umaconcordncia (discord) ntr o discurso o su objcto (Stoichita,1996: 77). encarada a usto m trmos nomnolgicos, conormBal, a sombra sr sobrtudo condio da manistao lumnica.As cmaras scuras ond s lavra a posia hrbrtiana (grutas, cavrnas,abismos) so simultanamnt matriz spultura, spaos d aprisio-

    namnto librtao da viso, d rtno d convrso d imagns,d produo dramtica dpa u a mrgncia da luz vmconsntir num sntido to tcnico uanto rligioso. A imagm,lmos m ca, um acto plo ual s transorma a ralidad, uma gramtica prounda no sntido m u s rr u o dsjo proundo, prounda a mort, a vida rssurcta. Dus uma gram-tica prounda- (Hldr, 1998: 8)

    Sigamos as instrus do pota:

    xprimntm uma ou duas vzs ou trs rtr dtrminadaimagm mtam-na para dntro assim imvl ium parados a com a imagm parada talvz brilhando ualur coisa como uma sagrada suspnso abrindo os olhos nto o jogo rtoma a imagmu ntrtanto icou incrustada no scuro a brilhar smpr dla parc u o movimnto part d novo uma linguagm nrgia dlicadza atravssam o arspctculo do vrbo primiro ltimo apanhm a igura absoluta

    (Hldr, p. 283)

    suponha-s u aa sja, digamos: uma laranja?

    t lj: s cps sls

    th ma th: oi sob st ttulo u o Stdl Musum mFrankurt aprsntou, rcntmnt, uma xposio sobr a voluo

    da naturza-morta como gnro pictrico autnomo, dsobrigado jdo papl acssrio u dsmpnhara no contxto da pintura rligiosamdival.20 Autonomia m larga scala alcanada por dmonstrao

    20 th ma th. s l Pa 1500-1800, Stdl Musum, 20 March - 17August 2008.

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    40/321

    40 diAcrticA

    d um virtuosismo austoso stticista u irmaria o gnro, assaz

    unilatralmnt mbora com alguma duradoura prsistncia, aomodlo da aa a pa. D laboratrio xprimntalda xprsso artstica, ond s xrcitavam as capacidads d compo-sio, o domnio dos uilbrios cromticos das rlas d luminosi-dad ou a agudza dos dtalhs, a naturza-morta, particularmnt aolongo do sculo XVII, viria a rdinir a sua uncionalidad os susmodos spcicos d arontar o sntido. Objctos stticos, tirados donatural, passam a sr matria no s d rgisto visual, mas tambm

    d intrprtao (pla via rcorrnt da algoria), dntro d uma com-posio tambm la signiicativa por rrncia ordm stru-tura do mundo barroco ao su imaginrio hbrido d snsualismo trribilidad mstica. Das constris tmticas tcnicas do gnro,rssaltam ainda rsultados intrprtativos razoavlmnt invariants:a concntrao xtrma do pintor num puno nmro d objctosrcorrnts (lors, rutos, animais, instrumntos musicais, pas dolaria), obsrvados d muito prximo sob sumas d iluminaorigorosos, dtrminar uma atno uas mditativa s suprciscapaz d promovr a pa monumntalizada sculpidamntviva da inrt naturza pintada.

    No txto hrbrtiano, rcortam-s com runcia no dspr-zvl cnrios d naturza-morta, alguns apnas brvmnt sbo-ados, outros originando uadros mais dsnvolvidos. ainda aboca, no su d louca dvorao (a minha boca da minha vida / um ocio. [] / A minha tara inuita d pr a vida / na sua ocultaloucura. Hldr, p. 98), a instigar boa part dssa cnograia m u

    os tmas barrocos da msa posta do banut aduirm signiicadosimportants no dlinamnto da potica hrbrtiana.

    s vzs stou msa: cmo ou sonho ou stousomnt imvl ntr a aralicidad da noit. (Hldr, p. 31)

    ea a, na posia d Hldr, uas smpr rdramatizaruma a litrgica (a cia u cna) como xprincia d incorpo-

    rao, d convrso m carn do mistrio: o sprito cado dntroda orma (., p. 31). um a, uma a - dsnhando-s nas trvas, consoant a lio antropogica. Atu, na pl do poma, s insinu a podrosa suprci / d Dus(., p. 596). Os rutos podm iluminar o caminho:

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    41/321

    o sombrio trAbAlHo dA belezA 41

    Aniuilar os rutos para sabr, contra

    a paixo do gosto, u a trra trabalha a suasolido dvotar-s,sgotar a amada, para vr como o amortrabalha na sua loucura. (., p. 172)

    Dvotar-s aos rutos, sr intlignt dls rur pacincia, ummodo lnto d sorr, d xprimntar o amor contra o gosto: comosolido loucura. Prigura-s uma a (dclinada data aa ond s hospda o poma u acabo d citar) u con-

    vrt a vlocidad intnsiva ao su simtrico: a stas pura. qu no acronia, mas instantanidad, tmpo sobrposto: talvz um dlu-ziano tmpo crnico, convrtido na a-p potica21. A ditatoria toma um xmplo:

    Havia rigor. Oh, xmplo xtrmo.Havia uma ssncia d oicina.Uma matria snsacional no sgrdo das rutiras,com suas mas cntrptas

    as uvas pndidas sobr a maturidad. (., p. 111)

    Rigor sgrdo: os trmos voltam a runir-s. e no h como,no xmplo x u o poma convoca, dixar d vr o outro,mais antigo (o imprito a apontar para um ora do prsnttxtual), arrastado at aui pla mmria comburnt da imagm po-tica: d volta, pois, a Caravaggio ao c a [Fig. 2] u ranto aviso d um jovm artista brvidad do mundo, pintada naorma absoluta do ral.

    Na posia d H.H., a a aa ou xtrma da ordm doprodgio: um p a, ilgvl, cujo cntro dtm o nocturnosgrdo das matrias. Aproxima-s mais d um arutipo rtmico, dou d um arutipo ormal: pod igurar-s como casa, uma a-

    a, uma aaa (c. pp. 110-11). Ou nto como pdra: opota pdra, s vzs (Sou chado / como uma pdra pdrssima.p. 128); ou como poma, o poma u o litor nrnta rdobrado

    21 Rcordo Dluz, na traduo portugusa d Rosa Martlo: [] uando a pr-cpo dvm ptica sonora pura, com u s rlaciona la, uma vz u dixa drlacionar-s com a aco? A imagm actual, sparada do su prolongamnto motor,ntra m rlao com uma imagm virtual, imagm mntal ou m splho. [] Dir-s-iau a imagm actual a sua imagm virtual cristalizam. [] O u vmos primiro o Tmpo, as camadas d tmpo, uma imagm-tmpo dircta. (Dluz ap Martlo,2008: 195)

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    42/321

    42 diAcrticA

    Fg. 2 Caravaggio, c fa (c. 1595-98).lo sobr tla, 4731 cm. Pinacotca Ambrosiana, Milo.

    moroso sobr o tmpo trno d um. Autor (pp. 129, 131). Oupod sr cntaro, pcaro, olaria astronmica sustntada pla luz.Cruzam-s tocam-s as simtrias: a vlocidad st para a abr-tura, como a ocluso para a pausa. Diria, nst sntido, u os xtr-mos obrigam a prcpo a um rgim ondulatrio (, d novo,alucinatrio) muito aim d uma viso barrocamnt libniziana.

    dpaa, aha, a a a, nuanto gstos intn-

    sivos u o txto vai xcutando, no prtndm, na potica hrbr-tiana, a uma atomizao disscant da matria corporal, mas antsa uma prptua dsdobragm u a inscrv numa tmporalidadcomprndida como aa, i. ., como : procuramum cntro? sim uma razo d razs / uma zona suicint lvixa uma como u / intrminabilidad (Hldr, p. 275). Dos corposslados, os rutos rcbm uma atno dmorada: sto vivos ouainda unts, num aug d maturidad u incta um os tou

    ou dvor.

    na mo madura a luz imvl pra a pra sucssiva,pra-a xara-a nla slaa blza:ra o sgrdo:o mundo j stava pronto (Hldr, p. 561)

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    43/321

    o sombrio trAbAlHo dA belezA 43

    No-p dramtico do poma, a paragm da pra u a mo

    sustm orc luz toma um claro alcanc mstico: o tou lumi-noso coroao, imp a aura no corpo rutiramnt sagrado. emtrmos composicionais intncionais, o poma hrbrtiano rcupratraos tpicos das naturzas-mortas barrocas, como as d JustusJunckr [Fig. 3] u o Stdl nos prmitiu agora rvr: as pras mas d Junckr, xibidas solitariamnt sobr um pdstal, sodcrto pdaos d ouro / maduro u pulsam no scuro (Hldr,p. 606), sculpidos pla luz. A vontad ostnsiva parc, m ambos os

    casos, vidnt: a mo ou o pdstal u orcm o objcto ao olhar(ao jito d altar prcptivo), o grand-plano do ruto, a lumino-sidad intnsa u tornia a pra contra um undo no-marcado (som-briamnt monocromtico, no uadro stcntista). A prsna vivados insctos nos rutos d Junckr atstam j, todavia, o sucssivod uma pra ainda rspirant (u uas-rtrato) , diria, rpor-tam m mtonmia ou hiplag pictrica lvmnt nrgica a outra,

    vrbal, da mo madura: lndo invrso, m intrtxto incrto.

    Fg. 3 Justus Junckr,naa a pa (1765).lo sobr tla, 25,821,4 cm. Stdl Musum, Frankurt.

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    44/321

    44 diAcrticA

    A luz dsmpnha, no poma na tla, um papl construtor

    ssncial: dlimita o objcto, scrv-o, inscrv-o, talha-o scultural-mnt m proundidad transp m matria carnal o u ra apnaspidrm. Alm d conduzir o olhar do spctador, u vai lndo asormas como a luz as dsnrola, colado a um trajcto luminoso, auma h-w (Bal, 1999: 189) u transorma as suprcis numasgunda-pssoa com a ual s rstablc a corrlao dctica nostrmos d uma participao rotizada. Rcordo Bal, aui m stritaaluso ao caso plstico:

    This ct o surac as scond-prsonhood is bound up not with mat-rial paint but with th lightst o matrials: light. [] Light and shadtogthr thus bcom th vry substanc o a painting that is nithrirst-prson in that it dos not inscrib th hand o th makr, northird-prson in that it dos not liminat dixis. Instad, it bcomsth vry tool o dixis, th optical vrsion o th xchang o touchs inrotic contact (.).

    No txto potico d H.H., o trabalho plstico da luz opra

    por norma num duplo sntido: ncurva lvanta, sm discordncia.O acsso a uma intrioridad tndncialmnt igurada como spaocncavo, um spao u a curva luminosa no s dlinia como conc-ciona, sujitando as suprcis a uma inlxo cntrpta (ao ncontrodo su dntro d carn), condio d conhcimnto proundo st d ascs sublimatria, s insistssmos na aplicabilidad scritahrbrtiana d uma antropologia da vrticalidad comum xp-rincia rligiosa, u aui m parc plausivlmnt rconvocvl.

    A aaja va hrbrtiana sr, d ntr as ormas xtr-mas ou a paa da sua posia, a mais contnua ou maiscrnica (tambm nuanto objcto tortico), aula u o potaacolh r-colh dsd os primiros vrsos d A h a a ataos ltimos dA aa a . qur dizr, na (ds)ncontradabiograia dos txtos: dsd os vint nov anos d loucura mas-culina (Hldr, pp. 72-73) aos stnta st m u tudo obscno(., p. 548). Aparntmnt, situa-s nos antpodas do anjo, como

    visibilidad v viso, luz v cintilao, igura v ora.

    e porm, s intrromp o mundo (., p, 558), a laranja a panl: como um corpo intrmdio (um corpo-: um anjo?) ntro trrstr corpo matrno o corpo vocativo do pota, do poma. Umcorpo doado dvorado cristicamnt a bm da Posia da rmissoda carn potica, a bm d uma intimidad dsobscnizada com ascoisas: um corpo d paixo.

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    45/321

    o sombrio trAbAlHo dA belezA 45

    Nsta laranja ncontro aul rpouso rio

    intnso u conhocomo um dom impossudo.Do ouro tr a luz intrior, tra graa dsconhcida dauilo u mal pousana msa, no mundo.[][]. Laranjancontrada ntr dois momntos inimigos, ao miocomo um gritou bat m chio ntr os ossos as vias

    ulminadas. Doada posia u sprava,ntr a rigorosa viso a xprinciadsmdida da carn.S a mo s atrv pla conluda laranja,sob ao ombro o puro sntimntod ligao ao mundo. [][]Crraria sobr sta laranja u aparta a inocnciada trva

    dauilo u o sprito calou como luz indivisa sobr la crraria a boca,como s a spultara num silncio plantadod muitas prsnas ortscomo sal. Talvz todo o nigma matrno m oss dadod inspiraoatravs da lngua por conusos rgos a todo um corpotnso apto aos sgrdos sdlicadas subtilzas da trra.

    Talvz sta laranja m dotass d uma atnovrtiginosa, tudo oss ntrando como sabdoria plo corpo vocativo, cada gsto oss dpoisa ntima unidad dst Poma com as coisas.

    Laranjaapaixonadamnt. (Hldr, pp. 34-36)

    Pod mantr-s a paixo com ruta comida ainda viva (., p. 613)

    aa da laranja raparc, intacta, agora nos muito rcnts pomasdA aa a ond o ocio dvorador volta a sr cna dincandscncia m undo d trvas, pura cinmatograia clbrativa sacriicial d va a (rcobro a xprsso d ca):

    rtira-s algum um pouco atrs na noitpara azr uma scola da lvza,

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    46/321

    46 diAcrticA

    sntar-s sobr si msmo dvorando uma laranja,

    pronta,colhida ao caos, u la sim ilumina um a usa, isto: a laranja az rodar os ddos, tornalv, plos ddos,aul u a lvanta, to xacto gosto na lngua,to transbordant,di no ino do rio acar, a laranja lvanta tudo: luz ddos, a pssoacom a rida na boca, o gostomagoado at pronncia das xprsss mais simpls do idioma,golp a golp,como m strangiro brutalou inxpugnvl,u az l? Talha trmula, oh Dus! Lavrada a pau virgm olha d ouro,mt-lh os polgars plos umbigos, dvora-a, clbra, mbbda-s,u scola d laranja trrstr no s pod mais u sta lvza (., p. 557)

    Na ordnao subtilmnt narrativa do txto, divisam-s os planos,a movimntao da cmara (u olho rozmnt potico) adrindoao rasto luminoso da laranja catica, puxando boca d cna a uas--igura ao undo, rguida ntrtanto m imagm rotativa transmu-tativa, d brutal abrtura dslocamnto da orma ( da orma doidioma), at ao grand plano vivo da rio carnal. O u triasido naturza-morta pintada hipottica intrplao contmpla-tiva (a mo-pdstal) auia a, a: luxo, ritmo,acto, trabalho da luz, laranja. A laranja monstruosamntpaa

    (c. Hldr, p. 414), inintrrupto trabalho d imagns dsntra-nhando-s continuamnt d si prprias. Cicatrizs d cicatrizs(escrvi a imagm u ra a cicatriz d outra imagm.i., p. 438).em suma: blza.

    No dom a blza, mas xx: at u Dus dstrudo plo xtrmo xrccio da blza, assim s coma nssltimo livro d pomas. Como obsrvou Rubim (2008), a nas no d todo aui stticista; mas muito mais aaa, ui, sgundo

    Diogo (2001: 187), naul sntido carnivoramnt arcaico ou talvz,ou tambm, atrvo-m agora a sugrir, barroco? u a violnciamtamrica da imagm cinmatogrica podr ravr. A blza mlongitud d H.H., como crtiramnt a dsignou Diogo (., p. 188), truculnta: sombrio ocio d aa p contra Dus, rlui-damnt, dschadamnt, no labor baptismal d cada poma. O vrso

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    47/321

    o sombrio trAbAlHo dA belezA 47

    solto u iniciaA aa a , pois, rincio rincidncia 22:

    ncurva para um cntro u no stio ou topologia, mas o a,mtico rtmico, d um Poma u nasc inintrruptamnt, comoum apaga d cada vz todas as luzs ard cgo dntro da sua noitcontnua.

    Ainda assim, pod acontcr u o no sja aui sno oltimo rsduo d uma pitorsca linguagm moral (Hldr, 2006b:182), a xprsso arrbatadamnt ingnua mtasica d ump ao ual sucda, invitvl, a corrupta solido da intligncia.

    rcs

    amaral, Frnando Pinto do (1991), Um vrso ininito, l, 14 (1991: 58-60).

    Bal, Mik (1999), q caava cpay A, Pp Hy.Chicago and London, Th Univrsity o Chicago Prss.

    Bastos, Jorg Hnriu (org.) (2000), A Gramtica crul d Hrbrto Hldr, H H.o p x a a. So Paulo, Iluminuras, pp. 9-12.

    cruz, Gasto (1988), ltima Cincia ou A art plnilnia das palavras, A Phaa,11 (1988: 2).

    didi-HuBerman, Gorgs (2007), la v m aa a a v. Paris, Gallimard.

    diogo, Amrico Antnio Lindza (1990),H H: tx, a, a x. Coimbra, Almdina.

    (2001), Por xmplo (sobr Hrbrto Hldr), i r, 11 (2001:

    180-189).Freitas, Manul d (2001), ua p : Aprsntao do Rosto H

    H. Lisboa, & tc.

    godard, Jan-Luc, miville, Ann-Mari (2006), d XXi tho Pa l Pa J v a, saajv. eCM Cinma.

    guedes, estla (2009a), o o caa H H. [http://incomuni-dad.blogspot.com/2009/04/oicio-cantant-d-hrbrto-hldr.html]. Consul-tado m 29 d Agosto d 2009.

    (2009b), oa a r [http://www.triplov.com/stla_guds/2009/Obra-ao-rubro.pd].

    22 C. O msmo vrso u inicia A aa a ncontrmo-lo j, cominicial maiusculizada, no poma Lugar do livro homnimo d Hrbrto Hldr(c. 2009: 139).

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    48/321

    48 diAcrticA

    Helder, Hrbrto, (1998), Cinmas, rpa, 3 (10/98: 7-8).

    (2001), Hrbrto Hldr entrvista, i r, 11 (2001: 190-197).

    (2006a), Pha & Vx. 4. d. Lisboa, Assrio & Alvim.

    (2006b), o pa va. 9. d. Lisboa, Assrio & Alvim.

    (2009), Ocio Cantant Posia Complta. Lisboa, Assrio & Alvim.

    macHado, lvaro (org.) (1996),d laa Pa. Lisboa, edito-rial Prsna.

    maFFei, Lus (2007) d H H. Ts d Doutorado m Ltras,Rio d Janiro, Faculdad d Ltras, UFRJ.

    magalHes, Joauim Manul (1989), Hrbrto Hldr u p a .Lisboa, Prsna.

    marin, Louis (2008),d a P. Paris, Flammarion.

    marinHo, Maria d Ftima (1987), o sa Pa. Lisboa, ImprnsaNacional-Casa da Moda.

    martelo, Rosa Maria (2002), Corpo, vlocidad dissoluo (d Hrbrto Hldr

    a Al Brto, ca laa cpaaa, 314 (2002: 43-58). (2008), quando a posia vai ao cinma, rpa, 23 (10/2008: 179-195).

    riBeiro, eunic (2002), la, J r, s o. Aaca a Pa Pa s XX. Braga/Coimbra/Lisboa, AnglusNovus/Cotovia, pp. 74-79.

    ruBim, Gustavo (2008), Hrbrto Hldr A faa ca f: a & a,Lisboa: Assrio & Alvim, 2008, c-la. [http://colouio.gulbnkian.pt/bib/sirius.x/nws?i=37]. Consultado m 15 d Agosto d 2009.

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    49/321

    H Hl:m ps m1

    HeLeNA CARVALHO BUeSCU(Univrsidad d Lisboa)

    asc

    Th vrsions or poms changd into Portugus by Hrbrto Hldr,

    which hav bn a constant potic activity by Hrbrto Hldr, includ a numbr ovolums that h assums alongsid with his own. From o b n (1966)and A maa (1987) to th thr volums publishd in 1997 (o, Pa

    A, and d n a ca), Hrbrto Hldr insists on th act thatpotry is changabl, and that it only bcoms possibl whn an omnivorous(or anthropophagic) gstur is assumd towards potntially vry potic txtthat has bn writtn. His choic o th xtraordinary varity o txts, discourss,poms, prayrs, rom which to draw or his changd poms rang or instancrom Ancint egypt, eskimo and Tartar poms, Arab ons, matrials rom CntralAsia or Arica, Australia or Colombia, to th Old Tstamnt, Ancint Grc, or

    th Aztc and Maya culturs, alongsid with som Wstrn sourcs such as BlaisCndrars, Hnri Michaux, Artaud, or Stphn Cran. Potry is not concivablwithout this mixtur, or vn usion, o a plurality o traditions that th pot mustincorporat to his or hr own voic. An analogy is proposd btwn ths volumso changd poms and his rociously partial anthology o 1985e la da.

    Aa a V ca a Pa ma, sing this anthology as acrucial link btwn Hrbrtos work as a writr and his activity o ampliying (andmaking also his own) whatvr txt h dms as potry.

    1 est txto aprovita matrial por mim psuisado para um txto dpois scritoa uatro mos com Joo Frrira Duart, publicado m 2007 . Communicating voics:Hrbrto Hldrs xprimnts in cross-cultural potry, f m laas, 43(2), pp. 173-186. A prspctiva ali adoptada sobrtudo a rlativa aosestudos d Traduo orma como o problma colocado pod iluminar alguns lugarstricos drivados do pnsamnto sobr o u ou pod sr traduzir. A prspctiva aui dirnt, mbora parta d um conjunto d rlxs comuns.

    DIACRTICA, cinciAs dA literAturA, n. 23/3 (2009), 49-63

  • 7/27/2019 Diacrtica_23-3 [sobre Herberto Helder]

    50/321

    50 diAcrticA

    intrigant imaginar o u pod sr a aaa (ou algo u

    como tal uncion) na posia d Hrbrto Hldr: olhar para o corpod um txto to plno pnsar nas margns u prmitm ssa dnsi-dad. esta tm sido uma intrrogao rcorrnt na minha litura dHrbrto, rconho, uma spci d ncontro u m dvolv smpruma msma usto: ao lado d poticas da raraco, u tndmm ltima anlis para uma spci d silnciamnto da voz, ou plomnos para aul gsto a u Kavais s rria como o dos naviosu alijam carga, xistm outras poticas, a u podmos associar

    a mtora, hrbrtiana no s (para continuarmos m trrno po-tico) da antropoagia, ond a carga s torna smpr visvl mat-rialmnt dnsa. em ambos os casos, sublinhmos, trata-s d doisdirnts modos d rspondr a uma nica usto: como rplicaraos mortos. S num caso s opta plo carctr dlido (para citarPssanha) do txto, no outro procura-s o u muitas vzs ocorrcomo sobr-xposio (no sntido musical ou at msmo otogrico, no por acaso), u orma d dar conta d sntido histrico xp-rinciado como limit. O poma torna-s spsso.

    Parc-m sr st ltimo o caso prrncial d Hrbrto Hldr, nst sntido u a sua aaa potncial (aula u u mlimito a imaginar) m intriga atrai. Bastant tm sido scrito, natu-ralmnt, sobr alguns dos grands vctors struturants da posiahrbrtiana a st nvl, m particular os discursos bblico, camoniano romntico, u d acto m parcm constituir, dntro da tradiolrica ocidntal spciicamnt portugusa, as linhas d