A Queda de Roma e o Alvorecer Da Europa

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5/21/2018 AQuedadeRomaeoAlvorecerDaEuropa-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/a-queda-de-roma-e-o-alvorecer-da-europa 1/254 Francisco de Oliveira, José Luís Brandão, Vasco Gil Mantas & Rosa Sanz Serrano (coords.) A queda de Roma e o alvorecer da Europa IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA COIMBRA UNIVERSITY PRESS UNIVERSIDAD COMPLUTENSE DE MADRID COMPLUTENSE UNIVERSITY OF MADRID

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    Francisco de Oliveira, Jos Lus Brando,

    Vasco Gil Mantas & Rosa Sanz Serrano(coords.)

    A queda de Romae o alvorecer da Europa

    IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

    UNIVERSIDAD COMPLUTENSE DE MADRID

    COMPLUTENSE UNIVERSITY OF MADRID

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    Francisco de Oliveira, Jos Lus Brando,

    Vasco Gil Mantas & Rosa Sanz Serrano(coords.)

    A queda de Romae o alvorecer da Europa

    IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

    COIMBRA UNIVERSITY PRESS

    UNIVERSIDAD COMPLUTENSE DE MADRID

    COMPLUTENSE UNIVERSITY OF MADRID

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    O P :

    T A R EC F O, J L B, V G M R S S

    S H S

    C C :Maria do Cu Fialho

    C EJos Ribeiro FerreiraMaria de Ftima Silva

    D T:Delfim Leo

    Francisco de OliveiraNair Castro Soares

    EImprensa da Universidade de CoimbraURL: http://www.uc.pt/imprensa_ucE-mail: [email protected] online:

    http://livrariadaimprensa.uc.pt

    C Imprensa da Universidade de Coimbra

    C PRodolfo Lopes, Nelson Ferreira

    P-IImprensa da Universidade de Coimbra

    I ASimes & Linhares

    ISBN978-989-26-0600-2

    ISBN D978-989-26-0601-9

    DEPSITO L EGAL347006/12

    1 EDIO: IUC 2013

    A .

    I U C

    C D V C (http://classicadigitalia.uc.pt)

    C E C H U C

    Reservados todos os direitos. Nos termos legais fica expressamente proibida a reproduo total ou parcia l por qualquer meio,em papel ou em edio electrnica, sem autorizao expressa dos titulares dos direitos. desde j excepcionada a utilizaoem circuitos acadmicos fechados para apoio a leccionao ou extenso cultura l por via de e-learning.

    T .

    O UID

    C E C H

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    SUMRIO

    N 7

    C : R 11Virgnia Soares Pereira

    O R 27Jos Augusto Ramos

    C R 43Paula Barata Dias

    B IV.A HISTRIAAUGUSTA A 65Jos Lus Bando

    L 406: I 83

    David lvarez Jimnez

    A O 103Adriaan De Man

    O M R V 117Vasco Gil Mantas

    D V. A R AD 153Cristina Corsi

    A: T R 167Francesca Carboni

    U VILLAEFLUVIALES: AVGVSTAEMERITA 187

    Sal Martn GonzlezTEMPVSBARBARICVM.L P I V .C. 209

    Rosa Sanz Serrano

    S A R 229Carlota Miranda

    A DEEXCIDIO S A 241Francisco de Oliveira

    245

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    N I

    O saque de Roma em 410 pode no ser dos acontecimentos maismarcantes, do simples ponto de vista prtico, militar ou econmico, mas teve,pelo seu impacto no mundo romano e, sem dvida, tambm para alm de umLimesem acelerado retrocesso, um efeito devastador. Na verdade demonstrou,para alm de todos os malabarismos ideolgicos que vo preencher os anos

    que o Imprio do Ocidente ainda viveria como estrutura poltica, enquantoprotectorado ou refm deste ou daquele chefe brbaro, que o inadmissvel e oinsuportvel espreitam regularmente os Estados que no sabem ou no podemprecaver-se contra um processo de envelhecimento sem sabedoria, causadordo impossvel desejo de repouso expresso por Amiano Marcelino.

    Tragdia ou prlogo de um mundo novo? Questo de resposta muitosimples, quer para os que defendem uma interpretao catastrofista para oacontecimento, quer para aqueles que vem na queda de Roma um episdiopouco relevante, necessrio para que a mudana anunciada se concretizassemais facilmente. Todavia, apesar da inevitabilidade aparente da situao doImprio do Ocidente nos incios do sculo V, no foi fcil a aceitao ou asimples compreenso do sucedido, e no apenas pelos Romanos, dado quemuitas vezes evidente a preocupao por parte dos Brbaros em manteralguma romanidade funcional, pelo menos na aparncia. As respostasdos nossos contemporneos, apesar da acelerao da histria e das provasquotidianas de que o considerado impossvel espreita permanentemente ofluir ordenado da vida, se no mesmo a essncia da civilizao, so, como no

    passado, divergentes.Por isso mesmo, reflectir sobre o que se passou h 1600 anos e sobre overdadeiro significado do saque de Roma parece constituir, muito mais que um

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    simples exerccio acadmico, uma pertinente atitude, nascida da necessidade dereconsiderar o passado, um passado que permanece vivo, de muitas formas, nonosso tempo e nas culturas que dele se consideram herdeiras. Como em todasas grandes crises, o arrastado processo da queda de Roma causou inumerveis

    perturbaes, umas no mbito habitual da violncia guerreira, outras, talvez maisgraves, no campo da vivncia psicolgica. certo que a queda do Imprio noeliminou, antes pelo contrrio, um dos factores indiscutveis da romanizao,entendida como processo de aculturao. Referimo-nos, naturalmente, aolegado greco-romano, na parte que sobreviveu, e ao contributo judaico-cristoe germnico, sem o qual a Europa incompreensvel.

    Talvez os historiadores tenham sido vtimas de recriaes ideais de ummundo irreal, uma espcie de Idade de Ouro histrica, enquanto outros sedeixaram arrebatar por pretendidas revoltas de escravos ou pelo imaginrio depovos vigorosos em marcha para substituir os que j no tinham fora. Emboraa verdade, ou aquilo que dela podemos pressentir atravs dos documentos, sedeva procurar considerando que a histria da civilizao marcada por umconjunto de crises, capazes de pr em causa, radicalmente, a boa ordenaoconseguida ao longo de sculos, a queda de Roma permanece como umsmbolo incmodo, como se todos os que se reconhecem culturalmente noseu legado no tivessem sido capazes de fazer o luto do fim de um mundo,no faltando ao longo dos tempos tentativas de ressuscitao, quantas vezes

    tragicamente conduzidas e malogradas.Roma, nos incios do sculo V, aproxima-se da durao sugerida nopela promessa de Jpiter na Eneida, mas sim da que pesava na viso dos dozeabutres avistados por Rmulo aquando do ritual fundador. E assim aconteceu.Acontecimento trgico, sem dvida, mais pelo seu contedo simblico doque pelas consequncias efectivas. A queda de Roma, cidade no aberta masinerme, foi apenas resultado de um processo que ento j cobria o Imprio como fumo dos incndios e com os gritos das vtimas, pouco ouvidos para l dospntanos de Ravena, mas que em breve seriam ensurdecedores. Por tudo isto,

    no faltam historiadores que situam neste momento o fim definitivo do MundoAntigo e o comeo da Idade Mdia, ainda que alguns considerem a existnciade um obscuro perodo comodamente designado como Antiguidade Tardia.Seja como for, trata-se de um acontecimento charneira entre dois mundos,passando o anterior situao, definitiva, de histria e cultura, enquanto onovo prometia, entre sofrimentos generalizados, a aurora da Europa, comohoje a entendemos.

    Recordar este acontecimento da histria, numa situao de incertezasglobais que se substituiram s iluses dos finais do sculo XX, ou sobretudopor isso mesmo, uma vez que a falncia de princpios afirmados como dogmasuniversais, sugere situaes semelhantes s que Roma viveu, revela-se muito

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    oportuno. A anlise, segundo vrios ngulos, do saque de Roma, que no fezsurgir nenhum Frio Camilo, e das suas causas e consequncias, to discutidasna poca como na actualidade, revela-se um duplo imperativo, cientfico epoltico, no bom sentido grego da palavra. Questionando o fim de uma

    Cidade, eterna mas diferente desde ento, investiga-se a construo de outra,lugar comum de muitos at hoje, alguns dos quais tiveram a fora e a ousadiade transformar a Romanidade em Latinidade universal.

    Os homens so chamados a viver em perodos histricos bons ou maus,sem opo e sem que essa condio seja, na maioria dos casos, resultadodirecto e exclusivo dos actos praticados pela sua gerao. Nas grandes crisespodem surgir homens providenciais, como aconteceu em Roma tantas vezes,mas a evoluo da sociedade romana, implicando transformaes irreversveis,reduziu significativamente essa possibilidade. Os anos do sculo V romanosero anos de desespero para muitos, mas para outros sero anos de triunfo ede exaltao. Para ns, considerando-os a partir do sculo XXI, foram anosde transio acelerada, nos quais a data de 410 marca o incio de uma nova

    verdade: o fim do tempo histrico da Roma imperial e o alvorecer da nossaEuropa.

    O presente volume insere-se num dos propsitos do Centro de EstudosClssicos e Humansticos que consiste na promoo do intercmbio de saberesentre as diversas reas representadas pelos membros da unidade. Esta obra

    procura, pois, oferecer um produto do dilogo entre classicistas e especialistasde Arqueologia e Histria Antiga, de dentro ou de fora do Centro, visando apartilha e divulgao de conhecimentos e produo de material bibliogrficosobre uma poca de notveis transformaes na histria da Europa. Aquiexpressamos os nossos agradecimentos Direco do CECH, bem como sequipas directivas e executivas dos Classica Digitalia e da IUC, que no sepouparam a esforos para a edio do livro.

    Francisco de Oliveira, Jos Lus Brando,

    Vasco Gil Mantas & Rosa Sanz Serrano

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    Crnica de uma morte anunciada: a queda de Roma

    C : R

    V S PUniversidade do Minho

    Resumo.A queda de Roma. O acontecimento mais comentado da histria dacidade que foi, por muito tempo, caput mundi. Sem que seja possvel encontraruma justificao para o que aconteceu. Na verdade, Roma no caiu. Romatransformou-se. Os textos evocados no presente artigo pem em relevo algunssinais evidentes de mudanas contnuas no orbe romano, resultado ou dadecadncia da uirtus ou da inconstncia da fortuna.Palavras-chave:Roma aeterna; lio Aristides; Amiano Marcelino; Rutlio Namaciano;invases germnicas.

    Abstract. Te fall of Rome, the most commented event of the history of the citythat was, for an extended period of time, caput mundi. Yet, it is impossible tofind a reason for that. Indeed, Rome did not fall. Rome transformed itself. Tetexts evoked in the present article highlight some evident signs of continuouschanges in the Roman world, result either of the decadence of uirtus or of theinstability of fortuna.Key-words: Roma aeterna; Aelius Aristides; Ammianus Marcellinus; RutiliusNamatianus; Germanic invasions.

    Quis crederet ut totius orbis exstructa uictoriis Roma corrueret?

    (Quem poderia crer que Roma, vitoriosa no orbe inteiro, haveria de ruir?)So Jernimo

    A queda de Roma. Como foi possvel?

    Eis a pergunta que sistematicamente nos assalta, quando pensamos noacontecimento mais comentado da histria de Roma. E no entanto continuaa ser difcil encontrar uma explicao que nos convena. Mesmo quando seperscrutam os sinais dos tempos e se tenta perceber em que tempo falharam os

    factores que tinham contribudo, outrora, para a grandeza do estado romano,mesmo assim as respostas parecem sempre incompletas e insatisfatrias.

    A questo tornou-se, modernamente, recorrente. Num tempo de crisescontnuas, que suscitam no mundo perplexidade e inquietude, muitos soos que se interrogam sobre a sustentabilidade da presente ordem mundial e,correlativamente, sobre o fim dos imprios e as suas causas.1A complexidadedo mundo actual, o sentimento de insegurana que a todos atinge, o declinarde velhas potncias e sinais da emergncia de novas, a inesperada exploso deconflitos locais ou regionais, tudo traz inevitavelmente memria o complexo

    1Veja-se Grimal 1986 1261-1273.

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    Virgnia Soares Pereira

    de causas polticas, econmicas, demogrficas, sociais, militares, morais oureligiosas , que conduziram runa do Imprio Romano, isto , queda paramuitos impensvel e inexplicvel de uma grande cidade imperial que fora,por longos sculos, caput mundi.

    Segundo informao colhida em Ferrill (1998 21), um estudo datado de1984, publicado na Alemanha, inventariou cerca de duzentos e dez factoresque tero estado na origem da queda do Imprio. Analisados um a um,parece que todos eles contriburam em grande medida para o desfecho quese conhece, embora se compreenda que nenhum desses factores teria tido, porsi s, fora suficiente para pr termo ao imprio de Roma. O que aconteceufoi o desenlace de um somatrio de causas que, actuando isoladamente,sequencialmente ou em conjunto, vieram a adquirir uma fora e um impactorepentinos e catastrficos. Os Romanos acreditaram, ao longo dos tempos, naperenidade do seu imprio. Ser que tero tido conscincia, a partir de dadomomento, de que o seu mundo mudara irremediavelmente? ambm aqui noh respostas taxativas e as opinies divergem. O mais provvel que a crenaou o desejo de continuidade no tenham tido para eles, dada a diversidadede tempos e circunstncias, o mesmo significado. Em virtude do largo arcotemporal da sua dominao, os Romanos dos sculos II, III, IV ou V, cidadosou estrangeiros, pagos ou cristos, no tero visto de modo igual os sinais dedecadncia do imprio. O mesmo se dir da possvel previso do seu colapso.

    Na primeira linha dos motivos geralmente invocados para explicaro acontecido esto as constantes arremetidas de povos germnicos, quecomearam a pressionar o limes(os limites) do territrio romano j em meadosdo sculo III e que se intensificaram e atingiram o corao do Imprio acidade de Roma no sculo V, mais especificamente no dia 24 de Agostodo ano de 410, quando os Visigodos, sob o comando de Alarico, saquearama cidade. Acontece que, a par dessas arremetidas, surgiam sintomas claros deproblemas profundos que atingiam e minavam esse Imprio: por um lado,assiste-se ao enfraquecimento geral do mundo romano, resultante de crises

    econmicas e financeiras, de lutas de classe, de conflitos religiosos; por outrolado, e em simultneo, o orbe romano continuava a ser um espao apetecvelpara outros povos, que eram atrados pelos nveis de vida a alcanados e que,por isso mesmo, foravam a sua entrada, ao mesmo tempo que fugiam, emsucessivas vagas, da presso e da ameaa dos nmadas da sia.2 E assim omundo romano foi mudando.

    2Brown 1972 e Rich 1992 falam na complexidade e multiplicidade de causas do colapso

    do governo imperial, somando aos motivos de ordem moral os de ordem econmica e social.Piganiol 1977 501-522 defende que Roma no morreu de morte natural, foi assassinada;Balsdon 1970 240 e sgs. e Cameron 1993 190-194 advogam a impossibilidade de decidir sobreo que pesou mais no desfecho do Imprio.

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    Crnica de uma morte anunciada: a queda de Roma

    A moderna historiografia tende a privilegiar esta perspectiva detransformao, isto , a defender a ideia de uma mudana contnua e de umagradual transio do Imprio Romano do Ocidente para a chamada IdadeMdia. Fala-se agora em modificaes inevitveis, evoluo criadora de

    novidades (Palanque 1971 6), assim se explicando que, no final desta marchalenta, o mundo antigo, tal como fora durante a longa pax romana, tenhadesaparecido ou mudado radicalmente. 3

    Mas no passado no fora assim. A cidade de Rmulo estava ainda longedo auge do seu poder e j o historiador grego Polbio, no sc. II a.C., reflectiasobre a forma meterica como a Urbe alcanara to vasto imprio, e consideravadigno de admirao tal sucesso, pois no espao de cinquenta e trs anos setornara senhora do mundo ento conhecido. O historiador viera para Roma,como refm, na sequncia da vitria romana sobre a Macednia, em Pidna,e, meditando sobre os acontecimentos que presenciara, Polbio no esconde,no incio das suas Histrias, todo o seu espanto e admirao pela grandeza deRoma:

    Na verdade, quem haver de to mesquinho ou frvolo que no queira saber deque modo e com que espcie de governo que quase todo o mundo habitado,conquistado em menos de cinquenta e trs anos, caiu sob um poder nico, o dosRomanos? Facto ao qual no se encontram antecedentes. [...].4

    Segundo pensavam uns, tal sucesso dos Romanos acontecera por acoconjunta da sua virtuse da suafortuna. Mas Polbio desvalorizava o papel doacaso na histria de Roma. Atentando no xito alcanado no final da primeiraguerra pnica, o historiador afirma (em I.63.9) que no foi com a ajudada Fortuna, como crem certos Gregos, ou por acaso que eles procurarame alcanaram a hegemonia mundial. Essa hegemonia ficou a dever-se conjugao de valores cvicos romanos como a coragem, a obstinao tenaz, adedicao ao interesse comum. Acresce que, como se l em Guelfucci (2010

    141), a par desta uirtus romana parece existir, na opinio de Polbio, umaRazo superior e presciente, Pronoia, que ordenaria o mundo e a histria em

    3Sobre este tema magno da cultura ocidental e actual, o da inclinatiodo Imprio ou o dacrise do mundo antigo, vejam-se, entre outros: Ferril 1998 (cap. I), Mazzarino 1991, Vogt 1967,Marrou 1979, Courcelle 1964, Banniard 1995, Ward-Perkins 2006, Bauz 1988; Rmondon1970 (vasta bibliografia). De acordo com Ward-Perkins (2006 242-244), que contrrio ideia de transformao gradual, o que aconteceu foi que algo correu subitamente mal no mundoromano e assistiu-se mesmo ao declnio e fim da sua civilizao.

    4raduo de Rocha Pereira 2000 269. Para dar o devido realce supremacia dos Romanos,

    Polbio (Hist. 1.4-6) compara-os com os Persas, os Lacedemnios e os Macednios, cujosimprios sempre foram inferiores no tempo e no espao. Segundo o historiador, os Romanosprepararam-se lentamente para alcanar o imprio e a dominao universais, trazendo consigoa necessria estabilidade (vd. Grimal 1986 1263).

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    benefcio de Roma. Na verdade, e ultrapassadas que foram as dificuldades decrescimento e afirmao, em luta contra povos to fortes como os Etruscos,os Gauleses e acima de tudo os Cartagineses, os Romanos passaram a ser

    vistos como um povo superior, dotado de grandes capacidades de resistncia

    e organizao. Polbio acreditou que a cidade estaria destinada a dominar omundo, embora parea admitir que o seu imprio haveria de ter um fim.5

    O sentimento de que a cidade de Rmulo estivera, desde as suas origens,sob uma especial proteco divina est presente em muitos textos antigos.Recorde-se o conhecido passo do prefcio ao Livro I do Ab urbe condita, de

    ito Lvio:

    E se a algum povo deve ser permitido considerar divinas as suas origens, eatribuir aos deuses a sua autoria, a glria militar do povo romano tal que,

    quando afirma que o seu pai e pai do seu fundador , de preferncia a todosos outros, Marte, os povos do mundo aceitam isto com tanta serenidade comoaceitam o domnio romano.6

    Este texto espelha bem a forma como ito Lvio interpretou, na qualidadede historiador augustano, a mensagem que o Princepsquis legar posteridade.7E bem sintomtico que, ao relatar o desaparecimento de Rmulo, o historiadortenha posto a circular uma lenda segundo a qual um tal Prculo Jlio teria vistoem sonhos a figura de Rmulo, que se lhe dirigia nestes termos (1.16.7): Abi,

    nuntia inquit Romanis caelestes ita uelle ut mea Roma caput orbis terrarum sit. Isto:Vai-te. Anuncia aos Romanos que os deuses celestes querem que a minha Roma sejaa cabea do mundo.

    Outros historiadores evidenciaram admirao semelhante, como o gregoDionsio de Halicarnasso, que foi para Roma em 29 a. C., depois da vitriade Augusto na batalha de Actium, e a se associou ideologia do principadoe ao sentimento de permanncia, da aeternitas imperii. Nas suas Antiguidades

    5 Polbio sabia que as leis universais (nascimento, crescimento e morte) se aplicavamtambm a Roma. Por isso lembra (37.22) como Cipio Emiliano chorava perante a destruda(por ele) Cartago, citando as famosas palavras de Heitor quando se despedia de Andrmaca(Ilada 6.448-449): Um dia vir em que ela h-de morrer, a sagrada lion, e Pramo e o seupovo. Segundo Grimal 1986 1262, em momentos difceis os Romanos tiveram a angstiado fim, do desaparecimento, de se perder o nome romano (sobretudo durante as guerras contraAnbal e as guerras civis).

    6Alberto 19991 Praef.7-8.7Num outro passo (4.4.4), ito Lvio referiu-se cidade comoin aeternum urbe condita, in

    immensum crescente,por outras palavras, uma cidade sem limites no espao e no tempo. Segundo

    observou A. Esprito Santo (in Centeno 1997 256), no sculo de Augusto, ao ideal esttico dasobriedade e harmonia correspondia, na poltica, o ideal da ordem e da paz, que se alimentavada propaganda de uma Roma nascida sombra de uma providncia protectora e destinada apermanecer para sempre.

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    Romanasno deixar de tentar provar que, nos seus primrdios, Roma forauma cidade grega, isto , no brbara, e que a sua hegemonia foi superior dosoutros povos em importncia e durao. Por isso afirma, peremptoriamente,no prefcio (3.3-6), que no h nao que conteste o seu domnio e prope-

    se provar, contra a opinio negativa de outros, que Roma no beneficiouinjustamente dafortuna. E, para que no restem dvidas, declara nesse prefcio:O meu propsito escrever no s sobre uma cidade que a mais ilustre de todas,mas tambm sobre factos mais brilhantes do que quaisquer outros. No sei que maispoderei dizer.

    Se nos voltarmos para os poetas augustanos, foroso admitir que todosafinaram pelo diapaso do Princeps. Horcio, Proprcio, Ovdio proclamarama superioridade e a perenidade de Roma. Mas na Eneida obra justamenteconsiderada o poema do Sculo que a ideia de uma Roma eterna emerge deforma constante e estruturante. Nas suas mticas origens troianas, a cidade,magnificada como maxima rerum(7.602), a celebrada como realizao futurade uma grande ordem universal, que se projectar, mediante numerosas visese profecias, na ainda distante poca de Augusto. No centro do poema, empalavras de claro pendor poltico atribudas a Anquises (6.851-853), Virgliodefine para sempre o estatuto do Romano como o de um povo cujo lugarno mundo se deve sua capacidade de organizao e imposio de vontades,como fica patente no famoso hemistquio do v. 852: pacique imponere morem.

    Ao atribuir a Eneias (prefigurao de Augusto) a misso de civilizar o mundo,Virglio contribuiu para reforar a segurana que em si mesmo e no Princepstinham os Romanos, como se pode ler em Zanker (1992 231). A prpria ideiade uma cidade que de humildes comeos se alcandorou ao cume do esplendor um dos temas recorrentes da propaganda de Augusto e da poesia augustana contribuiu de igual modo para sustentar o orgulho dos Romanos.8

    Confiantes na grandeza da cidade, que acreditavam gozar da protecodos deuses, mas intimamente apreensivos quanto s incertezas do futuro, osRomanos formulavam preces no sentido de que para sempre Roma continuasse

    a gozar dessa providncia divina. Um exemplo absolutamente paradigmticodesta atitude o de Horcio quando, associando-se ao sentimento geral de queuma nova era de felicidade chegara, celebra, em registo hmnico, a cidade deRoma (Canto Secular9-12):

    Alme sol, curru nitido qui diempromis et celas aliusque et idemnasceris, possis nihil Roma

    8Sobre o contributo dos poetas para este topos, vd. White 1993 182-190 e Fowler 2000 (cap.9, Te Ruin of ime: Monuments and Survival at Rome).

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    Virgnia Soares Pereira

    uisere maius!

    Sol vivificador, que no teu carro refulgentefazes nascer e encerras o dia, que renasces sempre diferente

    e o mesmo, possas tu no contemplar nunca nada to magnficoquanto esta cidade de Roma!

    Horcio no era o nico a colocar Roma e a sua perenidade sob o olharprotector dos deuses. Proprcio, Ovdio, Plnio-o-Moo, Veleio Patrculo,entre outros, formularam iguais votos pela aeternitas imperii. Mas as apreensesquanto ao futuro adensavam-se. A poca de ouro do sculo de Augusto teriao seu fim. Com o desaparecimento dos grandes vultos que marcaram o sculo,assistir-se- ao surgimento de novas formas de ver o mundo e a histria. Assim

    acontece com Pompeio rogo (sc. I), autor de uma histria universal em 44livros, que apresenta uma viso da histria em que Roma no passa de umasimples potncia igual s outras e como elas destinada ao desaparecimento.Era o ataque da provncia (rogo era natural da Glia) ao centralismo romanoe ao mito providencialista das origens., nas palavras de A. Esprito Santo (inCenteno 1997 256). Esta nova atitude est tambm representada no poetahispnico Lucano, que, no livro IX do seu Bellum Ciuile, a respeito da visita deCsar a ria, retoma o toposda contemplao de runas de cidades que outroraforam florescentes, o que pode ser, e tem sido, entendido como um sinal e um

    aviso de que o mesmo poderia acontecer a Roma.9Com a chegada do sculo II d.C., voltam a surgir manifestaes admirativas

    relativamente ao mundo romano. Plutarco, reconhecido pelo clima geral depacificao trazido pela paz romanae convencido de que um tal imprio nopoderia existir sem dever qualquer coisa aos deuses, afirma sem hesitao que afortunae a uirtusse uniram para fazer o conjunto mais belo das obras humanas,o imprio romano.10

    Pela mesma poca, o retor lio Aristides (c.117-c.181) comps, talvezpor ocasio da celebrao dos novecentos anos da fundao da cidade, em 147d.C., um Elogio de Roma. Este retor grego estava convicto de que o ImprioRomano no era apenas superior aos seus predecessores em extenso, duraoe organizao , mas era o resultado da obra dos outros, que prepararam a suagrandeza. Comungava, alm disso, do dogma oficial da eternidade de Roma,como se deduz do modo como encerra o seuElogio de Roma( 108-109). Empalavras que contm todos os ingredientes prprios do encmio, diz Aristides:

    9

    Hardie 1994 58-60 lembra que Lucano no foi o primeiro romano a tomar conscincia dofacto. J em 146 a. C. Cipio Emiliano, vendo Cartago destruda, was prompted to muse on themutability of Fortune and to wonder what the future might hold for Rome.

    10Frazier et Froidefond 1990 26.

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    Mas este feito empreendido desde o incio, o de igualar o discurso grandezado Imprio, ultrapassa tudo o mais e necessita quase de um tempo igual ao dadurao do Imprio isto , provavelmente, a eternidade. Por isso o melhor

    ser, a exemplo dos poetas de ditirambos e de pans, concluir o meu propsitoacrescentando uma orao. Que sejam invocados todos os deuses e os filhosdos deuses, e que concedam a este imprio e a esta cidade que permaneameternamente florescentes e que no tenham fim antes que as massas de ferroflutuem superfcie do mar e que as rvores deixem de florir na primavera.11

    Mais tarde, em finais do sculo II, ertuliano escrever:

    () ns rezamos e sem cessar pedimos a deus que todos os imperadores gozemde uma longa vida, que governem sobre um imprio seguro () Uma outranecessidade, mais elevada, nos obriga a rezar por todos os imperadores e portodo o mundo, pela conservao do imprio e do poder romano: que nssabemos que a terrvel catstrofe que ameaa todo o mundo, ou seja, o fim domundo, que com ela arrasta sofrimentos intolerveis, est apenas suspensa pelointervalo acordado ao imprio romano.12

    De Horcio at ertuliano, os tempos tinham mudado. Sentia-se maisdbil a solidez do Imprio. O mundo romano tornara-se uma extensa teia dearanha cujos fios so as caladas que de Roma conduzem aos mais longnquospontos do novo mapa do Imprio, o que fez com que comeasse a ser difcilsuster a presso constante dos povos s portas do imprio e provocou achamada revoluo militar, que, em conjunto com as revoltas de cidadosque se insurgiam contra o insustentvel e frequente aumento de impostos eo alargamento do fosso entre as classes possidentes e os deserdados da sorte,tornaram a situao muito insegura.

    Assim sobreveio a crise do sculo III, que afectou a economia, o exrcito,a sociedade. As dificuldades enfrentadas por Roma foram incalculveis,

    sucederam-se as guerras civis, a anarquia militar, tudo parecia desabar.13

    11loges grecs de Rome, 108-109 (Pernot 1997 119). Em comentrio a este passo, Pernotesclarece, na nota 229, que se trata de dois adynataclebres, um referido em Herdoto (1.165),outro num texto da Antologia Palatina(7.153).Da mesma poca um poema grego atribudoa Melino, poetisa talvez de Lesbos, que sada Roma como soberana de um imprio que nemo tempo, que tudo abate, destruir. O poema foi conservado por Estobeu (III, 12, 7) e pode

    ver-se, traduzido, em Martn Garca 1994 311-312.12Citado, com a devida vnia, de Paula Barata Dias.13Foi, nas palavras de Dodds 1965 100, an age of anxiety. Fernndez Ubia (1982 17 e

    sgs.) enumera como motivos da crise: crescente proletarizao; escassez de terras; escravizaoe forte importao de mo-de-obra; opresso social que se abate sobre os agricultores dasprovncias; crise agrria; recesso econmica; aumento dos gastos pblicos (com a burocracia e oexrcito); incapacidade de superar as diferenas de classe; barbarizao do estado greco-romano.

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    Perante o decrscimo dos impostos pagos ao estado, aumenta a presso fiscal(para sustentar o aumento das despesas militares com a defesa nas fronteiras),aumentam as extorses extraordinrias, aumenta a injustia.14 SegundoCitroni (2006 1041), neste sculo j se vislumbram muitos dos factores de

    desagregao que conduziram queda do imprio do Ocidente.No obstante, o sculo IV voltar a dar sinais de renovao de confiana

    nos destinos de Roma.15 Atesta-o a obra de Amiano Marcelino, o ltimogrande historiador do imprio.16O tema da sua obra historiogrfica a histriado Imprio romano visto como um estado universal (porquanto compreendia amaior parte do mundo conhecido) e eterno, que resultava de um pacto firmadopara esse fim, no tinha dvidas, entre Virtuse Fortuna.17

    Roma era, para Marcelino, a Vrbs aeterna, uma urbs sacratissima, umtemplum totius mundi e caput mundi. E a sua confiana na perenidade deRoma era a tal ponto inabalvel que, nas suas palavras, Roma viveria enquantohouvesse homens: uictura dum erunt homines Roma (14.6.3).18 Mas erampalavras de optimismo ditadas pelo corao, como adverte Italo Lana, quechama a ateno para o carcter trgico desta viso da histria, pois entram emcontradio a f do historiador na eternidade de Roma e a realidade do quesucede: uma decadncia progressiva e inestancvel do Imprio submetido aosassaltos dos brbaros.19odavia, quando comparava os tempos de agora como passado, Amiano Marcelino dava-se conta da degradao moral em que

    estavam a cair todos os Romanos, desde o senado plebe,porquanto velavampelo seu bem particular e no pelo bem comum.20

    Na mesma linha de pensamento se inscreve Cludio Claudiano oltimo poeta clssico latino, que nasceu por volta de 365, quando a pressodos Hunos sobre as fronteiras se fazia sentir e obrigava Alanos, Ostrogodos e

    Segundo este estudiosos, a coincidncia de tantos factores acaba por potenci-los.14Veja-se Magaa Ore 2001 e Cameron 1993 19.15 Explicando esta nova situao, Chastagnol 1969 8 defende que, apesar de todas asdesgraas ocorridas, o imprio romano subsistiu, voltando a assegurar a segurana das fronteiras.16Natural de Antioquia, na Sria, Amiano Marcelino (c. 330 c. 400) veio para Roma e a

    comeou a escrever os Rerum Gestarum Libri XXXI.Amiano atribua a origem da decadnciaromana burocratizao excessiva e opresso tributria.

    17Veja-se Mellor 1999 118-126 e Ruggini 1998 221-227.18Tambm Floro (2.13.1), em meados do sculo II, fizera coincidir a dominao romana

    com o gnero humano (romana dominatio, id est humani generis), mas tambm com a civilizao.19Lana 1998 237. E o mesmo autor lembra o passo de Amiano (14.6) no qual, ao falar da

    velhice de Roma, refere como esta dominou todo o mundo e, deixando as guerras, continua nasua velhice venerada e respeitada como soberana e rainha. Mas a verdade que, ainda segundo

    Italo Lana (p. 238), Ce tableau idyllique et serein de la situation contemporaine de Rome esttrs artificiel et ne correspond pas la vrit, pois o papel poltico de Roma acabara.20 Em 14.6 e 28.6 surgem dois excursos sobre os vcios do senado e do povo romano

    (Cameron 1993 19 e Citroni 2006 1119).

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    Visigodos a lanar-se contra Roma. Comps em 400 o De consulatu Stilichonis,um poema panegrico a celebrar o ano do consulado do grande generalEstilico, seu principal patrono e heri mximo dos seus poemas21e nele fazum extraordinrio elogio de Roma (3.130-173), louvando a extenso ilimitada

    do Imprio e a ausncia de fronteiras quod cuncti gens una sumus, nec terminusunquam / Romanae ditionis erit (vv. 159-160), (porque todos formamos um spovo e a dominao romana no ter fim) , bem como a organizao e a foracivilizadora das suas leis.

    Os tempos de Diocleciano e da etrarquia tinham trazido uma relativaestabilidade econmica e paz social, mas externamente as fronteiras militarescontinuavam vtimas de um progressivo enfraquecimento. A unidade imperialfora renovada nos tempos de Constantino, mas a instabilidade regressara: osVisigodos passaram o Danbio, em 376, aniquilaram as divises orientaisdo Imprio e assassinaram o comandante em chefe, o imperador Valente,na decisiva batalha de Adrianpolis, em 378. Este desastre foi sentido peloscontemporneos como o anncio ou prenncio do fim do Imprio.22Poucosanos depois, em 395, eodsio desfere mais um golpe na difcil unidadedo mundo romano, ao dividir o Imprio pelos filhos Arcdio e Honrio,antecipando o seu irremedivel desmembramento. E foi com este pano defundo que Claudiano celebrou o poder unificador de Roma.

    A voz dos poetas em louvor da cidade de Roma continuava viva, portanto,

    mesmo quando volta s se viam runas. No seu catlogo e elogio das cidadesmais importantes do Imprio Romano (Ordo Vrbium Nobilium), Ausnio, omais conhecido dos poetas da segunda metade do sc. IV, refere-se a Romacomo Prima urbes inter, diuum domus, aurea Roma (Roma, primeira entre ascidades, morada dos deuses, urea Roma). E no entanto era j um tempode declnio. Por isso F. Peschoud, no seu livro Roma Aeterna, tecer durascrticas a Ausnio, acusando-o de ter atravessado o seu sculo como um cego:no viu o perigo brbaro, nem o conflito entre pagos e cristos, nem a lutacontra a heresia, nem a destruio do poder papal, apesar de Graciano ter sido

    assassinado quase debaixo dos seus olhos (em 383).23Mas o caso mais flagrante de um elogio da Urbe feito a destempo surgej depois do saque de Roma e procede de Rutlio Namaciano, indefectveladmirador da grandeza da cidade. De origem galo-romana, veio a dada alturapara Roma (quando seu pai era governador da Etrria) e a fez carreira, sendo

    21Sobre este autor, vida e obra, vd. Cerqueira 1991 8-9.22Piganiol 1977 488-489.23

    Peschoud 1967 130 (apud Mazzoli art. cit., pp. 77-91, p. 81). A respeito do desaparecimentodo Imprio Romano do Ocidente um desfecho algo repentino, a julgar pelas mostras derenascimento no sculo IV, opinou Brown 1972 105 : Para os contemporneos, a falncia dosimperadores do Ocidente, no sculo V, foi a crise mais imprevista do Estado Romano.

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    nomeado praefectus Vrbis em 414. rs anos mais tarde regressa Glia e,provavelmente durante a viagem, escreveu um poema intitulado De reditu suo,no qual descreve a viagem desde Roma at Luna. Composto em 417 d.C., opoema ficou inacabado. Nele o poeta, que sofre com a viso das runas que se

    lhe deparam na sua viagem, deixa bem expressa a sua profunda admirao porRoma, mesmo depois de a ter visto saqueada pelas tropas de Alarico. Admiraa grandeza da cidade e acredita no seu renascimento, convicto de que vivereternamente.24Roma celebrada como rainha do mundo e me dos deuses edos homens, sendo ainda considerada capital de um imprio sem igual, j queos astros nunca viram nada de mais belo (De reditu suo1.81-82):

    Omnia perpetuos quae seruant sidera motus nullum uiderunt pulchrius imperium.

    De todos os astros que garantem os movimentos eternos nunca nenhum viu imprio mais belo.

    Os Romanos tinham conscincia de que a um imprio sucede outro eque o imprio de Roma fatalmente haveria de perecer, como os demais. Masa eternidade de Roma tornara-se uma crena e um dogma. Compreende-se, por isso, que Marrou possa ter afirmado, sobre o fim do Imprio: Oscontemporneos da queda do Imprio Romano do Ocidente no tiveram

    conscincia de tal coisa.25A perenidade de Roma foi um mito que muitosdefenderam mesmo quando as condies objectivas j o no permitiam.

    E no entanto, poucos anos mais tarde, o mito sofre novo sobressalto,perante a constncia dos ataques segurana dos povos da Romnia, perpetradapor outros povos. Ouvir-se- ento a voz incrdula de uma das figuras maisimportantes do sculo V, So Jernimo (c. 345-419), horrorizado com o queacontece (em carta a Heliodoro, 60.16):

    Horret animus temporum nostrorum ruinas persequi. Viginti et eo ampliusanni sunt, quod inter Constantinopolin et Alpes Iulias cotidie Romanus sanguiseffunditur. Scythiam, Traciam, Macedoniam, Dardaniam, Daciam, Tessaliam,

    Achaiam, Epiros, Dalmatiam, cunctasque Pannonias Gothus, Sarmata, Quadus,Alanus, Hunni, Vandali, Marcomani uastant, trahunt, rapiunt. [...] Romanus orbisruit[].

    24Marmorale 1974 121. Pela mesma altura (c. 417), Orsio escreveu uma Histria Universal

    para explicar que o Imprio era castigado pelos seus vcios.25Marrou 1979 103. Mas logo de seguida alerta para o carcter paradoxal desta afirmao,pois no faltam afirma - testemunhos escritos do sentimento de uma decadncia generalizadae irreparvel. Esses testemunhos encontram-se reunidos em Courcelle 1964.

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    A alma fica horrorizada ao ver as runas dos tempos presentes. H vinte ou maisanos que o sangue romano derramado diariamente entre Constantinopla eos Alpes Jlios. A Ctia, a rcia, a Macednia, a Dardnia, a Dcia, a esslia,a Acaia, o Epiro, a Dalmcia e as Pannias, devastam-nas, exploram-nas,

    saqueiam-nas o Godo, o Srmata, o Quado, o Alano, os Hunos, os Vndalos, osMarcomanos [...]. O orbe romano est a ruir [].26

    E na epstola 123, a Gerquia, datada de 409, um ano antes do fatdicoano de 410, ele afirma, como um dado adquirido:O que fazia de sustentculosaiu do meio, sem que tenhamos sentido a chegada do anticristo () incontveis eferocssimas naes ocuparam completamente as Glias ().

    A obra de S. Jernimo est cheia de reflexes e meditaes sobre esseacontecimento to espantoso quo inesperado que foi o ataque das hordas de

    povos germnicos a Roma (e ao Imprio romano), antes e depois do saquede Roma perpetrado pelas tropas de Alarico em 24 de Agosto de 410. Oschamados brbaros estiveram na cidade apenas trs dias.27Mas... sucedera oque parecia impossvel e j no havia segurana em nada. Da as suas perguntase exclamaes, carregadas de espanto e incredulidade. No seu comentrio aEzequiel (ao prlogo do livro III), Jernimo exclama: Quis crederet ut totiusorbis exstructa uictoriis Roma corrueret?, isto : Quem poderia crer que Roma,vitoriosa no orbe inteiro, haveria de ruir?E o mesmo So Jernimo comenta, nacarta a Gerquia (Epist.123.16), o estado de decadncia da cidade eterna, ao

    mesmo tempo que se interroga, dando sinal de uma enorme inquietude: Quidsaluum est, si Roma perit?Como se se interrogasse: Que segurana haver nomundo, depois da queda de Roma?28

    Recordemos o passo (Epist.123.15-16):

    H j algum tempo, do mar do Ponto at aos Alpes Jlios, que no eram nossasas terras que so nossas e h trinta anos que se combatia no centro das regiesdo imprio []. Quem teria acreditado que Roma teria de combater no seuinterior no pela glria mas pela sua salvao; mais do que isso: que teria, no

    26As referncias geogrficas deste texto dizem respeito aos pases e regies do norte e orientedo Imprio Romano, ento as mais ameaadas pelas investidas dos povos brbaros.

    27Algumas pginas de Santo Agostinho reflectem a angstia que ento se apoderou dosromanos. Os cristos como ele tiveram tendncia a olhar para os funestos acontecimentos comoum sinal de que o destino de Roma assim o determinava. Veja-se referncia a estes temposconturbados e ao saque de Roma em Santo Agostinho (vd. Urbano 2010 15-19) e em Orsio2000 11-13 (da Introduo) e 39-40.

    28O sentimento de So Jernimo no anda muito longe do expresso nas palavras que cito

    (Hist.4.74) atribui a Petilius Cerialis, comandante de tropas, quando este admite a eventualidadeda destruio do Imprio: Com efeito - praza aos deuses que no! -, se os Romanos so expulsos[da Glia], que acontecer se no uma guerra universal? Um circunstanciado comentrio scartas 60 e 123 de S. Jernimo pode ver-se em Dias 2006 41-46.

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    de lutar, mas sim de resgatar a sua prpria vida com o ouro e todos os seus bens.Agora, admitindo que tudo acabe em bem, no temos nada a tirar aos inimigosa no ser os bens que perdemos. Um apaixonado poeta, falando do poder deRoma, diz: Que coisa te basta, se Roma pouco? Podemos transform-lo neste

    outro elogio: Que coisa se salvar, se Roma perecer?29

    Poucos anos depois, Odoacro assassina Orestes e priva o filho deste,Rmulo Augusto, do poder imperial. Assim caa o ltimo imperador romanodo ocidente. A fim de tranquilizar o imperador do Oriente, Zeno, Odoacroapressa-se a enviar as insgnias imperiais para Constantinopla, com o queest a reconhecer a autoridade suprema do descendente de Constantino,colocando-se como seu vassalo (Dias 2006 39). Comentando este gesto, PaulRich (1992 69) afirma: O Imprio romano do Ocidente estava morto. Mas

    ningum se apercebeu disso.Passados mil anos, no sc. XV, quando se assistia ao movimento derenovao dos estudos e do interesse pela Antiguidade Clssica, eram frequentesos lamentos sobre os obscuros tempos passados. Cite-se a este respeito o casodo humanista italiano Poggio, que no livro I do De uarietate Fortunaelembrarcom tristeza a grandeza perdida de Roma:

    um pensamento recorrente, para meditar com assombro, que esta colina,o Capitlio, que outrora foi cabea do imprio romano, a cidadela do mundo,

    diante da qual todos os reis e prncipes tremiam, qual tantos generais subiramem triunfo (...), esteja to arruinada e destruda, to mudada em relao ao seuaspecto original, a tal ponto que as heras cresceram no local onde antigamentese sentaram os senadores...30

    Em suma:Os textos e autores evocados puseram em relevo alguns sinais evidentes ou

    indcios de contnuas mudanas no orbe romano, resultado ou da decadnciada uirtus ou da inconstncia da fortuna. Alguns dos sinais, manifestamente

    29 Esta pergunta, que indubitavelmente deixa transparecer uma grande angstia quantoao futuro e que ainda hoje nos faz reflectir , ser retomada muitos anos mais tarde, emplena Idade Mdia, segundo informa Purcell 1995 379: ambin la tradicin occidental sepreocupaba por el poder simbolizado en los monumentos, y por las cuestiones sobre comocontinuar este y cundo terminar. Un caso famoso aparece en un texto llamado citas de losPadres, recopilaciones de escritos, antologias, problemas y parbolas, erroneamente atribudo aBeda el Venerable: Mientras el Coliseo permanezca en pie, Roma seguir existiendo; quando elColiseo caiga, Roma caer tambin; quando Roma caiga, caer el mundo.

    30 Cit. de Jenkins 1995 39. E o tema das runas de Roma deu origem, nesse tempo, a

    inmeros poemas. Ianus Vitalis (que morreu em 1560) celebrizou-se com o epigrama, emlatim, De Roma Antiqua, que foi cuidadosa e poeticamente traduzido pelo poeta francs DuBellay, pelo espanhol Francisco de Quevedo e por alguns outros poetas. Sobre este epigrama eas tradues que dele foram feitas, veja-se Ramalho 1969 297-317.

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    optimistas, podem ser atribudos a crenas inabalveis ou a objectivos depropaganda poltica, porquanto surgem quando os tempos so de manifestodeclnio. Outros sinais antecipam j o que acabar por acontecer.

    De ento para c, a admirao de uns e a perplexidade de outros continuaram,

    e continuaro, a caracterizar o olhar que se volta para a Antiguidade Romanaem busca de respostas. Assim se justificam, em grande parte, as romagens quecontinuam a fazer-se a Roma, Roma crist e Roma pag. Elas atestam, semqualquer dvida, a seduo exercida pela forte simbologia do lugar que um diafoi a capital do imprio.

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    Orculos bblicos de fim projectados por sobre o fim de roma

    O

    J A RFaculdade de Letras da Universidade de Lisboa

    Resumo:O fim de Roma um ponto fulcral do discurso apocalptico ondeconfluem perspectivas dos orculos profticos sobre a prtica poltica das naesestrangeiras. O judasmo e o cristianismo valorizaram o tema, formulando-ocomo um juzo de condenao sobre o estado do mundo sob o domnio deRoma.

    Palavras chave:Roma, fim, apocalptica, naes, histria, imprios, orculos profticos

    Abstract: Te end of Rome is a nuclear point of the apocalyptic discourse,which retains many perspectives of the prophetic oracles against foreignnations. Judaism and Christianity developed and enriched this theme, using itas a judgment formula and applying it to the state of the world under romanregency.Keywords:Rome, end, apocalyptic, nations, history, empires, prophetic oracles.

    Para esta comemorao historiogrfica de um acontecimento que ressoa,de algum modo, como um fim de Roma, pertinente recolher, em sntese,

    um tema literrio que tem a ver com o fim de Roma e decorre do percursodas literaturas orientais, particularmente da bblica. Este tema recebe a suaexpresso literria maior, em confronto com a histria poltica local de Roma,numa poca que coincide mais ou menos com o final do primeiro sculo daera crist, quando a frmula institucional do Imprio governava o mundo apartir de Roma. Acontecendo isso no final do primeiro sculo da presenteera, estamos ainda muito antes do fim real, cuja efemride se rememora.Esta proposta de tema mantm, mesmo assim, grande pertinncia, porqueaquilo que nestes textos se vai formulando no propriamente o acontecerdo fim; sobretudo a anlise das razes pelas quais um fim se demonstravahistoricamente justificado e merecido, a julgar pelo olhar e pelos desejos dealguns a quem a histria de Roma dizia algum respeito.

    1. Roma em leitura ambivalente para o judasmo antigo.

    O mundo dos judeus movia-se tradicionalmente num contexto orientalde coordenadas relativamente claras. omando em considerao as refernciasde orientao geogrfica que lhe eram habituais, Roma era uma realidade quese situava literalmente atrs das suas costas, porque a sua orientao se definiade olhos voltados para Oriente. Por via disto, a primeira entrada explcita de

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    Roma no horizonte literrio dos hebreus acontece de uma forma auspiciosa,no captulo 8 do Primeiro Livro dos Macabeus, referindo-se a acontecimentossituados na segunda metade do sculo II, antes de Cristo. rata-se de estabelecerum tratado de amizade e colaborao entre Roma e a Judeia. Ora, esta entrada

    de Roma pode realmente considerar-se auspiciosa, porque a inteno que aela preside a de estabelecer amizade e aliana com os romanos, pedindo aestes que libertassem os seus novos amigos judeus do jugo dos gregos, pois

    viam que o desgnio destes era submeter e reduzir Israel servido (1Mac18,17-18). Os romanos mostraram-se agradados com estas declaraes dos

    judeus e, mesmo antes de lhes responder, Roma comeou a pr em prtica assuas competncias de amiga e protectora contra os selucidas de Antioquia,ameaando com a sua interveno, logo que estes dessem motivo para isso(1Mac 8,19-32).

    odavia, apesar deste horizonte de proteco eficaz, lcida da parte dosjudeus a imagem algo ambivalente que Roma lhes oferecia j naquela altura.Com efeito, os romanos so descritos como extremamente poderosos e comobenevolentes para com os seus aliados. Apesar do aspecto idlico deste olhar,o facto reconhecido era que os romanos ofereciam a sua amizade a todos osque a eles recorriam, porque, na verdade, o seu poder era muito grande(1Mac8,1).

    Esta a sntese histrico-poltica que serve de prtico ao famoso captulo,

    onde se celebra a aliana entre a Judeia do tempo dos Macabeus e os romanos.A seguir explicita-se aquilo que faz parte da imagem internacional de Roma,veiculada pela comunicao ento acessvel aos judeus. O contedo destaimagem internacional de Roma inclua, nomeadamente, as suas numerosasguerras e conquistas no Ocidente e no Oriente, com dados concretos de regiese de personagens polticas, que se estendem desde a Glia e a Espanha at ndia. No deixam de ser sublinhadas, desde o incio, as atitudes de submissocom que os poderes das regies dominadas costumavam acomodar-se aopoderio de Roma (1Mac 8,2-16).

    A substituio da soberania grega (malkut yawan1) pela soberania romana(malkut edom2) constitui uma viragem histrica que no revelou, de incio,todas as suas virtualidades, mas que o mundo rabnico foi codificando de forma

    1 letra, realeza de Javan. Javan o nome bblico para Grcia, at na actualidade (ver Gn10,3-4) e reenvia evidentemente para o termo de Jnia, com o qual hoje designamos uma parteasitica da Grcia, mas que, visto de alm-Mediterrneo, era realmente a Grcia.

    2 letra, realeza de Edom. Para metaforizar Roma, o mundo hebraico tardio habituou-sea aproveitar a analogia semntica e nominal de um tradicional vizinho e inimigo histrico

    de Israel, Edom, situado a Sul do territrio da tribo de Jud. rocar o D por um R eraum exerccio fcil e sugestivo na escrita hebraica. Carvalho 2009 220-222 concretiza algunsaspectos de Edom interpretado como Roma na literatura rabnica. Ver tambm Hadas-Lebel1990 460-472.

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    cada vez mais intensa3. Como potncia de origem ocidental, Roma conglobaigualmente as memrias de uma geografia bblica com tonalidades mticas,a dos Kittim, grupo ao qual a condio de estrangeiros e o posicionamentogeo-estratgico foi dando cada vez mais conotaes de ameaa4.

    Daqui decorre uma viso do papel histrico de Roma. Segundo este modode ver, Roma descrita como portadora de uma civilizao que os judeus,na sua generalidade, nunca rejeitaram e como chave de uma globalizao daconscincia humana, que parecia encaixar razoavelmente bem nas coordenadasmticas do Oriente. A prpria viso poltica que h-de representar Roma e oseu imprio no parece ainda suscitar grandes motivos de rejeio. Podemosdizer que estes ingredientes compem um quadro que no seria muito diferentedaquele outro quadro drstico que nos vai aparecer no Apocalipse, mais deduzentos anos depois. O que acontece que, nesta fase inicial, as semnticasde ressonncia no horizonte da conscincia poltica estavam condicionadas porum panorama significativamente diferente. A proteco oferecida contra umaterceira entidade poltica, considerada como inimiga, esbate aqueles aspectosque, no poder de Roma, poderiam j ser vistos como negativos5. O seu poder,

    visto como protector, era ainda positivo.Pouco a pouco, no entanto, Roma vai sendo conotada, nos vrios

    meandros onde podemos encontrar a expresso da sensibilidade judaica,com as potncias inimigas e com os imprios do passado, que foram

    conquistadores e opressores. odos eles, com efeito, tinham deixado namemria uma profunda imagem de sofrimento e na alma uma imensavontade de rejeio e liberdade. O lado positivo destas emoes e destamemria o facto de, apesar de tudo, elas terem contribudo intensamentepara a definio da conscincia de identidade com que os judeus se foramassumindo e projectando no convvio das naes.

    Os pronunciamentos sobre o fim de Roma mantiveram sempre estaambivalncia e no se apaga a vontade de tratar da questo romana comosendo parte integrante do mundo dos judeus durante os aproximadamente

    duzentos anos que decorrem entre o Primeiro Livro dos Macabeuse oApocalipsede Joo. Vrios momentos difceis da experincia vivida sob dominaoromana traziam ao esprito, com alguma naturalidade, o tema sobre o fimde Roma, tal como aconteceu com a catstrofe do ano 70 e a destruio do

    3Schfer 1989 49-50.4Collins 1998 93; Hadas-Lebel 1990 40-43; 339-341. tnica e onomasticamente associados

    a Javan (Gn 10,4; 1 Cr 1,7) e a Chipre (Is 23,1; Nm 24,23) bem como a vrias regies do Egeu(Jr 2,10; Ez 27,6), os Kitim foram servindo para identificar os conquistadores que chegavam doslados do mar Mediterrneo (1 Mac 1,1; 8,5; Dn 11,30.

    5Schfer 198970-71.

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    templo de Jerusalm6, Alguns textos judaicos como o da Regra da Guerra, nosmanuscritos do Mar Morto (Qumrn), representam certamente um gnero,uma literatura onde a sensibilidade judaica processa e como que planifica ofim de Roma, dando ao tema uma particular intensidade7. No entanto, a carga

    de quietismo que os envolve mostra bem que eles devem servir sobretudo paracontemplar e aprofundar as razes pelas quais Roma merecia conhecer e sofrero seu fim. ais elucubraes aparentemente meticulosas no representavamuma autntica estratgia de poder militar srio e alternativo8.

    O silncio sobre Roma e o seu impacte vai tornar-se de regra entre osjudeus, praticamente s com a razia consumada sob o domnio do ImperadorAdriano, que os levou a renunciar, de forma quase radical, a outras expectativasescatolgicas9. Na verdade, por essa altura, era j o cristianismo que estava aassumir a questo de Roma, para a tratar, a seu modo, como uma questo desentido da histria, primeiro como um drama de sabor apocalptico e depoiscomo a epopeia de uma utopia universal.

    2. Confluncia de imagens entre Roma e Babilnia:

    Os judeus da era do Novo estamento identificavam-se naturalmentecom Jerusalm e esta sua cidade capital coincidia essencialmente com ainstituio religiosa, social e poltica que era o templo10. Desde antes doincio da Histria, era no templo que as civilizaes do antigo Orienteencontravam as coordenadas profundas do conceito de cidade como umarede humana de solidariedades. Ora os acontecimentos maiores da histriado templo de Jerusalm, marcados por memrias de carcter negativo, so assuas duas destruies. Uma primeira destruio ocorreu quando os exrcitosde Nabucodonosor conquistaram a cidade, em 587/586; e a figura que ficoucomo portadora desta memria trgica e passou a carregar com o peso dasua imputao tico-poltica foi a cidade e capital do respectivo imprio,a Babilnia. A tendncia semtico-bblica para personificar a imagem da

    cidade facilita a imputabilidade destas responsabilidades histricas. esta amaneira de imputar sentidos e responsabilidades dentro da tica pr-clssica.A segunda destruio do templo, naturalmente marcada pela rejeio da partedos hebreus, foi aquela que teve lugar por iniciativa dos soldados de ito,no ano 70 da nossa era. A grande responsvel por esta segunda destruio

    6Hadas-Lebel 1990 430ss.7Collins 1998 168; Collins 199795-109; Vermes 2006163-187; Hadas-Lebel 1990 40-43;

    339-341.8

    Sobre o carcter quietista do discurso dos apocalpticos, apesar da intensidade e do evidentefrenesim, ver Ramos 2006 20-24.9Collins 1998281.10Jeremias 1969 25-30.

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    a rede de poder comandada pela cidade-personagem referida pelo nome deRoma.

    Quando os textos de lamentao e memria tentam imputar o crimeda destruio a um agente especfico, preferem referir a cidade11. como

    que uma forma abstracta e sistmica de tratar os acontecimentos com a suaestrutura de poder. Isso faz dos acontecimentos um projecto de opressoque tem sempre mais ressonncia do que um acontecimento que tivesse tidolugar episodicamente no percurso histrico de um homem. Acontece tambmassistir-se ao desdobramento da imputabilidade por duas figuras, a da cidadee a do rei que a governava na altura. Assim se desdobram, no Apocalipse, asreferncias principais ao papel da cidade com as referncias mais secundriasao papel da Besta como referncia a um imperador selvagem12.

    O esteretipo da prostituio aplicado como designativo principal dacidade a maneira de formular o tratamento das questes histricas comoaventuras de pertinncia antropolgica. Os procedimentos de Roma tm amarca de comportamentos anmalos. Desde os grandes textos de Oseias (4,11-19) e de Ezequiel (16; 23) que esta metfora amorosa do desafeioamento doshebreus relativamente ao seu Deus significava sobretudo as atitudes planeadasde caminhos polticos ilegtimos e no quaisquer comportamentos respeitantesao domnio da sexualidade.

    Digamos que a pertinncia sexual desta metfora se insere na compreenso

    da sexualidade maneira bblica, isto , como um tipo de vivncia em queos compromissos interpessoais, sejam de teor jurdico sejam diferentes, quedefinem o sentido de transgresso que se encontra em jogo a cada momento.Sem inovar tambm neste ponto concreto, o apocalipse cristo aproveita aconjuno estereotipada de Babilnia e Roma no figurino de uma cidade que a capital de um poder opressivo13.

    Com efeito, o Apocalipse encontra-se precisamente na encruzilhadahistrica entre o judasmo e o cristianismo. Por isso, permanecem eficazesos sentidos histricos que estes temas vinham acumulando e com os quais

    se foi recheando a memria do judasmo, de sculo para sculo. No tempoem que o Apocalipse foi ganhando a sua redaco definitiva, o cristianismoencontrava-se j a caminho de conseguir a sua afirmao como um blocoautnomo relativamente ao judasmo. Este percurso ia acontecendo, por fora

    11Seja qual for a data que se assumir para origem de um texto como o Salmo 137, 8-9, asua parte final atira com o pesado castigo pelo exlio dos judeus para cima da prpria cidadeda Babilnia, com tonalidades to radicalmente dramticas que a prpria liturgia sempre teve

    dificuldade em assumir como orao.12 Sobre a Besta, cuja elaborao parece mais descoordenada com a poca de referncia maisnuclear para o conjunto do livro, ver Saot 2004 135-145.

    13Collins 1998 234.

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    do crescendo de identidade do prprio cristianismo, bem como por via dacada vez mais acentuada vontade poltica da comunidade judaica no sentidode excluir o grupo cristo de entre as suas hostes. As grandes coordenadas paraa leitura da Histria transitavam igualmente do contexto social do judasmo

    para o mbito de um outro espao cultural; desta maneira elas se afirmavame se enraizavam ganhando progressivamente foros e dimenso internacional.

    3. O fim de Roma noApocalipse, 17,1 a 19,10.

    al como acontecia em 1Mac 8, tambm em Ap 17 se assinala a referenciaa uma rede mundial de parceiros que esto articulados com o destino de Roma.Cabe-lhe a ela evidentemente a funo de presidir. Contudo, o ambienteque se reflectia no Livro dos Macabeus, por volta em 150 a. C., era de xito,

    entusiasmo e colaborao. Pelo contrrio, a imagem desta nova globalidaderomana exposta no Apocalipse de fracasso, suspeio e inveja e de ameaamtua. o mundo que desmorona sobre Roma. Em vez de ser o seu palco desucesso, a fonte da sua runa.

    Por outro lado, os traos com que se descreve a cidade de Roma e otratamento metafrico que lhe dado nem sequer dependem do conhecimentodirecto ou indirecto da realidade urbana da grande cidade capital. Pode tratar-se, na prtica, de uma transposio imagtica feita com toda a probabilidade apartir da imagem inscrita numa moeda com a efgie da dea Romaque comeoua circular na provncia da sia pelos finais do sc. I, d. C14. Avulta sobre estapaisagem histrica a figura do imperador Domiciano e a imagem existencialdo poder de Roma, apresentada como uma deusa em efgie numismtica acircular nesta provncia da sia15.

    Esta imagem foi inicialmente fixada em pea de numismtica, mas afrequentao cultural serviu para lhe preparar a capacidade literria de metfora,servindo de modelo apocalptico, para garantir efeitos surpreendentes: ganhao estatuto de uma viso16. Assistimos desta maneira ao processo cultural de

    uma espcie de narratividade ecfrasstica que segue o gnero literrio prpriode uma viso. Esta transposio d ao quadro um ritmo mais dinmico,movimentado e intenso e, por outro lado, enquadra o discurso no contextoclaramente apocalptico, onde as realidades so apresentadas como grandes

    vises. uma maneira prtica e eficaz de fazer incidir a intencionalidadehermenutica sobre os contedos visionados. No discurso apocalptico e nodiscurso bblico em geral, as vises so gneros literrios de contextualizaoou encenao hermenutica.

    14Cf. Carvalho 2009112-148.15Aune 1998919-928.16Ap 17,3-18.

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    O captulo 17 contm uma narrativa onde a figura central Roma, semo seu nome explcito mas com os traos mais distintivos. O captulo 18 uma liturgia trgica, onde Roma aparece revestida de uma Babilnia maiscarregada de smbolismo e com o dramatismo tradicional da queda das cidades

    (Ap 17,3-18). Esta queda acontece por interveno de Deus, sugerindo quese trata propriamente de um juzo e no de um facto, seja em relato seja emprenncio. Falar de interveno de Deus mais para sugerir um significado doque narrar ou antecipar uma interveno ou uma causalidade factual. A formaliterria tradicional era j uma sntese final como sentena em actuao, sem seocupar dos agentes dessa destruio.

    O facto de a figura sujeita a juzo, na lamentao litrgica do cap. 18, seruma cidade sublinha ainda mais que aquele julgamento vai incidir directamentesobre o programa poltico e a prtica de poder, sobre o seu estatuto tico esentido axiolgico, destacado sobre o horizonte do mundo e da histria. Aressonncia universal sugerida assim o diz. O elenco das trs personagensque proclamam uma lamentao em Ap 18, 9-19.21-24 representa sectoressignificativos da aco poltico-econmica da(s) cidade(s), nomeadamentereis, comerciantes e marinheiros17. Est assim bem definida a frmula socialessencial de uma cidade oriental, situada na orla martima. No esquecer quea lamentao-juzo sobre a cidade fencia de iro em Ez 27-28 parece seruma das principais fontes de inspirao do autor doApocalipse.Recorrendo

    imagem de iro, Ezequiel no est a apontar a figura de um inimigo prximoque representasse alguma ameaa; est a servir-se de um clich histrico dacidade como identidade cultural.

    Na elaborao do quadro sobre a queda de Roma, exposta com bastantesmais ecos do que pormenores ao longo dos captulos 18 e 19, o autor reutiliza,com intuito de actualizao, a riqueza de um patrimnio histrico-literrioque encontramos na Bblia, em estado de permanente releitura e actualizao.Este gnero deriva de um tema clssico e j milenar nas culturas do Orienteantigo, de que podemos referir, como ocorrncia mais antiga, a lamentao

    sobre a queda de Acad ou Agad e, j dentro da Bblia, o clebre livro dasLamentaes, que a tradio foi associando ao nome de Jeremias18.As mais conseguidas e vistosas realizaes deste gnero literrio

    encontram-se na linha dos orculos contra as naes. Esta actividade depronunciamento sobre o estado das relaes internacionais que, neste caso,diziam respeito aos hebreus identificava-se com uma das tarefas que a funoproftica mais frequentemente representava. Os casos mais notrios podem

    17Carvalho 2009515.18Cf. Morla Asensio 1994 493-527.

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    encontrar-se em Isaas19, Jeremias20, Ezequiel21, Joel22, Ams23; Abdias24,Naum25, Sofonias26.

    Relativamente ao tema que estamos a tratar, sobre os textos de Is 47,Ez 26-28 e Jr 51 que o efeito de sobreposio hermenutica entre a imagem

    da Babilnia e a funo de Roma se realiza mais claramente27. O recurso aotema da condenao das naes, proveniente dos discursos profticos, d aentender que a literatura apocalptica no pretende somente iluminar por novasperspectivas o horizonte humano do seu tempo, mas, com um sentimentomais nacionalista, pretende ainda mostrar solidariedade com os outros povosque estavam dominados pelos romanos, reforando a ideia de que o seu poderpudesse ser substitudo28.

    Uma tnica comum a todos estes discursos o facto de eles sublinharemas referncias ao fim das cidades e povos nomeados e postos como alvo depronunciamento e juzo. A deciso com que o fazem parece sugerir que o fim real que est em causa e de que aquela interveno configura umaprofecia cujo cumprimento realmente se espera. No , contudo, este o sentidoque a histria nos confirma. Estes discursos constituem, na verdade, umpronunciamento historiolgico: o sentido e o juzo sobre aquele modelohistrico de poder aquilo que se encontra sob anlise; e o fim de que se fala um voto para que, o mais depressa possvel, chegue ao fim aquele modelo depoder. Aquilo que aqui se faz , por conseguinte, um discurso hermenutico

    com a intencionalidade de um sentenciamento axiolgico. Estes orculos so,por conseguinte, uma promoo do fim em causa, sem promover ou organizaruma qualquer revolta militar ou assdio. Aquilo que designmos como juzohistoriolgico mantm a seu carcter quietista: uma anlise sobre a justiados poderes. O que faz definir e declarar. esse o seu tipo de interveno.

    19Is 14-20: Orculos sobre Babilnia, Assrios, Filisteus, Moab, Damasco, Etipia e Egipto;Is 21: queda da Babilnia, Idumeia, Arbia e Quedar; Is 22: Chebna; Is 23: iro e Sdon; Is 24:

    destruio da terra; Is 34: pequeno apocalipse; Is 46-47: queda da Babilnia.20Jr 25-38: Contra as naes estrangeiras (25,31: juzo contra toda a humanidade); Jr 46-51: orculos contra Egipto, Filisteus, Moab, Amon, Edomitas, Damasco, Quedar, Haor, Elam,Babilnia.

    21Ez 25-31: Orculos contra Amonitas, Moabitas, Edomitas, Filisteus; iro e Sdon; Farae Egipto.

    22Jl 4: Julgamento das naes pags congregadas no Vale de Josafat..23 Am 1-2: Orculos contra as naes. Damasco, Filisteus, iro e Fencios, Edomitas,

    Amonitas, Moabitas e at Israel e Jud; Am 8,8-14: Dia do Senhor.24Abd: Edom e Dia do Senhor: e o reino pertencer ao Senhor (21).25Na 2,4-3,19: Runa de Nnive. (texto sinttico e rico).26

    Sf 1-2: Dia do Senhor e orculos contra as naes, nomeadamente Filisteus, Moab, Amon,Etipia, Assria,27Carvalho 2009 41828Antonio Piero 1991 215.

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    Por princpio ou por resoluo de uma impotncia clara e assumida29.H, todavia, no movimento com que se anuncia o fim de Roma, um efeito

    de conspirao de poderes hostis em direco a ela (Ap 17,13.17). Porm, essaconvergncia reiteradamente caracterizada como sendo ftua e improcedente.

    Afirmar de forma quietista a proclamao da justia e do direito a atitude derealismo que resta.

    Entretanto, o sinal claro de que no se trata de uma sentena de fim o facto de se anunciar que o imprio que se vai seguir de um outro tipocompletamente diferente. Ele pertence a uma figura surpreendente, o Cordeiro,imagem de fraqueza dotada de autoridade. E esse novo imprio , na verdade,uma festa de casamento; so as bodas do prprio Cordeiro (Ap 19,5-10).

    A esta radical mudana de perspectiva acresce ainda a subtileza de estejulgamento e queda poderem ter um sentido de converso. Os orculossobre as naes seriam um combate pela correcta prtica de poder e no peladestruio dos seus eventuais maus executantes30. A ideia de um juzo comintuito de correco pode ser uma valncia real para uma leitura complementare sistmica dos orculos contra as naes.

    4. Roma como referncia perene do Quarto Imprio

    A metfora da histria apresentada por Daniel, na famosa viso fundadorado discurso apocalptico, assenta sobre a acumulao de trs imprios jpassados que lhe servem para expor metaforicamente a estrutura sequencialdo tempo poltico e burilar a experincia histrica que lhe define o contedoe apura o sentido (Dn 7,1-8). Em seguida, o vidente Daniel foca a atenono quarto imprio que aquele que ocupa todo o horizonte do presente, demodo a deix-lo fechado e esgotado. neste imprio do presente que incidemas anlises de pormenor; ele que submetido hermenutica apocalpticae ele que sofre o juzo de condenao. Os pormenores chegam a ser toacumulados que atrapalham a leitura, pelo menos para ns que intumos o teor

    da concretizao, mas no o conseguimos discernir quanto aos pormenoresde poca, por causa da falta de familiaridade que a distncia nos impe.Contrariamente aos anteriores, j no se refere a identificao do animalque representa este quarto imprio da srie histrica. Este o animal dopresente. Em princpio, qualquer leitor-hermeneuta tem modo de proceder identificao deste inimigo.

    mais radical ainda a viragem do olhar para o horizonte de alternativaque dever pr fim ao quarto imprio. Perante as naturais expectativas do

    29Ver acima, nota 8.30Bauckham 199 238-333.

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    ouvinte / leitor sobre este ltimo imprio, que seria o quinto e cuja aproximaose representa em contornos de verdadeira utopia, os traos de definiomostram-se claramente contidos e sublinham o entusiasmo que a viragemsuscita, mais do que a definio concreta dos seus traos reais e concretos (Dn

    7,9-14).Ora, no tempo de Daniel, o quarto imprio referia-se sobretudo ao

    reino dos Selucidas, o qual, a partir de Antioquia da Sria, dominava umpequeno mundo, suficiente, no entanto, para que os judeus se sentissem neleincomodamente espezinhados. Era esse o animal opressor ainda em aco, econtra ele se voltava a crtica e o queixume do vidente apocalptico. Pouco maisde um sculo depois, era j evidente para os judeus que o imprio da opressoapocalptica, o quarto imprio segundo a enumerao danilica, passara j a seridentificado com o Imprio Romano, que, pouco antes, havia sido declaradoto seu amigo31.

    Passado, entretanto, este ncleo apocalptico de protesto do campo dojudasmo para o do cristianismo, sobretudo depois da destruio de Jerusalm edo seu templo, no ano 70, d. C., o imprio romano transformou-se na imagemperene do quarto imprio, segundo a leitura da metfora danilica, e de formato radicalizada o faz que consegue personificar definitivamente a Babilniacomo smbolo do mal. ransformando em paradigma a metfora histrica deDaniel, este discurso de teor apocalptico acabou por fixar a imagem de Roma

    nessa funo at aos dias de hoje. Para identificar Roma com o animal do quartoimprio, o qual, de incio, representava os Selucidas, o apocalipse apresentaesta nova besta subindo do mar, imagem daquilo que acontecia na descriode Daniel (Dn 7,7-8; Ap 13,1-10). A fenomenologia apresentada descreveRoma como potncia invasora, subindo do mar. Em terra, corresponde-lheoutra besta que a incarnao local do poder da primeira (Ap 13,11-18). Oque foi invadido e se encontra oprimido est em terra: o espao de habitaodos destinatrios da mensagem apocalptica. O autor do Apocalipse procurareactualizar Daniel32.

    As leituras judaicas de messianismo e apocalptica que foram sendo feitasem pocas posteriores continuam a identificar o quarto imprio com o domniode Roma, mesmo que, com alguma ironia do destino, tenham de integrar nessepapel o prprio cristianismo que se lhes apresenta historicamente como tendoassumido igualmente uma identificao funcional com a prpria Roma. Aapocalptica judaica medieval continua a processar essa mesma sobreposio33.Da parte do cristianismo a questo no se punha da mesma maneira, uma vez

    31Hadas-Lebel 1990 473-482; Collins 1998 9332Carreira das Neves 2007 374.33 Ver Ramos 2006 381.

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    que, em geral, se considerava que o tempo histrico da Igreja tinha ultrapassadoo do quarto imprio, mesmo que a relao com o quinto imprio continuassea ter aspectos enigmticos e dialcticos.

    A identificao da Roma papal representada pela prostituta apocalptica

    foi uma metfora frequentemente utilizada pelas vrias correntes crticas docatolicismo na poca moderna34. rata-se, de certo modo, de uma aplicaoanloga do discurso apocalptico.

    Curiosamente, at o tempo de domnio muulmano, segundo osutilizadores judeus da apocalptica, est integrado nos parmetros quecorrespondem era de poder romano, por muito pouco que o poder islmicopossa ter-se identificado com o destino de Roma. O imprio de Romaassumiu, por conseguinte, o estatuto essencial dentro da esquematizaohistoriogrfica do texto de Daniel, apesar de este representar uma versopr-romana da histria. Roma passou a representar o perodo mais tenso edenso da Histria, o presente com o peso e a opacidade dos seus problemasimediatos e incontornveis.

    Apesar de tudo, considerava-se que, do quadro metafrico da histriasegundo Daniel, o imprio que estaria sujeito a um processo de definiomais complexo seria o Quinto Imprio. Como realidade futura deveria estarsujeito a contnua reformulao at que uma verso adequada viesse satisfazercompletamente as dimenses de utopia implicadas. Com a metfora de Daniel,

    estabeleceu-se o paradigma da histria, em passado (trs imprios), presente(um imprio) e futuro (um imprio). odos os presentes at agora tm sidodeclarados como tempo de Roma.

    5. Ambivalncia persistente na leitura sobre a funo histrica de Roma

    Caracterizmos a imagem de Roma, no judasmo do sculo II, a. C.,como uma leitura de colorido ambivalente. Ora, essa leitura dividida sobreo significado histrico que devia reconhecer-se a propsito de Roma acabou

    por se transformar numa frmula cuja validade transitou do judasmo parao cristianismo, continuando a motivar atitudes opostas, polarizadas entre aa vontade de rejeio e o impulso de assuno. O cristianismo nasceu numaecmena que, para alm da hegemonia poltica, reconhecia uma espcie depresidncia romana, entre sentimentos de entusiasmo, resignao e algumarevolta. Este enquadramento particularmente sublinhado no incio doEvangelho de Lucas35e projecta-se programaticamente em direco a Roma,

    34

    Cf. Saot 2004 169-170.35Lc 2, 1-6. Se, como parece ser facto, o recenseamento aludido por Lucas tiver tido lugarna Sria-Palestina uns doze anos depois do nascimento de Jesus, maior pertinncia ganha a

    vontade de fazer deste horizonte romano-planetrio o enquadramento histrico significativo

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    como nos mostra, de seu punho, o mesmo Lucas no livro dos Actos dosApstolos36.Assim se recuperavam algumas das razes de apreo do primitivojudasmo pelo mundo romano. O tempo e o contexto de Lucas37valorizavamessa leitura positiva da sombra romana por sobre o palco da histria comum.

    No deveria sequer ser muito fcil continuar a propor estas perspectivas nosanos que se seguiram destruio de Jerusalm, no ano 70. O tom amargo quese pressente no Apocalipse, algumas dezenas de anos mais tarde, no contextoespecfico da sia Menor dos finais do sculo I38, parece oferecer uma leituracompletamente negativa sobre o significado histrico de Roma. Ela aliidentificada como a antonomsia histrica do mal e da opresso. O captulo18 faz de Roma a grande Babilnia, a muito criticada prostituta da histria.

    Em contraposio, o quinto imprio, que, no esquema de Daniel, nofoi definido com esta frmula rigorosa de seriao, foi apresentando sempremodalidades diferentes, em cada nova proposta de formulao, de acordo comas perspectivas e os interessas de cada um dos que se agarravam s expectativasnele concentradas. O seu estatuto pode ser to variado e sugerido de formato subtil; pode buscar alternativas de poder de modelo to diferente que nemsequer se lhe atribui o rtulo especfico de um novo imprio. Assim acontecia,logo de incio, no livro de Daniel, onde, apesar do aparato da vinda de umafigura como um filho de homem sobre as nuvens do cu, isso apenas significavaa conscincia ou o desejo de que tivesse chegado a hora de o poder passar para

    as mos dos santos do Altssimo. Alis, a falta de numerao de srie paraa quinta figura de poder, o facto de no ter figurao como animal e a suacaracterizao como um simples ser humano indicam que os quatro impriosidentificados com um animal so vistos como maus.

    O cristianismo primitivo apresenta trs atitudes diversificadas relativamenteao poder romano: o reconhecimento de uma autoridade que promove aordem social existente; a contraposio entre duas ordens de realidade e de

    valores diferenciados; e uma mais radical atitude que demoniza as entidades,individuais e colectivas, que se identificam com o poder imperial. O livro do

    Apocalipseparece situar-se sem grandes dvidas nesta ltima posio39.A quinta fase da histria sob o ponto de vista da concentrao de poder, nopodia ser considerada um imprio. E este matiz contrasta com a naturalidade

    para o nascimento de Jesus.36Este o horizonte de difuso do cristianismo proposto como programa no livro dos Actos,

    tal como se pode ver pela coincidncia entre o projecto (Act 1,8) e a realizao (28,16-28).37Situado entre a Sria e Roma, a partir de meados do sculo I.38

    De vrios elementos internos, parece resultar inquestionvel que o Apocalipse tenha tidoorigem em ambientes cristos, talvez at minoritrios, na costa sudoeste da sia Menor. Patmosseria uma referncia tradicional verosmil, portanto.

    39Cf. Vouga 1997 222; 25-26.

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    com que ocorre o conceito de imprio para esta quinta etapa na linguagem deAntnio Vieira. A frmula suficientemente concentrada e tambm genricapara se manter esta importante transferncia em estado de indefinio at aosdias de hoje, deixando inevitavelmente pairar um sentimento de desencanto.

    Foram as re-elaboraes estratgicas posteriores desta expectativa que levaram formulao de sucessivos rtulos, entre os quais podemos mencionar, nonosso prprio contexto cultural portugus, o clebre rtulo de Quinto Imprio.Esta frmula identifica sobretudo a elaborao genial que se deve ao PadreAntnio Vieira, numa viragem radicalmente significativa da nossa histriapoltica nacional e at mesmo num ponto crucial da civilizao mundial queele soube perceber.

    O fim de Roma anunciado noApocalipsedeve, por conseguinte, entender-se como um julgamento que incide sobre o sentido da sua regncia histrica,eventualmente figurada e politicamente vivenciada atravs da apario deuma moeda com a efgie da deaRoma, a circular diante dos olhos do autorasitico e dos seus primeiros leitores cristos. No a viso de um fim realpr-anunciado nem sequer previsto de forma concreta; uma sentena decondenao40; a anteviso e a convocao do gnero de fim que as injustiase excessos com que Roma sobrecarregou a sua imagem ao longo da histriadefinitivamente merecem. O discurso apocalptico foi exmio a processarsnteses de evidncia sobre o sentido da histria, com base na acumulao de

    dados convergentes41

    .ransposta para oApocalipse, esta tradio literria de orculos contra umacidade-nao tem dado a impresso, ao longo de milenares leituras cmplices,de ser uma imagem de fim para o mundo inteiro. As tonalidades mticas dodiscurso apocalptico projectam naturalmente universalidade. Porm, no seuespao histrico, estes orculos nunca deram a impresso de ser uma profeciasobre o fim do mundo conhecido. Um tal conceito seria at, para os antigosorientais, perfeitamente incompreensvel. Pelo contrrio, esta leitura de fimuniversal tem ocorrido com facilidade no imaginrio colectivo, ao longo da

    histria de leitura deste livro. Houve, sem dvida, uma transformao deperspectivas; ou ento poder existir algum movimento semntico pendular,no interior destas metforas.

    Na verdade, esta ambivalncia simblica de Roma no horizonte destejulgamento pode ainda continuar a convergir de forma coerente com aintencionalidade essencial da mundividncia apocalptica, a qual no consisteem proclamar o fim de uma cidade ou do prprio mundo, mas acreditar e

    40Ap 17,1. A frmula de julgamento da grande prostituta, escolhida por J Carreira dasNeves 2007 394, soa perfeitamente correcto, do ponto de vista hermenutico.

    41Cf. Ramos 2010 41.

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    propugnar pela transformao do estado do mundo, de forma empenhada eutopicamente radical. possvel que a forma taxativa com que a apocalpticaparece propor a imagem de fim provenha precisamente do seu carcter utpicoe radical. Com efeito, imediatamente antes do seu eplogo (Ap 21,9-22,5),

    reaparece a figura metafrica da noiva, j apresentada em cerimnia nupcial emAp 19,7-9 e agora transformada numa cidade nova, cidade noiva, a Jerusalmtrono de Deus e centro de um mundo novo, com caractersticas de paraso (Ap21,15-22,5).

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