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O Filme
-Ensaio
Arlindo Machado*
Denominamos ensaio uma certa modalidade de discurso
cientco ou losco que carrega atributos amide
considerados literrios, como a subjetividade do en-
oque (explicitao do sujeito que ala), a eloqncia
da linguagem (preocupao com a expressividade do
texto) e a liberdade do pensamento (concepo de es-
critura como criao, em vez de simples comunicao deidias). Toda refexo sobre o ensaio, entretanto, sempre
pensou essa orma como essencialmente verbal, isto
, baseada no manejo da linguagem escrita. O objetivo
deste artigo discutir a possibilidade de ensaios no
escritos, ensaios em orma de enunciados audiovisuais.
Embora teoricamente seja possvel imaginar ensaios
em qualquer modalidade de linguagem artstica (pin-
tura, msica, dana, por exemplo), uma vez que semprepodemos encarar a experincia artstica como orma de
conhecimento, vamos, por comodidade, nos restringir
neste texto apenas ao exame do ensaio cinematogrco.
Comeando pelos pioneiros russos (Eisenstein, Vertov),
introdutores da idia de um cinema conceitual, traamos
uma trajetria do lme-ensaio na histria do cinema,
com nase principalmente nas contribuies de Godard
e Bernadet.
Filme-ensaio, cinema conceitual, documentrio
H muito tempo venho perseguindo a idia de um cinema de tipo
ensastico, que antigamente, utilizando uma expresso de Eisenstein, eu
chamava de cinema conceitual e hoje tendo a chamar de lme-ensaio. Es-
crevi pela primeira vez sobre esse tema, mas ainda de uma orma insipiente,
na antiga revista Cine Olho (Machado, 1979a: 10-16; 1979b: 14-21), depois
num livro sobre Eisenstein (1983), mais tarde, j renando melhor a idia,
num texto sobre a linguagem do vdeo (1997: 188-200) e nalmente num
livro sobre a eloqncia das imagens (2001), aora reerncias passageiras
ao assunto aqui e acol.
Curiosamente, nos ltimos anos tem havido um interesse crescente
em pensar o cinema ou o audiovisual em geral sobre esse prisma. Jacques
Aumont, por exemplo, escreveu um livro notvel a esse respeito, chamado
quoi pensent les lmes (1996), onde deende a idia de que o cinema
*Doutor em Comunicao e proessor da ECA-
USP e da PUC-SP. Autor, entre outros, dos livrosA Iluso Especular, A Arte do Vdeo, Mquinae Imaginrio, Pr-cinemas & Ps-cinemas, ATeleviso Levada a Srio, O Quarto Iconoclasmoe El Paisaje Meditico.
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uma orma de pensamento: ele nos ala sobre idias, emoes e aetos
atravs de um discurso de imagens e sons to denso quanto o discurso
das palavras. Gilles Deleuze, no seu livro pstumo L le dserte et autres
textes (2002), arma que alguns cineastas, sobretudo Godard, introduzi-
ram o pensamento no cinema, ou seja, eles zeram o cinema pensar com
a mesma eloqncia com que, em outros tempos, os lsoos o zeram
utilizando a escrita verbal. Em lngua inglesa, h agora um bom nmero de
antologias que tentam refetir sobre aquilo que s vezes, por alta de um
termo mais adequado, se continua ainda a chamar de documentrio, mas
que j agora uma orma de pensamento audiovisual. Eu poderia citar, por
exemplo, Experimental ethnography, antologia organizada por Catherine
Russell (1999), e Visualizing Theory, organizada por Lucien Taylor (1994),
em que os articulistas, dando conseqncia idia de uma antropologia
visual, ormulada desde 1942 por Margaret Mead (Mead & MacGregor,
1951; Mead & Metraux, 1953), investigam o potencial analtico dos meios
audiovisuais, ou seja, as estratgias de anlise no lingstica que permitem
ao cinema e meios conexos superar a literariedade e a escopoobia da
antropologia clssica e, por extenso, de todo o pensamento acadmico.
A Visual Anthropology Review, publicada nos EUA desde 1990, tambm
uma maniestao dessa nova maneira de praticar a antropologia atravs
de ensaios visuais ou audiovisuais.
Examinemos ento o lme-ensaio e comecemos pela explicao do
conceito. Pensemos primeiro no ensaio. Denominamos ensaio uma certa
modalidade de discurso cientco ou losco, geralmente apresentado
em orma escrita, que carrega atributos amide considerados literrios,como a subjetividade do enoque (explicitao do sujeito que ala), a elo-
qncia da linguagem (preocupao com a expressividade do texto) e a
liberdade do pensamento (concepo de escritura como criao, em vez
de simples comunicao de idias). O ensaio distingue-se, portanto, do
mero relato cientco ou da comunicao acadmica, em que a linguagem
utilizada no seu aspecto apenas instrumental, e tambm do tratado, que
visa a uma sistematizao integral de um campo de conhecimento e umacerta axiomatizao da linguagem.
Uma das abordagens mais eloqentes do ensaio est em um texto
de Adorno (1984: 5-29), chamado justamente O ensaio como orma e
compilado no primeiro volume de suas Notas de literatura. Nesse texto,
Adorno discute a excluso do ensaio no pensamento ocidental de razes
greco-romanas. Porque busca a verdade e, em decorrncia disso, invoca
uma certa racionalizao da dmarche, o ensaio excludo do campo daliteratura, onde se supe suspensa toda descrena. Por outro lado, porque
insiste em expor o sujeito que ala, com sua mirada intencional e suas
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ormalizaes estticas, o ensaio tambm excludo de todos aqueles
campos de conhecimento (losoa, cincia) considerados objetivos. Em
outras palavras, o atributo literrio desqualica o ensaio como onte de
saber, a irrupo da subjetividade compromete a sua objetividade e, por
conseqncia, aquele rigor que supostamente marca todo processo de
conhecimento, e, por outro lado, o compromisso com a busca da verdade
torna o ensaio tambm incompatvel com o que se supe ser a gratuidade
da literatura ou o irracionalismo da arte. Situando-se, portanto, numa zona
ao mesmo tempo de verdade e de autonomia ormal, o ensaio no tem
lugar dentro de uma cultura baseada na dicotomia das eseras do saber e
da experincia sensvel e que, desde Plato, convencionou separar poesia
e losoa, arte e cincia.
No se trata ento de dizer, se quisermos seguir o raciocnio de
Adorno, que o ensaio se situa na ronteira entre literatura e cincia, porque,
se pensarmos assim, estaremos ainda endossando a existncia de uma
dualidade entre as experincias sensvel e cognitiva. O ensaio a prpria
negao dessa dicotomia, porque nele as paixes invocam o saber, as
emoes arquitetam o pensamento, e o estilo burila o conceito. Pois o
ensaio a orma por excelncia do pensamento no que este tem de inde-
terminado, de processo em marcha em direo a um objetivo que muitos
ensastas chamam de verdade (Mattoni, 2001: 11). { a revisora sugere que
se retire as aspas ou deix-las passando o texto para redondo}
Toda refexo sobre o ensaio, entretanto, sempre pensou essa orma
como essencialmente verbal, isto , baseada no manejo da linguagem
escrita, mesmo que a relao do ensaio com a literatura seja, como vimos,problemtica. O objetivo deste artigo discutir a possibilidade de ensaios
no escritos, ensaios em orma de enunciados audiovisuais. Embora te-
oricamente seja possvel imaginar ensaios em qualquer modalidade de
linguagem artstica (pintura, msica, dana, por exemplo), uma vez que
sempre podemos encarar a experincia artstica como orma de conheci-
mento, vamos, por comodidade, nos restringir aqui apenas ao exame do
ensaio cinematogrco. Uma vez que o cinema mantm com o texto liter-rio certas anidades relativas discursividade e estrutura temporal, alm
de contar tambm com a possibilidade de incluir o texto verbal na orma
de locuo oral, o desao de pensar um ensaio em orma audiovisual ca
acilitado ou, pelo menos mais operativo do que se invocssemos outras
ormas artsticas. Parece, portanto, pereitamente justicvel comear
pelo cinema e seus congneres uma abordagem do ensaio em orma no
escrita, ainda mais se considerarmos que essa discusso poder depoisampliar-se com a considerao de outras ormas artsticas.
O documentrio e o ensaio
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Dos gneros cinematogrcos, o documentrio poderia ser conside-
rado a orma audiovisual que mais se aproxima do ensaio, mas essa uma
maneira enganosa de ver as coisas. O termo documentrio abrange um
leque bastante amplo de trabalhos das mais variadas espcies, sobre as
mais diversas temticas, com estilos, ormatos e bitolas de todo tipo. Mas,
apesar de toda essa variedade, o documentrio se baseia num pressuposto
essencial, que a sua marca distintiva, a sua ideologia, o seu axioma: a
crena no poder da cmera e da pelcula de registrar alguma emanao
do real, sob a orma de traos, marcas ou qualquer sorte de registro de
inormaes luminosas supostamente tomadas da prpria realidade. Essa
crena num princpio indicial que constituiria toda imagem de natureza
otogrca (incluindo a as imagens cinematogrcas e videogrcas) o
trao caracterizador do documentrio, aquilo que o distingue dos outros
ormatos ou gneros audiovisuais, como por exemplo, a narrativa de co
ou o desenho animado.
Pode-se azer qualquer coisa com um documentrio uma aborda-
gem das maniestaes populares na Argentina, uma reportagem sobre
o dia-a-dia dos palestinos sob o ogo israelense, uma viagem turstica aosAlpes no inverno, uma viso atravs do microscpio sobre o modo como se
subdividem as clulas no interior de um organismo vivo , mas o que rene
todos esses exemplos na categoria do documentrio a crena quase
mstica no poder do aparato tcnico (cmera, principalmente) de captar
por si s imagens ou ndices dessas realidades. Um desenho animado
jamais poderia ser um documentrio porque no tem esse trao, embora,
a rigor, no h nada que impea um desenho animado de abordar, alis,at com maior proundidade, as maniestaes populares na Argentina,
o dia-a-dia dos palestinos sob o ogo israelense, uma viagem turstica aos
Alpes no inverno ou o modo como se subdividem as clulas no interior
de um organismo vivo. A dierena, com relao ao desenho, que no
documentrio o prprio real gera (ou supe-se que gera) a sua imagem
e a oerece para a cmera, graas principalmente s propriedades ptico-
qumicas do aparato tcnico e sem a contaminao de uma subjetividadetambm supostamente parcial ou deormante.
Associada a essa crena no poder da tecnologia para sgar alguma
coisa que pode ser chamada de real est subentendida tambm uma
estranha orma de ontologia, que pressupe o mundo concreto e material
como j constitudo em orma de discurso, um discurso natural, que ala
por si e com seus prprios meios, ao qual preciso apenas prestar ateno
e respeit-lo, mas sem o aetar ou impor sobre ele qualquer outro discurso.Toda essa crena, proundamente arraigada entre ns, vem das origens
ideolgicas da imagem especular ocidental, que surge no Renascimento
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e chega ao seu paroxismo nas idias de Andr Bazin, na dcada de 1950,
sobre o poder da cmera de captar emanaes do real (ver, por exemplo,
Bazin, 1981: 9-17; 63-80). No caso de Bazin isso at se justica, pois se trata
nesse autor de uma orma assumida de pantesmo. Sendo catlico, Bazin
supunha j estar presente no mundo um superdiscurso, antes mesmo
que pudssemos alar qualquer coisa sobre ele, uma vez que este mundo
no outra coisa seno a ala de um superenunciador, chamado Deus.
Impossvel acreditar na existncia de um discurso natural no mundo, que
caberia ao cineasta apenas captar (e muitas vezes sem necessidade de
nenhum esoro humano de inteligncia ou de interpretao), a no ser
pela via desse pantesmo na.
Ora, isso tudo de uma ingenuidade gritante, e chega a ser sur-
preendente que esse modo de ver as coisas subsista e resista depois de
quase 200 anos de histria da otograa, depois de mais de 100 anos de
histria do cinema e em plena era da manipulao digital das imagens.
O documentarista, no sentido tradicional e purista do termo, uma
criatura que ainda acredita em cegonha. Ouve-se muito alar nos meios
documentaristas, por sorte cada vez menos entre as novas geraes, queo essencial do documentrio no interpretar as coisas, no intervir no
que a cmera capta, no acrescentar s imagens um discurso explicativo,
deixar que a realidade se revele da orma mais despojada possvel. Isso
absolutamente impossvel! Se o cineasta se recusa a alar num lme, ou
seja, intervir, interpretar, reconstituir, quem vai alar em seu lugar no o
mundo, mas a Arrifex, a Sony, a Kodak, enm, o aparato tcnico. Sabemos
muito bem que o dispositivo otocinevideogrco no nem de longeinocente. Ele oi construdo sob condies histrico-econmico-culturais
bem determinadas, para nalidades ou utilizaes muito particulares;
ruto de determinadas vises de mundo e materializa essas vises no
modo como reconstitui o mundo visvel. O que captado pela cmera
no o mundo, mas uma determinada construo do mundo, justamente
aquela que a cmera e outros aparatos tecnolgicos esto programados
para operar.A cmera exige, por exemplo, que se escolham ragmentos do campo
visvel (recorte do espao pelo quadro da cmera e pela proundidade de
campo, recorte do tempo pela durao do plano) e, portanto, que j se
atribuam signicados a certos aspectos do visvel e no a outros. Deve-se
tambm eleger um ponto de vista, que por sua vez organiza o real sob uma
perspectiva deliberada. A bibliograa pertinente ao assunto az reerncia
a um grande nmero de estudos de casos em que a manipulao dosrecortes de tempo e espao e a seleo do ngulo de viso reconstituem
a cena de orma radical, a ponto at mesmo de transgur-la completa-
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mente. Cada tipo de lente, por sua vez, reconstitui um campo visual de
uma determinada maneira. Poder-se-ia alar de uma produtividade da
viso em grande-angular e outra da viso em teleobjetiva. A imagem
tridimensional achatada em duas dimenses atravs da insero do
cdigo da perspectiva renascentista, com toda a sua carga simblica e
ideolgica. A marca do negativo, a sua granulao, a sua sensibilidade
luz, a sua latitude tambm infuem no resultado nal.
Isso tudo com relao apenas imagem, mas h ainda as determi-
naes do campo acstico (vozes, rudos, msica, narrao), bem como os
eeitos da sincronizao imagem/som. Recordemo-nos de uma instrutiva
seqncia de imagens da cidade siberiana de Irkutsk, no lme Lettre de
Sibrie (1957), de Chris Marker, que repetida trs vezes no lme, cada
vez com uma trilha sonora distinta, de modo a mudar completamente o
sentido das imagens. Alm disso, h todo um processo de reconstruo
do chamado mundo real que se passa do lado de l, do lado do objeto,
daquilo que se dispe em uno da presena da cmera. Sempre que
algum se sente olhado por uma objetiva, seu comportamento se trans-
gura e imediatamente ele(a) se pe a representar. A cmera tem tal podertransgurador do mundo visvel, que chega a ser devastador nas suas
conseqncias. H cerca de 20 anos publiquei A iluso especular (1984),
em que alava a respeito das ormas de converso do real em discurso pela
cmera, tenha o otgrao ou cineasta conscincia disso ou no. De l para
c, tenho voltado insistentemente ao tema, por meio de inmeros estudos
sobre o modo como a imagem e o som codicam o visvel, constroem uma
viso de mundo, s vezes at mesmo a despeito da vontade do realizador.Ento, como se poderia alar ingenuamente em documentrio?
Se o documentrio tem algo a dizer, que no seja a simples celebra-
o de valores, ideologias e sistemas de representao cristalizados pela
histria ao longo de sculos; esse algo a mais que ele tem justamente o
que ultrapassa os seus limites enquanto documentrio. O documentrio
comea a ganhar interesse quando ( ) se mostra capaz de construir uma
viso ampla, densa e complexa de um objeto de refexo, quando ele setransorma em ensaio, em refexo sobre o mundo, em experincia e sis-
tema de pensamento, assumindo, portanto, aquilo que todo audiovisual
na sua essncia: um discurso sensvel sobre o mundo. Eu acredito que
os melhores documentrios, aqueles que tm algum tipo de contribui-
o a dar para o conhecimento e a experincia do mundo, j no so
mais documentrios no sentido clssico do termo; eles so, na verdade,
lmes-ensaios (ou vdeos-ensaios, ou ensaios em orma de programa deteleviso ou hipermdia).
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Para avanar, poderamos nos reerir aqui a uma importante discusso
ocorrida no interior do pensamento marxista, mais exatamente na Rssia
sovitica dos anos 20, quando alguns cineastas engajados na construo
do socialismo vislumbraram no cinema mudo a possibilidade de promover
um salto para ( ) outra modalidade discursiva, undada j no mais na pala-
vra, mas numa sintaxe de imagens, nesse processo de associaes mentais
que recebe, nos meios audiovisuais, o nome de montagem ou edio. O
mais eloqente desses cineastas, Serguei Eisenstein, ormulou, no nal dos
anos 20, a sua teoria do cinema conceitual, cujos princpios ele oi buscar
no modelo de escrita das lnguas orientais. Segundo o cineasta, os chineses
construram uma escritura de imagens, utilizando o mesmo processo
empregado por todos os povos antigos para elaborar seu pensamento, ou
seja, atravs do uso das metoras (imagens materiais articuladas de orma
a sugerir relaes imateriais) e das metonmias (transerncias de sentido
entre imagens). O conceito de dor, por exemplo, obtido, na escrita kanji
oriental, pela montagem (na verdade, superposio) dos ideogramas de
aca e corao. Em outras palavras, para os orientais, o sentimento de
dor expresso pela imagem (pictograma) de uma aca atravessando ocorao. Nada dierente, alis, do uso de expresses como ter o corao
dilacerado, em portugus, ou to break the heart, em ingls, para exprimir
sentimentos de tristeza ou sorimento.
Na verdade, os idiomas ocidentais tambm utilizam largamente
guras de linguagem, como a metora, a metonmia e seus derivados. Se
suprimssemos os tropos dessas lnguas, elas se reduziriam a um balbucio
elementar, destitudo de qualquer inteligncia ou sensibilidade. Bastapensar na dierena de ora que existe entre uma expresso denotativa
direta, como est trovejando, e uma metora de cunho conotativo, como
o cu est com pigarro (Guimares Rosa). A maioria das expresses idio-
mticas (como, em portugus, chover canivete ou duro pra cachorro)
so tropos que se generalizaram e passaram a constituir o lxico de uma
lngua. O prprio discurso cientco, considerado exato e objetivo, est
repleto de metoras e metonmias. Em anatomia e siologia, por exemplo,as expresses tecido, clula estrelada, caixa torcica e bacia abdominal
so metoras. Tambm so metoras alguns conceitos da astrosica
como nebulosa, estrela an, quarta dimenso, buraco negro, Big
Bang, morte trmica, ovo csmico, sopa primordial, etc. Mamero, em
zoologia, uma sindoque (tipo de metonmia), em que uma nica das
muitas caractersticas de uma classe de animais (o ato de eles mamarem
quando pequenos) tomada para designar a classe como um todo, ouseja, toma-se a parte pelo todo. Portanto, mesmo o discurso cientco
impensvel sem as guras de linguagem.
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Inelizmente, o cinema o cinema sonoro sobretudo, constitudo
a partir dos anos 30 tem eito de tudo para eliminar de seus recursos
retricos a eloqncia expressiva das metoras e metonmias, em razo
principalmente da ditadura do realismo que nele se instaurou e para a
qual toda intererncia na naturalidade do registro desvio literrio. A
esse respeito, so bastante conhecidos os esoros de Andr Bazin para
desautorizar o cinema metarico do perodo dito mudo, em especial o
cinema russo do perodo sovitico (ver, por exemplo, Bazin, 1981: 49-61).
como se Bazin postulasse que no cinema no se pode jamais dizer (ou
representar em imagens e sons) o cu est com pigarro, mas apenas
est trovejando. Tampouco se pode, num lme cientco, dizer sopaprimordial, mas apenas soluo de aminocidos. Azar do cinema! Isso
apenas o empobrece. Em todo caso, podemos hoje avaliar os prejuzos que
preconceitos desse tipo impuseram ao desenvolvimento da linguagem
do audiovisual.
Pois a que se d a virada de Serguei Eisenstein. A montagem
conceitual por ele concebida uma orma de enunciado audiovisual
que, partindo do primitivo pensamento por imagens, consegue articularconceitos com base no puro jogo potico das metoras e das metonmias.
Nela, juntam-se duas ou mais imagens para sugerir uma nova relao no
presente nos elementos isolados. Assim, atravs de processos de asso-
ciao, chega-se ao conceito abstrato e invisvel, sem perder, todavia, o
carter sensvel dos seus elementos constitutivos. Inspirado nos ideogra-
mas, Eisenstein acreditava na possibilidade de se elaborarem, tambm
no cinema, idias complexas por meio apenas de imagens e sons, sempassar necessariamente pela narrao, e chegou mesmo a realizar algu-
mas experincias nesse sentido, em lmes como Oktiabr (Outubro/1928)
e Staroie i novoie (O velho e o novo/1929). O cineasta deixou ainda um
caderno de anotaes para um projeto (malogrado) de levar O capital de
Karl Marx,ao cinema (ver, a respeito das idias de Eisenstein para Oktiabr,
Staroie i novoie e Das Kapital, Machado, 1983).
Mas, se Eisenstein ormulou as bases desse cinema, quem de atoo realizou na Rssia revolucionria oi o seu colega Dziga Vertov. No dizer
de Annette Michelson (1984: XXII), Eisenstein nunca pde assumir at as
ltimas conseqncias o seu projeto de cinema conceitual, pois s lhe per-
mitiram realizar lmes narrativos de eio dramtica. Vertov, entretanto,
nunca teve esse tipo de limitao e, por essa razo, conseguiu assumir
com maior radicalidade a proposta de um cinema inteiramente undado
em associaes intelectuais e sem necessidade do apoio de uma bula.Essas associaes j aparecem em vrios momentos do Kino-Glaz: jizn
vrasplokh (Cine-Olho: a vida ao improviso/1924),
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( ) sobretudo na magnca seqncia da mulher que vai azer compras
na cooperativa. Nela ( ) , Vertov utiliza o movimento retroativo da cmera
e a montagem invertida para alterar o processo de produo econmica
(a carne, que estava exposta no mercado, volta novamente ao matadouro
e depois para o corpo do boi abatido, azendo-o ressuscitar), repetindo,
dessa orma, o mtodo de inverso analtica do processo real, utilizado
por Karl Marx em O capital (o livro comea com a anlise da mercadoria
e, dela, retorna ao modo de produo, pois de acordo com a metodologia
marxista, a inverso uma orma de desvelamento). Mas em Tchelovek
s kinoapparatom (O homem da cmera/1929) que o processo de associa-
es intelectuais alcana o seu mais alto grau de elaborao, dando comoresultado um dos lmes mais densos de todo o cinema, que revolve, ao
mesmo tempo, o ciclo de um dia de trabalho, o ciclo da vida e da morte,
a refexo sobre a nova sociedade, sobre a situao cambiante da mulher
nela, sobre a sobrevivncia de valores burgueses e de pobreza sob o
socialismo e assim por diante (Burch, 1979: 94). Tchelovek s kinoappa-
ratom signica, ao p da letra, o homem com o aparato cinematogrco.
Aumont (1996: 49) prope que pensemos esse lme como o lugar ondeo cinema se unda como teoria, baseando-se numa armao do prprio
Vertov (1972: 118): O lme Tchelovek s kinoapparatom no apenas uma
realizao prtica, mas tambm uma maniestao terica na tela. Denso,
amplo, polissmico, o lme de Vertov subverte tanto a viso novelstica
do cinema como ccionalizao como a viso ingnua do cinema como
registro documental. O cinema torna-se, a partir dele, uma nova orma de
escritura, isto , de interpretao do mundo e de ampla diuso dessaleitura, a partir de um aparato tecnolgico e retrico reapropriado numa
perspectiva radicalmente dierente daquela que o originou.
Digno de ateno o ato de que Vertov jamais lmava ou acompa-
nhava as lmagens. Em geral, ele usava materiais de arquivo como em Tri
pesni o Lenine (Trs cantos para Lenin/1934) ou orientava, por teleone
ou carta, o trabalho de cinegrastas distribudos em partes dierentes da
Rssia como em Chestaia tchast mira (A sexta parte do mundo/1926).Era basicamente um homem de montagem, um construtor de sintag-
mas audiovisuais. O material lmado para ele era apenas matria-prima
bruta que s se transormava em discurso cinematogrco depois de
um processo de visualizao, interpretao e montagem. A maioria das
imagens de Tchelovek s kinoapparatom , na verdade, criao do otgrao
Mikhail Kauman. Vertov operou nesse lme nos nveis da concepo, da
roteirizao e, depois, da montagem. Embora no osse ele diretamenteo montador (a montagem oi realizada por Elizaveta Svilova, que aparece
nos crditos como assistente de montagem), ele dirigia o processo de
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montagem mais ou menos como o lsoo da Idade Mdia ditava o seu
texto para o escriba. Nesse sentido, pode-se dizer que a mesa de mon-
tagem era para ele o equivalente moderno da antiga mesa de trabalho
do escritor ou lsoo, onde o pensamento se constitua, a partir da lenta
elaborao das anotaes.
O ensaio no cinema
Pensemos o lme-ensaio hoje. Ele pode ser construdo com qualquer
tipo de imagem-onte: imagens captadas por cmeras, desenhadas ou
geradas em computador, alm de textos obtidos em geradores de carac-
teres, grcos e tambm materiais sonoros de toda espcie. por isso queo lme-ensaio ultrapassa longinquamente os limites do documentrio. Ele
pode inclusive utilizar cenas ccionais, tomadas em estdio com atores,
porque a sua verdade no depende de nenhum registro imaculado do
real, mas de um processo de busca e indagao conceitual.
com Jean-Luc Godard que o cinema-ensaio chega sua expresso
mxima. Para esse notvel cineasta ranco-suo, pouco importa se a
imagem com que ele trabalha captada diretamente do mundo visvelnatural ou simulada com atores e cenrios articiais, se ela oi produ-
zida pelo prprio cineasta ou simplesmente apropriada por ele, depois
de haver sido criada em outros contextos e para outras nalidades, se ela
apresentada tal e qual a cmera a captou com seus recursos tcnicos
ou oi imensamente processada no momento posterior captao por
recursos eletrnicos. A nica coisa que realmente importa o que o cine-
asta az com esses materiais, como constri com eles uma refexo densasobre o mundo, como transorma todos esses materiais brutos e inertes
em experincia de vida e pensamento.
Como classicar, por exemplo, um lme undante como Deux ou
trois choses que je sais delle (Duas ou trs coisas que sei dela/1967)? No
uma co, pois no h enredo, nem orma dramtica, nem personagens
que sustentem um plot narrativo, xando-se a maior parte do tempo sobre
as imagens da cidade de Paris, com seus edicios em construo, seusconjuntos habitacionais e seus habitantes despersonalizados. Tambm
no um documentrio sobre Paris, porque h cenas com atores e textos
decorados, h mise en scne, cenas tomadas em estdio e um grande
nmero de imagens grcas arrancadas de revistas ou de embalagens de
produtos de consumo. Trata-se aqui, assumidamente, de um lme-ensaio,
em que o tema de refexo o mundo urbano sob a gide do consumo
e do capitalismo, tomando como base a maneira como se dispe e seorganiza a cidade de Paris. Como dizia o prprio Godard (1968: 396) a
propsito de seu lme, se eu refetir um pouco, uma obra desse gnero
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quase como se eu tentasse escrever um ensaio antropolgico em orma
de romance e para az-lo no tivesse minha disposio seno notas
musicais. O mais notvel nesse lme a maneira como Godard passa do
gurativo ao abstrato ou do vsivel ao invisvel, trabalhando apenas com o
recorte operado pelo quadro da cmera. Em um ca de Paris, um cidado
annimo coloca acar no seu ca e mexe com a colherinha. De repente,
surge um primeirssimo plano da xcara, o ca se transorma numa galxia
innita, com as bolhas explodindo e o lquido negro girando em espirais,
como numa tela de Kline ou Pollock. Mais rente, uma mulher, em seu
leito, uma um cigarro antes de dormir, mas um primeirssimo plano trans-
gura completamente o umo ardente do cigarro, transormando-o numamandala iridescente. Essas imagens abstratas (na verdade concretas, mas
impossveis de serem reconhecidas e interpretadas como tais) servem de
undo voz da refexo de Godard, enquanto ele se indaga sobre o que
se passa com as cidades modernas e as suas criaturas enclausuradas. Mas
no a voz de um narrador convencional, como aquela que se ouve em
alguns documentrios tradicionais: uma voz sussurada, em tom baixs-
simo, como que alando para dentro, uma imagem sonora admirvel dalinguagem interior: o pensamento.
Alguns dos mais belos exemplos de montagem intelectual podem
tambm ser encontrados em lmes como 2001: a space odissey (2001:
uma odissia no espao/1968), de Stanley Kubrick, e no curta-metragem
Powers o Ten (1977), de Charles e Ray Eames. O primeiro um lme quase
inteiramente conceitual do comeo ao m, mas o momento privilegiado
est naquele corte extraordinariamente preciso, que az saltar de um ossojogado ao ar por um macaco pr-histrico para uma sosticada espaona-
ve do uturo, sintetizando (de orma visivelmente crtica) algumas dezenas
de milnios de evoluo tecnolgica do homem. Esse exemplo eloqente
mostra como uma idia nasce a partir da pura materialidade dos caracteres
brutos particulares: a interpenetrao de duas representaes singelas
produz uma imagem generalizadora que ultrapassa as particularidades
individuais de seus constituintes (Machado, 1983: 61-64; 1997: 195-196). Jo lme do casal Eames uma sntese magistral, em apenas nove minutos
e meio de projeo, de todo o conhecimento acumulado no campo das
cincias da natureza. A idia inacreditavelmente simples consiste em azer
uma zoom-out a partir da imagem de um veranista deitado beira do Lago
Michigan at os limites (conhecidos) do universo e depois uma zoom-in
a partir do mesmo personagem em direo ao interior do seu corpo, de
suas clulas e molculas, at o ncleo dos tomos que o constituem e oslimites de conhecimento do mundo microscpico.
No Brasil, a aventura do lme-ensaio ainda est para ser contada.
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Arlindo Machado
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Faltam pesquisas nessa direo, mas no altam exemplos para analisar
sob essa perspectiva. No meu modo de ver, o caso mais emblemtico at
o momento o lme de Jean-Claude Bernadet So Paulo: sinonia e caco-
onia (1995). Aqui, da mesma orma que em Deux ou trois choses que je
sais delle, o tema a cidade (So Paulo, em lugar de Paris) e o modelo de
urbanismo implantado pelo capitalismo, mas, dierentemente do lme de
Godard, a cidade aqui vista sob o prisma do prprio cinema. Em outras
palavras, o tema do lme de Bernadet o modo como o cinema paulista
interpretou a sua prpria cidade. Ento, a onte das imagens de So Paulo
so os lmes que retrataram a cidade. Trata-se, portanto, de um lme que
se insere na categoria da montagem de imagens de arquivo, mas o espritodo lme inteiramente ensastico. como se Bernadet (crtico, terico e
historiador de cinema) decidisse azer um ensaio sobre a maneira como
a cidade de So Paulo oi interpretada pelos seus cineastas, mas em lugar
de promover um ensaio escrito, preerisse utilizar como metalinguagem a
mesma linguagem do seu objeto: o cinema. Temos ento aqui um ensaio
sobre o cinema construdo em orma de cinema, um ensaio verdadeira-
mente audiovisual, sem recurso a nenhum comentrio verbal.O lme comea: vem-se personagens jogados na paisagem urbana,
em meio a prdios e trnsito, correndo ou ugindo. Entre as guras que
correm, comeam a denir-se, em primeiro lugar, os aleijados: personagens
sem os ps ou amparados por muletas. Expande-se o tema dos ps: surgem
inmeros planos de ps apressados, que transitam para todos os lados,
ps decididos, direcionados para um objetivo, em geral ao trabalho. De
repente, surgem os primeiros rostos, inicialmente quase diludos na massaindierenciada. So rostos annimos, desconhecidos, quase dissolvidos na
multido. So Paulo aparece, num primeiro momento, como uma massa
gigantesca de gente esmagada entre o trnsito e os edicios. Ento, come-
am a se destacar os primeiros rostos dierenciados: so os personagens, as
guras individualizadas, portadoras de um drama: o Carlos, de So Paulo
S/A (Lus Srgio Person, 1965), o Martinho, de O quarto (Rubem Biora,
1968), o luz, de O bandido da luz vermelha (Rogrio Sganzerla, 1969), aMacaba, de A hora da estrela (Suzana Amaral, 1985) e assim por diante.
Uma mirade de tramas se insinuam, sem jamais se completar: persona-
gens sobem escadas, batem s portas, encontram-se, cruzam-se nas ruas,
insultam-se, atacam-se, desesperam-se. Para o cinema, So Paulo apre-
senta-se invariavelmente como uma cidade sombria, inspita, castradora,
destruidora. No h idlio, no h beleza, s uma engrenagem pesada que
esmaga a todos com a sua ria e implacvel vocao para a produo capi-talista. Os que no se encaixam so expelidos para ora e se marginalizam,
retornando todavia sob a orma de neurticos ou bandidos.
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O Filme-Ensaio
So Paulo: sinonia e cacoonia uma eloqente demonstrao de
que se pode construir um ensaio sobre o cinema usando o prprio cinema
como suporte e linguagem. No uturo, quando as cmeras substiturem
as canetas, quando os computadores editarem lmes em vez de textos,essa ser provavelmente a maneira como escreveremos e daremos orma
ao nosso pensamento.
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