LOCKE. Ensaio Acerca Do Entendimento Humano. (Os Pensadores)

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  • JOHN LOCKE

    ENSAIO ACERCA DO ENTENDIMENTO HUMANO

    Traduo de Anoar Aiex

    NCMI CULTUML

  • Fundador VICTOR CIVITA

    (1907-1990)

    Editora Nova Cultural Ltda.

    Copyright desta edio 1999, Editora Nova Cultural Ltda.

    Rua Paes Leme, 524 - 10" andar CEP 05424-010 - So Paulo - SP.

    Coordenao Editorial: Janice Florido Chefe de Arte: Ana Suely Dobn

    Paginao: Nair Fernandes da Silva

    Direitos exclusivos sobre as tradues deste volume: Editora Nova Cultural Ltda., So Paulo

    Direitos exclusivos sobre "Locke - Vida e Obra": Editora Nova Cultural Ltda.

    Impresso e acabamento: Grfica Crculo

    ISBN 85-13-00906-7

    Venda permitida somente em conjunto com edies de jornais

    VIDA E OBRA Consultoria de Carlos Estevam Martins e Joo Paulo Monteiro

    A HISTRIA poltica da Inglaterra do sculo XVII tem como mar-cos bem ntidos os anos de 1603 e 1689. Em 1603, faleceu Elizabeth I (1533-1603) e a coroa foi colocada na cabea de Jaime Stuart (1566-1625). Em 1689, a Revoluo Gloriosa fez ascender ao trono real Guilherme de Orange (1650-1702) e sua esposa Maria (1662-1694). Entre aquelas datas, ocorreram os conflitos decorrentes do abuso do poder, por parte dos monarcas da dinastia dos Stuart, e as tentativas de consolidao dos interesses da burguesia, realizadas pelos seus representantes na Cmara dos Comuns.

    No sculo anterior, o absolutismo dos Tudor constitua expresso dos interesses da burguesia, e, alm disso, os principais representantes do absolutismo desse perodo, Henrique VII (1491-1547) e Elizabeth I, fo-ram muito hbeis em manter seu poder com todas as aparncias de governo popular. Quando desejavam decretar medidas de popularidade duvidosa, recorriam formalidade de obter aprovao parlamentar; quando neces-sitavam mais dinheiro, sabiam como fazer para que as desapropriaes parecessem ddivas voluntrias dos representantes do povo.

    No sculo XVII, contudo, a situao alterou-se. A burguesia j estava suficientemente fortalecida e poderia prescindir de governos fortes para solidificar seu domnio sobre a nao. Acrescentava-se a isso o fato de que os soberanos Stuart no tinham a mesma habilidade que seus ante-cessores. Jaime I, por exemplo, a quem Henrique IV da Frana (1553-1610) chamava "o imbecil mais esclarecido da cristandade", pretendia funda-mentar a autoridade real no poder divino. Seus sucessores caminharam pelas mesmas vias e todo o sculo XVII ficou marcado pelos constantes conflitos entre a autoridade real e a autoridade do Parlamento. Esses con-flitos assumiam aspectos religiosos, envolvendo protestantes contra cat-licos, mas, sobretudo, eram expresso de interesses econmicos divergen-

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    teso Alm das oposies entre a aristocracia medieval e a burguesia, con-trapunham-se os interesses da burguesia mercantil, protegida por privi-lgios de monoplio, e de novos setores que procuravam quebrar esses monoplios, alterando as relaes existentes no comrcio internacional. Ao lado dessas foras, havia ainda uma nova classe de empresrios agr-colas e novas camadas urbanas, interessadas na expanso da indstria de transformao.

    O resultado dos conflitos foi a derrota final do absolutismo com a Revoluo Gloriosa. Em 1689, a Cmara dos Comuns triunfou, mandando chamar Guilherme de Orange e sua esposa Maria, que se encontravam refugiados na Holanda. Outorgando-lhes o poder real, o Parlamento bur-gus deixava claro que esse poder era derivado do seu e nele deveria fundamentar-se.

    MDICO, FILSOFO E POLTICO

    No navio que transportava Guilherme de Orange e sua esposa Maria encontrava-se o filsofo John Locke e isso no era obra de simples acaso. Locke participou ativamente do processo revolucionrio realizado em seu pas e essa participao poderia ser remontada at suas origens familiares.

    John Locke nasceu a 29 de agosto de 1621, no seio de uma famlia de burgueses comerciantes da cidade de Bristol. Quando estourou a re-voluo de 1648, seu pai adotou a causa dos puritanos e alistou-se no exrcito do Parlamento.

    Na mesma poca, Locke estudava na Westrninster School, e, em 1652, transferiu-se para o Crist Church College de Oxford, instituio qual estaria ligado at 1684, primeiro como aluno, depois como "fellow". Em Oxford, Locke desencantou-se com o aristotelismo escolstico ali en-sinado, mas recebeu tambm duas influncias fundamentais para o curso posterior de seu pensamento: a de John Owen (1616-1683), que enfatizava a importncia da tolerncia religiosa, e a de Descartes (1596-1650), que o libertou "do ininteligvel modo de falar" dos escolsticos. Seus interesses como estudante foram bastante diversificados, abrangendo desde a qu-mica e a meteorologia at a teologia. Finalmente, optou pela medicina como atividade profissional. Datam dessa poca suas amizades com Robert Boyle (1627-1691) e Thomas Sydenham. Boyle, repudiando a teoria aris-totlica dos quatro elementos (gua, ar, terra e fogo), foi o primeiro a formular o moderno conceito de elementos qumicos. O segundo revolu-cionou a medicina clnica, abandonando os dogmas de Galeno (130-200) e outras hipteses especulativas e baseando o tratamento das doenas na observao emprica dos pacientes. Locke integrava, assim, o crculo da-

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    queles que valorizavam a experincia como fonte de conhecimento, e sua obra posterior sistematizaria a filosofia empirista. Nesses anos, redigiu uma pequena obra em latim, Ensaios sobre a Lei da Natureza.

    Embora fortuitamente, sua dedicao medicina experimental tam-bm serviu para faz-lo ingressar nos crculos polticos da Inglaterra. Em 1666, Locke tornou-se mdico de Anthony Ashley Cooper (1621-1683), posteriormente lorde e primeiro conde de Shaftesbury. Como obteve su-cesso no tratamento, Ashley o empregou como mdico particular e acabou por atribuir-lhe outras funes, como a de seu assessor. Locke participou, assim, da elaborao de uma constituio para a colnia de Carolina, si-tuada na Amrica do Norte. Em Exeter House, residncia de lorde Ashley em Londres, Locke convivia com os mais altos crculos intelectuais e po-lticos da poca. Nesse perodo comeou a escrever uma de suas obras principais, o Ensaio sobre o Entendimento Humano, na qual trabalharia du-rante quase vinte anos.

    Com a rpida ascenso de lorde Ashley, multiplicaram-se suas ocu-paes polticas. Em 1672, lorde Ashley recebeu o ttulo de conde de Shaf-tesbury e tornou-se Presidente do Conselho de Colonizao e Comrcio; logo depois, ascendeu ao cargo de chanceler. Acompanhando-o, Locke tornou-se Secretrio para a Apresentao de Benefcios, devendo cuidar de todos os problemas eclesisticos.

    Shaftesbury representava, na poltica britnica, os interesses do Par-lamento e cada vez mais opunha-se s medidas do soberano Carlos II (1630-1685), contrrias a esses interesses e que tentavam fortalecer o ab-solutismo. Em 1675, Shaftesbury foi destitudo de todos os seus cargos e Locke foi tambm obrigado a abandonar as atividades polticas. Viajou ento para a Frana, onde permaneceria durante trs anos e se relacionaria com os crculos intelectuais de Montpellier e Paris. Em 1679, voltou Inglaterra encontrando-a em grande agitao poltica. Shaftesbury, lder da oposio a Carlos lI, estivera preso, mas voltara a fazer parte do governo, em 1678, desempenhando as funes de Presidente do Conselho Privado. Os servios de Locke foram novamente requisitados, mas suas relaes com o governo do monarca Carlos II no durariam muito tempo. Em 1681, Shaf-tesbury, acusado de chefiar uma rebelio para depor o soberano, foi preso e compelido a trocar a Inglaterra pela Holanda, onde faleceu em 1683. Locke passou a ser vigiado pelo partido do rei e tambm acabou procurando refgio na Holanda, onde existia liberdade de pensamento.

    Os PRINCPIOS DA TOLERNCIA

    Mesmo na Holanda os agentes de Carlos II perseguiam Locke, que se -1-

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    disfarou, em Arnsterdam, sob o nome de dr. Van der Linden Apesar de per-seguido, conseguiu relacionar-se com Jean Leclerc (1657-1736), editor de um pe-ridico literrio intitulado Biblioteca Universal e Histrica. Para essa publicao, Locke contribuiria com vrios artigos. Contava ento 54 anos de idade.

    Suas principais obras, contudo, s seriam publicadas entre 1689 e 1690, ao voltar Inglaterra, depois da vitria do Parlamento na Revoluo Gloriosa e conseqente ascenso ao trono de Guilherme de Orange e Maria. Nesses anos, Locke publicou a Carta sobre a Tolerncia, os Dois Tratados sobre o Governo Civil e o Ensaio sobre o Entendimento Humano. A primeira Carta sobre a Tolerncia causou muita polmica e Locke escreveu outras trs. Nelas, advoga a liberdade de conscincia religiosa (um dos principais temas polticos da poca), sustentando a tese de que o Estado deveria apenas cuidar do bem-estar material dos cidados e no tomar partido de uma religio. O Primeiro Tratado sobre o Corpo Civil combate, ironica-mente, a tese de sir Robert Filmer (1588-1653), defensor do absolutismo dos Stuart, segundo a qual os monarcas reinantes remontavam seu poder a Ado e Eva. O Segundo Tratado do Governo Civil desenvolve as teses polticas liberais de Locke. O Ensaio Sobre o Entendimento Humano seria sua obra mais importante, do ponto de vista estritamente filosfico. Alm dessas obras, Locke publicou Alguns Pensamentos Referentes Educao, em 1693, e Racionalidade do Cristianismo, em 1695. A primeira especialmente importante por constituir uma aplicao de sua teoria empirista do conhecimento aos problemas do ensino. Locke sustentava que "pode-se levar, facilmente, a alma das crianas numa ou noutra direo, como a prpria gua".

    Os ltimos anos da vida de Locke foram relativamente calmos, den-tro da nova situao poltica criada pela Revoluo Gloriosa. Depois de viver dois anos com o modesto cargo de Comissrio de Recursos e recusar oferta para desempenhar as funes de embaixador em Brandenburgo, passou a residir nas terras de sir Francis Mashan. Na residncia de Mashan, em Oates, recebia a visita de seus amigos, entre os quais Isaac Newton (1642-1727), um dos criadores da fsica moderna.

    Em 1696, Locke assumiu o cargo de Comissrio da Cmara de Comrcio, sendo obrigado a deslocar-se freqentemente at Londres. Quatro anos depois, . com a sade j debilitada, renunciou ao cargo, dedicando-se a uma vida de meditao e contemplao. Morreu no dia 27 de outubro de 1704.

    A CRTICA AO INATISMO

    Durante toda a vida, Locke participou d,1s lutas pela entrega do poder burguesia, classe a que pertencia. Na poca, isso significava lutar

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    contra a teocracia anglicana e suas teses legitimadoras: a de que o poder do rei seria absoluto e a de que esse poder diria respeito tanto ao plano espiritual quanto ao temporal, o soberano tendo direito de impor nao determinada crena e determinada forma de culto.

    Locke insurgia-se contra essas teses polticas, vinculando-as a teses filosficas mais gerais, fundamentadas, em ltima instncia, numa certa teoria do conhecimento. As palavras iniciais do Ensaio sobre o Entendi-mento Humano so muito mais claras nesse sentido. Relatando as cir-cunstncias da origem da obra, o autor diz que o Ensaio resultou das dificuldades surgidas para a resoluo de um problema filosfico, abor-dado em discusso fortuita entre amigos; diante da dificuldade, Locke sugeriu uma prvia indagao sobre a extenso e o limite do entendi-mento humano. A indagao proposta acabou por se transformar na obra com a qual o pensador pretendia "fundamentar a tolerncia reli-giosa e filosfica".

    Papel fundamental no Ensaio desempenhado pela anlise crtica da doutrina das idias inatas. O problema surgiu na mente de Locke pela leitura da obra O Verdadeiro Sistema Intelectual do Universo, de autoria de um dos principais animadores da escola platnica de Cambridge, o filsofo Ralph Cudworth (1617-1688). Esse pensador sustentava que a demonstra-o da verdade da existncia de Deus exige o pressuposto de que o homem possui idias inatas, isto , idias que se encontram na alma desde o nas-cimento, e que, portanto, no derivam de qualquer experincia. Para Cud-worth, a doutrina empirista, segundo a qual "nada est no intelecto que antes no tenha estado nos sentidos", conduz diretamente ao atesmo e por isso deve ser combatida.

    O livro I do Ensaio de Locke dedicado crtica do inatismo de-fendido por Cudworth. Locke procura demonstrar que o inatismo uma doutrina do preconceito, levando diretamente ao dogmatismo individual. Se os princpios fossem verdadeiramente inatos, constituiriam uma cer-teza irredutvel, sem nenhum outro fundamento a no ser a afirmao do indivduo. Critica ainda o inatismo, afirmando que os princpios chamados inatos deveriam encontrar-se em todos os indivduos, como aspectos constantes e universais. Mas isso, entretanto, no ocorre. Exa-minando-se os indivduos - diz Locke -, verifica-se que apenas uns poucos conhecem, por exemplo, os princpios de identidade e contra-dio lgicas. Da mesma forma, nem todos conheceriam os princpios da vida prtica, como "age com relao aos outros como gostarias que agissem com relao a ti".

    Alm de negar que os princpios supostamente chamados inatos sejam universais, Locke afirma que eles no tm maior utilidade, pois

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    seria possvel chegar mais ao exato conhecimento sem nenhuma necessi-dade de se recorrer a eles. Para julgar que o doce no amargo, por exemplo, bastaria perceber o doce e o amargo em separado; imediatamente se concluiria que so diferentes. Nesse caso, no haveria a menor neces-sidade de se utilizar o princpio de identidade lgica, segundo a qual impossvel que uma coisa seja distinta de si mesma. Analogamente seria possvel, segundo Locke, provar a existncia de Deus sem nenhuma fun-damentao numa suposta idia inata de Deus; ou seja, o chamado "ar-gumento ontolgico" no teria nem validade nem utilidade. Santo Agos-tinho (354-430), Santo Anselmo (1035-1109), Descartes (1596-1650), defen-sores do inatismo, afirmavam a existncia no esprito humano, antes de qualquer experincia, da idia de um ser perfeito; da concluam sua exis-tncia autnoma. Ao contrrio, segundo Locke, a existncia de Deus po-deria ser demonstrada por uma variante da prova "por contingncia do mundo": a existncia do ser contingente, que o homem (conhecimento adquirido pela experincia), supe a existncia de um ser eterno, todo-poderoso e inteligente. Alm disso, a no universalidade da idia de Deus ficaria comprovada pelo fato de que h selvagens que seriam inteiramente destitudos dessa idia.

    A crtica ao inatismo, realizada por Locke, levou-o a conceber a alma humana, no momento do nascimento, como uma "tbula rasa", uma espcie de papel em branco, no qual inicialmente nada se encontra escrito. Chega, ento, concluso de que, se o homem adulto possui conhecimento, se sua alma um "papel impresso", outros devero ser os seus contedos: as idias provenientes - todas - da experincia.

    Locke procurou, ento, descobrir quais seriam os elementos consti-tutivos do conhecimento, quais as suas origens e processo de formao, e qual a amplitude de sua aplicabilidade. Em outras palavras, se o homem no possui idias inatas - ao contrrio do que afirmavam Plato (428/7-348/7 a.c.), Agostinho, Descartes e outros -, pergunta-se: como pode o homem constituir um conhecimento certo e indubitvel e em que casos isso possvel?

    QUE SIGNIFICA PENSAR?

    No livro II do Ensaio sobre o Entendimento Humano, Locke comea por afirmar que as fontes de todo conhecimento so a experincia sensvel e a reflexo. Em si mesmas, a experincia sensvel e a reflexo no cons-tituiriam propriamente conhecimento; seriam, antes, processos que suprem a mente com os materiais do conhecimento. A esses materiais, Locke d o nome de idias, expresso que adquire, assim, o sentido de todo e qual-

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    quer contedo do processo cognitivo. "Idia" , para Locke, o objeto do entendimento, quando qualquer pessoa pensa; a expresso "pensar" as-sim tomada no mais amplo sentido, englobando todas as possveis ativi-dades cognitivas. Incluem-se no significado da expresso "idia" os "fan-tasmas" (entendidos, por Locke, como dados imediatamente provenientes dos sentidos), lembranas, imagens, noes, conceitos abstratos.

    As idias de sensao proviriam do exterior, enquanto as de reflexo teriam origem no prprio interior do indivduo. Nesse sentido, expresses como "amarelo", "branco", "quente" designam idias de sensao; enquanto as palavras "pensar", "duvidar", "crer" nomeiam idias de reflexo. Essas duas categorias de idias seriam recebidas passivamente pelo entendi-mento e Locke lhes d o nome de "idias simples".

    A simplicidade das idias no decorreria de nenhum carter interior a elas mesmas; seriam simples as idias que no se pode ter a no ser mediante experincias bem concretas, como frio e quente, doce e amargo etc. Essas experincias concretas forneceriam idias simples de trs tipos: de sensao, de reflexo e de ambas ao mesmo tempo. Exemplos das primeiras so o quente, o slido, o duro, o amargo, a extenso, o movi-mento; entre as segundas, encontram-se a ateno, a memria, a vontade; finalmente, idias simultaneamente de sensao e reflexo seriam as de existncia, durao, nmero.

    A noo de idias simples coloca de imediato o problema de saber se elas so mesmo representativas, isto , imagens das coisas exteriores ao sujeito que as percebe. Para melhor solucionar a questo, Locke separa as idias simples em dois grupos. O primeiro formado por idias "enquanto percepes em nosso esprito"; o segundo, "enquanto modificaes da matria nos corpos causadores de tais percepes". Estas ltimas seriam efeitos de poderes ou potncias capazes de afetar os sentidos humanos.

    Tal distino conduz Locke a uma outra: entre qualidades primrias e qualidades secundrias dos corpos exteriores mente. Assim, Locke transita da teoria do conhecimento para a teoria do mundo fsico. As qualidades primrias seriam inseparveis dos corpos, tais como a solidez, a extenso, a figura e o movimento; mesmo que um certo corpo seja di-vidido em dois, essas qualidades persistiriam nas partes resultantes. As qualidades secundrias, ao contrrio, no persistiriam e no estariam nos objetos seno como poderes para produzir vrias sensaes nos sujeitos percipientes; assim ocorre com os sons, os gostos e as cores.

    As idias simples constituiriam os elementos com os quais se formam as idias compostas, que se dividem em dois grupos. O pri-meiro constitudo por idias simples combinadas na idia de uma

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    coisa nica, como por exemplo a idia de homem ou de ouro. O segundo formado por idias que se renem para formar uma idia composta, mas que continuam representando coisas distintas; o que ocorre com todas as idias de relao, como a de filiao, que une, sem alter-las, as idias de pai e filho.

    O primeiro grupo, por sua vez, subdivide-se em duas classes: idias de modo das coisas que no podem subsistir por si mesmas (um tringulo ou um nmero, por exemplo) e as substncias que, como diz a prpria palavra, subsistem por si; seria o caso da idia de homem, entre outras. Os prprios modos dividem-se em simples e compostos, ou mistos. Nos primeiros a idia simples combina-se consigo mesma, como a idia de nmeros, que resulta da combinao das idias de unidades; ou a de espao, proveniente da combinao das idias de partes homogneas. Os modos compostos, ou mistos, derivam da comunicao de idias simples heterogneas, como a idia de beleza ou de assassinato.

    A SUBSTNCIA INCOGNOSCVEL

    Segundo o projeto de Locke, a teoria elaborada no Ensaio sobre o Entendimento Humano possibilitaria encaminhar de outra forma a solu-o de muitos problemas filosficos, que s as teorias inatistas se jul-gavam capazes de resolver. Dentre esses problemas, os mais impor-tantes, a seu ver, eram os referentes s noes de infinito, de potncia e de substncia.

    O infinito concebido por Locke como um modo simples, resultante da repetio da unidade homognea de nmero, durao e espao, dis-tinguindo-se do finito to-somente pelo fato de que tal repetio no tem limite. Portanto, falso - diz Locke - considerar o infinito como anterior ao finito e que o finito seja uma limitao do infinito. Pelas mesmas razes, falso tambm conceber um infinito de perfeio, diferente do infinito de quantidade.

    A idia de poder concebida pelo autor do Ensaio como um modo simples, formado pela repetida experincia de certas modificaes com- ' provadas nas coisas sensveis e no prprio homem. Este chega idia de poder, quando nota que suas idias se modificam sob influncia das im-presses dos sentidos ou por escolha de sua prpria vontade. A idia de poder formar-se-ia tambm quando o homem imagina a possibilidade de tais modificaes virem a ocorrer no futuro; nesse caso produzem-se as idias de potncia ativa, referente quilo que causou a modificao, e de potncia passiva, que diz respeito quilo que sofre a modificao. Mas, em geral, a idia de potncia ativa seria uma idia de reflexo, proveniente

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    das modificaes produzidas pela vontade do homem nas coisas externas; nesse sentido, a vontade uma potncia ativa.

    O terceiro problema abordado por Locke foi o da natureza da substncia. A substncia sempre foi entendida como realidade primi-tiva, mas filsofo algum - pensa Locke - foi capaz de dizer claramente o que entendia por esse substrato de todos os atributos. No Ensaio sobre o Entendimento Humano encontra-se a tese de que as insuficincias das doutrinas tradicionais decorrem de terem os filsofos erradamente con-cebido a substncia como uma idia simples, quando, na verdade, se trata de idia composta. Tomando-se como exemplo o ouro, de acordo com a tese de Locke, sua substncia no seria mais do que um conjunto de idias simples, que a experincia mostra sempre agrupadas: amarelo, dctil, denso etc. Nesse caso a substncia no seria mais do que um modo misto, que tambm um grupo constante de idias simples deno-minadas por uma s palavra.

    Essa tese de Locke sobre a substncia no significa, contudo, que ele afirmasse a realidade como formada exclusivamente pelas idias sim-ples; Locke admite a existncia real das substncias, mas acha que elas no podem ser conhecidas em si mesmas. A tese de Locke , assim, re-ferente ao conhecimento e no tem, propriamente, um significado meta-fsico. A substncia reduzir-se-ia a uma espcie de infinito em ato; existe mas no se pode saber o que seja, e a nica investigao possvel a pesquisa experimental das qualidades que nela coexistem. Dessa forma, para conhecer os corpos que compem a realidade exterior ao homem, suficiente considerar a substncia um conjunto de idias simples de sen-sao. Analogamente, deve-se entender a realidade interior (alma, na me-tafsica medieval) como conjunto de idias de reflexo.

    Os FUNDAMENTOS DA CERTEZA

    Depois de analisar os materiais constituintes do entendimento hu-mano, o Ensaio aborda o problema dos limites do conhecimento e suas formas legtimas, ou seja, a verdade. Para o autor, o conhecimento constitui percepo de convenincia ou discordncia entre as idias e expressa-se atravs dos juzos. Trata-se, portanto, da percepo de vnculos, que podem ser de trs tipos: identidade (ou diferena), quando se diz que A B ou A no B; re/ao, como a expressa na frase "Joo filho de Paulo", ou qualquer outra referente a semelhana e dessemelhana, maior e menor etc., e de coexistncia.

    Alm desses trs tipos de vnculos entre as idias, existiria uma quarta classe de convenincia, referente no s relaes possveis entre

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    as prprias idias, mas correspondncia que uma idia possa ter com a realidade exterior ao esprito humano. Nos termos do prprio Locke, a quarta classe de convenincia "a de uma existncia real e atual que convm a algo cuja idia temos em mente". A percepo da existncia - diz Locke - irredutvel percepo de uma relao entre duas idias, em virtude de a existncia no ser uma idia como a de doce ou amargo, quente ou frio. Existem vrias espcies de certeza com relao existncia das coisas. Uma primeira espcie a certeza intuitiva, proveniente da reflexo, que o homem tem de sua prpria existncia. Uma segunda espcie seria a certeza demons-trativa da existncia de Deus. Finalmente, uma terceira espcie a "certeza por sensao", referente aos corpos exteriores ao homem.

    A dualidade dos juzos, separando de um lado as relaes que se podem estabelecer entre as prprias idias e, de outro, aquelas que se referem existncia real dos correspondentes s idias, coloca-se tambm quanto ao problema da verdade e de sua contra parte, a falsidade. Segundo Locke, h duas categorias de juzos falsos. Na primeira categoria, a relao expressa pela linguagem no corresponde relao percebida intuitiva-mente entre as idias. Na segunda, o erro no consiste em perceber mal uma relao, mas em perceb-la entre idias no correspondentes a qual-quer realidade. No primeiro caso possvel, evitando o erro, formular-se um juzo verdadeiro que, no entanto, nada diz respeito realidade; o que ocorre quando, por exemplo, se diz que cavalo alado no centauro. Somente no segundo caso se pode ter conhecimento real. Este, contudo, supe os dois elementos da verdade: convenincia das idias entre si e das idias em relao realidade.

    Da distino entre dois tipos de verdade deduzem-se dois tipos de disciplinas cientficas. O primeiro tipo - pensa Locke - constitudo pelas matemticas e pelas cincias morais; nelas todo o conhecimento absolutamente certo porque seu contedo so idias produzidas pela pr-pria mente humana. Locke afirma, por exemplo, que perfeitamente de-monstrvel que o homicdio deva ser castigado; a certeza dessa demons-trao seria to segura quanto a de um teorema matemtico. O segundo tipo o das cincias experimentais, que formariam uma rea de conhe- . cimento na qual a certeza das cincias ideais (matemticas e morais) no est presente. A certeza, no domnio das cincias experimentais, depen-deria do critrio de verificao da convenincia entre as idias que esto na mente humana e a realidade exterior a ela.

    ESTADO NATURAL E LIBERDADE

    A teoria do conhecimento exposta no Ensaio sobre o Entendimento Humano -14-

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    constitui uma longa, pormenorizada e hbil demonstrao de uma tese: a de que o conhecimento fundamentalmente derivado da experincia sensvel. Fora de seus limites, a mente humana produziria, por si mesma, idias cuja validez residiria apenas em sua compatibilidade interna, sem que se possa consider-las expresso de uma realidade exterior prpria mente.

    As teses sociais e polticas de Locke caminham em sentido paralelo. Assim como no existem idias inatas no esprito humano, tambm no existe poder que possa ser considerado inato e de origem divina, como queriam os tericos do absolutismo. Antes, Robert Filmer (1588-1653), o autor de O Patriarca, e um dos defensores do absolutismo, procurara de-monstrar que o povo no livre para escolher sua forma de governo e que os monarcas possuem um poder inato. Contra O Patriarca, Locke di-rigiu seu Primeiro Tratado sobre o Governo Civil; depois desenvolveu suas idias no Segundo Tratado. Neles, Locke sustenta que o estado de sociedade e, conseqentemente, o poder poltico nascem de um pacto entre os ho-mens. Antes desse acordo, os homens viveriam em estado natural.

    A tese do estado e do pacto social tambm fora defendida por Tho-mas Hobbes (1588-1679), mas o autor de O Leviat tinha objetivos intei-ramente opostos aos de Locke, pois pretendia justificar o absolutismo. A diferena entre os dois resultava basicamente do que entendiam por estado natural, acarretando diferentes concepes sobre a natureza do pacto social e a estrutura do governo poltico.

    Para Locke, no estado natural "nascemos livres na mesma medida em que nascemos racionais". Os homens, por conseguinte, seriam iguais, inde-pendentes e governados pela razo. O estado natural seria a condio na qual o poder executivo da lei da natureza permanece exclusivamente nas mos dos indivduos, sem se tornar comunal. Todos os homens participariam dessa sociedade singular que a humanidade, ligando-se pelo liame comum da razo. No estado natural todos os homens teriam o destino de preservar a paz e a humanidade e evitar ferir os direitos dos outros.

    Entre os direitos que Locke considera naturais, est o de propriedade, ao qual os Dois Tratados sobre o Governo Civil concedem especial destaque. O direito propriedade seria natural e anterior sociedade civil, mas no inato. Sua origem residiria na relao concreta entre o homem e as coisas, atravs do processo de trabalho. Se, graas a este, o homem transforma as coisas -pensa Locke -, o homem adquire o direito de propriedade: "Todo homem possui uma propriedade em sua prpria pessoa, de tal forma que a fadiga de seu corpo e o trabalho de suas mos so seus". Assim, em lugar de opor o trabalho propriedade, Locke sustenta a tese de que o trabalho a origem e o fundamento da propriedade. As coisas sem trabalho teriam pouco valor,

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    e seria mediante o trabalho que elas deixariam o estado em que se en-contram na natureza, tornando-se propriedades.

    Vivendo em perfeita liberdade e igualdade no estado natural, o ho-mem, contudo, estaria exposto a certos inconvenientes. O principal seria a possvel inclinao no sentido de beneficiar-se a si prprio ou a seus amigos. Como conseqncia, o gozo da propriedade e a conservao da liberdade e da igualdade ficariam seriamente ameaados.

    Justamente para evitar a concretizao dessas ameaas, o homem teria abandonado o estado natural e criado a sociedade poltica, atravs de um contrato no entre governantes e governados, mas entre homens igualmente livres. O pacto social no criaria nenhum direito novo, que viesse a ser acres-centado aos direitos naturais. O pacto seria apenas um acordo entre indiv-duos, reunidos para empregar sua fora coletiva na execuo das leis naturais, renunciando a execut-las pelas mos de cada um. Seu objetivo seria a pre-servao da vida, da liberdade e da propriedade, bem como reprimir as vio-laes desses direitos naturais. Em oposio s idias de Hobbes, Locke acre-dita que, atravs do pacto social, os homens no renunciam aos seus prprios direitos naturais, em favor do poder dos governantes.

    Na sociedade poltica formada pelo contrato, as leis aprovadas por mtuo consentimento de seus membros e aplicadas por juzes imparciais manteriam a harmonia geral entre os homens. O mtuo consentimento colocaria os indivduos, que se incorporam atravs do pacto, "em condies de instalar a forma de governo que julguem conveniente". Conseqente-mente, o poder dos governantes seria outorgado pelos participantes do pacto social e, portanto, revogvel. Hobbes achava que a rebelio dos cidados contra as autoridades constitudas s se justifica quando os go-vernantes renunciam a usar plenamente o poder absoluto do Estado. Con-tra essa tese, Locke justifica o direito de resistncia e insurreio, no pelo desuso, mas pelo abuso do poder por parte das autoridades. Quando um governante se torna tirano, coloca-se em estado de guerra contra o povo. Este, se no encontrar qualquer reparao, pode revoltar-se, e esse direito uma extenso do direito natural que cada um teria de punir seu agressor. Para o homem, a razo de sua participao no contrato social evitar o estado de guerra, e esse contrato quebrado quando o governante se coloca contra o povo. Mediante o pacto social, o direito legislativo e exe-cutivo dos indivduos em estado de natureza transferido para a socie-dade. Esta, devido ao prprio carter do contrato social, limita o poder poltico. O soberano seria, assim, o agente e executor da soberania do povo. Este que estabelece os poderes legislativo, executivo e judicirio. Locke distingue o processo de contrato social - criador da comunidade - do subseqente processo pelo qual a comunidade confia poder poltico

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    a

    LOCKE

    a um governo. Esses processos podem ocorrer ao mesmo tempo, mas so claramente distintos; embora contratualmente relacionados entre si, os in-tegrantes do povo no esto contratualmente submetidos ao governo. o povo que decide quando ocorre uma quebra de confiana, pois s o homem que confia poder capaz de dizer quando se abusa do poder.

    Com suas idias polticas, Locke exerceu a mais profunda influncia sobre o pensamento ocidental. Suas teses encontram-se na base das de-mocracias liberais. Seus Dois Tratados sobre o Governo Civil justificaram a revoluo burguesa na Inglaterra. No sculo XVIII, os iluministas franceses foram buscar em suas obras as principais idias responsveis pela Revo-luo Francesa. Montesquieu (1689-1755) inspirou-se em Locke para for-mular a teoria da separao dos trs poderes. A mesma influncia encon-tra-se nos pensadores americanos que colaboraram para a declarao da Independncia Americana, em 1776.

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  • .

    CRONOLOGIA

    1632 - Nasce John Locke, em Wrington, no dia 29 de agosto. 1642-1646 - Guerra Civil na Inglaterra: puritanos e presbiterianos esco-

    ceses aliam-se contra o rei Carlos I; Oliver Cromwell comanda os rebeldes.

    1649 - Condenado pelo Parlamento, Carlos I executado a 30 de janeiro. 1651 - Hobbes publica sua principal obra: O Leviat. 1653-1658 - Durao do "Protetorado de Cromwell". 1656 - Locke bacharela-se em artes. 1658 - Morte de Oliver Cromwell. 1660 - Carlos II passa a ocupar o trono ingls. 1662 - Morre Pascal. 1666 - D-se, em Oxford, o primeiro encontro entre o futuro conde de Shaftesbury

    e Locke. 1672 - Carlos II concede a tolerncia religiosa. 1675 - Locke torna-se secretrio do Conselho de Plantaes e Comrcio. 1681 - Carlos II dissolve o Parlamento. 1683 - Morre o conde de Shaftesbury, Locke refugia-se na Holanda. 1685 - Nasce Bach. Jaime II ascende ao trono ingls. 1686 - Isaac Newton comunica Royal Society de Londres sua hiptese

    sobre a gravitao universal. Leibniz escreve o Discurso de Meta-fsica e o Systema Theologicum.

    1688 - Revoluo contra Jaime lI; sobe ao trono Guilherme de Orange. 1689 - Locke retoma Inglaterra. 1689-1690 - So publicados os Dois Tratados sobre o Governo Civil, de Locke. 1690 - Locke edita o Ensaio sobre o Entendimento Humano. 1702 - Com a morte de Guilherme de Orange, sobe ao trono sua filha Anne. 1704 - Locke morre em 28 de outubro.

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  • i4'

    BIBLIOGRAFIA

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    ception, Baltimore, 1964.

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  • tLS

    NOTA DO TRADUTOR

    A PRESENTE traduo baseia-se fundamentalmente na edio abreviada do Ensaio feita por A. D. Woozley em 1969 (3" edio). Woozley utilizou a 5" edio da obra (1706), revista por Locke e de publicao pstuma.

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  • CARTA AO LEITOR

    LEITOR, Coloco em suas mos o que tem sido o passatempo de algumas de minhas

    horas mais ociosas e difceis. Se tiver a boa sorte de mostrar-se assim para alguns de vocs, e se voc tiver ao l-lo apenas a metade do prazer que tive ao escrev-lo, voc pensar to pouco sobre seu dinheiro como eu acerca de meus mal empregados sofrimentos. No interprete isso como uma recomendao ao meu trabalho, nem conclua, com base no prazer que tive ao escrev-lo, que eu esteja por isso apai-xonadamente cativado por minha realizao. Quem vai caar cotovias e pardais pratica tanto esporte, embora as emoes sejam menores, quanto a pessoa que se dedica a jogos mais interessantes. Assim, entende muito mal o assunto deste tratado, isto , o Entendimento, quem desconhece que, por se tratar da faculdade mais nobre da alma, ele utilizado com maior e mais constante alegria do que outra qualquer. Sua busca da verdade consiste numa espcie de falcoaria, que implica aceitar a prpria perseguio como considervel aspecto de prazer. Cada passo dado pela mente em seu progresso na direo do Conhecimento revela, ao menos por ora, algum descobrimento no s novo como o mais apropriado.

    Trata-se, portanto, leitor, do entretenimento de quem liberou seus prprios pensamentos e os foi registrando medida que escrevia, no lhe cabendo invejar-me, pois lhe ofereo oportunidade para divertimento semelhante, se medida que o for lendo recorrer aos seus prprios pensamentos. a eles, se lhes so prprios, que me refiro; mas, se dependerem da crena de outrem, deixa de ser importante saber o que so, pois no decorrem da verdade mas de alguma considerao mais desprezvel, e no vale a pena se preocupar com o que disse ou pensa quem diz ou pensa to-somente de acordo com a orientao de outrem. Se voc julgar por si mesmo, estou seguro que julgar honestamente, e no serei, pois, prejudicado ou ofendido, seja qual for sua crtica. Embora seja certo que nada haja neste trabalho acerca da verdade que no tenha se baseado em minha total persuaso, apesar disso, considero-me to sujeito ao erro como, penso, voc, e sei que este livro depende de voc para perdurar ou fracassar, no por causa de minha opinio, mas devido a sua prpria opinio. Se voc descobrir pouca coisa nele que lhe seja nova ou instrutiva, no deve por isso me acusar. No endereado aos que j

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  • OS PENSADORES

    dominaram este assunto e com o qual se encontram profundamente familiarizados atravs de seus prprios pensamentos, mas visa a minha prpria informao e satisfao de alguns amigos que reconheceram no ter considerado o assunto suficientemente. Se fosse adequado incomod-lo com a histria deste Ensaio, de-veria dizer-lhe que cinco ou seis amigos reunidos em meu quarto e discorrendo acerca de assunto bem remoto do presente, ficaram perplexos, devido s dificuldades que surgiram de todos os lados. Aps termos por certo tempo nos confundido, sem nos aproximarmos de nenhuma soluo acerca das dvidas que nos tinham deixado perplexos, surgiu em meus pensamentos que seguimos o caminho errado, e, antes de ns nos iniciarmos em pesquisas desta natureza, seria necessrio exa-minar nossas prprias habilidades e averiguar quais objetos so e quais no so adequados para serem tratados por nossos entendimentos. Propus isto aos meus companheiros, que prontamente concordaram, e, portanto, foi aceito que esta de-veria ser nossa primeira investigao. Alguns pensamentos precipitados e mal digeridos, jamais considerados acerca deste assunto, foram sugeridos para nossa prxima reunio e forneceram o primeiro tpico deste discurso, que, tendo come-ado por acaso, foi continuado por solicitao, escrito por parcelas incoerentes e, depois de longos intervalos de abandono, reiniciado de novo, segundo meu tem-peramento ou ocasio o permitiam, e, finalmente, devido doena que me obrigou a me isolar e deu-me lazer, foi organizado na ordem em que lhe apresentado.

    Esta maneira descontnua de escrever deve ter ocasionado, alm de outros, dois defeitos opostos, a saber, excesso e escassez de informaes. Se voc descobrir algo faltando, ficarei muito contente em saber que o que escrevi deu-lhe ensejo para solicitar-me que deveria ter-me estendido no assunto. Se lhe parece demasiado, voc deve criticar o assunto, pois, quando coloquei a pena sobre o papel, pensei que tudo que deveria escrever acerca do assunto deveria ser contido apenas numa folha. medida, porm, que prosseguia, aumentava o projeto que tinha; novos descobrimentos levaram-me adiante e, deste modo, cresceu insensivelmente e che-gou ao tamanho em que agora aparece. No negarei que possivelmente seu tamanho deva ser reduzido, e que algumas pores dele sejam resumidas, j que, por ter sido escrito, como disse, por etapas e com longos intervalos de interrupo, resultou em algumas repeties. Mas, para ser franco, encontro-me, presentemente, muito preguioso, ou muito ocupado, para rev-las e reduzi-las. .

    No ignoro quo pouco levo em considerao minha prpria reputao, j que reconhecidamente o deixo continuar com um defeito, to apropriado para desagradar aos mais judiciosos, que sempre so os leitores mais agradveis. Mas quem estiver familiarizado com a indolncia e se contenta com qualquer desculpa me perdoar se a minha terminou por dominar-me, pois, penso, a tenho em muito boa dose. No alegarei, portanto, em minha defesa, que a mesma noo possa, pelo fato de ter diferentes sentidos, servir ou ser necessria para provar ou ilustrar vrias partes do mesmo discurso, o que acontece em diversas partes deste. Deixando isso de lado, reconhecerei francamente que por vezes tratei longamente do mesmo argumento, e o expressei de modos diferentes, com um desgnio bem diferente.

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    LOCKE

    No pretendo publicar este Ensaio visando a informar os homens de pensamentos notveis e perspiccia, pois, em relao a tais mestres do conhecimento, conside-ro-me um estudante, e, portanto, os aviso de antemo a no esperar nada aqui exceto o que, tendo sido desfiado de meus pensamentos grosseiros, apropriado para homens de minha prpria estatura, aos quais, talvez, no ser inaceitvel que tenha me esforado para tornar claro e familiar aos seus pensamentos certas verdades que o preconceito estabeleceu, ou o aspecto abstrato das prprias idias que pode torn-las difceis. Alguns objetos precisaram ser encarados de todos os lados, e, quando a noo nova, como admito que algumas dessas so para mim, ou apartada.s do caminho ordinrio, como suspeito que aparecero a outrem, no ser uma simples apresentao disto que far com que seja aceita por cada en-tendimento, ou para fix-la como uma impresso clara e permanente. Acredito que poucos no observam por si prprios, ou, em outros, que o que tinha sido proposto de maneira muito obscura tornou-se muito claro e inteligvel mediante outro meio para express-lo, embora a mente tenha depois encontrado pouca di-ferena nas frases, e indagado por que uma foi menos entendida que outra. Mas nem tudo incide da mesma maneira na imaginao de todo homem. Nossos en-tendimentos no so menos diferentes que nossos paladares. Na verdade, os que me aconselharam a public-lo, aconselharam-me, por esta razo, a public-lo como est: e, que fui levado a deix-lo aparecer, desejo que seja entendido por qu.em se de ao trabalho de l-lo. Tenho to pouco interesse em ver impressas mznhas ob:as que, se no estivesse persuadido de que este Ensaio poderia ser de alguma utilidade aos outros, como penso que o foi para mim, ter-me-ia contentado em a alguns que mo inspiraram. Portanto, minha manifestao pela tem o propSito de ser to til quanto possvel; por isso julgo necessarzo tornar o que tenho a dizer fcil e inteligvel a toda espcie possvel de leitores. E prefiro que o tipo especulativo e perspicaz reclame de eu ser at certo a que quem no est habituado com especulaes abstratas, ou esteja Imbudo de noes diferentes, acabe por se equivocar ou no compreender meu pensamento.

    Possivelmente ser criticado como exemplo notvel de vaidade ou insolncia de minha parte pretender instruir a nossa saia poca; esta crtica , no entanto, menos significativa quando concordo com a publicao deste Ensaio com o fito de que seja til a outrem.

    . A cientfica de: nossa poca no se encontra sem um arquiteto, cUJos notavels desenhos, ImpulSIOnando o progresso das cincias, deixaro mo-numentos permanentes posteridade. Mas nem todos devem almejar ser um Boyle ou um Sydenham, e numa poca em que so produzidos mestres como o notvel Huygenius e o incomparvel Newton, e outros da mesma estirpe, consiste em suficiente ambio ser empregado como um trabalhador inferior, que limpa Um pouco o terreno e remove parte do entulho que est no caminho do conheci-mento. Certamente, o mundo estaria muito mais adiantado se o esforo de homens engenhosos e perspicazes no estivesse to embaraado pela erudio e pelo uso

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  • OS PENSADORES

    frvolo de termos desconhecidos, afetados e cincias, e fazendo disso uma arte a tal 'ponto de a maIs e do que o verdadeiro conhecimento das COIsas, tornar-se Improprta ou Incapaz de ser apre-ciada pela sociedade mais refinada e nas conversas eruditas. Formas vagas e sem significado de falar, e abuso da linguagem, tm por muito tempo passado por mistrios da cincia; palavras difceis e mal empregadas, com pouco ou nenhum sentido, tm, por prescrio, tal direito que so confundidas com o pensamento profundo e o cume da especulao, sendo difcil pers.uadir, s os falam como os que os ouvem que so apenas abrtgos da e obst.aculos ao verdadeiro conhecimento. Suponho que interromper o santuarlO da vaidade e da ignorncia ser de alguma utilidade para o entendimento humano, embora poucos estejam aptos a pensar que enganam ou so enganados pelo uso .das palavras, ou que a linguagem da seita a que pertencem tem defeIto que deva ser examinado e corrigido. Espero, pois, ser perdoado se trateI longamente desse as-sunto no Livro Terceiro, em que tentei faz-lo de modo simples, para que nem o radicalismo do dano, nem o predomnio do costume, sejam desculpas aos que no se preocupam com o significado de suas prprias palavras e no empreendem uma pesquisa sobre o significado de suas expresses.

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    INTRODUO

    1. INVESTIGAO do entendimento, agradvel e til. Desde que o entendimento situa o homem acima dos outros seres sensveis, e d-lhe toda vantagem e domnio que tem sobre eles, consiste certamente num tpico, ainda que, por sua nobreza, merecedor de nosso trabalho de in-vestig-lo. O entendimento, como o olho, que nos faz ver e perceber todas as outras coisas, no se observa a si mesmo; requer arte e esforo situ-lo a distncia e faz-lo seu prprio objeto. Quaisquer que sejam as dificul-dades que estejam no caminho desta investigao, por mais que perma-neamos na escurido sobre ns mesmos, estou seguro que toda a luz que possamos lanar sobre nossas mentes, todo conhecimento que possa-mos adquirir de nosso entendimento, no ser apenas muito agradvel, mas nos trar grande vantagem ao orientar nossos pensamentos na busca de outras coisas.

    2. Desgnio. Sendo, portanto, meu propsito investigar a origem, certeza e extenso do conhecimento humano, juntamente com as bases e graus da crena, opinio e assentimento, no me ocuparei agora com o exame fsico da mente; nem me inquietarei em examinar no que consiste sua essncia; nem por quais movimentos de nossos espritos, ou alteraes de nossos corpos, chegamos a ter alguma sensao mediante nossos rgos, ou quaisquer idias em nossos entendimentos; e se, em sua formao, al-gumas daquelas idias, ou todas dependem ou no da matria. Embora tais especulaes sejam curiosas e divertidas, rejeit-Ias-ei por estarem fora do caminho no qual estou agora empenhado. Ao meu presente propsito ser suficiente considerar as faculdades discernentes do homem, e como elas so empregadas sobre os objetos que lhes dizem respeito. E imaginarei que no terei divagado em pensamentos surgidos nessa ocasio se, me-diante este simples mtodo histrico, puder dar algum relato dos meios pelos quais nossos entendimentos alcanam as noes das coisas que pos-sumos, e puder estabelecer algumas medidas de certeza e nosso conhe-cimento, ou as bases dessas persuases que so encontradas entre os ho-

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  • OS PENSADORES

    mens, to variados, diferentes e inteiramente contraditrios. E, ademais, certificado algum lugar ou outro com tal segurana e confiana, para quem toma em conta as opinies da humanidade, observa sua posio e, ao mesmo tempo, considera o afeto e a devoo com os quais elas so enla-adas, a resoluo e avidez por meio das quais elas so mantidas, h talvez razo para suspeitar que no h de modo algum tal coisa como a verdade, ou que a humanidade no tem meios suficientes para alcanar dela um conhecimento certo.

    3. Mtodo. Vale a pena, portanto, pesquisar os limites entre a opinio e o conhecimento, e examinar por quais medidas devemos regular nosso assentimento e moderar nossas persuases a respeito das coisas de que no temos conhecimento certo. Com vistas a isso, seguirei o seguinte mtodo:

    Primeiro, investigarei a origem daquelas idias, noes, ou qualquer outra coisa que lhe agrade denominar, que o homem observa, e consciente de que as tem em sua mente, e o meio pelo qual o entendimento chega a ser delas provido.

    Segundo, tentarei mostrar que conhecimento e entendimento tem dessas idias, e a certeza, evidncia e extenso delas.

    Terceiro, farei alguma investigao acerca da natureza e fundamen-tos da f, ou opinio; entendo isto como o assentimento que damos para qualquer proposio como verdadeira, ou dessas verdades de que ainda no temos conhecimento certo. Teremos, assim, ocasio para examinar as razes e graus do assentimento.

    4. til saber a extenso de nossa compreenso. Se por esta in-vestigao acerca da natureza do entendimento puder descobrir seus po-deres, at onde penetram, para que coisas esto em algum grau ajustados, e onde nos so deficientes, suponho que isso pode servir para persuadir a ocupada mente do homem e usar mais cautela quando se envolve com coisas que excedem sua compreenso, parar quando o assunto muito extenso para suas foras e permanecer em silenciosa ignorncia acerca dessas coisas que o exame revelou estarem fora do alcance de nossas capacidades. No seramos, talvez, to precipitados, devido presuno de um conhecimento universal, a ponto de levantarmos questes, e de nos confundirmos e aos outros com disputas sobre coisas para as quais nossos entendimentos no so adequados e das quais no podemos formar em nossas mentes nenhuma percepo clara e distinta, ou de que (como tem, talvez, acontecido com muita freqncia) no temos de modo algum nenhuma noo. Se pudermos descobrir at onde o entendimento pode se estender, at onde suas faculdades podem alcanar a certeza, e em quais casos ele pode apenas julgar e adivinhar, saberemos como nos con-tentar com o que alcanvel por ns nesta situao.

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    LOCKE

    5. Nossa capacidade adequada para nossa situao e assuntos. Em-bora a compreenso de nossos entendimentos no corresponda vasta extenso de coisas, ainda assim teremos suficiente motivo para glorificar a generosidade de nosso Autor, por esta poro e grau de conhecimento outorgados a ns por ele, superiores aos outros habitantes desta nossa morada. Os homens tm razo para estar bem satisfeitos com o que Deus pensou que lhes era adequado, pois ele lhes deu, como diz So Pedro, pnta prs zoen kai euseeian, tudo o que necessrio para as convenincias da vida e informao da virtude, e colocou ao alcance de sua descoberta proviso suficiente para esta vida e o meio que leva para uma melhor. Por mais restrito que esteja seu conhecimento de uma compreenso perfeita ou universal do que quer que seja, ainda assim as importantes preocupa-es dos homens so asseguradas de luz suficiente para alcanar o co-nhecimento de seu Criador e a observao de seus prprios deveres. Os homens encontram suficiente matria para ocupar suas cabeas e empregar suas mos com variedade, deleite e satisfao, se no discordarem afoi-tamente de sua prpria constituio e rejeitarem as bnos com as quais suas mos esto supridas, porque no so suficientemente grandes para agarrar tudo. No teremos motivos para nos queixar da estreiteza de nossas mentes se as empregarmos to-somente no que nos utilizvel e para o que so muito capazes; pois no ser apenas imperdovel, como imper-tinente criancice, se menosprezarmos as vantagens de nosso conhecimento e descuidarmos de aperfeio-lo para os fins aos quais nos foi dado, porque certas coisas se encontram fora de seu alcance. No constitui desculpa para um servo frvolo e rebelde, que no cuida de seus negcios usando luz de vela, alegar que lhe faltava a plena luz solar. A vela que foi colocada em ns brilha o suficiente para todos os nossos propsitos. As descobertas que podemos fazer com isso devem satisfazer-nos; devemos, ento, usar nossos entendimentos corretamente, quando levamos em considerao to-dos os objetos deste meio e em que proporo se ajustam s nossas fa-culdades, em cujos fundamentos nos podem ser propostos; no necessitam de demonstrao dogmtica e imoderada, exigindo apenas a certeza al-canvel pela probabilidade, que suficiente para orientar todos os nossos assuntos. Se descrermos de tudo porque no podemos conhecer rigorosamente todas as coisas, deveramos imitar os que no se utilizam de suas pernas, permanecendo parados e morrendo, porque lhes faltam asas para voar.

    6. O conhecimento de nossa capacidade, uma cura para o ceticismo e a ociosidade. Quando conhecermos nossa prpria fora, saberemos me-lhor o que intentar com esperanas de xito; e quando tivermos examinado COm cuidado os poderes de nossas mentes, e feito alguma avaliao acerca do que podemos esperar deles, no tenderemos a ficar inativos, deixando de pr nossos pensamentos em atividade, pelo desespero de nada conhe-

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  • OS PENSADORES

    cermos; nem, por outro lado, poremos tudo em dvida e renunciaremos a todo conhecimento, porque algumas coisas no so compreendidas.

    de grande utilidade para o marinheiro saber a extenso de sua linha, embora no possa com ela sondar toda a profundidade do oceano. conveniente que saiba que ela suficientemente longa para alcanar o fundo dos lugares necessrios para orientar sua viagem, e preveni-lo de esbarrar contra escolhos que podem destru-lo. No nos diz respeito co-nhecer todas as coisas, mas apenas as que se referem nossa conduta. Se pudermos descobrir aquelas medidas por meio das quais uma criatura racional, posta nesta situao do homem no mundo, pode e deve dirigir suas opinies e aes delas dependentes, no deveremos nos molestar porque outras coisas escapam ao nosso conhecimento.

    7. Motivo deste Ensaio. Foi isso que deu, no incio, nascimento a este Ensaio acerca do Entendimento. Pensei que o primeiro passo para sa-tisfazer a vrias indagaes, s quais a mente do homem estava bem apta para tender, seria o de investigar nossos prprios entendimentos, examinar nossos prprios poderes e ver para que coisas eles esto adaptados. At que isto fosse feito, suspeitava que comeava pelo lado errado, e em vo procurava satisfao numa tranqila e segura posse das verdades que mais nos dizem respeito, se deixssemos nossos pensamentos soltos num vasto oceano do ser como se todas estas extenses ilimitadas fossem de posse natural e indubitvel de nossos entendimentos, em que no haveria nada que no dependesse de suas decises, ou que escapasse sua com-preenso. Ampliando suas investigaes alm de suas capacidades, e dei-xando seus pensamentos vagarem em profundezas a tal ponto de lhes faltar apoio seguro para o p, no de admirar que os homens levantem questes e multipliquem disputas acerca de assuntos insolveis, servindo apenas para prolongar e aumentar suas dvidas, e para confirm-los ao fim num perfeito ceticismo. Sendo bem examinadas as capacidades de nossos entendimentos, divisando o horizonte entre as partes iluminadas e as escuras das coisas - entre o que podemos e no podemos compreen-der -, os homens concordariam, talvez com menos escrpulos, em reco-nhecer nossa ignorncia acerca de umas coisas, e empregariam seus pen-samentos e discursos com mais proveito e satisfao na resoluo de outras.

    8. O que significa "idia". Julguei necessrio dizer tudo isso acerca do motivo desta investigao do entendimento humano. Mas, antes de prosseguir no que pensei sobre este assunto, aproveito esta oportunidade para pedir perdo ao meu leitor pelo uso freqente da palavra idia, que ele encontrar adiante no tratado. Julgo que, sendo este o termo mais indicado para significar qualquer coisa que consiste no objeto do entendi-mento quando o homem pensa, usei-o para expressar qualquer coisa que

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    pode ser entendida como fantasma, noo, espcie, ou tudo o que pode ser empregado pela mente pensante; e no pude evitar seu uso freqente. Suponho que me ser facilmente concedido que h tais idias nas mentes dos _homens. Cada um tem conscincia delas em si mesmo e as palavras e aoes dos homens o persuadiro de que elas existem nos outros. Portanto nossa primeira investigao consistir em verificar como elas na mente.

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  • LIVRO I

    NEM OS PRINCPIOS NEM AS IDIAS SO INATAS

  • CAPTULO I

    No H PRINCPIOS INATOS NA MENTE

    1. A maneira pela qual adquirimos qualquer conhecimento cons-titui suficiente prova de que no inato. Consiste numa opinio esta-belecida entre alguns homens que o entendimento comporta certos prin-cfpios inatos, certas noes primrias, koinal noiai, caracteres, os quais es-tariam estampados na mente do homem, cuja alma os recebera em seu ser primordial e os transportara consigo ao mundo. Seria suficiente para convencer os leitores sem preconceito da falsidade desta hiptese se pu-desse apenas mostrar (o que espero fazer nas outras partes deste tratado) como os homens, simplesmente pelo uso de suas faculdades naturais, po-dem adquirir todo conhecimento que possuem sem a ajuda de impresses inatas e podem alcanar a certeza sem nenhuma destas noes ou prin-cpios originais.

    2. O assentimento geral consiste no argumento mais importante. No h nada mais ordinariamente admitido do que a existncia de certos princpios, tanto especulativos como prticos (pois referem-se aos dois), com OS quais concordam universalmente todos os homens. vista disso, ar-gumentam que devem ser uniformes as impresses recebidas pelas almas dos homens em seus seres primordiais, que, transportadas por eles ao mundo, mostram-se to necessrias e reais como o so quaisquer de suas faculdades inatas.

    3. O acordo universal no prova o inatismo. O argumento de-rivado do acordo universal comporta o seguinte inconveniente: se for verdadeiro que existem certas verdades devido ao acordo entre todos os homens, isto deixar de ser uma prova de que so inatas, se houver outro meio qualquer para mostrar como os homens chegam a uma concordncia universal acerca das coisas merecedoras de sua anuncia. Suponho que isso pode ser feito.

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  • OS PENSADORES

    4. "O que , ", e " impossvel para uma mesma coisa ser e no ser" no so universalmente aceitas. Mas, o que pior, este argumento da anuncia universal, usado para provar princpios inatos, parece-me uma demonstrao de que tal coisa no existe, porque no h nada passvel de receber de todos os homens um assentimento universal. Comearei pelo argumento especulativo, recorrendo a um dos mais glorificados prin-cpios da demonstrao, ou seja, "qualquer coisa que , " e " impossvel para a mesma coisa ser e no ser", por julg-los, dentre todos, os que mais merecem o ttulo de inatos. Esto, ademais, a tal ponto com a repu-tao firmada de mximas universalmente aceitas que, indubitavelmente, seria considerado estranho que algum tentasse coloc-las em dvida. Ape-sar disso, tomo a liberdade para afirmar que estas proposies se encon-tram bem distantes de receber um assentimento universal, pois no so conhecidas por grande parte da humanidade.

    5. No se encontram naturalmente impressas na mente porque no so conhecidas pelas crianas, idiotas etc. Em primeiro lugar, evi-dente que no s todas as crianas, como os idiotas, no possuem delas a menor apreenso ou pensamento. Esta falha suficiente para destruir o assentimento universal que deve ser necessariamente concomitante com todas as verdades inatas, parecendo-me quase uma contradio afirmar que h verdades impressas na alma que no so percebidas ou entendidas, j que imprimir, se isto significa algo, implica apenas fazer com que certas verdades sejam percebidas. Supor algo impresso na mente sem que ela o perceba parece-me pouco inteligvel. Se, portanto, as crianas e os idiotas possuem almas, possuem mentes, dotadas destas impresses, devem ine-vitavelmente perceb-las, e necessariamente conhecer e assentir com estas verdades; se, ao contrrio, no o fazem, tem-se como evidente que essas impresses no existem. Se estas noes no esto impressas naturalmente, como podem ser inatas? E se so noes impressas, como podem ser des-conhecidas? Afirmar que uma noo est impressa na mente e, ao mesmo tempo, afirmar que a mente a ignora e jamais teve dela conhecimento, implica reduzir estas impresses a nada. No se pode afirmar que qualquer proposio est na mente sem ser jamais conhecida e que jamais se tem disso conscincia. Se isso possvel, segue-se por semelhante razo que todas as proposies verdadeiras, sem que a mente seja jamais capaz de lhes dar o assentimento, podem ser afirmadas como pertencentes mente onde se encontram impressas, visto que, se algo considerado abarcado pela mente, embora no seja ainda conhecido, deve ser apenas porque se capaz de conhec-lo; e, assim, a mente formada por todas as verdades que sempre conhecer. Deste modo, estas verdades devem estar impressas na mente, que nunca nem jamais as conhecer, pois um homem pode viver longamente, e, finalmente, morrer ignorando muitas verdades que

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    sua mente seria capaz de conhecer, o que o faria com certeza. Portanto, se a capacidade de conhecer consiste na impresso natural disputada, de-corre da opinio que cada uma das verdades que um homem jamais che-gar a conhecer ser inata. Este ponto importante no equivale a outra COiSa, apenas reala uma maneira inadequada de falar; embora o contrrio, nada afirma de diverso dos que negam os pnnClplOS matos. Penso que ningum jamais negou que a mente seria capaz de conhecer vrias verdades. Afirmo que a capacidade inata, mas o conhecimento adquirido. Mas, ento, qual a finalidade desta con-trovrsia acerca de certas mximas inatas? Se as verdades podem estar impressas no entendimento sem que as perceba, no diviso a existncia de nenhuma diferena entre quaisquer verdades que a mente capaz de conhecer, com respeito a sua origem: todas devem ser inatas ou todas adquiridas, em vo uma pessoa tentar distingui-las.

    6. Encontram resposta dizendo que os homens sabem quando che-gam ao uso da razo. Para evitar isto, responde-se ordinariamente que todos os homens sabem e com elas aquiescem quando chegam ao uso da razo, e que isto suficiente para prov-las inatas.

    7. Esta resposta deve significar uma de duas coisas: logo que os homens comeam a a razo, estas supostas inscries nativas passam a ser por eles conheCIdas e observadas, ou que o uso e exerccio da razo dos homens os auxilia na descoberta deste princpio, fazendo Com que estes, certamente, se tornem conhecidos para eles.

    8. Se a razo os descobre, no uma prova de que so inatos. Se querem dizer que mediante o uso da razo os homens podem descobrir estes princpios, sendo isto suficiente para prov-los inatos, esta maneira de argir implicar o seguinte: sejam quais forem as verdades reveladas pela razo, e com as quais somos levados por ela a concordar com firmeza, todas estas verdades encontram-se naturalmente impressas na mente, uma vez .que o assentimento universal (suposta sua marca caracterstica) no eqUIvale a mais do que isto: pelo uso da razo somos capazes de alcanar certo conhecimento e concordar com ele. Por este meio, no haver dife-rena entre as mximas dos matemticos e os teoremas deduzidos delas, devendo tudo ser igualmente suposto inato, sendo todas as descobertas realizadas pelo uso da razo, e as verdades que uma criatura racional deve, certamente, conhecer, se aplicar seus pensamentos desta maneira correta.

    9. falso que a razo os descobre. Como podem, todavia, estes pensar o uso da razo necessrio para descobrir princpios que sao supostos Inatos, quando a razo (se podemos acredit-lo) nada

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    mais do que a faculdade de deduzir verdades desconhecidas de prin-cpios ou proposies j conhecidos? Isto, certamente, nunca pode ser pen-sado inato, se necessitamos da razo para o descobrir, a menos que, como disse, consideremos inatas todas as verdades infalveis que a razo nos ensina. Podemos igualmente pensar o uso da razo necessrio para fazer nossos olhos descobrirem objetos visveis, como deveria haver necessidade da razo, ou de seu exerccio posterior, para fazer o entendimento ver o que est originalmente gravado nele, e no pode estar no entendiment.o antes de ter sido percebido. Deste modo, para fazer a razo descobnr estas verdades assim impressas, seria o mesmo que dizer que o uso da razo revela ao homem o que antes j conhecia; e se os homens tm estas verdades inatas impressas originalmente, e antes do uso da razo, per-manecendo delas ignorantes at atingirem o uso da razo, consiste em afirmar que os homens, ao mesmo tempo, as conhecem e no as conhecem.

    10. Dir-se-, talvez, que as demonstraes matemticas, e outras ver-dades que no so inatas, no so aceitas to logo propostas, distinguin-do-se, assim, dessas mximas e de outras verdades inatas. Terei oportu-nidade de abordar mais pormenorizadamente no futuro o assentimento acerca da primeira proposio. No momento, concederei apenas, e de modo breve, que estas mximas e as demonstraes matemticas diferem nisto: uma tem necessidade da razo, do uso de provas, para demonstr-la e receber nosso assentimento, a outra, porm, to logo entendida, , sem o menor raciocnio, compreendida e assentada.

    11. Quem se propuser a refletir sem muita ateno acerca das ope-raes do entendimento descobrir que o pronto assentimento da mente com referncia a algumas verdades no depende de uma inscrio natural ou do uso da razo, mas de uma faculdade da mente bem distinta das duas, como veremos adiante. A razo, portanto, no contribui para oca-sionar nosso assentimento a estas mximas, e afirmar que os "homens sabem e concordam com elas, quando chegam ao uso da razo", querendo com isso dar a entender que o uso da razo nos auxilia no conhecimento destas mximas, inteiramente falso; e, se isto fosse verdadeiro, provaria que elas no so inatas.

    12. A posse do uso da razo no corresponde ao instante em que chegamos a conhecer estas mximas. Se conhec-Ias e aceit-Ias "quando possumos o uso da razo" significa que este o instante em que as ob-servamos atravs da mente; e, logo que as crianas tenham posse do uso da razo, igualmente conhecem e concordam com estas mximas; tudo isto igualmente falso e frvolo. Primeiro, consiste numa falsidade porque evidente que estas mximas no se encontram na mente to cedo quanto

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    o uso da razo, e, portanto, a posse do uso da razo falsamente assinalada como o instante de sua descoberta. Quantos exemplos do uso da razo podemos observar nas crianas muito tempo antes de terem qualquer co-nhecimento desta mxima, "que impossvel para a mesma coisa ser e no ser"? E grande parte dos povos analfabetos e selvagens passa muitos anos, mesmo durante sua idade racional, sem jamais pensar nesta e se- proposies gerais. Concedo que os homens no chegam ao conheCImento destas verdades gerais e mais abstratas, que so tidas como inatas, antes de atingirem o uso da razo, e acrescento, nem ento tam- porque, mesmo aps terem atingido o uso da razo, IdeIas geraIS no formadas na mente, sobre as quais sao formadas estas maxImas geraIS, que so equivocadamente considera-das princpios inatos, mas so realmente descobertas feitas e verdades introduzidas e levadas pelo mesmo modo, e descobertas pelos passos, como outras proposies, que ningum jamais foi to extravagante para supo-Ias inatas.

    14. Se a posse do uso da razo fosse o instante de sua descoberta no as provaria Mas, em segundo lugar, se fosse verdade qu: o Instante exa:o em que sao conhecidas e aceitas correspondesse posse do uso da razao pelos homens, nem isto as provaria inatas. Esta maneira de to, como a suposio falsa. Com efeito, por qual tipo de se mostrara que qualquer noo est originalmente por natureza Impressa na mente em sua primeira constituio, porque 15S0 comea a ser observado e aceito quando uma faculdade da mente, que tem um campo bem diferente, comea a se exercitar?

    15. Os passos pelos quais a mente alcana vrias verdades. Os sentid?s tratam com idias particulares, preenchendo o gabi-nete amda e a mente se familiariza gradativamente com algumas delas, depositando-as na memria e designando-as por nomes. Mais tarde, a mente, prosseguindo em sua marcha, as vai abstraindo, apreendendo o uso dos nomes gerais. Por este meio, a mente vai se en-nquecendo Com idias e linguagem, materiais com que exercita sua facul- discursiva. E o uso da razo torna-se diariamente mais visvel, am- em virtude do emprego desses materiais. Embora a posse de ;!eIas o de palavras gerais e a razo geralmente cresam juntos,

    o veJo como IstO possa de algum modo prov-Ias inatas. Concordo que o conhecimento de algumas verdades aparece bem cedo na mente, mas modo tal que mostra que no so inatas. Pois, se observarmos, desco- que isto continua tambm com as idias no-inatas, mas adqui- sendo aquelas primeiras impressas por coisas externas, com as quais

    cnanas se deparam bem cedo, ocasionando as mais freqentes im--41-

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    Leandro Alves TeodoroLeandro Alves Teodoro 16 de abril de 2012 15:17 Os sentidos inicialmente tratam com ideias particulares, preenchendo o gabinete ainda vazio, e a mente se familiariza gradativamente com algumas delas, depositando-as na memria e designando-as por nomes. Mais tarde, a mente, prosseguindo em sua marcha, as vai abstraindo, apreendendo gradualmetne o uso dos nomes gerais.

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    presses em seus sentidos. Nas idias assim apreendidas, a mente descobre que algumas concordam e outras diferem, provavelmente to logo tenha uso da memria, to logo seja capaz de reter e receber idias distintas. Mas, quer isto seja ou no existente naquele instante, uma coisa certa: existe muito antes do uso de palavras, ou chega antes do que ordinaria-mente denominamos "o uso da razo". Pois uma criana sabe como certo, antes de poder falar, a diferena entre as idias de doce e amargo (isto , que o doce no amargo), como sabe depois (quando comea a falar) que a amargura e a doura no so a mesma coisa.

    17. O assentimento dado to logo as idias sejam propostas e en-tendidas no as prova inatas. Desta evasiva, portanto, do assentimento geral quando os homens chegam ao uso da razo, ausente como o , e no revelando nenhuma diferena entre as supostas verdades inatas e outras adquiridas e aprendidas, os homens tm tentado assegurar um assentimento universal s que denominam mximas, afirmando que so geralmente aceitas logo que propostas, e os termos por eles propostos so entendidos: abarcando todos os homens, at as crianas, to logo ouvem e entendem os termos, concordam com estas proposies, inferem que isto suficiente para prov-las inatas.

    18. Se tal assentimento o sinal de inatismo, segue-se que "um mais dois igual a trs, que doura no amargura ", e milhares seme-lhantes, devem ser inatas. Em resposta a isso, pergunto: o assentimento imediato dado a uma proposio, com base na primeira audio e enten-dimento dos termos, deve ser o sinal seguro de um princpio inato? Se isto no assim, tal assentimento geral ser em vo assinalado como uma prova deles: se for afirmado que este o sinal do inatismo, devem ento concordar que todas as proposies inatas so aquiescidas to logo ouvi-das, a partir das quais eles se descobriro plenamente armazenados com princpios inatos. Com base no mesmo princpio, a saber, o assentimento a partir da audio inicial e entendimento dos termos, os homens que teriam estas mximas supostas como inatas tm igualmente que admitir vrias proposies acerca dos nmeros como inatas. Mesmo a filosofia natural e todas as outras cincias compreendem proposies que esto certas de topar com o assentimento to logo sejam entendidas. Que "dois corpos no esto no mesmo lugar" consiste numa verdade to inconfun-dvel como esta mxima que " impossvel para uma mesma coisa ser e no ser", que "branco no preto", que "um quadrado no um crculo", que "a amarelido no doura". Mas, desde que nenhuma proposio pode ser inata, a menos que as idias acerca das quais ela se constitui sejam inatas, isso leva a supor como inatas todas as idias de cores, sons, gostos, figuras etc.; e no pode haver nada to contrrio razo e ex-

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    perincia. O assentimento universal e imediato baseado d -nd d na au lao e en-te os consiste, concordo, num sinal de algo evidente ?"r Sl mesmo; mas por si mesmo, no dependente de impresses de outra c015a, pertencente a vrias proposies. Ningum f 01 ate agora to extravagante a ponto de sup-las inatas.

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    CAPTULO II

    No H PRINCPIOS PRTICOS INATOS

    1. Nenhum princpio moral to claro e geralmente recebido como as mximas especulativas anteriormente mencionadas. Como ficou pro-vado, estas mximas especulativas, descritas por ns no captulo anterior, no tm real assentimento universal de todos os homens. Isto ainda muito mais patente com respeito aos princpios prticos, que no alcanam uma recepo universal. Penso que ser difcil ilustrar qualquer regra moral com a mesma pretenso de ter o assentimento geral e imediato da que diz "o que , " ou ter uma verdade to manifesta como esta: " impossvel para uma mesma coisa ser e no ser". Por mais que seja evidente que elas se distanciem posteriormente do ttulo de inatas, a dvida de que elas so im-presses nativas na mente muito mais forte em relao aos princpios morais do que aos outros. Nem isto coloca de modo algum sua verdade em questo. Elas so igualmente verdadeiras, embora no igualmente evidentes.

    2. A f e a justia no so compreendidas por todos os homens como princpios. Para averiguar se existe um desses princpios morais acerca dos quais todos os homens concordam, sou levado a apelar para algum que esteja moderadamente familiarizado com a histria da hu-manidade, que tenha olhado alm da fumaa de sua prpria chamin. Onde se encontra esta verdade prtica, recebida universalmente, sem d-vida ou questo, como devia ser se fosse inata? A justia e a conformidade ao contrato consistem em algo com que a maioria dos homens parece concordar. Constitui um princpio julgado estender-se at aos esconderijos dos ladres e s confederaes dos maiores viles; e os que se afastaram a tal ponto da prpria humanidade conservam entre si a f e as regras da justia. Concordo que os prprios proscritos agem, deste modo, entre si, mas sem que isto seja recebido como leis inatas da natureza. Praticam-nas como leis de convenincia dentro de suas prprias comunidades, sendo impossvel imaginar que a justia vista como um princpio prtico por

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  • OS PENSADORES r __ quem age honestamente com seus companheiros de assalto, ao mesmo tempo que rouba ou mata o primeiro homem honesto com o qual se encontra. a justia e a verdade os laos comuns da sociedade, mesmo os proscrdos e ladres que rompem com todo o resto do mundo devem manter o compro-misso e as regras da eqidade entre si; do contrrio, no poderiam se unidos. Podem, ento, dizer que quem vive da fraude e do roubo tem pnn-. rd .? cpios inatos de verdade e justia com os quaIS conco a e aquIesce.

    4. Como as regras morais necessitam de prova, elas no so inatas. Outra razo que me leva a duvidar de quaisquer princpios prticos inatos decorre do fato de pensar que nenhuma regra moral pode ser proposta sem que uma pessoa deva justamente indagar a sua razo: o seria ridculo e absurdo se ela fosse inata, ou sequer eVIdente por SI mesma, coisa que todo princpio inato deve necessariamente ser, sem precisar de qualquer prova para apurar sua verdade, nem de qualquer razo para obter sua aprovao. Seria julgado desprovIdo de bom senso quem perguntasse ou comeasse a dar a por que :' a mesma coisa ser e no ser". Ela traz COnsIgO sua propna luz e eVIdencIa, e no necessita de outra prova: quem entende os termos aquiesce com isto por seus prprios mritos; ao contrrio, nada capaz, de se impor sobre ele para faz-lo entender. devena regra da moralidade e fundamento de toda vIrtude socIal, que deve fazer como lhe foi feito", ser proposta a algum que nunca OUVIU isto antes, mas ainda tem capacidade entender seu significado, no deve ele sem nenhum absurdo perguntar a razo por qu?

    6. A virtude no geralmente aprovada porque inata, mas porque proveitosa. Daqui decorre naturalmente a grande variedade de opinies acerca das regras morais que so encontradas entre os homens, a diversa espcie de felicidade que eles anteciparam, ou a SI mesmoS. Isto no poderia ocorrer se os princpios prticos fossem matos e impressos diretamente em nossas mentes pela mo Deus. que a existncia de Deus se manifesta de vrias manelfas, e a obedlenCla que devemos a ele to congruente luz da razo que grande parte da humanidade obedece lei da natureza. Entretanto, penso que deve ser admitido que vrias regras morais devem dos homens apro-vao muito geral, sem conhecerem ou admItirem o funda-mento da moralidade, j que decorrem apenas da vontade e leI de Deus, que v os homens no escuro, abarca em sua mo o o castigo e suficiente poder para chamar prestao de contas o ofensor maIS orgulhoso.

    7. As aes dos homens nos convencem que a da no consiste em seu princpio interior. Se ns no qUISermos admItir

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    cortesmente muita sinceridade a respeito da profisso da maioria dos ho-mens, mas pensarmos que suas aes interpretem seus pensamentos, des-cobriremos que eles no tm tal venerao interior por estas regras, nem uma completa persuaso de sua certeza e obrigao.

    10. Os homens tm princpios prticos opostos. Quem investigar cuidadosamente a histria da humanidade, examinar por toda parte as vrias tribos de homens e com indiferena observar suas aes, ser capaz de convencer-se de que raramente h princpio de moralidade para ser designado, ou regra de virtude para ser considerada (excetuando-se apenas as que so absolutamente necessrias para manter a sociedade unida, que ordinariamente so tambm esquecidas entre sociedades distintas), que no seja, em alguma parte ou outra, menosprezada e condenada pela moda geral de todas as sociedades de homens, governadas por opinies prticas e regras de conduta bem contrrias umas s outras.

    11. Naes inteiras rejeitam vrias regras morais. Poder-se-, talvez, objetar que no consiste num argumento afirmar que a regra no co-nhecida porque violada. Concordaria com a validade desta objeo se os homens, embora transgressores, no repudiassem a lei, pelo temor da vergonha, da crtica ou do castigo, que imporiam algum respeito sobre eles. Mas impossvel imaginar que toda uma nao de homens devesse rejeitar e renunciar publicamente ao que cada um deles sabia com certeza e infalivelmente ser uma lei, pois deviam t-Ia naturalmente em suas mentes.

    12. Dizem que a violao de uma regra no argumento para que ela seja desconhecida. Concordo com isso, mas afirmo que a brecha ge-ralmente admitida em alguma parte dela prova que no inata. Por exem-plo, consideremos qualquer uma dessas regras, que, sendo a mais bvia deduo da razo humana, e compatvel com a tendncia natural da maio-ria dos homens, pouca gente tem tido a imprudncia de negar ou duvidar. Quando, portanto, dizem que esta uma regra inata, o que querem dizer? Que se trata de um princpio inato por fundamentar em todas as ocasies o motivo e direo das aes de todos os homens, ou que uma verdade que todos os homens tm impressa em suas mentes, e, portanto, conhecem e concordam com ela. Mas em nenhum desses sentidos inata.

    13. Do que ficou dito, penso que podemos concluir com segurana seja onde for que uma prtica geralmente e com admisso violada, nao pode ser suposta inata.

    14. Os que sustentam a existncia de princpios prticos inatos no nos dizem o que so. A diferena que existe entre os homens acerca

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    Leandro Alves TeodoroLeandro Alves Teodoro 16 de abril de 2012 15:24 Outra razo que leva Locke a duvidar de quaisquer princpios prticas inatos decorre do fato de pensar que nenhuma regra moral pode ser proposta sem que uma pessoa deva justamente indagar a sua razo.

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    de seus princpios prticos to evidente que julgo no ser necessrio dizer mais nada para demonstrar que ser impossvel divisar quaisquer regras morais inatas com sinais de assentimento geral; e suficiente para fazer algum suspeitar que a suposio de tais princpios inatos apenas uma opinio adotada vontade, desde que os que falam to confiantes acerca deles so to parcimoniosos para nos dizer o que eles so.

    20. Para a objeo de que "os princpios inatos podem ser corrom-pidos", respondo. No ser este o momento para abordar esta resposta consagrada, mas no muito material, que assegura que os princpios inatos de moralidade podem, mediante educao, costume e a opinio geral da-queles com quem conversamos, ser apagados e, finalmente, estropiados das mentes dos homens. Se esta afirmativa for verdadeira, afasta totalmente o argumento do consentimento universal pelo qual se tenta provar a opi-nio de princpios inatos; a menos que tais homens achem razovel que suas persuases privadas, ou a de seus adeptos, sejam tomadas por sen-timento universal, o que ocorre com freqncia quando os homens, su-pondo que eles mesmos so os nicos mestres da correta razo, assumem que os votos e opinies do resto dos homens no merecem ser contados. E, ento, seu argumento o seguinte: "Os princpios que toda a humani-dade admite como verdadeiros so inatos; os que os homens da justa razo admitem so os princpios aceitos por todos os homens; ns, e os que pensam como ns, somos homens de razo; portanto, concordamos que nossos princpios so inatos": eis um modo muito bonito de argir, e um atalho para a infalibilidade.

    21. Princpios contraditrios do mundo. Admito facilmente que h grande nmero de opinies que homens de diferentes pases, educao e temperamentos receberam e aceitaram como os primeiros e inquestionveis princpios. Vrios deles, porm, no s por seu absurdo como por sua recproca oposio, revelam a impossibilidade de que sejam verdadeiros. Embora inmeras dessas proposies estejam bem afastadas da razo, so a tal ponto sagradas para uma ou outra regio que mesmo os homens de bom entendimento em outros assuntos bem cedo as compartilham em suas vidas, e, seja o que for que lhes o mais querido, tm sua verdade submetida a dvidas, ou questes.

    22. Como os homens apreendem normalmente seus princpios. Isto, por mais estranho que parea, o que a experincia diria confirma; no parecer, talvez, to maravilhoso, se consideramos os meios e passos pelos quais ocasionado, e como realmente pode acontecer, pois doutrinas que tm sido derivadas de origens no melhores do que a superstio de uma enfermeira ou a autoridade de uma mulher velha podem, pela durao

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    do e consentimento dos confrades, atingir a dignidade de princpios em rehglao ou moral.

    24. Raramente h algum to instvel e superficial em seu entendi-ment? no tenha algumas proposies, que so para ele ?S pnnClplOs sobre os quaiS fundamenta seus raciocnios, e pelos quais Julga a verdade e falsidade, o certo e o errado. Alguns, por falta de percia e !azer, outros, P?r ,inclinao, e outros mais, tendo sido ensinados que havendo poucos que no so expostos por sua Ignorancla, pregUia, educao ou precipitao, a consider-los com confiana.

    27. Os. princpios devem ser examinados. Mediante este processo, deve ser faCilmente observado, na variedade de princpios opostos sus- e por todo tipo e graus de homens, quantos h que adqUire?, pnnClplOs que acreditam inatos. E quem negar que este deve o metodo segundo o qual a maioria dos homens procede com respeito a segurana,que e evidncia de seus princpios descobrir, e questao recorrer a outro meio qualquer para responder a opost,as, acreditadas com firmeza, afirmadas Com confiana, as grande numero de pessoas est disposto a qualquer momento a assinar com seu prprio sangue. ,. Do, ficou dito, penso no haver mais dvida que no h prin-

    aplOs com os quais todos os homens concordam e, portanto, ne-nhum e Inato.

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  • CAPTULO III

    OUTRAS CONSIDERAES ACERCA DOS PRINCPIOS INATOS, TANTO ESPECULATIVOS COMO PRTICOS

    1. Os princpios no so inatos, a menos que suas idias sejam inatas. Se os que nos querem persuadir que h princpios inatos no os tivessem compreendido em conjunto, mas considerado separadamente os elementos a partir dos quais estas proposies so formuladas, no esta-riam, talvez, to dispostos a acreditar que elas eram inatas. Visto que, se as idias das quais so formadas estas verdades no fossem inatas, seria impossvel que as proposies formadas delas pudessem ser inatas, ou nosso conhecimento delas ter nascido conosco. Se, pois, as idias no so inatas, houve um tempo em que a mente estava sem esses princpios, e, deste modo, no seriam inatos, mas derivados de alguma outra origem. Pois, se as prprias idias no o so, no pode haver conhecimento, assenti-mento, nem proposies mentais ou verbais a respeito delas.

    2. As idias, especialmente as pertencentes aos princpios, no nas-cem com as crianas. Se consideramos cuidadosamente as crianas recm-nascidas, teremos bem poucos motivos para crer que elas trazem consigo a este mundo muitas idias. Excetuando, talvez, algumas plidas idias de fome, sede e calor, e certas dores, que sentiram talvez no ventre, no h a menor manifestao de idias estabelecidas nelas, especialmente das idias que respondem aos termos que formam proposies universais que so con-sideradas princpios inatos. Pode-se perceber como, por graus, posteriormen-te, as idias chegam s suas mentes, e no adquirem mais, nem outras, do que as fornecidas pela experincia e a observao das coisas que apa-recem em seu caminho, o que deve ser suficiente para convencer-nos de que no h caracteres originais impressos na mente.

    8. A idia de Deus no inata. Se alguma idia pode ser imaginada inata, dentre todas as outras, a idia de Deus pode ser pensada assim,

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    por vrias razes, por julgar-se que seria difcil conceber a existncia princpios morais inatos sem uma idia inata da noao de um legislador impossvel ter uma noo da leI e obngaao para cumpri-la. Alm dos ateus observados entre os antigos,. e assinalados registros da histria, no se descobriram, em pocas m:Is recentes, naoes inteiras entre as quais no se encontra nenhuma noao de e da religio? Estes so exemplos de noes em que a Inculta fOi mantida por si mesma sem o auxlio da cultura e da dIsClphna, e o feioamento das artes e cincias. Mas h outras que, apesar de terem dIsto usufrudo, por falta da devida aplicao de seus pensamentos daquela maneira, carecem da idia e conhecimento de Deus.

    9. Mas, se os homens tivessem em toda parte uma noo de um Deus (at que a histria nos provasse o oposto), no resultaria disso que sua idia seria inata. Apesar de nenhuma nao ter sido descoberta sem um nome, com poucas e obscuras noes acerca dele, apesar disto no podem ser com-provantes de impresses naturais na mente, do que os. nomes do fogo, sol, calor e o nmero no provam que as IdeIas que manifestam so inatas, porque os nomes destas coisas, e as idias delas, so universalmente recebidos e conhecidos entre os homens. Visto que os homens, usando palavras derivadas do idioma geral de seus prp