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PEREIRA, Jesus Marmanillo. Notas sobre a sociologia urbana de Georg Simmel: Do cotidiano de Berlim às
formas urbanas. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.3, n.9, p. 15-30, novembro
de 2019. ISSN 2526-4702.
ARTIGO
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
Notas sobre a sociologia urbana de Georg Simmel: Do cotidiano de Berlim
às formas urbanas
Notes on urban sociology by Georg Simmel: From Berlin's everyday life to urban forms
Notas sobre la sociología urbana de Georg Simmel: De la cotidianidad de Berlín a las formas urbanas
Jesus Marmanillo Pereira
Resumo – Compreendendo o contexto cosmopolita da cidade de Berlim do final do século do XIX
como diretamente relacionado às interpretações e ao conjunto conceitual de Georg Simmel, o
presente artigo visa analisar a sociologia urbana desse autor seguindo a orientação da teoria vivida
(PEIRANO, 2008) e do artesanato intelectual (MARTINS, 2014). A proposta percebe, assim,
como todo contexto do autor é bastante próximo de uma perspectiva etnográfica fundamentada na
observação cotidiana do estrangeiro, dos pobres, das migrações, das concentrações populacionais e
das exposições e feiras mundiais. Se valendo da análise e da contextualização de textos do próprio
autor e de pesquisadores como Moraes Filho (1983), Vandenberghe (2005), Bueno (2013),
Waizbort (2013) e outros dedicados à recepção, difusão e reflexão dos estudos de Simmel no
Brasil, organizamos o estudo em duas partes: a primeira focada na compreensão do autor em
relação ao contexto urbano de Berlim; e a segunda sobre a experiência dele nas cidades italianas
de Roma, Florença e Veneza. Palavras-chave: Sociologia Urbana, Etnografia, Georg Simmel,
Berlim
Abstract - Understanding the cosmopolitan context of the city of Berlin at the end of the
nineteenth century as directly related to the interpretations and the conceptual set of Georg
Simmel, this article aims to analyze the urban sociology of this author following the orientation of
the lived theory (PEIRANO, 2008) and intellectual craftsmanship (MARTINS, 2014). The
proposal thus perceives how every context of the author is very close to an ethnographic
perspective based on the daily observation of the foreigner, the poor, the migrations, the
population concentrations and the world expositions and fairs. Using the analysis and
contextualization of texts by the author himself and by researchers like Moraes Filho (1983),
Vandenberghe (2005), Bueno (2013), Waizbort (2013) and others dedicated to the reception,
diffusion and reflection of Simmel's studies in Brazil, we organized the study in two parts: the first
focused on the author's understanding of the urban context of Berlin; and the second on his
experience in the Italian cities of Rome, Florence, and Venice. Keywords: Urban Sociology,
Ethnography, Georg Simmel, Berlin
Resumen: Entendiendo el contexto cosmopolita de la ciudad de Berlín de finales del siglo XIX
como directamente relacionado con las interpretaciones y el conjunto conceptual de Georg
Simmel, este artículo tiene como objetivo analizar la sociología urbana de este autor siguiendo la
orientación de la teoría vivida (PEIRANO, 2008) y oficios intelectuales (MARTINS, 2014). Por lo
tanto, la propuesta se da cuenta de que todo el contexto del autor está muy cerca de una
perspectiva etnográfica basada en la observación diaria de extranjeros, pobres, migraciones,
concentraciones de población y exposiciones y ferias mundiales. Basándose en el análisis y la
contextualización de textos del propio autor y de investigadores como Moraes Filho (1983),
Vandenberghe (2005), Bueno (2013), Waizbort (2013) y otros dedicados a la recepción, difusión y
reflexión de los estudios de Simmel en la literatura. Brasil, organizamos el estudio en dos partes: la
primera se centró en la comprensión del autor del contexto urbano de Berlín; y el segundo sobre su
experiencia en las ciudades italianas de Roma, Florencia y Venecia. Palabras clave: Sociología
urbana, Etnografía, Georg Simmel, Berlín
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Observando estudiosos que debatem sobre a produção de Georg Simmel (LEVINE,
2015; WAIZBORT, 2007 e LUCACKS, 2016), nota-se que tanto a influência quanto a
percepção relacionada aos escritos dele ultrapassam os limites disciplinares e os
enquadramentos teóricos. Isso acontece porque, entre outras coisas, trata-se de um autor que
pode ser considerado pensador, ensaísta, filosofo e sociólogo, cujas reflexões transitam no
âmbito da sociologia clássica, dos estudos urbanos contemporâneos, do pensamento social e
da epistemologia, demonstrando, assim, o caráter versátil desse intelectual.
Compreendendo-o enquanto sociólogo da cidade que viveu a Berlim do século XIX,
partimos da hipótese de que a experiência urbana desse autor constitui o principal fio
condutor por meio do qual se produziu um importante legado conceitual da sociologia formal
simmeliana, além das interpretações sobre a metrópole. Nesse viés, problematizamos a
relação entre os aspectos da vida do autor e a sua produção intelectual com o propósito de
compreendê-lo em sua rica e detalhada descrição do cotidiano urbano da capital alemã.
Para tanto, aproximamo-nos dos estudos de Mills (1982) quando tentamos perceber o
sociólogo Georg Simmel a partir de elementos da própria vida. Tal opção segue o caminho de
um verdadeiro artesanato intelectual no qual a pesquisa e a vida se enriquecem e relacionam-
se, possibilitando ricas orientações e insights. Sobre isso, Martins (2014) também
problematiza a relação entre o vivido cotidiano e a prática de pesquisa, destacando a
importância do artesanato intelectual.
Considerando o momento histórico de Georg Simmel, compreendemos o termo
―urbano‖ como sinônimo de ―metrópole‖, levando em conta sua capacidade de materializar
todas as manifestações vinculadas à modernidade (GIDDENS, 1991 e 2002). Foi na cidade
que ele observou: (1) o efeito alienador e separador da circulação monetária na dissolução dos
laços sociais; (2) as condições sociais que influenciavam a prática da prostituição; (3) a
chegada de (i) migrantes estrangeiros; (4) a pobreza coexistente com as exposições de
inovações tecnológicas e industriais; (5) a intensidade de estímulos e as estratégias individuais
dos habitantes das grandes cidades, além de tantas outras influências daquele contexto sobre
as formas de sociabilidades urbanas.
Enfim, considerando textos como ―As grandes cidades e a vida do espírito‖ (2005), ―O
estrangeiro‖ (2005) e a obra ―Questões fundamentais da Sociologia‖ (2006), assim como as
contribuições de importantes pesquisadores como Moraes Filho (1983), Tedesco (2006),
Waizbort (2013), Bueno (2013) e outros, organizamos este artigo em duas seções voltadas à
compreensão e ao contexto de Berlim na época de Georg Simmel, e o segundo sobre a
experiência dele nas cidades italianas de Roma, Florença e Veneza.
Simmel: vida urbana e a modernidade de Berlim
As fronteiras entre o Georg Simmel cidadão de Berlim e o intelectual são tênues e
marcam a própria história de vida do autor. Sobre isso, Vandenberghe (2005) comenta que
esse ele nasceu em 1º de março de 1858, numa construção encravada, em um dos pontos de
maior movimento em Berlim: a esquina de Leipzigerstraße com Friedrichstraße, ou seja,
praticamente no ―coração‖ da cidade, justamente no encontro das duas maiores ruas de
comércio daquela época.
Esse importante sociólogo nasceu no seio de uma família judia, sendo o mais novo de
sete irmãos. Com o falecimento do pai1 em 1874, Simmel ficou sob a tutela de Julius
Friedflamder, um homem dedicado aos negócios musicais, que deixou importantes recursos
que lhe possibilitou a dedicação exclusiva à carreira acadêmica. Com essas características
sociais, vivenciou um século marcado pela intensificação da urbanização em muitos locais da
Europa e um intenso desenvolvimento econômico e industrial em Berlim (FILHO, 1983).
Pode-se dizer que ele viveu em um dos períodos mais intensos de expansão urbana na Europa,
1Edward Simmel nasceu em Breslau, em 1810, e dedicou-se ao comércio de chocolate.
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visto por Hobsbawn (2011) como o momento em que a população de 100 mil habitantes em
1800 sextuplicou, indo para 5 milhões de pessoas. Nesse contexto mais amplo o autor destaca
Berlim, Paris e Viena como as cidades que possuíam mais de 1 milhão de habitantes entre
1800 e 1880.
No decorrer desse século XIX, Berlim se tornou grande rapidamente, caracterizando-
se pela expansão de novos espaços, por inovações como a luz elétrica, automóveis, bondes,
intensificação do comércio, barulho, exposições, prostituição e chegada de estranhos. Esse
autor explica que a população dessa cidade passou de 826.000, em 1871, para 1.677.000, em
1895, destacando que apenas 40% desse aumento eram provenientes de nascimentos
ocorridos na cidade (WAIZBORT, 2013).
2
Não diferente de qualquer outra cidade grande, o rápido aumento populacional não foi
acompanhado de uma infraestrutura urbana, gerando assim, uma centralização de habitantes
em pequenos e precários espaços habitacionais, que indicavam os primeiros sinais de pobreza
e miséria social coexistentes com o avanço da industrialização (ibid, 2013). Foi nesse
contexto de urbanização que Georg Simmel nasceu na esquina de Leipzigerstraße com
Friedrichstraße, local que, como demonstra a figura 1, possuía sinais indicadores da
concentração de transeuntes, dos veículos e da verticalização da cidade. Enfim, sabe-se que
Georg Simmel nasceu e viveu em Berlim até os 56 anos. De 1858 a 1914 ele
morou ininterruptamente na capital prussiana. Nesse período acompanhou as
transformações da cidade, e esse processo de transformação foi um elemento central
na configuração de sua teoria do moderno [...]. Sua teoria do moderno é o seu
enfrentamento com a cidade em que vivia, suas próprias experiências formam o
material que atiça a sua reflexão e a tentativa de apreender conceitualmente as
transformações que ocorrem (WAIZBORT, 2013, p.315, grifos nossos).
As observações durante os 44 anos ininterruptos na capital podem ser consideradas
um verdadeiro campo de pesquisa cotidiana que, sistematizado e problematizado, possibilitou
a Georg Simmel elaborar uma série de trabalhos focados em temas urbanos. Quando
2http://www.bildindex.de/document/obj20443656/mi03874c08/?part=0. Acessado em 10 de fevereiro de 2017.
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pensamos isso em relação artesanato intelectual (MILLS, 1982) é importante refletir sobre
sistematizar a relação entre a vida e a obra de Simmel. Em caminho similar Peirano (2008,
2008), explica que, no fazer etnográfico, a teoria fica emaranhada nas próprias evidências
empíricas observadas pelo pesquisador, não ocorrendo assim uma separação entre teoria e
prática. Mais que isso, a autora afirma que a teoria vivida está presente no dia a dia do
pesquisador, quando transformamos observação em fato etnográfico, no ambiente acadêmico
e nos debates com os pares. Nesse sentido, é possível compreender a teoria vivida em Georg
Simmel quando estabelecemos a relação entre os 44 anos de experiências em Berlim e sua
obra. Uma leitura atenta aos ensaios ―Exposição industrial de Berlim‖ e ―As grandes cidades
e a vida do espírito‖ nos permite compreender que Simmel ―escreveu o vivido‖ (PEIRANO,
2008), pois se valeu do tempo de experiência e dos sentidos – olfato, visão, tato, e percepção
espacial - para descrever o contexto situacional da metrópole de Berlim, interpretando,
traduzindo e produzindo reflexões e análises detalhadas.
Outra forma de pensar esse Simmel contextualizado entre a experiência cotidiana de
44 anos de cidade e o conjunto conceitual é por meio da noção de artesanato intelectual
(MILLS, 1982), bastante próxima da teoria vivida e que pode ser pensado por meio da
aplicabilidade de uma formação teórica densa na observação sistemática do cotidiano, ou seja,
é um exercício de utilização da experiência pessoal como campo de pesquisa. Por conta disso
Martins (2014) discorre que o artesanato intelectual é uma ferramenta portátil ancorada numa
visão de sociologia relacionada a uma visão de mundo. Cita exemplos como o de Gilberto
Freyre, cujas obras se valeram, também, de memórias e experiências vividas. Enfim,
moldando todo o processo de pesquisa, e moldando-se também, o sociólogo é comparado a
uma espécie de artesão.
De maneira similar, Simmel pensou o moderno a partir da cidade em que viveu,
considerando suas próprias experiências, como material que atiçou sua reflexão para
compreender as transformações que ocorriam, sendo, portanto, um bom observador tal como
os pesquisadores que se valem da teoria vivida e do artesanato intelectual. Para Martins
(2014, p.27), essa possibilidade, defendida por Mills, é eficaz porque ―envolve o pesquisador
muito mais profundamente na sua temática e lhe permite lidar com a inteireza dos processos
sociais enquanto processos históricos e cotidianos ao mesmo tempo‖. Ou seja, quem poderia
duvidar da mente treinada daquele pesquisador? Posto isto, só nos resta à indagação: como
duvidar das sistematizações desse intelectual que, apesar de todas as dificuldades de história
de vida, possuiu uma dedicação exclusiva para a formação e uma observação cotidiana de 44
anos em Berlim?
Para responder essas indagações, vale esclarecer que, se essa bibliografia
contemporânea possibilita problematizar experiência cotidiana enquanto dado, evidenciando
aspectos da vida social que geralmente passam despercebidos nas grandes pesquisas, a
sociologia dos séculos XIX e XX podia ser caracterizada por uma busca constante de uma
objetividade que era associada à valorização das grandes obras, como por exemplo, como a
―Divisão do Trabalho Social‖ de Emile Durkheim, a ―Ética protestante e o espírito do
capitalismo de Max Weber‖ e ―o Capital‖ de Marx.
Nesse âmbito, autores como Luckacs (2006) percebem Simmel popularizado como
um pesquisador ―cheio de espírito‖. Acredita-se que seja por conta da alta capacidade de
abstração e de uma perspectiva vitalista que o aproximou de várias áreas de conhecimento,
possibilitando um tipo de escrita bastante autoral que ora era analisada como filosófica, ora
como ensaísta ou sociológica. Trata-se de uma compreensão que está diretamente vinculada
aos círculos sociais e questões pelas quais ele transitou ao longo da vida.
Com base em autores como Jankélévitch (2007) e Vandenberghe (2005) é importante
situar Simmel em um dialogo intenso com várias perspectivas intelectuais da época: ocorria
uma aproximação dele com a perspectiva neokantiana desenvolvida na região de Baden
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(sudoeste da Alemanha) na qual se destacavam nomes como Wilhelm Windelband, Heinrich
John Rickert e Max Weber e outros que focavam os esforços no debate teorico-metodológico
em torno das Ciências Humanas. Sobre essa ponte com os estudos neokantianos, é importante
considerar que,
Simmel buscaba formas de establecer puentes entre los debates filosóficos com los
que había madurado como filósofo (recordemos que Simmel obtuvo su título de
doctor y su habilitación para ser professor com trabajos que discutían La obra de
Kant) y la disciplina de la sociologia, que se había convertido em su principal
âmbito de producción acadêmica (CANTÓ-MILÀ, 2015, p.50).
De forma mais clara, Cantó-Milà (2015) explica que o autor estabeleceu um paralelo
com os a priori desenvolvidos por Kant, no abra Crítica da razão pura, retrabalhando-os na
forma como o ―eu‖ apreende o ―outro‖, como cada individuo faz parte de um conjunto de
relações sociais, ao mesmo tempo em que possui uma parte que não é integrada a essa ―todo‖
e, por fim, como esses aspectos resultam em uma rede complexa de relações entre vários
indivíduos que constituem a sociedade.
Além dessas relações entre diferentes áreas, é necessário observar o dialogo de
Simmel com a corrente vitalista, que para Miranda (2017) pode ser compreendida tanto por
meio do romantismo alemão e a crítica ao racionalismo moderno, como por uma crítica a uma
perspectiva biológica de vida apartada da experiência e dos sentidos atribuídos pelos sujeitos.
Desses movimentos pode-se destacar o trabalho conjunto de Simmel com o filosofo Frances
Henri Bergson, após 1911, e a aproximação com as idéias de filósofos e poetas alemães3 que
valorizavam o protagonismo da experiência e dos sujeitos. Disso tudo, Simmel legou a
valorização da idéia da presença do autor na escrita, situado nos acontecimentos narrados, ou
seja, os fatos já não poderiam ser descritos apenas de forma objetiva, mas também de acordo
com as individualidades de cada autor.
De posse dessas observações é possível compreender que a interpretação do moderno
e da cidade (ou da cidade moderna) foi desenvolvida, por ele, de uma forma bastante autoral e
extremamente particular, já que é possível notar que naquele momento de afirmação da
sociologia, a objetividade4 além de ser uma necessidade dessa área também era uma
característica do próprio contexto de desencantamento do mundo e valorização da
racionalidade positiva. Assim, embora a sociologia possa ser entendida como filha da
modernidade (BECKER, 1974), sendo os clássicos intérpretes daquele contexto, é importante
destacar que Simmel observou fenômenos similares e bastante próximos, mas de uma forma
diferenciada5, crítica e preparada, pois não seguiu os ditames da negação do ―espírito‖, nem
tão pouco deixou de comparar e contextualizar as próprias ideias a partir de exemplos
empíricos, demonstrando um equilíbrio que foge de qualquer dogmatismo vinculado a
preponderância da objetividade ou subjetividade pura.
Uma boa alternativa para pensar a modernidade e a perspectiva urbana (artesanal e
vivida) de Georg Simmel é por meio da compreensão sobre das exposições industriais, tema
que pode ser acessado, no Brasil, tanto por meio da importante tradução do texto ―Exposição
Industrial de Berlim‖, presente no livro ―Georg Simmel: o conflito da cultura moderna e
outros escritos‖ (BUENO, 2013); como pelo estudo sobre ―As exposições‖, contido no livro
―As aventuras de Georg Simmel‖ (WAIZBORT, 2013).
3Dessa corrente pode-se destacar Johann Wolfgang von Goethe por quem Simmel nutria admiração, Friedrich
Wilhelm Nietzsche e Arthur Schopenhauer 4Tratava-se de uma objetividade que facilmente se confundo com os pressupostos da modernidade já que no
campo da ciência se opunha aos saberes intuitivos, espontâneos e tradicionais 5Para Waizbort (2013) Simmel é um moderno por tentar de captar o espírito da modernidade e compreender o
seu presente e destino. Explica que o clássico aponta uma analogia entre o desenvolvimento da ciência moderna
e o desenvolvimento da economia monetária já que ambas se exprimem mobilidade maleabilidade e a imagem
de mundo moderno.
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De forma detalhada, Waizbort (2013) explica que entre 1º de maio e 15 de outubro de
1896 foi realizada a Exposição Industrial de Berlim, em uma área de 900.000 m², em um
bairro do subúrbio daquela cidade. O que chama bastante atenção na interpretação desse autor
é a análise iconográfica que ele faz a respeito do cartaz da referida exposição, no qual há
destaque da cidade de Berlim, no segundo plano, e de uma mão empunhando um martelo, em
primeiro plano. Quando associa a mão do trabalhador, provavelmente, às condições
miseráveis de Berlim, Waizbort (2013) o interpreta como uma espécie de missionário a
indicar o novo tempo que se irrompe: o ―tempo da grande Alemanha‖.
6
Por meio do conhecimento histórico da época, é possível pensar que o cartaz faz
menção aos primeiros momentos industriais de extração de carvão, ferro e metalurgia, pois se
trata de uma mão robusta, provavelmente oriunda de um tipo de indústria que exige um
trabalho pesado, realizado com a utilização do martelo. Reduzidamente, no segundo plano,
aparecem minúsculas edificações verticais, um obelisco. Delimitando toda essa simbologia
há, como ressalta Waizbort (2013), uma moldura com animais que sinalizam a cidade, a
sabedoria e o trabalho em equipe.
Enfim, para além de toda a simbologia presente no cartaz da exposição, essa
experiência resultou na escrita do texto ―Exposição industrial de Berlim‖, publicado em 1896,
no jornal Die Zeit. Sobre esse material, Bueno (2013) comenta:
As primeiras exposições do gênero aconteceram em Berlim na primeira metade do
século XIX, com o objetivo de divulgar as novidades tecnológicas e contribuir para
a afirmação da cidade como centro econômico e industrial no contexto europeu. [...]
A exposição à qual Simmel se refere foi a mais ambiciosa de sua época e aconteceu
em 1896 no Treptower Park, em Berlim: com cerca de 4 mil expositores, ela estava
voltada à indústria têxtil, à fotografia, ao esporte, à pesca, às artes gráficas e às
construções em metal, e incluía, além disso, teatros, restaurantes e um circo.
(BUENO, 2013, p.163-164)
Ao relacionar o trecho com a imagem do cartaz, é possível associar a ―mão operária‖
às novidades tecnológicas, interpretando-as como a grande atração que emerge de uma já
conhecida ―indústria do aço‖, cujos produtos ocuparam gradativamente as paisagens da
cidade por meio de carruagens, bondes, linhas de trem e proliferação de estruturas metálicas
que passaram a se mesclar com as pedras e concretos. Tratam-se, não só, de novos consumos
6https://br.pinterest.com/pin/419116309042347086/. Acessado em 18/01/2017.
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e estilos de habitar, se deslocar e viver na cidade, mas também, de uma propaganda dos
avanços da indústria.
Ainda sobre isso, é possível pensar que a exposição comercial de Berlim, ao mesmo
tempo em que ritualiza o processo industrial na cidade, em todas as suas etapas, significa
também uma forma de expressar a ruptura com um mundo pré-moderno. Sobre essa relação
entre cidade, modernidade e indústria, vale ressaltar os estudos de Lefebvre (2001), quando
este autor nota que as ―questões urbanas‖ nasceram com a industrialização. Em linha similar,
Giddens (2002, p.21) afirma que a ―modernidade‖ pode ser entendida como análoga ao
―mundo industrializado‖, que possui relação com o contexto de mercantilização da força de
trabalho e com a construção de uma vida social ―moderna‖ nas cidades.
Para interpretação desse evento, marcado pela diversidade de produtos e divulgação
das novas tecnologias, Simmel parece estabelecer uma analogia daquela feira que nasce como
expressão de uma indústria em expansão e da metrópole, já que ambas sinalizam uma
concentração de pessoas, de fábricas, de capital e de tecnologia. Tratam-se de locais
diretamente associados às lógicas econômicas e industriais, e propiciam um imenso fluxo de
informações, de estímulos, além de sinalizarem lógicas tidas como opostas às cidades
pequenas e/ou ao mundo rural. Sobre tais exposições, Simmel discorre:
Talvez, segundo essa linha, a exposição de Berlim seja um fenômeno inteiramente
particular; talvez nunca tenha se tornado tão visível o quanto a forma da cultura
moderna permite condensar-se num lugar, isto é, não como o faz a exposição
mundial, mediante uma junção mecânica, mas por meio de uma produção própria,
com a qual uma única cidade se apresenta como retrato e extrato das forças
industriais do mundo da cultura. (SIMMEL, 2013, p. 73- 74)
Considerando a concentração de muitas coisas em um só lugar o evento apresenta uma
característica de organização espacial semelhante ao das cidades modernas, que é capaz de
aglutinar várias formações sociológicas que não são definidas em termos espaciais, mais sim
de lugar. Por conta disso é possível que em ambos os espaços existam diversos grupos,
estabelecendo muitas formas de trânsito e interações sem que se choquem no espaço.
Utilizando o exemplo das corporações de ofício, Simmel (2003) explica que, em relação aos
seus conteúdos, elas possuíam exclusividade de preencher determinadas extensões espaciais
para cada ofício específico, sendo possível também à coexistência inúmeras formações sociais
(Formas) que poderiam preencher o mesmo espaço sem que ocorresse contradição - já que
toma a cidade como unidade de referência.
Para compreender melhor essa questão de ―forma‖ e ―conteúdo‖ cabe aqui um
parêntese explicativo. Grosso modo, a ―forma social‖ pode ser compreendida como um
processo de abstração com o qual é possível delinear e decompor os agrupamentos, buscando
explicar seus processos de formação por meio da análise sobre as interações. Sobre isso Cohn
(1979) e Remy (2012) notam que as ―formas‖7 podem ser visualizadas e sistematizadas a
partir de uma agregação de interações que derivam de processos de reconhecimento mútuo e
que favorecem a construção de representações e práticas comuns portadoras de significado. Já
por conteúdo compreendem-se os interesses, condicionamentos psíquicos dos indivíduos e
―tudo que está presente nele de modo a engendrar ou mediatizar os efeitos sobre os outros, ou
a receber efeitos dos outros‖ (SIMMEL, 2006 p.60). No entanto, os conteúdos só se tornam
sociais quando se acomodam sobre as formas, não sendo reduzidos aos processos dos
indivíduos.
Transpondo esse pensamento para a situação da exposição, é possível dizer, grosso
modo, que, quanto ao conteúdo, os empresários, consumidores, vendedores, crianças e outros
7Ao seguir a perspectiva da forma social é possível considerar os processos de tensão entre socialização e
individualização, ressaltando assim tanto aspectos da intersubjetividade, quanto da objetividade das formas. Pode
ser assim, compreendida como uma mediação indispensável para se pensar os agregados de interações.
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se concentravam no local resultando em uma agregação de interações que sinalizam
construção de lugares, formas e conteúdos sinalizados nos desejos de consumo, lazer, venda,
encontros e outras finalidades vinculadas às interações8.
Classificando Berlim como uma cidade mundial, Simmel explica que o impressionante
desse evento era o fato de ele se configurar, momentaneamente, como um centro da cultura
mundial e do trabalho do mundo inteiro. Nesse viés, ele discorre que, naquele local, não
faltava nenhum gênero de produtos essenciais e, por mais que os modelos e as partes fossem
recolhidos de vários lugares, era na exposição de Berlim que recebiam a forma final,
tornando-se totalidade. Na figura 3 é possível verificar um longo corredor preenchido com
diversos produtos, que vão desde bicicletas até barcos de pesca e para esportes náuticos,
caracterizando uma amostra da diversidade de produtos. Para Bueno (2013, p.163), esse
aspecto tinha também ―o objetivo de divulgar novidades tecnológicas e contribuir para a
afirmação da cidade como centro econômico e industrial no contexto europeu‖.
Sendo o centro econômico em um contexto de ampliação industrial europeu, pode-se
dizer que Berlim funcionava como um ponto de rotação de transações para o seu entorno mais
próximo e distante (SIMMEL, 2003), atraindo pessoas de várias partes do mundo e
constituindo um lugar de concentração de formações sociais que compartilhavam de
interesses comuns, vinculados à lógica industrial e econômica da cidade. Tanto a cidade
quanto a exposição são lugares que se alimentam da produção para o mercado, unindo em um
só lugar fregueses desconhecidos, vendedores e produtores que provavelmente nunca teriam
contato com seus clientes.
Era naquele local, denominado cidade, que se permitia uma objetividade das relações
econômicas e associativas, por meio da mediação do dinheiro, elemento que se interpôs entre
8Esse autor considera que a interação emerge com a busca de certas finalidades como, por exemplo: instintos
eróticos, interesses objetivos, impulsos religiosos, objetivos de defesa, ataque, jogo, conquista, ajuda,
doutrinação e inúmeros outros, que fazem o ser humano entrar em contato com outros, em uma relação de
convívio, de atuação com referência ao outro, ―com e contra‖ o outro.
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pessoa e posse, bem como entre as pessoas. Assim, para Simmel, o dinheiro desalojou as
últimas sobrevivências de trocas e relações diretas o que resultou na expansão de sua natureza
calculista e impessoal entre cenários metropolitanos de diferentes partes do mundo. Produziu
paradoxalmente, ―por um lado, uma antes desconhecida impessoalidade de todo o ato
econômico e, por outro, uma autonomia e uma independência das pessoas também maiores
(SIMMEL, 2013, p. 52). Tal lógica objetiva é que influenciou diretamente na construção de
espaços de interações econômicas na cidade de Berlim e, consequentemente, a exposições
como pontos fixos que permitiu relações monetárias e geravam agrupamentos em torno desse
objetivo.
Frente a esses aspectos objetivos e impessoais presentes nas relações econômicas da
cidade, percebe-se que a característica paradoxal (COHN, 1979) de Simmel aparece quando
ele demonstra preocupação em analisar a base psicológica do homem metropolitano no
contexto de intensificação dos estímulos. Tal questão foi o ponto central do ensaio ―As
grandes cidades e a vida do espírito‖ que resultou de uma conferência proferida na cidade
alemã de Dresden durante a Exposição das Cidades (entre 1902-1903).
Para buscar tal compreensão, esse autor estabelece uma comparação dos estados
psíquicos nas cidades grandes e a pequenas, e percebe há um contraste profundo entre as duas,
que é marcado pela multiplicidade da vida econômica, ocupacional e social da metrópole, em
relação ao campo. Para esse autor:
Na medida em que a cidade grande cria precisamente estas condições psicológicas
— a cada saída à rua, com a velocidade e as variedades da vida econômica,
profissional e social —, ela propicia, já nos fundamentos sensíveis da vida anímica,
no quantum da consciência que ela nos exige em virtude de nossa organização
enquanto seres que operam distinções, uma oposição profunda com relação à cidade
pequena e à vida no campo, com ritmo mais lento e mais habitual, que corre mais
uniformemente de sua imagem sensível-espiritual de vida (SIMMEL, 2005,
p.578).
Uma forma de visualizar essa diferenciação é imaginando a descrição de uma
caminhada de 50 metros, ou uma observação de 15 minutos, em algum centro metropolitano,
e depois comparar com mesmo exercício realizado em uma cidade pequena. A comparação do
número de automóveis, transeuntes, sons, habitações, lojas e demais dinâmicas permitem
pensar a diferença de ritmos. Um exemplo pode ser dado com a observação dos detalhes da
própria figura 1, que traz o registro da Esquina da Leipzigerstraße com Friedrichstraße tão
comum a Georg Simmel. Mesmo não sendo uma imagem em movimento, a ilustração é
repleta de detalhes, pois apresenta cerca de sete carruagens no meio da rua, muitos prédios
com janelas e portas das quais podem sempre aparecer pessoas, e cerca de 40 transeuntes
visíveis e outros tantos que não podem ser contabilizados pela visão.
Trata-se de uma diferenciação em termos quantitativos cujos resultados são
qualitativos na vida do cidadão urbano, que se vê sendo alvo de inúmeros estímulos nervosos
e impressões, por conta do adensamento das informações. Como estratégia para lidar com a
essa situação, Simmel (2005) explica que o homem metropolitano necessita desenvolver uma
―intelectualidade‖ que, além de se ramificar para muitas direções, e se integra com diversos
fenômenos, ainda preserva a vida subjetiva dos múltiplos estímulos da cidade grande.
É nesse processo de preservação da subjetividade que repousa a atitude blasé,
percebida por Simmel como a incapacidade de reagir aos novos estímulos e sensações. Trata-
se de um embotamento da capacidade visual de discriminar, de uma percepção incapaz de
detalhar as oscilações que exigiriam, do individuo, um raciocínio constante diante da
multiplicidade de informações e estímulos da metrópole. Utilizando o mesmo exemplo da
figura 1, pode-se dizer que para o cidadão blasé os prédios e janelas da paisagem são
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percebidos como algo padrão, para ele não é possível distinguir descrever as faces dos
transeuntes que são vistos apenas como uma paisagem desfocada de segundo plano.
Ainda na perspectiva de diferenciação entre as cidades pequenas e as grandes,
Simmel explica o desenvolvimento extremo dessa ―intelectualidade‖ como uma importante
forma de pensar no acomodamento e no ajustamento da personalidade diante das forças
externas da cidade, que para ele é, por excelência, o local do intercâmbio monetário, da
divisão econômica do trabalho e o local genuíno da atitude blasé. Sobre a relação entre as
duas situações (urbana e rural), Remy (2012) nota que Simmel aprendeu e viveu a grande
cidade o que lhe gerou dificuldades de aproximação com a cidade pequena. Esse comentador
do clássico chama a atenção para que não se confunda a análise sobre a metrópole e a
modernidade com uma apologia da cidade grande, em detrimento da perda da
problematização sobre cidades menores ou rurais.
Ele explica que não se trata de pensar a cidade grande como o futuro e a pequena
como o passado, numa perspectiva processual, mas de considerar cada qual em suas
singularidades e, ao mesmo tempo, em relação entre si. Assim, para Remy (2012) é necessário
substituir uma perspectiva unilateral por outra que enfatize a tensão que vai do universal para
o particular, e do particular para o universal, o que faz com que a dualidade entre pequena e
grande cidade possa ter um sentido diferenciado do processual.
Nessa forma de abordagem é possível compreender que alguns processos sociais, em
especial a tensão entre individualização e socialização, ocorrem tanto nas cidades pequenas
quanto nas grandes. Remy (2012) explica que se na cidade grande a única estratégia de
conversação da personalidade estaria na desvalorização do idêntico e de uma cultura objetiva9
em detrimento da proteção da dimensão subjetiva dos indivíduos. Por conta disso é possível
pensar que, no contexto de liberdade moderna, a construção da identidade na cidade tende a
desenvolver-se por meio de um processo de homogeneização da cultura.
Na cidade pequena também há uma tensão entre individuo e forças externas, no
entanto a luta é no sentido de afastar-se do individual, pois, possuindo um círculo mais
restrito, a situação no aglomerado urbano menor possibilita o desenvolvimento de maior
conhecimento entre os membros e de afetividade que dão a impressão de que o tempo se
desenvolve em outra velocidade. Contudo, Remy (2012) explica que na cidade pequena é
possível ser aceito pela singularidade desde que haja uma concordância com ―as regras do
jogo‖, pois o impessoal nesses lugares pode ser instrumentalizado e se tornar uma
responsabilidade coletiva. Não se fechando em uma comparação do antagonismo entre os dois
tipos de espaços, esse autor ainda explica que, quando influenciada por forças externas, a
cidade pequena também pode cumprir o papel de metrópole, de maneira provisória.
Na metrópole a intelectualidade gera uma forma de reserva que o homem
metropolitano possui em relação aos contatos estabelecidos no espaço. Se, por um lado, os
espaços restritos e a aproximação física garantem o adensamento e a concentração de pessoas,
por outro, a liberdade moderna, nessas condições, gera a sensação de solidão, pois, como
afirmou Simmel, nesse contexto, ―não é necessário que a liberdade do homem se reflita em
sua vida emocional como conforto‖ (SIMMEL, 1967, p.23). É possível compreender que essa
forma de integração ―mediada‖ pela lógica do intelecto e do dinheiro erradicou os traços
antropomorfizados, confinando-os em uma legalidade objetiva que se tensiona com as
subjetividades individuais. Sobre esse aspecto de Simmel, Koury (2014) comenta que:
[...] Na medida em que as procuras, satisfações e insatisfações dos indivíduos em
interação são configuradas em um dado agrupamento social qualquer, de uma
sociedade urbana onde melhor se realizou essa busca pela autonomia individual,
enquanto limites e fronteiras construídas ou estabelecidas nas relações vinculares
9Remy explica que tais processos são compreendidos por Durkheim e Merton como, respectivamente, anomia e
anomia seletiva.
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dos sujeitos em jogo, através da objetivação da cultura; e o seu sufocar, ou melhor, a
busca da contenção de sua subjetividade, no interior dessa cultura objetiva
conformada, e os motins encobertos, em seu interior, pela ampliação da cultura
subjetiva no refreamento objetivo dos vínculos estabelecidos (KOURY, 2014, p.
54).
Para esse importante autor da Sociologia das Emoções, a sensação de sufoco e o
refreamento dos vínculos são aspectos desse conflito que também marcam a acomodação do
indivíduo no intenso conjunto de forças que pairam pela cidade. Um exemplo marcante dado
por esse ele é o do ―homem egoico‖, que solitário, insatisfeito e angustiado, anseia por ser
descoberto, compreendido e acarinhado, mas, ao encontrar alguém, se fecha com medo de que
o ―outro‖ seja um provável algoz (KOURY, 2014). Trata-se, assim, do homem moderno livre,
mas imerso na objetividade do trabalho e na frustração subjetiva dos sentimentos.
Podemos destacar que essa forma moderna de vida foi pensada por Simmel (2006 e
2013) em comparação a outras maneiras de socialização na idade média, já que o autor
percebe que, naquele período anterior, o homem se encontrava em um estado de
pertencimento a alguma comunidade, propriedade da terra, associação feudal, desenvolvendo
um estilo de vida que mesclava o elemento da pessoalidade nas relações materiais e sociais,
algo que foi dissolvido pela economia monetária moderna. Assim, a relação entre liberdade e
identidade desenvolveu-se de forma distintas nos referidos contextos.
Nas fronteiras espaciais e simbólicas entre o local e o global, esse autor nota não
apenas o papel do dinheiro no nascimento de uma Europa moderna, mas também a existência
do ―estrangeiro‖. Indivíduo percebido, inicialmente, como mercador que favorecia as trocas
comerciais em diferentes espaços, e supria as necessidades de círculos cujos membros não
poderiam buscar determinados produtos em outras regiões. Se esse personagem, como
percebeu Marquéz (2012), caracteriza a própria metáfora da modernidade, é porque ela pode
ser visualizada na imagem de um homem em trânsito, solitário em meio à multidão de pessoas
e lojas onde se prestam diversos serviços e se estabelecem várias interações comerciais.
Enfim, é o cenário urbano e das relações economicamente objetivadas nos operários, nas
prostitutas ou nos vendedores da Exposição Comercial de Berlim de 1896 e da esquina da
Leipzigerstraße com a Friedrichstraße.
Diferentemente de Weber para quem as grandes cidades da modernidade são
diretamente relacionadas aos processos de racionalização da vida e desencantamento do
mundo, Simmel percebe que a cidade moderna resulta da intensificação da vida. Assim
embora possa ocorrer uma relação entre racionalidade e intensificação da vida naquele
contexto industrial do século XIX, é importante enfatizar que as especificidades desses
autores ocorrem no trato que oferecem para as questões da objetividade e subjetividade10
.
Simmel e os estudos das cidades italianas: Observações diretas, idéias e metodologia
Como percebe Waizbort (2013) Simmel percebia a cidade grande e moderna em
oposição à velha cidade, enquanto a primeira era o palco de luta entre o individuo e a
sociedade, a segunda possui um aspecto atemporal no qual passado e presente se tocam a cada
instante. Se ao longo de toda obra do autor, e mais especificamente no texto ―As grandes
cidades e a vida do espírito‖ ele expressou bem um quadro da organização social de Berlim,
as cidades antigas serão trabalhadas, principalmente em relação à análise estética, ao longo de
três ensaios sobre as cidades italianas de Roma, Florença e Veneza11
. Segundo Levine (2015)
tais escritos, provavelmente, tiveram influência do livro Viagem à Itália: 1786-1788, escrito
10Para mais detalhes ver Cohn (1979) 11O ensaio sobre Roma foi escrito em 1898 para o diário Die Zeit (de Viena), enquanto o de Florença foi escrito
sete anos depois para o Der Tag de Berlin, e o de Veneza em 1907, para o Der Kunstwart de Munich (LIVNI,
2012).
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por seu conterrâneo Johann Wolfgang Von Goethe. Tal afirmação faz bastante sentido quando
observamos que, em tais ensaios, Simmel nos traz uma escrita carregada de presença, sentidos
e de uma liberdade que sinaliza o estilo romântico alemão.
A análise sobre as cidades Italianas possibilita compreender o entrecruzamento entre
a teoria e a observações diretas desenvolvidas pelo autor. Para Livni (2012) se trata de
trabalhos que observam a cidade pelas qualidades estéticas e eideticas, de onde é possível se
pensar um Simmel da fenomenologia sociológica. Dessa forma, apresenta uma preocupação
no modo como as coisas ou fatos se apresentam as idéias (essências eidéticas), não realizando,
portanto, descrições urbanas limitadas à dimensão empírica imediata, mas as significações e
sentidos, temporalidades e espaços que extrapolam a primeira observação. Observamos assim,
uma valorização da atividade de abstração como método para compreender as ―formas‖ e
pensar os conteúdos.
Trata-se assim de ―colocar entre parênteses‖ as situações observadas, compreendendo-
as também como experiência de seres humanos conscientes que viveram e atribuíram sentidos
as cidades. Por outro lado, Simmel (2003) observa que a percepção estética é a única forma de
encontrar unidade diante da heterogeneidade de tempos, arquiteturas, idéias e sentidos
presentes nas três cidades. Dessa forma, para ele a beleza de Roma surgiria da conjugação de
diferentes gerações e temporalidades que coexistem harmonicamente na percepção de que a
observa. Assim, explica que as cidades antigas, crescidas sem um plano premeditado,
possibilitam certos conteúdos para as formas estéticas que nascem de finalidades humanas
que aparecem como materizalições do espírito, cujo valor está inteiramente além das
intenções que lhes foram atribuídas em outros tempos (SIMMEL, 2003).
Para o autor Roma é uma obra de arte porque nela era possível uma multiplicidade se
apresentar como uma unidade atemporal no qual ―o passado se torna presente‖, uma unidade
que provoca a fruição da cidade como um fenômeno psicológico que surge perante as
individualidades. No entanto essa apreciação da cidade enquanto unidade é possível graças ao
exercício eidetico, ou seja, a beleza da cidade não estaria em cada uma das peças e
características que compunha a heterogeneidade de Roma, mas em uma unidade que é
possível no espírito que a contempla. Nesse sentido, Livni (2012) entende que Simmel fala
de uma cidade cujos fragmentos temporais, espaciais e outros tantos que confluem para
unidades pensadas e vividas.
Nessa linha percebe uma interação entre elementos da percepção, da consciência,
destacando que a relação entre Roma e Goethe deve ser considerada quando se constrói uma
percepção sobre a cidade. Assim, para o autor ―O patrimônio que Goethe representa para nós
adquire o seu alcance incomensurável pelo facto de, por detrás de cada uma das suas
afirmações, estarem para nós o Goethe inteiro‖ (SIMMEL, 2003, p.114).
Quando observa a cidade de Florença, o autor deixa clara a aplicação do raciocínio
contido no texto ―Moldura. Um ensaio estético‖ publicado em 1902 no jornal Der Tag de
Berlin. Isso ocorre quando problematiza o caráter das coisas, considerando a totalidade ou as
partes. Nesse sentido a ―moldura‖ possui a dupla função de limitar e excluir a obra de arte do
ambiente externo simbolizando uma unidade psíquica para quem a contempla. Para Simmel
Florença tal como uma obra de arte foi pensada, emoldurada e é algo em si mesma, pois traz
uma tensão entre a paisagem natural e a matéria pensada que dá base a estética local.
Segundo Simmel:
E não é apenas a contigüidade entre todos os elementos visuais e entre natureza e
espírito, mas também a sucessão de passado e presente que concentra a impressão de
Florença e da sua paisagem como que num único ponto (SIMMEL, 2003, p. 119)
Além dessas conjunções e contigüidades, Simmel explica que o efeito de obra de arte
surge também por conta dessa cidade possuir uma imagem que estava vinculada a uma vida e
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história que já não existiam, mas que no plano das ideias era inerente ao local. Enfim, para
Livni (2012) a característica simmeliana em Florença era a harmonia e não os fragmentos.
Já na interpretação de Veneza, Simmel se vale da metáfora da mascara, ou seja, nota
que a arquitetura e as fachadas dos palácios venezianos ocultam a vida de seu interior, não
sendo possível observar as características individuais de seus habitantes. Nas palavras do
autor, os palácios venezianos ―são um jogo precioso, eles mascaram já pela sua uniformidade,
as personalidades dos seres individuais que os habitam‖ (SIMMEL, 2003, p.124). O sociólogo
percebe essa cidade como artificial, como um grande telão que serve como fundo de um
cenário para uma representação teatral de uma vida que não transcende o próprio instante em
que as coisas acontecem.
Em Veneza, todas as pessoas andam como se estivessem a atravessar um palco: nos
seus zelosos afazeres, com que nada fazem, ou nos seus devaneios vazios, surgem
constantemente a dobras uma esquina para desaparecer de imediato em uma outra e
têm nisso alguma coisa de actores, que à direita e à esquerda da cena não são nada, a
representação só acontece ali e não tem qualquer motivação na realidade do antes,
nem qualquer conseqüência na realidade do depois (SIMMEL, 2003, p.125)
Com uma dificuldade de estabelecer o externo necessário para se pensar à moldura, as
observações de Simmel apontam Veneza como uma falsa arte. Algo importante que faz
lembrar o texto ―As grandes cidades e a vida do espírito‖ é o momento em que ele descreve o
ritmo de vida em Veneza e a relação dele com os estímulos recebidos. Segundo o autor, as
impressões sempre uniformes e monótonas possuem a capacidade de hipnotizar as pessoas,
levando-as a um estado sonolento e de condicionamento da alma. Nesse sentido, percebe uma
relação entre a homogeneidade estética e os estados da alma. Para ele Veneza traz uma beleza
ambígua que mescla aventura e ausência de raízes, trata-se do local onde é possível se pensar
na relação entre formas e conteúdos.
Considerações Finais
Muito mais que estar presente no texto ―As grandes cidades e a vida do espírito‖, a
sociologia urbana de Georg Simmel pode ser notada ao longo da obra do autor, e também na
forma como ele estabelece o próprio diálogo com os contextos urbanos vividos e com os
círculos sociais por onde transitou. Trata-se de um aparato teórico-metodológico que pode ser
pensado nos termos de uma teoria vivida ou imaginação sociológica. Isso porque, de maneira
bastante autoral e peculiar, ele produz uma sociologia vitalista cujas variáveis subjetivas
aparecem em mesmo grau de importância dos aspectos objetivos da pesquisa, fazendo com
que ele possa ser compreendido como um intelectual da tensão e fluidez.
Nesse sentido, esse sociólogo clássico oferece um modelo para se pensar e refletir
sobre a organização social na metrópole, enfatizando a tensão entre subjetividade e
objetividade, e também uma forma de observar a paisagem urbana na cidade antiga, sem se
contentar com as primeiras impressões. Dessa forma, prioriza a importância da observação
sobre o cotidiano para a produção de interpretações sobre a cidade, e consequentemente, para
sistematização de esquemas interpretativos que podem variar de caso a caso, como
demonstrado nos dois tipos de cidade (moderna e antiga).
A riqueza dos estudos dele advém de todas as reflexões sobre a forma de observar, de
processar os dados e da produção do conhecimento: de se perceber nesse processo e de
possuir um grau de abstração que possibilita o exercício fenomenológico e de vigilância
epistêmica. Dessa maneira, mais do que um conjunto conceitual esse autor possibilita ao
antropólogo ou sociólogo, na cidade, exercitar abordagens comparativas, estéticas e
fenomenológicas sobre as interações cotidianas dos indivíduos em suas experiências e
sentidos. A partir de aí pensar as formas, molduras e maneiras de sociação e organização
social nos diferentes contextos.
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Pensar a sociologia urbana de Georg Simmel como uma sociologia artesanal da
cidade, ou em termos de uma teoria vivida facilita o reconhecimento dele como um
contribuinte para uma etnografia na cidade, na qual o pesquisador se (re)encontra com (n)os
nativos, caminhando e observando ruas, casas e praças que podem servir como estimulo para
buscar relações com conhecimentos anteriores, teorias e outros dados. Significa não pensar
uma pesquisa fechada e pronta, com a aplicação e encaixe de um referencial teórico em
determinada situação, mas de tomar a situação como ponto de partida de onde se estabelecem
os diálogos com a teoria e com a própria vida. Simmel nos ensina que é necessário construir
um modelo de pensamento e de reflexão que não seja aprisionado em um campo de
racionalidade cega ou de subjetividade pura, mas que tome a experiência como ponto de
partida para a análise da tensão entre objetividade e subjetividade nas diferentes formas de
cidades.
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