Revista de Cultura AJUFE2
Diretoria da AJUFE · Biênio 2008/2010
Presidente
Fernando Cesar Baptista de Mattos
Vice-Presidente da 1ª Região · Miguel Ângelo de Alvarenga Lopes
Vice-Presidente da 2ªRegião · Andréa Cunha Esmeraldo
Vice-Presidente da 3ª Região · Nino Oliveira Toldo
Vice-Presidente da 4ª Região · Carla Evelise Justino Hendges
Vice-Presidente da 5ª Região · José Parente Pinheiro
Diretoria
Secretário-Geral · Jurandi Borges Pinheiro
1° Secretário · Paulo Cezar Neves Junior
Diretor Tesoureiro · Vilian Bollmann
Diretor da Revista · André Ricardo Cruz Fontes
Diretor de Assuntos Legislativos · Paulo Ricardo Arena Filho
Diretor de Relações Internacionais · Marcelo Navarro Ribeiro Dantas
Diretora Cultural · Raquel Domingues do Amaral Corniglion
Diretora Social · Isadora Segalla Afanasieff
Diretor de Relações Institucionais · Antônio Sávio de Oliveira Chaves
Diretora de Assuntos Jurídicos · Márcia Vogel Vidal de Oliveira
Coordenador de Comissões · Ivanir Cesar Ireno Junior
Diretor de Esportes · Marcus Lívio Gomes
Diretor de Assuntos de Interesse dos Aposentados · Edison Messias de Almeida
Diretor de Informática · Bruno Augusto Santos Oliveira
Diretora Administrativa · Élio Wanderley de Siqueira Filho
Diretor de Comunicações · Lidiane V. Bomfim Pinheiro de Meneses
Conselho Fiscal
Guy Vanderley Marcuzzo
Marcello Ennes Figueira
Bianca Georgia Arenhart Munhoz da Cunha
Diretores Suplentes
Manuel Maia de Vasconcelos Neto
Roberto Carlos de Oliveira
Revista de Cultura AJUFE · 7ª Edição
Coordenação geral · Fernando Cesar Baptista de MattosCoordenação de apoio · Mônica Sifuentes e Liliane RorizJornalista responsável · Renata CamargoProjeto gráfico e diagramação · Eye DesignIlustrações · Rafael Limaverde e Claudia El-moorApoio técnico · Andréia Levi
Colaboradores desta edição · Vera Brant
Foto da capa: Nicolau El-moor
AJUFE · Associação dos Juízes Federais do BrasilSHS Quadra 06, Bloco E, Conjunto A, Salas 1305 a 1311, Brasil XXI, Edíficio Business Park 1 Brasília/DFCEP 70322-915Tel. (61) 3321.8482 e fax (61) 3324.7361www.ajufe.org.br
Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista. É proibida a reprodução total ou parcial dos textos, fotos e ilustrações sem prévia autorização.
Revista não destinada à venda. Distribuição realizada pela AJUFE.
Palavra do PresidentePrezados colegas magistrados federais e demais leitores, mãos de quem essa
nossa publicação possa chegar, é com orgulho que apresento mais uma edição
da nossa Revista de Cultura AJUFE.
Para quem como eu, por força do ofício, conhece de perto a rotina dura de um
magistrado – horas a fio num gabinete lendo processos e, na maioria das vezes,
sendo obrigado a levar trabalho para casa, além da necessidade de uma continua
reciclagem do conhecimento por força de novas legislações –, não deixa de ser
surpreendente a capacidade produtiva dos que contribuem, por meio de suas obras,
com a nossa revista. Isso, é claro, sem falar da força criativa de nossos autores.
Dentro dos mais variados estilos, você vai se comover com a história de algum
personagem, rir da criatividade de outro, compreender melhor a necessidade da
defesa de princípios morais e, claro, aumentar seu conhecimento.
Tenho certeza que, durante a leitura, você vai encontrar entre versos e prosa, um
pouco de Dostoiévski, um pouco de Gogol, de Balzac. Vai sentir também um pouco
do nosso Machado, de Drummond e de Vinicius.
O leitor vai também – por meio de contos e poemas, vindos de várias partes do Brasil
e produzidos por quem no dia a dia de seu trabalho aprofunda o conhecimento
sobre o caráter do ser humano – conhecer um pouco do sentimento e do jeito
de ser dos brasileiros.
Portanto, caro leitor, não perca tempo e aceite o convite de quem teve, em primeira
mão, o prazer de se deliciar com a prosa e os versos aqui contidos. Escolha um local
confortável, se preferir coloque para tocar baixinho uma música, e aproveite.
Fernando Cesar Baptista de Mattos
expediente
Revista de Cultura AJUFE 5
sumário
Revista de Cultura AJUFE 5
6
13
20
32
36
42
58
64
Inspiração poéticaPoesias · Francisco de Barros e Silva Marcos César Romeira Moraes Marcos Mairton
Contador de HistóriasCrônicas · Arthur Pinheiro Chaves Francisco Roberto Machado Flávio da Silva Andrade
Quem Conta um ContoContos · Gilberto Mendes Sobrinho Vladimir Souza Carvalho Edilson Pereira Nobre Júnior
No Escurinho do CinemaEsta rua é nossa · José Carlos Garcia
Ponto de VistaEntrevista com Vladimir Passos de FreitasReportagem Renata Camargo
AcademiaArtigos · Adhemar Ferreira Maciel Adão Assunção Duarte Paulo Fernando Silveira
Saiba maisOs encantos da Amazônia
Outras PalavrasO motorista de caminhão na estradaColaboradora Vera Brant
Fazer uma revistaFazer uma revista semestral de cultura é sempre um desafio,
renovado a cada edição. Poucos sabem quantas pessoas se envolvem
na produção de um periódico. Há que procurar e separar textos,
temas, distribuí-los por páginas. E o patrocínio? Nem fale… Espera-
se, ao final, que o produto possa chegar às mãos do leitor, belo o
suficiente para incitá-lo a começar, imediatamente, não apenas a
ler, mas a devorar as suas páginas. Isso porque, desculpem-nos as
feias, mas como diria Vinícius, a beleza, nesta Revista de Cultura,
é fundamental!
À beleza estética devem-se acrescentar, ademais, textos e textos.
Densos na mensagem, mas fluidos na forma, leves na concepção,
especiais. A leveza aqui também não poderá ser insustentável. Antes,
é o que nos dá o material para criar formas de borboleta. E a cada
edição nos surpreendemos como, para além do negro das togas,
projetam-se personalidades flexíveis, encantadas, mágicas, como o
pincel dos grandes mestres. Aí está a riqueza do humano em cada
um de nós, onde pedaços de formas geométricas transformam-se
em um caleidoscópio de imagens repletas de luz e cor.
Mas há que se ter, sobretudo, mestres para transformar tudo
isso em pontos, linhas e páginas. Vai aqui então uma homenagem
– singela, mas genuína – às três maestrinas que tornam essa revista
possível e bela, a cada semestre: Claudia, Renata e Andréia. Mãos
de fada, almas de artista. A elas aquilo que somente por gestos e
palavras faladas até hoje pudemos dizer: Obrigada!
Mônica Sifuentes e Liliane Roriz
Revista de Cultura AJUFE6 Revista de Cultura AJUFE 7
natalpoesia
Revista de Cultura AJUFE6
Um véu solto ao vento
Leve voar sob o azul
Sem dor, sem calor, sem medo
Aonde vai não se sabe, não importa
Importa voar, solto.
Sou eu, que não sou
É quem é, não quem se quer
É ser ou é sonho?
Não dor, não calor, não medo
Só ser, solto sob o azul.
Ao vento, uma sombra
Um corpo sem corpo
Vai aonde o leva
E voar é o que importa
Um sonho.
Livre alma, corpo oco
Suspiros fartos de brisa fria
Veloz passar ao infinito espaço
Chegar nenhum e em todo está
Para onde, não importa.
Quando meu corpo sentir o frio
Estarei preparado para ele
Curvarei sobre mim e profundamente abraçar-me-ei.
Deitarei num chão escuro e vazio
E no escuro permanecerei, com os olhos fechados
Fechado estarei, escuro e vazio
Ausência de mim, fria alma.
O frio envolverá
O vazio libertará
O escuro confortará.
Sem tempo na eternidade
Esperarei o inverno
Nada sentirei, só o frio, o escuro e o vazio
Há um fim ou um começo.
Não mais inverno
E a luz atingirá
O vazio será inundado.
Abrirei os olhos
Revelado estarei
Não haverá escuridão
E serei livre para novamente esperá-lo, o meu inverno.
Idosa circunspeta sorridente,
Com seus portões largos enferrujados.
Carambolas ao chão, adocicando
O cheiro das folhas secas no mato
Verde. De cidreiras e capim-santo.
Uma pitangueira ao longe, distante
Como qualquer país. Dedos-de-moça
Vermelhos. Mangas e maracujás
Enrugados na face, porém doces
De pessoa. Nos tempos de quintais.
Latidos de pastor alemão, asas
Esvoaçando. Um grito: “Menino,
Já disse, deixe as galinhas em paz!”
Roupas nos alpendres. Paredes brancas.
Um cheiro da comida de não mais.
A mesa de madeira com fantasmas
Celebrando ao redor. E nas fotos,
Ainda vivas, seus olhos serenos.
No fim do corredor, uma cadeira:
Balanço, saudade, terço nas mãos.
Larga do Feitosa Sonho
Quando o inverno chegar
É o passo, fim de jornada, no meio da tarde da vida.
Fecha-se o ciclo, apuram-se os haveres, contabiliza-se
como se cada relação sobrevivida fosse custo e benefício
do grande livre diário – contado às gerações futuras.
Eis que a conta não fecha. E o balanço prossegue.
Adiam-se os minutos. Suspendem-se os passos.
A escritura, como a vida, não segue antes de finda.
Não se contenta com o próximo. Exige o exato.
E o tempo cobra o seu imposto. No lucro ou não.
Na pendência das contas. Com ou sem haveres.
Encerra nova moratória, dantes averbada na face.
Passou a hora de economizar gestos e palavras…
Ano Fiscal
Francisco de Barros e Silva é Juiz Federal da Seção Judiciária
de Pernambuco.
Marcos César Romeira Moraes é Juiz Federal Vara Federal Criminal Maringá (PR).
Revista de Cultura AJUFE8 Revista de Cultura AJUFE 9
editoriapoesia
Revista de Cultura AJUFE 98 Revista de Cultura AJUFE
Uma aventura na Amazônia
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No outro dia, de manhã,
Seguiram na embarcação,
Onde um guia explicava
Cada trecho da excursão,
Mas Daniel nem ligava,
Na floresta é que estava
Toda a sua atenção.
Via as árvores gigantes
Que ali nas margens ficavam,
Algumas araracangas
Que no céu azul voavam,
E até um casal de botos
Que, igual a dois garotos,
Na água escura brincavam.
Aquele foi um passeio
Pra ele nunca esquecer.
Até índios de verdade
Ele pôde conhecer,
Mas não imaginaria
O que ainda iria
Em seguida acontecer.
A divertida excursão
Já estava terminando,
E o barco já estava
Para o porto retornando
Quando apareceu na frente,
Em meio à água corrente,
Um grosso tronco boiando.
“Cuidado!”, gritou um homem,
“Vamos bater nesse pau!”
E o piloto do barco
Manobrou depressa a nau,
Mas não deu pra desviar,
Ele não pôde evitar
Aquele choque fatal.
Quando o barco se chocou
Com aquele tronco imenso,
Abriu no casco um buraco
Que deixou o barco penso.
Passageiros assustados
Gritavam desesperados,
O ambiente era tenso.
Mas, com muita habilidade,
O piloto controlou
Aquela situação
Que ali ele enfrentou.
Mesmo muito avariado
E com o porão inundado
O barco não afundou.
Só que, em meio à confusão,
Ninguém tinha percebido
Que o menino Daniel
Tinha desaparecido.
A mãe teve um calafrio
De imaginar que no rio
Ele tivesse caído.
Chamaram pelo seu nome,
Puseram-se a procurar,
Outros barcos que passaram
Vieram para ajudar,
Mas, por obra do destino,
Naquele dia, o menino,
Não puderam encontrar.
Apesar de muitas buscas
Que foram empreendidas
As chances de encontrá-lo
Estavam todas perdidas.
Daniel ia boiando
Depressa se afastando,
Com um colete salva-vidas.
A noite chegou depressa.
Já não havia esperança
De se encontrar com vida
Aquela pobre criança,
Mas, enquanto os pais sofriam,
Dois índios o socorriam
Com destreza e segurança.
Estavam os índios pescando
Rio abaixo, bem distante,
Quando viram Daniel
Passando, naquele instante,
Com frio, muito assustado,
Porém, com força, agarrado
Ao colete flutuante.
Então, remaram com força
E logo o acompanharam.
Para dentro da canoa
Bem depressa o puxaram.
Completando o salvamento,
Para o acampamento
Daniel eles levaram.
Um índio levou nos braços
Daniel, que adormeceu.
Até hoje ele não sabe
Direito o que aconteceu,
Mas, pelo que me falou,
Lembra que só acordou
Quando o dia amanheceu.
Nessa hora, já havia
Outros índios ao seu lado,
Que ficaram muito alegres
Quando o viram acordado,
E dentro de uma oca,
Ele comeu tapioca
E um pouco de peixe assado.
Dos índios, não eram todos
Que falavam português.
De um grupo de cinquenta,
Talvez só uns dois ou três.
Por isso, um, que falava,
Explicou que ali passava
Um barco uma vez por mês.
Enquanto o barco não vinha,
O jeito era esperar.
Muitos dias na aldeia
Teria que demorar.
Daniel, então chorou
Mas, em seguida aceitou
O que tinha que passar.
Daniel era um menino
Que tinha muita coragem.
Esperou sem reclamar
O dia de sua viagem,
E nunca mais esqueceu
Muita coisa que aprendeu
Naquele lugar selvagem.
Aprendeu a pegar peixe,
Por dentro do igarapé,
A pescar aruanã,
Pacu e tucunaré,
Quem lhe mostrava o caminho
Era o pequeno indiozinho
Que era filho do Pajé.
A criança de hoje em dia
Na escola cedo aprende
As coisas da natureza,
E por isso compreende
Que os animais da mata
A gente nunca maltrata,
Nem tampouco a gente prende.
Mesmo assim, ainda existem
Homens mal acostumados,
Que pegam os animais,
Na mata capturados,
E levam para a cidade
Pra viver sem liberdade,
Tristes e engaiolados.
Por causa desse costume,
Certa vez aconteceu
Uma história interessante
Com um menino que eu
Conheci quando criança,
E ainda tenho a lembrança
De como tudo ocorreu.
Seu nome era Daniel,
Tinha dez anos de idade,
Quando o seu tio, Pedro,
Chegou a nossa cidade
Vindo de uma viagem
E trazendo na bagagem
Uma grande novidade.
O tio falou pra ele:
“Este é o seu presente,
Que eu peguei numa floresta
Onde fui recentemente,
E pensei: – Esse bichinho,
Vou levar pro meu sobrinho,
Ele vai ficar contente!”
Era um macaco-aranha
Bem pequenino e peludo.
O pelo preto e macio
Parecia de veludo.
Daniel, assim que viu,
Ficou feliz e sorriu,
Pensou: “Como eu sou sortudo!”.
Então, guardou o macaco
Em uma jaula que havia
No quintal de sua casa,
E era ali que todo dia
Daniel alimentava,
Com muito jeito cuidava
Do bichinho que crescia.
Mas, passados alguns meses,
As férias, então, chegaram,
E Daniel e seus pais
Para longe viajaram.
Pediram que um vizinho
Cuidasse do macaquinho
E no avião embarcaram.
Eles foram a Manaus
Pra fazer uma visita
À tia de Daniel,
Chamada Maria Rita,
Que desde a sua mocidade
Morava nessa cidade
Moderna, grande e bonita.
Aproveitaram também
Pra conhecer os locais
Que são pontos de turismo
E foram nos principais:
O teatro e o mercado,
O porto movimentado
E os centros culturais.
E, para o dia seguinte,
Marcaram logo um passeio
De barco, no Rio Negro,
Que, aliás, estava cheio,
Com a sua água escura.
Era tão grande a largura
Que até dava receio.
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editoria editoria
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Aprendeu nomes de aves,
De peixes e animais.
Cada dia que passava
Aprendia um pouco mais.
Só lhe doía a saudade
De sua casa na cidade,
De estar junto de seus pais.
Às vezes, quando pensava
Na sua família ausente,
Ele imitava um guariba
Com seu grito estridente.
Vendo o que acontecia
O Pajé sempre dizia:
“Ele é índio como a gente!”
Um dia, o Pajé chamou
Daniel e disse assim:
“Tempo de menino branco
Nessa aldeia tá no fim.
O seu barco não demora.
Menino, não vá embora
Sem se despedir de mim”.
Entendendo que o barco
Brevemente chegaria,
Daniel, não se continha,
Tamanha a sua alegria.
Pulava de tão contente,
Pois agora, finalmente,
Para casa voltaria.
Nessa hora, um indiozinho,
Quase chegou a chorar
E perguntou ao Pajé:
“Ele não pode ficar?
Ele agora é meu amigo,
Gosta de brincar comigo,
Por que tem que nos deixar?”
O Pajé lhe respondeu:
“Curumim vai entender,
Quando estiver maior
E puder compreender,
Que pra todo ser liberto
Existe o lugar certo
Onde ele deve viver”.
“Daniel ficar aqui
Seria uma crueldade,
Como fazem com os bichos
Que levam para a cidade.
Por isso, ele deve ir,
Para lá se reunir
Com seu povo, de verdade”.
Então, no dia seguinte,
O barco por lá passou,
E com destino a Manaus
Daniel nele embarcou,
Com uns quatro dias mais,
Encontrou com os seus pais
Onde tudo começou.
Quando chegou a Manaus,
Houve uma festa no porto.
Diziam que Daniel
Fora dado como morto,
Mas agora regressava
Para a família que amava,
Gozando todo conforto.
Depois de ter retornado
Pra cidade onde nasceu,
Contou-me toda a aventura
Que na floresta viveu.
Como os índios lhe salvaram
E também lhe ensinaram
Muitas coisas que aprendeu.
Falou-me que, muitas vezes,
Na selva estava sozinho
E lembrava da família,
Seu amor e seu carinho.
E ficava imaginando:
“Eu acho que estou passando,
O mesmo que o macaquinho”.
Ele então rezava: – Deus,
Me ajude a sair desta.
Se voltar pra minha casa
Eu não vou nem querer festa.
Mas eu prometo fazer
De tudo pra devolver
Meu macaco pra floresta.
E, de fato, foi assim
Que terminou esse drama:
No dia em que Daniel
Foi dormir em sua cama,
Só aceitou se deitar
Depois de o pai entregar
O macaco pro Ibama.
Do Ibama, o macaquinho
Foi morar em um zoológico,
Onde teve tratamento
Médico e odontológico.
Lá foi readaptado
Pra depois ser libertado
Em um parque ecológico.
Daniel hoje é adulto
E fala sempre comigo.
Ainda gosta de aventura,
De brincar com o perigo.
Macacos não teve mais,
Mas dos índios e animais
Continua muito amigo.
E você que é criança
E leu com muita atenção,
Não precisa se perder
Para aprender a lição:
De criar cachorro e gato,
Enquanto os bichos do mato,
A gente deixa onde estão.
Cordel extraído do livro ilustrado de literatura infanto-juvenil Uma aven-tura na Amazônia, publicado pela Conhecimento Editora, em 2008.
Aruanã · espécie de peixe de água
doce que vive nos rios da Amazônia,
onde se encontram as espécies
preta e prateada. É chamado
de macaco d’água porque salta
até um metro pra fora da água
(quando adulto) para pegar
pequenos frutos ou insetos nos
galhos das árvores situadas nos
igapós (floresta inundada).
Botos · o boto-vermelho ou boto-
cor-de-rosa é um golfinho fluvial
presente nas bacias dos rios
Amazonas e Orinoco.
Curumim · menino em tupi-guarani.
Guariba · um dos maiores
primatas neotropicais, com com-
primento de 30 a 75 centímetros.
Sua pelagem varia de tons ruivos,
ruivo acastanhado, castanho e
castanho escuro. É famoso por
seu grito, que pode ser ouvido em
toda a mata, e pela presença de
pelos mais compridos nos lados
da face, formando uma espécie
de barba.
Ibama · Instituto Brasileiro de Meio
Ambiente e Recursos Renováveis,
órgão federal responsável pela
preservação do meio ambiente
no Brasil.
Igarapé · palavra que em tupi-
guarani quer dizer “pequeno
curso d’água”. São pequenos
braços dos rios amazônicos que
entram pela floresta.
Macaco-aranha · é o mais rápido
e o mais acrobático dos mamíferos
da floresta. A cauda funciona com
a força e a agilidade dos outros
membros, podendo ser considerada
uma quinta mão.
Oca · nome dado à habitação
indígena brasileira. O termo é
oriundo da família linguística
tupi-guarani.
Pacu · espécie de peixe que vive na
Amazônia. Alimenta-se de frutos,
caranguejos e detritos orgânicos
encontrados na água. Atinge até
15 kg de peso.
Pajé · pessoa de destaque em uma
tribo indígena. Em muitas tribos, é
considerado curandeiro, tido por
muitos como portador de poderes
ocultos ou orientador espiritual.
Readaptado · no texto, refere-se ao
animal que, após viver um tempo
em cativeiro, é treinado para viver
novamente na selva.
Rio Negro · rio brasileiro que banha
o estado do Amazonas. Une-se com
o Rio Solimões para formar o Rio
Amazonas, sendo um dos afluentes
deste. O Rio Negro, em volume de
água, é o segundo maior rio do
mundo, pois o maior mesmo é o
Rio Amazonas.
Tapioca · comida tipicamente bra-
sileira, de origem indígena, feita
com o amido extraído da mandi-
oca, também conhecida como
polvilho, goma ou beiju. Pare-
cida a uma panqueca ou crepe,
podendo ser servida recheada
com manteiga, queijo, coco ralado
e, as mais exóticas, com banana,
chocolate, carne-de-sol e outras. A
tapioca era o alimento básico dos
índios brasileiros.
Tucunaré · espécie de peixe da
Amazônia, que mede de 30 cen-
tímetros a um metro. Vive em lagos,
lagoas e rios, preferindo águas
lentas ou paradas. Tem hábitos
diurnos e alimenta-se de outros
peixes e pequenos crustáceos. Em
sua cauda, destaca-se um círculo,
semelhante a um olho.
Marcos Mairton é Juiz Federal Juiz Federal
da 8ª Vara da SJ/RN, em Mossoró.
GLOSSÁRIO
Revista de Cultura AJUFE12 Revista de Cultura AJUFE 13
poesia contador de histórias
Revista de Cultura AJUFE Revista de Cultura AJUFE 1312
Eram 6h15 da manhã de um sábado, quando recebi
a notícia: “Seu irmão está morto!”. Palavras que soaram
como uma agressão que, até então, era para mim inima-
ginável de caber em uma simples manifestação verbal,
revelando realidade que contraria o corpo e suas funções,
imobilizando uma estrutura humana que, até então, sorria,
andava e estava feliz. A morte tem esse poder: imobiliza
tanto quem vai, quanto quem fica.
Tinha, então, diante de mim, uma distância a ser
percorrida até São Luís do Maranhão, onde moravas, mas
meu coração não desejava ir a lugar algum. Queria se
fixar nos acontecimentos que antecederam aquela notícia.
Queria se prender nas certezas de outrora, no tempo em
que o sorriso largo ainda estampava o teu rosto, revelando
sonhos de viver e ser feliz.
O sorriso já não mais existe, ancorou-se nas paragens
distantes, onde a razão não prepondera e os conceitos
nada significam. Restou-me a lembrança de nossa última
conversa pela internet, via webcam. Uma alegria sincera
transcendia de tua imagem no monitor, desejando-me
uma boa noite de sexta-feira, dizendo estar com saudade,
mas que, no dia seguinte, estaríamos juntos, pedindo-me
que fosse buscá-lo no aeroporto.
Nada mais, naquele momento, era real. Tampouco a
morte; afinal, uma realidade tão abrupta e cruel não cai
de maneira definitiva sobre o coração dos entes queridos
que ficam. Ela se dá aos poucos, minuto a minuto, até que
se torna excessiva, redundante, sufocante. Abria, então, os
olhos e repetia: “Acabou! Acabou!”. Fechava os olhos e o
mesmo pensamento continuava ecoando.
Depois da viagem, que pareceu a mais longa de minha
vida, tive que testemunhar seu corpo imóvel. Para alguém
que sempre foi tão vivo, para ser feliz ou mesmo para
sofrer, aquela imobilidade era desconcertante. Naquele
momento, a notícia se concretizou diante dos meus olhos.
As marcas do acidente estavam ali, diante do meu silêncio
e de minha total incapacidade de reverter os fatos. Era
como se eu pudesse ouvir a tua voz a nos dizer: “Não pude
resistir, me perdoem por partir tão cedo”.
Os dias que se seguiram foram os piores, até então,
vividos por todos nós. Aos poucos, à medida que o
sofrimento permitia, íamos vasculhando as tuas coisas,
encontrando detalhes de uma história interrompida: seu
amor pelo magistério, seu sonho de constituir família, sua
apreensão com o futuro. Tudo isso estava agora sob o
toque do encerramento, da finalização, a denotar que o
doloroso epílogo de tua existência havia chegado.
Algum tempo já se passou, mas parece que foi ontem.
Depois que você se foi, algumas coisas mudaram por aqui.
Nossa sobrinha já está uma moça. Dá orgulho de ver.
Outras coisas, porém, continuam do mesmo jeito. Nossa
mãe, apesar do sofrimento, continua sendo o nosso porto
seguro, a fortaleza de todos.
Eu estou por aqui. Às vezes, quando a saudade aperta,
repito o mesmo pensamento que tive no dia em que
partiste: “Leva o meu coração, que eu fico com o seu, ‘mano’.
Eternamente, até o dia em que vamos nos reencontrar”.
Fica com Deus, meu irmão! Dê um beijo Nele por mim.
Carta a um irmão que partiuPor Arthur Pinheiro Chaves
Arthur Pinheiro Chaves é Juiz Federal Substituto da 1ª Vara da Seção Judiciária do Pará.
E disse o índio ao presidente:
“We are part of the earth and it is part of us.
The perfumed flowers are our sisters; the deer, the horse,
the great eagle, these are our brothers.
The rocky crests, the juices in the meadows, the body heat
of the pony, and man - all belong to the same family.”
Do jardim
Das tuas florestas
Vêm sorrir pra mim
Flores coloridas, animais, enfim,
Tudo que a vida faz nascer em ti.
We must live with nature in harmony
And with fauna and flora like a family.
Voar,
cruzar teu céu e sobrevoar teu mar,
De leve te tocar,
e então mergulhar.
Correr
pelos teus campos à luz do alvorecer.
Voar,
cruzar teu céu e sobrevoar teu mar,
De leve te tocar,
e então mergulhar.
Correr
pelos teus campos à luz do alvorecer.
Quero te conhecer
E sentir o prazer
De viver,
Ó, Mãe Terra,
A vida inteira assim.
Pois bem sei
Que sou parte de ti
E tu és parte de mim.
To fly
over the sea and across the blue sky,
Lightly touching you,
Then through you disappear.
To run
across the fields at the bright of the rising sun.
I wanna figure you out
And feel the joy
Of living,
Oh, Mother Earth,
A lifetime so free
Cause I know
That I complete you
And you complete me.
Ó, Mãe Terra! Oh, Mother Earth!
Marcos Mairton é Juiz Federal Juiz Federal da 8ª Vara da SJ/RN, em Mossoró.
* Texto incidental: Carta do Cacique Seattle ao Presidente dos
Estados Unidos (1855). Poema escrito em parceria com Zico.
15Revista de Cultura AJUFERevista de Cultura AJUFE14
contador de histórias
dizia: “A realidade é que sem ela não há paz,
não há beleza, é só tristeza e a melancolia que
não sai de mim, não sai de mim, não sai!”. E
logo eu pedia: “Vai, minha tristeza, e diz a
ela que sem ela não pode ser. Diz-lhe, numa
prece, que ela regresse, porque eu não posso
mais sofrer… chega de saudade”. E também
mandava recadinhos: “Volta, querida, os seus
olhos têm que ser só dos meus olhos, os
meus braços precisam dos teus, teus abraços
precisam dos meus, estou tão sozinho, não
me deixes ficar triste; tem dó, pois quem viveu
junto não pode nunca viver só!”. E insistia:
“Tomara que você volte depressa, que você não
se despeça nunca mais do meu carinho, afinal,
tu me chegaste sem me dizer que vinhas e
foste em minh’alma como um amanhecer!”.
E implorava: “Guarda-se para mim, pois tua
ausência é um sofrimento!”.
O desfecho é de todos sabido: apesar dos
tantos apelos, nenhuma retornou aos meus
braços nem fez de seus braços o meu ninho.
Aliás, pelo menos uma delas se foi embora
de repente, não mais que de repente, antes
que eu, como de costume, saísse à francesa
em busca de uma nova paixão. (Do episódio
de minha fujona amada, o Badinho é teste-
munha). E o que é pior, como o perdão tam-
bém cansa de perdoar, ela se foi sem sequer
dizer adeus, mesmo que eu lhe rogasse: “Ah,
meu amor não vais embora, pois sem você
eu não sou ninguém, porque sei que vou te
amar, por toda minha vida eu sei que vou te
amar, desesperadamente, eu sei que vou te
amar”. Tudo debalde, restou-me exclamar: “Ah,
insensatez, que você fez, fez chorar de dor o
seu amor, um amor tão delicado”. Vendo tudo
desfeito, tudo perdido, o amor dilacerado, o
pranto ante a agonia do fato consumado, ainda
tentei uma ameaçazinha: “Tudo bem, agora vá
viver sua vida como você quer, porém não se
surpreenda se uma outra mulher nascer de
mim, como do deserto uma flor!”. Mas ela se
foi. E eu fiquei pensando. É, existe sempre uma
mulher para se ficar pensando! À noite, em
conversa com amiguinhas confidentes, uma
me recomendou uma macumbazinha. Mas
logo outra advertiu: “Coitado do homem que
vai atrás de mandinga de amor!”. Enquanto
uma dizia: “Vai, vai, vai”. Logo a outra insistia:
“Se é canto de Ossanha, não vá, pois muito vai
se arrepender”. Resoluto, decidi: eu só vou se
for pra ver uma estrela aparecer na manhã de
um novo amor!
Durante minha vida terrena, por céus e
mares, eu andei na esperança de saber o que
é o amor. Ninguém sabia me dizer, quando
um velhinho com uma flor assim falou: “O
amor é o carinho, é o espinho que não se vê
em cada flor”. De passagem pelo candomblé
baiano, sob os auspícios de meu orixá, ali me
foi ensinado que o amor só é bom se doer,
pois ninguém tem nada de bom sem sofrer.
Olha, fale quem quiser falar, meu bem, mas
a gente nasce, a gente cresce, a gente quer
amar, mesmo sabendo que são demais os
perigos dessa vida para quem tem paixão.
Descansasse o Senhor no 6º dia da Criação,
simplesmente não existiríamos e, portanto,
não sofreríamos males de amor. Mas como
Eu, o capitão-do-mato, Vinicius de Moraes, poeta e
diplomata, o branco mais preto do Brasil na linha direta
de Xangô, intitulado, post-mortem, de “o poeta da paixão”,
quero aproveitar, porque agora apareceu um portador,
para mandar um recadinho aos meus caros amigos,
especialmente, aos parceirinhos Chico e Toquinho,
entregando-lhes a missão de divulgar esta mensagem
além da vida. Aqui, direto dos estúdios do Pai Celestial —
num petit comité ao lado do meu querido Tonzinho, de São
Pixinguinha e do meu bom Maria, com eles entornando
uma cachacinha de rolha, porque aqui no céu não chega
cachorro engarrafado —, quero externar algumas reflexões
sobre minha passagem terrena, principalmente neste Rio
de amor que se perdeu. E de logo revelo duas coisinhas
que nunca me abandonaram o espírito, especialmente
porque juntas sempre representaram para mim algo uno e
indivisível: a mulher e a paixão. Aliás, quero de logo deixar
bem claro que nada há de novo sobre o assunto, senão
o meu desejo, agora celestial, de repisar o que todos já
sabem: que a vida é boa para ser vivida, como eu sempre
quis vivê-la, intensa e apaixonadamente, em cada vão
momento, tanto que em seu louvor tratei de espalhar meu
canto. E agora, cá do céu, posso dizer em alto e bom som,
o que eu já dizia antes: Cuidado, companheiro, a vida é pra
valer. E não se engane não, tem uma só, pois duas mesmo
que é bom, ninguém vai me dizer que tem, porque agora
sou testemunha ocular do fato, tornando-se dispensável
aquela prova que eu tanto em vida propugnava: certidão
passada em cartório do céu, assinada embaixo, Deus — e
com firma reconhecida. Acreditem em mim!
A propósito de acreditar, lembro que, embora o general
Costa e Silva não acreditasse, a ponto de exigir então minha
cabeça na “diplomacia”, digo-lhes que minha vida foi uma
luta para que ninguém tivesse mais que lutar. Olha que
eu já havia dito isso em antigo poema dedicado a Pedro,
meu filho, quando ele ainda era um menininho. Mas acho
que meus detratores só entenderam o que então escrevi
muito depois de meu previsível passamento.
Luta à parte, durante minha única vida terrena, tive dois
grandes amores: a mulher e a poesia. A poesia foi para mim
uma mulher cruel em cujos braços me abandonei sem
remissão, sem sequer pedir perdão a todas as mulheres
que por ela abandonei. E amei a ti, mulher amada, cioso
de que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Tu, mulher amada, és tão profundamente que irrelevas
as coisas mesmo do pensamento. E eu te amei e amei,
ai de mim, muito mais do que devia amar. Era como se
o amor doesse em paz. Ah, eu amei, amei demais. E eu
chorei, perdi a paz. O que eu sofri por causa de amor
ninguém sofreu. Ainda assim, te peço perdão por te amar
de repente. E se te amei assim muito e amiúde, e assim
o fiz até mais do que pude, foi porque sempre cri na idéia
de que a vida é a arte do encontro, embora haja tanto
desencontro pela vida. E é por acreditar cegamente na
magia desse encontro que confesso: semeei o amor e
a paixão ao lado de muitas mulheres e, com cada uma
delas, eu conheci o que é felicidade. Mesmo acreditando
que as mulheres são muito estranhas, muito estranhas, e
que vivem perdidas num mundo lírico e confuso, cheio
de canções, aventura e magia, eu quis viver a vida sempre
assim, com uma mulher perto de mim, até o apagar da
velha chama. E sempre, em cada uma, encontrei a razão
de viver e de amar em paz e não sofrer mais. Mas, como
o amor, o sorriso e a flor se transformam depressa demais,
pude perceber nos olhos de cada uma em particular que
o amor é a coisa mais triste quando se desfaz.
Caros amigos, sempre que senti arrefecer a chama da
paixão, tornei-me fiel apenas à minha poesia e fui em busca
de outros amores. Mas confesso: Nessa busca tive algumas
recaídas. E quando a saudade batia-me à porta, eu logo
A paixão de ViniciusPor Francisco Roberto Machado
Revista de Cultura AJUFE16
contador de histórias contador de histórias
17Revista de Cultura AJUFE16 Revista de Cultura AJUFE
Não faz muito tempo, recebi uma carta de meu velho
tio que mora no estado de São Paulo. Entre as felicitações
e manifestações de saudade que nos dirigiu, disse que
sempre admirou Rui Barbosa – a seu ver um dos maiores
expoentes do Direito brasileiro –, mas que atualmente não
acreditava mais no Poder Judiciário, em razão de sua crítica
lentidão e de sua incapacidade de combater efetivamente
a corrupção e fazer diminuir a impunidade no país.
Em resposta, sem querer lhe tirar totalmente a razão,
expus meu ponto de vista sobre o assunto:
“Prezado tio,
Foi com felicidade e satisfação que recebi sua carta.
Pude aprender um pouco mais graças aos seus conhe-
cimentos e cultura hauridos ao longo dos anos.
Fico alegre em saber de seu interesse pelo mundo
jurídico, especialmente pelo jurista, jornalista, político e
orador Rui Barbosa. Realmente, ele foi cognominado “Águia
de Haia” por sua brilhante atuação como representante do
Brasil na 2ª Conferência de Paz, realizada em Haia, na
Holanda, em 1907. Ali ele se revelou um grande defensor
das idéias liberais, tendo realizado discursos históricos, até
hoje lembrados, principalmente no meio jurídico.
Para ilustrar a cultura do saudoso baiano Rui Barbosa,
conta-se1 que, certa feita, ao chegar em casa, ouviu um
barulho estranho vindo de seu quintal. Chegando lá,
constatou haver um ladrão tentando levar seus patos
de criação. Aproximou-se vagarosamente do indivíduo
e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com seus
amados patos, disse-lhe:
Resposta à carta de um velho tioPor Flávio da Silva Andrade
1 Disponível em www.casaruibarbosa.gov.br
Deus criou o mundo e fez o homem (quase)
à sua semelhança, e se, por outro lado, paixão
é sofrimento, tinha eu razão quando dizia:
“Mesmo que tenha que sofrer, eu abro o jogo
e o coração e deixo o meu barco correr”. E
dizia mais: “Pelo amor de uma mulher, eu viro
a cara pro perigo e seja lá o que Deus quiser”.
Mas pergunto agora: “Pra que chorar, pra
que sofrer, se é sempre um novo amor cada
novo amanhecer?”. Em verdade vos digo: “É
preciso amar sem mentir, é preciso manter a
esperança divina de amar em paz, é preciso
inventar de novo o amor”.
Amigos meus, está chegando a hora.
Como vocês já sabem, eu morri. Logo eu que
vivia perguntando: “Quem pagará o enterro
e as flores se eu me morrer de amores?”.
Pois estou morto. Literalmente. Morri, sim,
de amores. Ah, como é lindo se morrer de
amor! Morto, ainda choro de saudades de
minha pátria. Morto, espero estar bem vivinho
em vossas mentes e corações. Bom… mas
eu vou partir, eu vou ter que dizer adeus,
mais uma vez. Lembram que eu, ainda na
vida terrena, pedi a benção, ao cabo de uma
canção, aos meus amigos então já no céu,
grandes sambistas desse meu Brasil branco,
preto e mulato? Pois agora, aqui do além, sou
eu que lhes mando minha benção, a todos
que ainda aí padecem. E não esqueçam:
“Para viver um grande amor é muito, muito
importante viver sempre junto e até ser,
se possível, um só defunto, pois o amor é
sempre um sentimento que a separação
não deixa em paz”. Também não esqueçam:
“Mesmo sabendo que a paixão traz sempre
muita dor, a mulher foi feita pro amor e pro
perdão (caiam nessa, não!); e ai de quem não
rasga o coração, esse não vai ter perdão”. Para
finalizar, vou repetir: “Ninguém vive mais do
que uma vez”. Portanto, acreditem em mim e
se cuidem, pois o gim é um veneno. Cuidado,
parceirinhos, não bebam demais. E procurem
o colo de uma mulher, uma companheira,
uma brasileira, para se amar, porque a coisa
mais divina que há no mundo é viver cada
segundo como se fosse nunca mais. E sou
eu, o poeta, quem diz: Ser feliz é viver morto
de paixão.
Mensagem psicografada
Nota explicativa: A alusão à psicografia é verdadeira
licença poética. Este texto é resultado, sim, de pura
intelecção, encerrando, em verdade, uma construção,
tijolo a tijolo, num desenho lógico, da poética de
Vinicius de Moraes, a partir das seguintes composições
e poemas do poetinha: Samba da benção; Caros
amigos; Tarde de Itapoã; Carta ao Tom 74; Soneto de
fidelidade; Deixa; Mais um adeus; Pedro, meu filho;
Dia da Criação; Conjugação da ausente; Amor em
paz; É preciso dizer adeus; Berimbau; Ternura; Soneto
do amor total; Testamento; Corcovado; Meditação;
Chega de saudade; Minha namorada; Samba em
prelúdio; Tem dó; Tomara; Soneto de separação;
O que tinha de ser; Regra três; Apelo; Samba em
prelúdio; Eu sei que vou te amar; Insensatez; A rosa
desfolhada; E se esqueça de mim; A carta que não
foi mandada; Canto de Ossanha; O velho e a flor;
Deixa; Formosa; Soneto do corifeu; Turbilhão; Pra
que chorar; Se todos fossem iguais a você; Se ela
quisesse; Amigos meus; A hora íntima; Pátria minha;
Para viver um grande amor; As razões do coração;
Como dizia o poeta; No colo da serra; Tomara e As
cores de abril.
Francisco Roberto Machado é Juiz Federal da 6ª Vara do Ceará.
Revista de Cultura AJUFE18 Revista de Cultura AJUFE 19
editoria
se ambiente propício para a impunidade. Nota-se que
não se pode confundir polícia com justiça. O Poder
Judiciário só pode julgar aquilo que chega às suas mãos.
Mas acontece que, como dito, as polícias civil e militar,
em muitos estados, estão desestruturadas e, às vezes,
lamentavelmente, sofrem ingerência política. A Polícia
Federal, com o apoio recebido do governo federal, vem
fazendo um bom trabalho, avançando em investigações e
cumprindo uma série de mandados de prisão e de busca
e apreensão, expedidos pela Justiça Federal em todo o
país. Isso já é um alento. A única crítica é no sentido de ser
desnecessário o espetáculo midiático quanto às prisões e
ao cumprimento dos mandados de busca. Não se pode
esquecer que o preso perde a liberdade, mas mantém
o direito à imagem, à intimidade e à vida privada. Como
consequência disso, o Supremo Tribunal Federal editou a
Súmula Vinculante nº. 11, segundo a qual “só é lícito o uso
de algemas em caso de resistência e de fundado receio
de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia,
por parte do preso ou de terceiros”.
Por outro lado, penso que devemos lutar para mudar
o quadro de corrupção e impunidade que torna o Brasil
conhecido no mundo. O inteligente Jô Soares, tratando do
assunto, lembrou que “a corrupção não é uma invenção
brasileira, mas a impunidade é uma coisa nossa”.
De fato, essa é uma realidade que precisa ser
transformada. As instituições competentes devem, a
bem da sociedade, tentar converter em condenações as
denúncias fundadas em provas, respeitadas as garantias
constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Aju-
daria muito se os Tribunais Superiores, integrados por
ministros nomeados, passassem, sem perder o equilíbrio
e a prudência, a ter uma visão mais enérgica quando da
aplicação da lei, como o é nas instâncias de 1º grau e nos
Estados Unidos da América, por exemplo. No Brasil, os
ministros ficam distantes dos acontecimentos, tornando-
se, às vezes, dissociados da realidade de uma sociedade
que se vê acuada e que clama por justiça. Em 2008, a
então presidente do Supremo, ministra Ellen Gracie, e o
ministro Gilmar Mendes foram assaltados no Rio de Janeiro!
Sentiram na pele o que a população está sofrendo…
O povo não mais se conforma calado com atos cri-
minosos e de corrupção. Não se pode mais admitir uma
sociedade marcada pela violência aguda, por políticos e
funcionários corruptos, pelas desigualdades sociais e pela
pobreza. Para que as gerações futuras possam viver em
um país digno e honrado, impõe-se que, sem prejuízo do
investimento em educação e saúde, seja a lei aplicada
com mais rigor, de maneira a desencorajar o avanço da
criminalidade, especialmente no que tange aos delitos
contra a administração pública, permitindo-se, quem sabe,
em um futuro próximo, governos mais honestos e justos,
de modo que possamos ter uma sociedade mais igualitária
e, quiçá, mais feliz.
Por fim, voltando ao jurista de sua predileção, Rui
Barbosa, um dos maiores combatentes da corrupção, vale
lembrar trecho de importante discurso em que disse: “De
tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a
desonra, de tanto agigantarem-se os poderes nas mãos
dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude e
rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”.3
Ainda que tenha razão o renomado jurisconsulto e
orador, não podemos esmorecer, de modo que, com
sacrifícios e esperanças, devemos continuar travando
batalhas e fazendo esforços em nome do ideal de Justiça,
aplicando a lei como manda a Constituição da República
e da maneira que espera a sociedade.
Espero que tenha assistido à minissérie Mad Maria e
também, por último, ao seriado Amazônia, os quais bem
retrataram a história dos estados de Rondônia e do Acre,
respectivamente. Por tais obras, se pode ter uma noção de
como foi a saga do povo que aqui se instalou no final do
século XIX e início do século XX. É verdade que a história
acreana, com a revolução, é bem mais atraente do que
a da terra do Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon,
o que, entretanto, não diminui a grandeza do estado da
Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.
Fraternal abraço, acompanhado de votos de con-sideração e apreço”.
– Oh! Bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor
intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e
sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação,
levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes
isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares
da minha elevada prosopopéia de cidadão, dar-te-ei com
minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga e
o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima
potência que o vulgo denomina nada.
E o ladrão confuso, coça a cabeça e diz:
– Doutor, eu levo ou deixo os patos?
Quanto à morosidade da Justiça brasileira, você está
coberto de razão. É fato que vem surgindo um alento
com a criação dos Juizados Especiais Federais e também
com os Juizados Virtuais. Mas o problema é que a Consti-
tuição Federal de 1988 abriu as portas do Poder Judiciário,
facilitando o acesso à Justiça. E, até aqui, não se conse-
guiu encontrar, satisfatoriamente, a porta de saída! Apesar
de se ter incluído no texto constitucional o princípio da
razoável duração do processo2, a maioria dos processos
ainda tramita por muitos anos até a solução definitiva. Se
não obtida uma liminar, a parte cujo direito foi violado
pode acabar prejudicada em função do prolongado trâmi-
te do processo.
Nossa legislação processual (civil e penal) revela-se
arcaica. Nosso Código Penal, como você bem lembrou,
é da década de 1940. Também o Código de Processo
Penal é de 1942. Nosso Código Civil era de 1916 e só
recentemente foi substituído. Já o Código de Processo
Civil é de 1973, sendo que está ultrapassado para cuidar
dos modernos conflitos de interesse que chegam, em
números alarmantes, às Cortes de Justiça.
Além desse aspecto de caráter legislativo, há a
possibilidade de uma série interminável de recursos.
Muitas causas vão até o Supremo Tribunal Federal – apesar
de que o Pretório Excelso só deveria cuidar de casos de
repercussão geral e de sua competência originária (somente
questões relevantes relativas à Constituição Federal). Só
agora, recentemente, é que foram aprovadas as leis que
regulamentaram as chamadas súmulas vinculantes e
também o regramento para os recursos repetidos, o que
deverá encurtar o tempo de tramitação dos processos.
Vale realçar também que, mesmo de modo vagaroso
(culpa do Poder Legislativo Federal), estão sendo refor-
mados os citados códigos – medida que deverá tornar mais
célere o andamento dos processos, porque finalmente
foi editada a Lei nº 11.419/2006, que cuida do chamado
processo eletrônico. Isso já é realidade na Justiça Federal
e em vários Tribunais Estaduais. Na Vara Federal em que
trabalhei até o ano passado, por exemplo, mais de 96%
dos processos são digitais (Justiça sem papel). Acontece
que essa nova sistemática só se tornará mais concreta e
ampla no país, se houver um maciço investimento estatal
em tecnologia da informação junto aos tribunais. Também
há a necessidade de se reforçar o repasse orçamentário
ao Poder Judiciário, permitindo-se a contratação de mais
servidores, a instalação de novas varas e a realização de
treinamentos e cursos de aperfeiçoamento. Nesse ponto,
há de se contar com a sensibilidade e o bom senso do
Poder Executivo e também do Parlamento.
No campo penal, a situação se mostra mais crítica.
O crime organizado já está na Era Cibernética e atuando
em várias frentes, avançando cada vez mais, ultrapas-
sando todos os limites. O Congresso Nacional, por sua
vez, só sinaliza para um aperfeiçoamento das leis ou
recrudescimento normativo graças a pressões da impren-
sa e da população indefesa e age somente à medida que
se tem notícia de um grave crime, como aquele de que
foi vítima o pobre menino carioca João Hélio. Aguarde-
mos, pois, o próximo pacote legislativo, sabendo que há
o risco de inocuidade, já que a questão se revela mais
séria e tem contornos sociais, passando, ademais, pela
necessidade premente de melhor aparelhamento das
polícias e fiscalização efetiva das fronteiras pátrias.
No atual contexto, a verdade é que, no aspecto
criminal e no que diz respeito ao combate à improbidade
administrativa (corrupção na administração pública) e
às infrações eleitorais, não tem havido efetividade nas
investigações e celeridade nos julgamentos, criando-
Flávio da Silva Andrade é Juiz Federal Substituto da Seção Judiciária de Rondônia.2 O inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição da República de 1988, acrescentado pela Emenda Constitucional nº. 45/2004, dispõe: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. 3 Senado Federal, RJ, Obras Completas, Rui Barbosa. v. 41, t. 3, 1914, p. 86.
Revista de Cultura AJUFE20 Revista de Cultura AJUFE 21
editoriaquem conta um conto
ao velho agradava escrever sobre
seus pequenos amigos de penas. A
história estava assim escrita:
“Meu amigo joão-de-barro
Ontem, meu amigo joão-de-barro
apareceu cabisbaixo. Vendo-o triste,
perguntei-lhe se algo o afligia. Então
me fez este pequeno discurso, num
tom que eu entendi ser de desabafo:
‘Como vês, sou um pássaro velho.
Há algum tempo, tenho observado
vós, os homens, e te confesso que,
mesmo após muita reflexão, ainda não
vos compreendi. Como sabes, sou um
pássaro-arquiteto. Construo minhas
casas, uma em cada temporada, nas
árvores da floresta, empregando o
barro que recolho do leito dos rios.
Antigamente, era-me mais fácil cons-
truir, pois havia muitas árvores e rios.
Atualmente, contudo, minha vida
está difícil, pois há cada vez menos
árvores e muitos rios secaram, o que
aumenta a cada dia as distâncias que
tenho que percorrer com a porção de
barro no bico. Procuro acostumar-me
a essas dificuldades, mas, às vezes,
sou tomado por um certo desânimo.
Meus amigos enfrentam o mesmo
problema. E, entre os animais da
natureza, sois apenas vós, os homens,
que nos aborrecem. Ontem mesmo,
um de vós derrubou a árvore onde
construí minha casa, de modo que
tive que dormir ao relento. Aproveitei
para refletir um pouco e concluí
que nós, os pássaros, somos muito
diferentes de vós, os homens. Talvez,
por isso, nossa convivência não esteja
boa, se é que algum dia esteve. Nós
somos mais alegres, pois cantamos
todas as manhãs e, também, durante
a maior parte do dia, de modo a
enaltecer as maravilhas da natureza,
enquanto vós viveis geralmente tris-
tes, preocupados com um mundo
de problemas diários; e quando
estão alegres, é apenas uma mera
aparência, pois na verdade inventais
distrações para fugirdes de vossas
angústias. Também nós somos mais
simples do que vós; contentamo-nos
com o nascer do dia, com as árvores,
os campos, os rios, e passamos o dia
aproveitando essas coisas da natu-
reza. Já vós sois complexos, fugis do
campo para as cidades, onde vos
aglomerais em espaços apertados;
não vedes o raiar do sol, pois quando
ele surge no horizonte ainda estais
dormindo ou já estais nas fábricas e
escritórios. Inventais um sem número
de atividades que nada tem a ver
com as vossas necessidades naturais
e, por isso, não tendes tempo pra
nada. E, mesmo angustiados, ficais
nas cidades, reclamando de diversos
problemas, diferentemente de nós,
que quando não nos agrada um lugar,
simplesmente voamos para outro.
Além disso, vós maltratais a natureza,
o que eu não só vejo, como sinto.
Atirais em nós, pássaros indefesos,
com espingardas, como já aconteceu
a muitos amigos meus. Construís
fábricas que lançam fumaça no ar,
dificultando nossa respiração, pois,
como pássaros que somos, vivemos
muito tempo no ar. Sujais os rios,
prejudicando a vós e a nós, pois todos
necessitamos de suas águas. No meu
caso, que construo minhas casas
com o barro que recolho nos rios, se
estes secam, sou obrigado a mudar
de lugar, pois, apesar de ser fácil
para mim vencer longas distâncias, o
barro que carrego seca facilmente, de
modo que não é possível moldá-lo na
obra. Por fim, derrubais as mais belas
árvores da floresta, aquelas onde
meus antepassados mais remotos
moraram. Como já te disse, não vos
compreendo. Dizem alguns de vós
que os homens agem assim porque
devem buscar o que chamam de
progresso e felicidade. Causais tantos
males à natureza para produzirdes
cada vez mais objetos, quase todos
desnecessários para o atendimento
de vossas necessidades naturais.
Tomas a mim como exemplo. Como
um simples joão-de-barro, a natureza
me faz necessitar de pequena casa
de barro, de alimento, de água e de
ar. E o que tenho a não ser isso? E
te digo que não sinto falta de mais
nada. E vós, homens, por que agis
diferente? Quereis casas enormes,
alimentos demasiados, bebidas de
diversas espécies e um sem número
de outras coisas que poderíeis des-
prezar; e por não conseguirdes todas,
viveis angustiados, de tempos em
tempos imersos no que chamais de
crises. E vale a pena? Por acaso sois
mais felizes do que nós, pássaros
simples da natureza?’.
Após ouvir meu amigo, não me
veio à mente, de imediato, uma pala-
vra para iniciar uma explicação. Então
me pus a refletir. Mas o joão-de-barro,
sem aguardar qualquer palavra minha,
voou até desaparecer no horizonte e
nunca mais voltou”.
Conta-se que numa aldeia do interior do país,
diminuta em terras e população, viveu por algum tempo
um velho que conversava com os pássaros. Morava
sozinho na pequena casa de madeira que construíra num
terreno ao pé da serra. Tinha o hábito, de resto comum
aos velhos, de acordar muito cedo, logo aos primeiros
raios de sol, pois o que mais lhe agradava na vida era
receber a passarada que acorria ao terreiro todas as
manhãs, tomando lugar nas três laranjeiras plantadas no
quintal. Entre todos, um chamava a atenção do velho de
forma especial: um joão-de-barro. Não era jovem, pois a
plumagem superior, inicialmente marrom, já pendia para
o vermelho, enquanto as plumas do peito, à semelhança
dos cabelos do velho, eram quase brancas.
Ao contrário das demais espécies, que vinham ao terreiro
em bando, o joão-de-barro chegava sempre sozinho e era o
que mais se aproximava do velho. Pousava na laranjeira menor
e ficava a observar as árvores, a horta, a casa; depois, punha-
se a caminhar pelo terreiro, até bem perto do alpendre, onde,
sentado no banco de madeira, o velho lançava as porções
de farelo de milho. Às vezes, o joão-de-barro – e somente
ele – entrava no alpendre para comer o farelo que caia ao
pé do velho. E parece que esse foi o motivo do surgimento
da amizade entre os dois, amizade essa que rapidamente se
frutificou. Aliás, frutificou tanto que um dia aconteceu um fato
significativo. Foi que o velho pareceu ouvir o joão-de-barro
dizer algumas palavras sobre o tempo.
No início, supôs que fosse coisa de sua imaginação,
mas como o pássaro insistiu, atentou que a voz partira
mesmo dele. Então, conversaram sobre o tempo, as
árvores, o rio que cortava a aldeia e outros assuntos.
Daquele dia em diante, a conversação foi diária. O joão-de-
barro relatava ao velho suas viagens pelas matas da região,
seus amores, os perigos que, muitas vezes, enfrentava e
muitos outros casos pitorescos e alegres; ao passo que o
velho – sem ter vivido momentos alegres que não aqueles
passados na aldeia, pois antes morava na cidade – contava
ao joão-de-barro sobre sua plantação, falava sobre o que
esperava colher na horta e sobre suas caminhadas pela
mata todas as manhãs, para ouvir os animais.
Algum tempo se passou, até que num determinado
dia o velho morreu. E morreu durante o sono, numa
noite calma, como geralmente morrem as pessoas de
bom coração. Os vizinhos que o viram no leito disseram
que tinha uma expressão feliz. Naquela mesma manhã,
os pássaros foram ao terreiro e, apesar da ausência do
farelo, ficaram lá até por volta do meio dia, cantando
alegremente, talvez para homenagear o descanso eterno
do velho. Depois, partiram e nunca mais voltaram. O joão-
de-barro, que já não era visto desde a semana anterior,
não apareceu.
Após sepultado o corpo do velho, alguns homens
foram recolher suas poucas coisas para levarem-nas à
Prefeitura, já que não havia herdeiros, e encontraram uma
pasta de papéis. O homem que a encontrou abriu-a por
curiosidade e, logo nas primeiras folhas, leu a história que
segue. Após a leitura, não vendo valor naqueles papéis
velhos, os deitou ao lixo, e ninguém ficou sabendo que
O arquiteto joão-de-barroPor Gilberto Mendes Sobrinho
Gilberto Mendes Sobrinho é Juiz Federal Substituto em Jaú (SP).
O arquiteto joão-de-barro
Revista de Cultura AJUFE22 Revista de Cultura AJUFE 23
editoriaquem conta um conto
O marido aceitou o conselho. Trocou o apartamento
por uma casa, jardim imenso, árvores copudas, muita
sombra e muito verde, espaço como o quê para a esposa
caminhar, explorar, viver, conhecer, um mundão pela frente,
com a vantagem de poder ficar longe dos olhares dos
condôminos de seu edifício. Chatos eles, chato o síndico,
com sua conversa mansa, a tocar na sua ferida de forma
tão crua, sem respeitar o problema que estava passando.
Ela viu a casa. Não caminhava. Bailava. De canteiro
em canteiro, alisando a grama, beijando as folhas de onze
horas, das dálias, dos crisântemos, das orquídeas, das
damas-da-noite, dos véus-de-noiva. As mãos acariciando
as papoulas, os cravos, os jasmins, as cabritas, os sorrisos,
as gérberas, as tulipas. Aqui e ali um abraço demorado nas
algarobas. O sorriso estampado no rosto. O marido quase
chora de emoção. A felicidade da esposa lhe contagiava.
O jardim seria seu mundo, grande, verde, bonito, bem
cultivado. Ele se sentiu recompensado pela mudança. O
médico fora feliz na receita. Acertara em cheio.
Não demorou muito tempo se viu obrigado a voltar
ao consultório. O problema não se resolvera. Ao contrário,
inchara e estava maior. Agora era a mulher que não
saía do jardim, esquecida da casa, das suas obrigações.
Não visitava ninguém, não se interessava por nenhuma
novidade, não comprava roupa de espécie alguma, o que
fazia antes de tudo aquilo ter início. As plantas já têm
sua roupa especial, dizia. Aliás, para bem da verdade, só
entrava em casa para dormir, assim mesmo forçada pelo
marido. De manhã cedo, antes do sol se pôr fora do ninho,
já estava no jardim, a molhar os dedos com o orvalho que
as folhas guardavam. Era o seu desjejum.
Novamente ele foi ao médico. Narrou o ocorrido. O
médico anotando, terminando por lhe recomendar que
passasse uma temporada em um sítio, numa chácara,
mais espaço, mais verde, quem sabe se não é, enfim,
o ambiente adequado para ela. Se a casa com grande
jardim não resolveu, o sítio, em plena zona rural, vai ser a
solução. O marido acreditou. E assim fez, de acordo com
a recomendação médica.
A mulher vibrou. Um quadrado de cem tarefas. A casa
no alto, construção nova, larga, com muitos quartos e salas,
terreiro oferecendo uma visão ampla da propriedade,
pequeno curral de lado, muita árvore – barriguda, maria-
branca, juremeira, muricizeiro, quarana, burra-da-mata, sete-
casco, ingá –, capim nativo para todo lado, misturado com
mata rasteira (mimo-do-céu, bananeira brava, melancia-
de-praia, matapasto, juiz-de-paz, capeba) se espalhando
por todos os lados. Uma plantação desativada de abóboras.
Um gigantesco formigueiro que veneno nenhum acabava,
conforme o corretor explicou. Era o único ponto negativo
naquela área toda cercada. Um riacho passando perto
da cerca, a água fria escorrendo lentamente. Orquídeas
nativas se mantinham em pé em ramos que se arrastavam
por longos metros. Que alegria, meu Deus! Se ela vibrou,
O marido a surpreendeu assim, deitada na grama em
agradável contato com as plantas.
– Ora, amor, o almoço na mesa e você aí…
A espontaneidade da esposa o comoveu:
– Agora sou uma rosa branca. Ontem fui uma dália.
Amanhã serei um girassol.
A surpresa poderia ter ficado aí, se o fato não tivesse se
tornado repetitivo. Todo dia a mesma cena. A magnólia de
hoje era uma margarida amanhã. O alimento era o sol que
esquentava as pétalas. O seu mundo era o verde do jardim.
A visita do síndico no local de trabalho o deixou
encabulado. A conversa calma, sem pressa. Os moradores
desconfiados de alguma anormalidade. Os empregados
do condomínio a reclamarem da presença permanente
de sua esposa a machucar a grama. Depois, deitar-se na
grama… Por ele, síndico, não. Achava até bonito a mulher
deitada na grama, a conversar com as plantas. Mas os
moradores estavam espantados e indignados. Uns riam,
outros criticavam. Ele temia uma manifestação contrária à
permanência de sua senhora no jardim. Daí fazer a visita
para pedir o apoio, compreender a sua posição de síndico,
responsável pela manutenção da ordem e tranquilidade
do condomínio, tarefas que, contra a vontade, terminara
por aceitar, contando-lhe a história da eleição, pormenor
por pormenor.
O marido baixou a cabeça. Levaria a esposa ao
médico. Aquilo podia ser um problema passageiro. A falta
de filhos, talvez, ou talvez a morte do pai, em choque
com um caminhão, o rosto recebendo o óleo quente do
motor a lhe queimar a pele, a ponto do caixão permanecer
fechado. Talvez, talvez. Não sabia. Desculpasse. Andava
encabulado, sem fitar ninguém no condomínio, período
que seria, podia confiar, passageiro.
O médico, contudo, recomendou liberdade de ação.
Deixar que ela desse completa evasão aos seus desejos
reprimidos. Algum trauma de infância, quem sabe, não
vencido a tempo. Às vezes, um fato ligado ao sexo, ou
relacionado a outra ocorrência que agora vem à tona na
forma de um comportamento ativo ou passivo. Assim os
entendidos pregavam. Dê-lhe apoio. Que não a criticasse.
Que a deixasse fazer o que quisesse. Aquilo não seria
eterno. Em lugar de reprimir, permitir. Encarar o fato com
naturalidade. Recomendou uma casa com um grande
jardim. Quem sabe se isso não a curaria?
Pequeno eucaliptoPor Vladimir Souza Carvalho
Revista de Cultura AJUFE24 Revista de Cultura AJUFE 25
quem conta um conto
ele nem se fala. Desta vez, chorou, encostado ao mourão
da cancela, feliz por vê-la sorridente por ter o sítio como
nova morada. A felicidade era tão radiante que o otimismo
explodiu. Pela primeira vez, ele admitiu a cura, com a fé
em São Francisco de Assis. O sorriso no rosto da mulher
assumia, sem que o marido percebesse bem, a forma
de uma flor.
O sítio, no entanto, fez foi piorar. Se na casa ela
passava o dia todo no grande jardim, aqui nem vinha
dormir mais em casa. “Ora, amor, a frieza da noite. Olhe
que estamos na época de São João. Vai lhe fazer mal.
Você terá um resfriado, uma gripe qualquer, a lhe impedir
de ficar com suas plantas”. Ela riu. O sereno far-lhe-ia bem.
Não atendeu ao convite. Era agora um pequeno eucalipto.
O tronco precisava do ar da noite para perfumar a casca,
respondeu, abrindo os braços, ereta, em meio ao capim
rasteiro, numa área espaçosa, um pouco distante da casa,
próxima da cancela.
O marido insistiu. Eucalipto não dorme no interior de
uma casa. Fica pregado no chão, os pés se transformando
em raízes que se enfiariam pelo chão adentro, à procura
do alimento devido. Não deixasse a lagarta de fogo comer
suas folhas nem a coruja se abrigar em seus galhos. Foi a
resposta. O marido desistiu dessa forma de levá-la para a
casa. Foi dormir. Sua paciência tinha limites. Na hora em
que o frio aumentasse, ela correria para dentro de casa. Era
só esperar para ver. Depois, aquela mania pelo verde tinha
um limite. Por sim ou por não, ele estava de cabeça cheia
com tudo aquilo. “Então, boa noite, pequeno eucalipto,
que eu vou dormir. Até manhã”.
De madrugada, foi acordado, aos poucos, pelo som
animado de uma zabumba, o vozerio de pessoas ao
longe, conversando alto, foguetes que pipocavam no
ar. Ele continuou na cama. Na certa, estavam em busca
de um mastro para os festejos juninos, como faziam
anualmente na mesma data, com muita festa e garrafas
de cachaça, segundo as boas tradições nordestinas. De
repente, estremeceu. O pensamento fulminou sua mente.
Levantou-se. De pijama mesmo correu para fora da casa.
Do terreiro ainda pode ver a multidão se afastando com o
pequeno eucalipto nas costas.
(*) Extraído do livro Mulungu Desfolhado, Juruá Editora, Curitiba, 1993.
Vladimir Souza Carvalho é membro do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.
Num de seus famosos escritos literários, Anatole
France narra que o personagem Sylvestre Bonnard ficou
aturdido por ocasião da descoberta da fada, cuja imagem se
encontrava impressa no manuscrito em alemão Crônica de
Nuremberg, a qual sonoramente lhe transmitira a seguinte
lição de vida: “Saber não é nada, imaginar é tudo. Só existe
aquilo que a gente imagina. Eu sou imaginária”.1
Isso mesmo. É corretíssimo que não é o poder, como
pensam alguns, mas a imaginação, o que alimenta a
existência da sociedade.
Daí que somos forçados a volver, mais uma vez, no
túnel do tempo, com princípio e término, respectivamente,
entre a redemocratização que se seguiu à derrubada da
ditadura Vargas e ao fim do governo Costa e Silva.
Trata-se agora da respeitável – e mais ainda espi-
rituosa – figura do Doutor Astrogildo Tibúrcio Barreto
de Mendonça. Formado por tradicional escola jurídica,
conseguiu, por seu notável saber e ilibada reputação,
considerável ascensão social.
Filho de família humilde, o seu talento lhe proporcionou
galgar relevantes postos da vida pública, coroada pelo
exercício, por quase uma década, do cargo de reitor
duma universidade federal, sita em estado nordestino,
sendo capaz de granjear-lhe prestígio somente ofuscado
pelo governador. De tão afortunada, a circunstância lhe
assegurou o apelido de “o Magnífico Tiba”.
Mas nem tudo foram rosas. Como sempre, o sucesso
trouxe incômodo. Rival na academia, o terrível Doutor
Rivadávia Batalha Mourão, catedrático de Direito Civil
e decano do curso de Ciências Jurídicas, durante suas
retumbantes aulas, não cessava em ridicularizar a candura
do Magnífico Tiba, desmerecendo, por completo, os in-
cansáveis esforços deste. Assim, entre várias invectivas,
trombeteava em alto e bom som que “após a tomada do
poder estadual pelo PSD, estava o Magnífico Tiba a subir,
ascendendo, sucessivamente, aos cargos de defensor de
ofício, promotor de Justiça, procurador do estado, professor
titular de Direito Administrativo e, finalmente, reitor”.
As dificuldades não paravam por aí. A circunspecção
inerente ao bom chefe de família, característica do
Magnífico Tiba, não encobriu o seu perfil sonso, a permitir
a explosão dos insatisfeitos e represados desejos da
Amor no alémPor Edilson Pereira Nobre Júnior
1 O Crime de Sylvestre Bonnard. Tradução e introdução: Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 113.
Revista de Cultura AJUFE26 Revista de Cultura AJUFE 27
editoria
juventude, propiciando-lhe, na inversão da
roda da fortuna, uma incursão na província
das investidas amorosas.
O exercício das magnificentes funções
ensejava ao professor Tibúrcio frequentes
– e, algumas vezes, um pouco demoradas
– idas e vindas ao Rio de Janeiro, em cujo
estado, não obstante a transferência da
capital para Brasília, ainda remanescia setores
estratégicos do Ministério da Educação.
Nisso conheceu Rita de Oliveira Duarte,
servidora graduada de dito ministério, que
conservava, nos seus 35 anos, os pueris e
inocentes encantos da juventude.
Além disso, duas qualidades contras-
tantes ornavam a personalidade de Rita.
Uma delas, talvez a pior para as mulheres,
foi haver passado pelo estigma da desilusão
amorosa, decorrente do rompimento de
promessa de matrimônio com o único
homem de sua vida, depois de 10 anos de
casto noivado; a outra, era a mantença de
belíssimo rosto, que, justamente por essa
razão, a tornava uma verdadeira maldição
dos céus.
Dessa conjuntura, e com a ajuda
de oportunos e irresistíveis galanteios
por parte do Magnífico Tiba – que, no
idílio, reduzira-se a “Tiba” –, surgiu forte
romance entre este e Rita, o que levou
Vossa Magnificência a, com frequência
cada vez maior, deslocar-se ao Rio de
Janeiro, sempre a serviço, é claro.
É que, por esquecimento, não afirmei
logo ao início que nosso personagem era,
há quase duas décadas, matrimoniado com
Dona Violeta de Gonçalves Prado, filha de
próspero homem de negócios, com forte
trânsito no meio político local.
Mesmo consciente do devotamento
de seu querido e estimado esposo ao
trabalho em prol da coisa pública, sua
cordata (até certo ponto) esposa passou
a indispor-se com tantas viagens. Seus
reclamos, sempre dirigidos com urbanidade,
justificavam-se pela necessidade que tinha
de, juntamente com seus filhos, ficar em
presença de seu marido, como também
por certa desconfiança, marca indelével
da intuição feminina.
Um dia veio a tão esperada gota
d’água. Sabedora de que seu amado era
profundo admirador de Bonaparte, Rita o
presenteou, por ocasião de seu aniversário
de 50 anos, com o romance A Cartuxa de
Parma, de Stendhal.
O problema é que, não podendo conter
seus sentimentos, Rita lançou, inadvertida
e imprudentemente, uma dedicatória em
forma de poesia, capaz de dar inveja ao
mais romântico dos trovadores medievais,
na qual, após data e lugar, vinha escrito:
“Um beijo (com açúcar e com afeto) de
sua Rita”.
Madame Violeta, que há muito já
se encontrava à espreita dum flagrante,
vinha mansamente, nas últimas viagens
do Magnífico Tiba, vasculhando as malas
deste, com o intuito de procurar todo e
qualquer vestígio que contivesse relevância
para uma acusação. Não deu outra. O livro
foi encontrado e a certeza do delito e da
autoria se tornou irrefutável.
Toda a tranquilidade duma magnífica
vida desabou por completo. Madame
Violeta, brandindo o exemplar clássico
da literatura universal, impôs pena
segregacionista para seu esposo. Este,
então, encontrava-se proibido de viajar
para fora dos confins de seu estado. O
Rio de Janeiro, cidade da perdição, nem
pensar. A necessidade do serviço público
também não poderia representar desculpa.
Se existisse interesse da universidade,
que seu marido designasse alguém para
representá-lo, o qual, decerto, melhor
atenderia aos reclamos da sociedade,
pois não estaria movido por desejos
pecaminosos.
Agravando a situação, Madame Violeta
praticamente submeteu o professor Astro-
gildo Tibúrcio a regime idêntico ao de
cárcere privado. Nem mesmo poderia
fazer ligações interurbanas para, escutando
a meiga voz de Rita, diminuir a distância
que os separava. À instância da agora
feroz esposa, foi designada Dona Quintina
dos Anjos, sexagenária e solteirona, para
secretariar o gabinete da Reitoria, com
plenos poderes para vistoriar o expediente
postal recebido e efetuar os telefonemas
que o Magnífico Reitor necessitava realizar
– haja vista que a linha direta de seu gabi-
nete de trabalho havia sido suprimida.
Foram seis meses consecutivos de
grande sofrimento e dor infligida ao
Magnífico Tiba que, desinteressado das
coisas da vida, se recolhia à soberania de
sua tristeza. Até que veio uma luz no fim
do túnel. A doce lança do amor sensual
que perfurara sua alma fez com que
imaginasse uma fuga para a liberdade.
O amor, aguçado pela imaginação
do amante sincero, forjou a seguinte
ideia: providenciaria, mesmo diante da
impossibilidade de obter o consentimento
de Rita, um anúncio do falecimento desta
num dos jornais cariocas.
Assim foi feito. Publicara no obituário
do Jornal do Brasil, edição de segunda-
feira, nota comunicando o falecimento
de sua amada. Logo após, providenciou
para que o fraternal amigo João Calógeras,
insigne professor de Medicina, mostrasse
um exemplar do conceituado periódico à
Dona Violeta.
Exibindo a comprovação material
àquela, João relatara o acontecimento,
dizendo-lhe que agora não havia mais
necessidade de manter o seu esposo
sob regime de quase escravidão. Com
a morte de Rita, tudo voltaria ao normal,
uma vez que Tibúrcio sempre foi um
marido apaixonado por sua esposa e
que nada mais iria atrapalhar a felicidade
do casal.
Tudo transcorreu no mais impecá-
vel êxito. Madame Violeta revogou, dum
momento para outro, todas as restrições
impostas. Ao seu esposo, que passou a
ser carinhosamente chamado de “meu
Tiburciozinho”, foram permitidas todas as
regalias da vida de um bom pai e esposo.
O Magnífico Tiba não perdeu tempo.
Adquiriu uma passagem de aviação na
Cruzeiro, partindo para mais uma viagem
a serviço na Baía de Guanabara.
Numa longa conversa após o qua-
se impossível reencontro, Rita perfeita-
mente compreendeu a atitude de seu
amado, atribuindo-lhe a causa do amor
verdadeiro. Assim viveram felizes e ines-
quecíveis aventuras.
De tudo isso, o Magnífico Tiba pode
fazer uma constatação: quão genial aque-
le rapaz – de nome Francisco, como
o santo de Assis, e filho de seu amigo
Sérgio Buarque de Holanda – que, por
desígnio da imaginação, compôs versos de
sonoridade e beleza inigualáveis: “A Rita
levou meu sorriso/No sorriso dela/Meu
assunto […] Levou meus planos/Meus
pobres enganos/Os meus 20 anos/O meu
coração […]”.
Edilson Pereira Nobre Júnior é Juiz Federal da 4ª Vara da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte.
Revista de Cultura AJUFE28 Revista de Cultura AJUFE 29
quem conta um conto
Sábias as lições dos mais antigos. Uma delas reside
em que sogra é igual em todo lugar, seja em Passa e Fica,
cidadela do interior do Rio Grande do Norte, seja em Paris.
Portanto, o máximo de cuidado com elas. Quem assim
não se precatar jamais terá paz em sua existência.
Esse o equívoco que, segundo foi sabedor duran-
te curta estada em Florianópolis, cometera Giácomo
Campos Nardini, atualmente um dos mais prósperos
empresários sulistas.
Desde os mais pueris tempos de sua existência, ena-
morou-se por Julienne Bastos d’Estrées, filha de Jean
Paul d’Estrées, francês de origem, e de Esmeralda Bastos
d’Estrées, gaúcha de nascimento, mas catarinense por
afeição. Jovem de beleza mediana, com a qual Giácomo,
depois de cinco anos de namoro, veio a contrair núpcias
que, na carruagem do tempo, já perduram por 30 anos –
vinte e cinco dos quais da mais harmônica paz e felicidade;
enquanto, lamentavelmente, os últimos cinco anos estão
sendo marcados por intensa e profunda desinteligência
do casal.
Nos tempos de namoro, muito contribuiu para a
decisão casadoira o fato de Giácomo olhar em sua futura
sogra um modelo de probidade feminina. De grande
meiguice e discrição, Dona Esmeralda era exemplo de
esposa e de mãe. Lembrava-se de advertência de seu
saudoso pai, que lhe costumava dizer: “Meu filho, a gente
namora a mãe da moça, mas casa com a moça”.
Para evitar desentendimento, possivelmente provoca-
do pela leitura rápida, o genitor de Giácomo, senhor
Pietro di Virga Nardini, genovês experiente na arte da
conquista feminina, não preconizava a seu filho prática
luxuriosa. Absolutamente. Apenas lhe recomendava lição
que recebera de seus antepassados, consoante a qual o
noivo deve examinar as qualidades de sua futura sogra,
ou seja, se boa e honesta esposa, para não se equivocar
com a decisão em desposar a filha desta, que, por força
de transmissão educativa, poderia herdar alguma qualidade
deplorável de sua mãe. Na realidade, a advertência decorria
do adágio popular de que “filhos de peixe, peixinhos são”.
Desde a época do namoro até as bodas de prata,
a convivência do casal Giácomo e Julienne Nardini foi
a mais harmoniosa possível. E não é só. O afeto que
Giácomo nutria pela sua sogra, “mãe Esmeralda”, como
carinhosamente a chamava, era de despertar inúmeros
comentários entre amigos e familiares. Tanto foi assim que
tal sentimento despertou, não obstante sua pureza, fortes
ciúmes no senhor Jean Paul, que, por fim, compreendia
Giácomo pelo fato de que este, aos 15 anos de idade,
perdera sua mãe.
Mas esse cenário de paz e bonança não perdurou
indefinidamente. Cônscia dos progressos empresariais
de Giácomo e das consequências que isso poderia
acarretar, Dona Esmeralda, aos poucos, pôs-se a alertar
sua inocente filha.
Muito embora nunca deixasse – principalmente
nas ocasiões públicas – de mimar o seu genro, nos
bastidores, como se diz em política, aconselhava Julienne
para que, uma vez provido de muitos recursos, Giácomo
poderia ser outra pessoa, enveredando pela busca, quase
sempre nociva à família, de amores em outras paragens.
Relembrava à sua filha conselho que, certa vez, ouvira de
sua avó, Violeta de Oliveira Bastos, de que “para saber se
o homem é bom e fiel, dê dinheiro a ele”.
Julienne não bem recepcionara o conselho de sua
mãe. Dissera a esta que não deveria fazer um mau e
apressado juízo do genro. Logo desconfiar da candura
de Giácomo que era um exemplo de probidade no lar
e nos negócios e que, fervoroso cristão, chegara na
Indesejável parentescoPor Edilson Pereira Nobre Júnior
Revista de Cultura AJUFE30
editoria
Revista de Cultura AJUFE 31
editoria EDITORIA
Edilson Pereira Nobre Júnior é Juiz Federal da 4ª Vara da Seção
Judiciária do Rio Grande do Norte.
adolescência a ser seminarista.
Parece que Dona Esmeralda adivinhava.
Não que Giácomo estivesse voltado a aventuras
extraconjugais. Pelo contrário. Seu apelido entre
os amigos do British Country Club de Floripa
era de “o casto”, justamente por somente amar
a sua esposa.
Seu único divertimento, além da família,
consistia na mania de colecionar relógios raros,
de elevado valor. Para se ter uma idéia de tal
excentricidade, Giácomo jamais vestia uma
camisa de manga comprida. Isso para que
todos pudessem observar, com admiração,
suas impressionantes máquinas do tempo.
Mas, então, qual era o problema? Sem
dúvida sua polpuda conta bancária, ornada
pelas mais variadas e rentáveis aplicações.
Com efeito, observando no cotidiano
do seu trabalho de bancária a conta do
nosso personagem, que já superava oito
dígitos, Maria Josefa da Silva, identificada
em seu crachá com o charmoso nome de
Mary, passara a despertar atenção especial a
Giácomo, nas suas idas e vindas semanais à
agência do HSBC no Beiramar Shopping.
Em boa forma estética no princípio dos
seus 30 anos, Mary se desdobrava em dengos
a Giácomo, com amplo destaque ao aspecto
jovial deste. Isso sem deixar de ter o cuidado
de propiciar a ele uma belíssima e panorâmica
visão de seus seios, o que se otimizava seja
por meio de provocativos decotes, seja pela
exposição de suas rijas pontas, em blusas
transparentemente idealizadas para a arte de
tornar o cliente um bobo seduzido.
Foram justos três anos dum chove não
molha até que a Giácomo, então fervoroso
bastião na defesa da família e dos bons
costumes, foi imposta situação de inexigibili-
dade de conduta diversa.
Tudo sucedeu num começo de noite de
quinta-feira quando Giácomo, após haver
tomado vários chopes no recôndito Bristô
d’Acampora, ingressou acompanhado por
sua musa em estabelecimento próprio à
intimidade dos encontros amorosos.
O forte estado de timidez, aliado à
consciência pesada de quem se supunha
praticando uma indignidade sem tamanho,
fez com que Giácomo continuasse a ingerir
mais duma garrafa de vinho – por sinal
um bordeaux inigualável. Nesse estado,
coube-lhe consumar, em rápidos minutos,
sua façanha, tal qual Henrique IV na noite
de núpcias com Catarina de Médicis,
passando, em seguida, a pesado e longo
sono, do qual somente acordara às nove
horas da manhã seguinte.
Aturdido com a deslealdade do horário, e
sozinho, uma vez que sua parceira abandonara
a alcova sem estrépito, Giácomo restou
bastante preocupado em como explicar à sua
família ausência brusca e muito demorada.
A única idéia foi ligar para o amigo José
Bittencourt – carinhosamente conhecido
como Bitanca, experto em aprontar muitas
presepadas –, que rapidamente vislumbrou
uma saída: Giácomo deveria comentar para
a família que, desde o dia anterior, se inserira
no rol dos milhares de brasileiros vitimados
por sequestro-relâmpago. A saída se mostrava
genial, comprometendo-se Bitanca a dar todo o
apoio estratégico para a sua verossimilhança.
Seguiu-se a execução do plano. Exímio
dissimulador, Bitanca discou o número do
telefone da residência de Giácomo. Após três
toques, falou uma voz feminina. Era Julienne,
que demonstrava bastante preocupação com
a possibilidade do telefonema revelar alguma
notícia maléfica quanto a seu esposo.
Procurando tranquilizá-la, bem como
Dona Esmeralda e filhos, Bitanca informou,
pausadamente, que Giácomo teria sofrido
um sequestro-relâmpago, mas que ninguém
se preocupasse, pois o pior já havia passado.
Os bandidos fizeram com que este se dirigisse
a um caixa eletrônico e, após a realização de
um saque, liberaram-no às sete horas da
manhã, num local um pouco distante do
centro de Florianópolis. O leal amigo informou
também que, em aproximadamente uma
hora, Giácomo, sem maiores danos pessoais,
retornaria a seu lar.
Com efeito, o retorno foi triunfal, quase
rivalizando com a volta a Roma dum con-
quistador vitorioso. Uma legião de amigos e
parentes estava à espera da pobre, mas altiva,
vítima da realidade criminosa brasileira.
Enfim, com mais de uma hora além do
previsto, aparece Giácomo que, depois de
cumprimentar os presentes, se põe a contar seus
suplícios, agora transformados em aventura.
No entanto, como não tinha vocação
para fanfarrão ou gabola, cometeu um equí-
voco daqueles que põe por terra toda uma
batalha, ou até mesmo uma guerra. Isso
porque sua natural humildade, por maior que
fosse, não se continha diante da sua única
soberba, consistente na necessidade de
mostrar seus caríssimos relógios a terceiros,
principalmente quando reunidos num con-
junto numericamente considerável.
Daí que, desenvolvendo sua narrativa
com vibrátil emoção, Giácomo, sem se aten-
tar para as circunstâncias do contexto em
que estava inserido, não poupou amostras
de seu pulso esquerdo reluzindo um belo
Rolex, ano de fabricação 1945, inteiramente
em ouro maciço.
A insistência expositiva de Giácomo pro-
vocou a intervenção de “mãe Esmeralda”, a qual,
com paciência, fez a seguinte indagação:
– Meu filho, explique-me uma coisa: esses
ladrões que lhe sequestraram são burros ou
cegos? Como é que eles deixaram você com
esse chamativo e brilhante relógio?
Após tal instante, e vendo seu álibi desmo-
ronar por completo, Giácomo praticamente
perdeu a fala e cessou as explicações.
A sensação de culpa que sua paralisia
exalou foi suficiente para gerar fortes
desconfianças em Julienne, que só agora
passou a ver quão importante são as lições
de suas avós.
A vida em comum, a partir desse mo-
mento, vem se tornando cada dia mais
insuportável. Tudo – se diga com razão –
por culpa de Giácomo, pela má escolha de
sua aliada incondicional.
Revista de Cultura AJUFE32 Revista de Cultura AJUFE 33
editoriano escurinho do cinema
“Ó grund… Ó vós, belos e sadios estudantes da planície, aos quais basta dar um passo para vos encontrardes na estepe imensa, sob a admirável redoma azul que se chama firmamento, vós cujos olhos estão acostumados às grandes distâncias, aos longes, vós que não viveis apertados entre edifícios altos, nem podeis imaginar o que é para os guris de Budapeste um terreno baldio, um grund. É a sua planície, a sua estepe, o seu reino; é o infinito, é a liberdade. Um pedacinho de terra, limitado a um dos lados por uma cerca meio desmoronada, ao passo que, pelos demais lados, altos muros de edifícios o rodeiam. Atualmente o grund da Rua Paulo também já se encontra ocupado por um triste edifício, de quatro andares, cheio de moradores, nenhum dos quais sabe, talvez, que aquele pedacinho de terra significou a mocidade para alguns pobres estudantes de Budapeste.”1
Os meninos da Rua Paulo (A Pál-utcai fiúk, no original
húngaro), de Ferénc Molnár (1878-1952), é seguramente
um dos grandes clássicos mundiais da literatura infanto-
juvenil. Segundo Paulo Rónai, responsável por sua tradu-
ção para o português, o livro é mesmo um dos raros
clássicos que – contrariando o caminho feito por muitas
obras literárias escritas para adultos e depois popularizadas
em versões para crianças e adolescentes (como Gulliver,
Robinson Crusoé ou Don Quixote) – foi escrito originalmen-
te para jovens, mas depois veio a conquistar públicos de
todas as idades em todo o mundo2.
Publicado na Hungria pela primeira vez em 1907, sua
primeira edição brasileira surgiu em 1952. Desde então,
sucederam-se edições em várias casas. Primeiramente na
Saraiva, depois na Ediouro e, mais recentemente, na Cosac
Esta rua é nossaPor José Carlos Garcia
& Naify. Trata-se de uma daquelas
obras com admiradores em todos
os continentes – em geral, pessoas
que, como eu próprio, leem-na e
releem-na dezenas de vezes ao longo
da vida, no texto belo e fluido e tão
carinhosamente traduzido por Rónai.
Perdi a conta das inúmeras releituras
desde minha primeira, aos nove
ou 10 anos de idade, em pequena
edição da Ediouro emprestada pela
biblioteca da escola.
Na Budapeste de 1889, dois
grupos de meninos lutam pelo grund,
um terreno baldio espremido entre
os prédios da capital húngara em
crescimento, local para suas fantasias,
jogos e brincadeiras, onde travam
com todo ardor sua guerra pela pátria
infantil. Na maravilhosa, comovente
e singela narrativa, aquelas crianças,
juntamente com o leitor, vivem
uma infância quiçá hoje superada
pelo progresso e pela vertigem do
cotidiano urbano, confrontando os
desafios, as amizades, as traições, as
perdas da vida, “da qual todos somos
os soldados e os servidores, ora tristes,
ora alegres”3.
A obra foi vertida, pelo menos,
duas vezes para a televisão: uma na
Itália, em 2003 (I ragazzi della via
Paal), com excessiva, injustificável e
ineficaz liberdade em relação ao texto
original, que chegou a ser exibida no
Brasil pelo canal pago Eurochannel; e
outra para a tevê húngara, em 2005,
com o mesmo título do livro.
Para o cinema, foram quatro
diferentes versões. A primeira foi
húngara, de 1929 (A Pál-utcai fiúk, de
Béla Balogh); em seguida, a americana,
de 1934 (No greater glory, de Frank
Borzage); em 1935, foi realizada
uma italiana, I ragazzi della via Paal,
co-dirigida por Alberto Mondadori e
Mario Monicelli; e, finalmente, a mais
conhecida, que aqui será comentada,
uma produção húngaro-americana
dirigida por Zoltán Fábri em 1969.
Essa versão foi indicada ao Oscar de
Melhor Filme Estrangeiro daquele ano,
perdendo para o russo Guerra e Paz
(Voyna i Mir, de 1967, dirigido por
Sergei Bondarchuk)4.
A versão de Fábri, lançada à época
nos cinemas do Brasil com o título Esta
rua é nossa, tem poucas variações
em relação ao texto original. Algumas
delas, o fato de estarem ambientadas
no início do século XX, e não em fins
do XIX, e algumas pequenas alterações,
possivelmente, para que o roteiro,
assinado pelo próprio Fábri e por Endre
Bohem, ficasse mais enxuto. Quanto
a deficiências, chama a atenção certa
falta de resolução final na tensão entre
Boka e Geréb, após o fim da guerra
com os camisas-vermelhas.
Já na abertura fica caracteriza-
do o perfil da época e da infância
na Budapeste da virada do século
passado. O ritmo meio febril da
música de Emil Petrovics, combinado
com a aceleração das imagens em
preto e branco à moda dos antigos
cinematógrafos (com menos de 24
quadros por segundo) e sua mescla
com fotografias reais da época, in-
dicam muito adequadamente a
1 MOLNÁR, Ferenc. Os meninos da Rua Paulo. Tradução de Pau-lo Rónai, revista por Aurélio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.], p. 27
2 Op. cit., prefácio de Paulo Rónai, p. 7.
3 Op. cit., p. 186.
4 Os outros indicados ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 1969 foram o francês Beijos roubados (Baisers volés, de François Truffaut); o tcheco O baile dos bombeiros (Horí, má panenko, de Milos Forman); e o italiano A moça com a pistola (La ragazza con la pistola, de Mario Monicelli).
5 A respeito da elevada taxa de mortalidade infantil da época, Jac-ques Gélis, em nota a seu próprio texto, diz que “era para garantir a continuidade do prenome, um bem simbólico ao qual a família atribuía grande valor, que na Inglaterra às vezes se dava aos três primeiros filhos varões do casal o mesmo prenome: se o mais velho morresse, seu homônimo de algum modo o substituiria, cf. Lawrence Stone, The family, sex and marriage in England 1500-1800, Londres, 1973, p. 409” (GÉLIS, Jacques. A individualização da criança. In: História da vida privada, v. 3 – Da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, nota 1, p. 329).
Sob olhar da infância, o autor revela os contornos da história descrita na obra Os meninos da Rua Paulo, que mostra a disputa infanto-juvenil por liberdade, tão rara em um mundo cheio de amarras
“Uma das funções primordiais da brincadeira na infância é permitir que as crianças vivenciem seus conflitos de forma lúdica”
Revista de Cultura AJUFE34 Revista de Cultura AJUFE 35
editoriaeditoria
6 DOMINICK, Rejany dos Santos. Imagens - memórias vividas e compartilhadas na formação docente: os fios, os cacos e a corporificação dos saberes. Campinas, SP: [s.n.], 2003. Tese de Doutorado.
7 CORAZZA, Sandra Mara. O que faremos com o que fizemos da infância? In: LINHARES, Célia Frazão e GARCIA, Regina Leite. Simpósio Internacional Crítica da Razão e Crise da Política na Formação Docente. Rio de Janeiro: UFF, 2001, pp. 59-60.
8 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
9 Além do filme, disponível em DVD, igualmente o livro foi editado no Brasil pela Salamandra, com tradução de Ana Maria Machado.
10 Também em Ponte para Terabítia, tanto no filme quanto no livro, a estruturação do jogo simbólico na infância, entre os protagonistas Jess e Leslie, é evidente, como forma de ambos lidarem com suas frustrações, medos e desafios – por exemplo, a problemática relação de Jess com o pai, ou descobrir como compreender e enfrentar a “gigante” Janice Avery.
velocidade crescente da urbanização e do progresso
na virada daquele século, bem como a realidade disci-
plinadora da escola de então – ambas circunstâncias que
tornavam o grund espaço evasivo para a liberdade de
imaginação e para a brincadeira, uma necessidade tão
vital aos meninos da Rua Paulo.
A condição disciplinar da escola na época não era uma
circunstância peculiar à Hungria, mas a inúmeras esferas
da sociedade ocidental. Segundo vários autores, a infância
como a conhecemos inexistiu na Europa Ocidental até
aproximadamente o século XVI, em função de inúmeras
condições históricas5. Como salienta Rejany Dominick,
com referência na obra de Philippe Ariès, História social
da criança e da família:
“O sentimento da infância não trazia em si o significado de afetividade ou uma interpretação das particularidades e diferenças inerentes a essa faixa etária como hoje a vivemos. Na verdade, o que era determinado como infância relacionava-se mais com a possibilidade de sobrevivência do que com as características próprias, pois a mortalidade infantil era muito alta. Somente após uma determinada fase da vida do sujeito é que se identificava mais objetivamente aquele ser como participante do mundo, como ‘alguém com quem se poderia contar’. Essa passagem se dava, mais ou menos, quando a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou ama e, a partir daí, ela ingressava na sociedade dos adultos e já não se distinguia destes”.6
Somente a partir de então, são iniciadas as produções
sociais de imaginário sobre a infância, em longo e
multifacetado processo que redunda no quadro social
hoje vivenciado no Ocidente em etapa específica da
vida, merecedora de proteção especial e tratamento
diferenciado. De certo modo, portanto, ao contrário do
senso comum que imagina a infância como um dado
biológico que sempre existiu em todas as culturas e
sociedades, pode-se dizer, segundo vários pensadores,
que a infância foi “inventada”, no sentido atribuído por
Ariès. Muitos historiadores atuais analisam estar em curso
o fim da infância. Há mesmo autores que sustentam, mais
radicalmente, que ela jamais existiu da forma como o
discurso que lhe corresponde pretendia7.
Por outro lado, o período compreendido entre fins do
século XIX e princípio do XX é, ao mesmo tempo, apogeu
e princípio do ocaso, tanto do positivismo nas ciências
quanto da lógica disciplinar, organizando os corpos e
docilizando as mentes, espraiando-se pelas principais
estruturas de aglomeração de indivíduos – a prisão, o
hospital, a escola8. Portanto, não é nada casual a evidente
dicotomia entre o rigor do espaço escolar, representado
pelo professor Rácz, e a sensação de liberdade das crianças
no grund, como demonstra nitidamente a passagem
escolhida como epígrafe para este texto. Mais do que
um lugar para jogar péla, está em disputa na história (livro
e filme) o território de liberdade não afetado diretamente
pela autoridade disciplinar adulta ou, em outras palavras,
o próprio local onde a infância rebela-se contra as amarras
do poder disciplinar adulto e corre solta em suas estepes,
seu reino, sua planície.
Não por acaso, nem tão paradoxalmente assim, ambos
os grupos (os da Rua Paulo como os camisas-vermelhas,
do Jardim Botânico) vivenciam essa experiência de liber-
dade como reprodução do mundo disciplinar adulto, em
estruturas de natureza militar e profundamente hierar-
quizada. Uma das funções primordiais da brincadeira
na infância é permitir que as crianças vivenciem seus
conflitos de forma lúdica e, por meio dela, compreendam
a sociedade em que vivem. Elas reproduzem e
recriam, no jogo, as estruturas e as relações de poder
existentes, de modo a compreendê-las, questioná-las
e integrarem-se socialmente em seu contexto, como já
afirmaram pensadores como Piaget e Vigotsky. Em uma
sociedade altamente hierarquizada e disciplinar, o jogo
simbólico não poderia refletir senão essa estrutura. No
grund, entretanto, as regras são estabelecidas de forma
autônoma pelas crianças, que são suas destinatárias, e
não heterônoma, e sua afirmação
permanente como sujeitos se faz de
modo independente dos adultos —
seja a família, sejam os professores.
Belo livro e belo filme, são
inesgotáveis os aspectos a serem
vistos e revistos em ambos. Mas
há um, em particular, que me
parece merecer especial atenção: o
tratamento dado à perda e à morte.
Com rara e triste beleza, esse tema
– geralmente, difícil no trato com as
crianças do mundo contemporâneo,
cada vez mais vinculado a um
hedonismo sem contrapartidas – é
trabalhado com imensa dignidade
e emoção, em que a agonia do
jovem protagonista é lapidada de
forma profundamente comovente.
Mais no livro do que no filme, é
impossível conter as lágrimas ante
a sucessão de devaneios e delírios
da criança numa época anterior
à penicilina. Tão incomum me
parece essa abordagem em obras
infanto-juvenis, a não imbecilizar as
crianças, que rapidamente me vem
à lembrança a muito mais recente
Ponte para Terabítia, adaptação
dirigida por Gabor Csupo, em
2007, para o livro homônimo
de Katherine Paterson, de 1977
(escrito para consolar seu filho
mais jovem pela perda de uma
grande amiga)9 – outra indicação
sem dúvida inafastável para se ver
e ler com os pequenos e provocar
boas conversas sobre momentos
desagradáveis, mas invencíveis, da
vida de todos10.
Infelizmente, Os meninos da
Rua Paulo é mais um daqueles
filmes tornados raros pelo desprezo
da indústria de audiovisual, que
esbraveja hipocritamente contra a
pirataria, mas é incapaz de reeditar
filmes essenciais e disponibilizá-
los a preços honestos e razoáveis,
forçando o público (por certo
restrito) desse tipo de produção
a realizar verdadeiras jornadas de
provação para garimpá-los, encontrá-
los e, finalmente, a eles assistir. Há
alguns anos, a Amazon.com vendia o
título em VHS, com som original em
húngaro e legendas em inglês, mas
o material encontra-se atualmente
esgotado, e a distribuidora res-
ponsável, especializada em filmes
húngaros nos Estados Unidos
(European Video Distributors, sediada
na Califórnia), aparentemente en-
cerrou seu funcionamento. Não
houve lançamento do filme em DVD
nem nos Estados Unidos nem na
Europa Ocidental. Ele é facilmente
encontrado na Hungria, em DVD,
mas apenas com som original em
húngaro e sem legendas sequer na-
quele idioma. Consegui essa versão
com um amigo daquele país, o
juiz e professor universitário Jószef
Liechtenstein, a quem mais uma vez
agradeço – agora em público – pelo
fim dessa minha busca que durou
vários anos. É possível, entretanto,
encontrar o filme na internet, via
torrent – inclusive com legendas em
inglês e português.
José Carlos Garcia é Juiz Federal na Seção Judiciária do Rio de Janeiro.
“...é impossível conter as lágrimas ante a sucessão de devaneios e delírios da criança
numa época anterior à penicilina”
FICHA TÉCNICATítulos: Os meninos da Rua Paulo, ou Esta rua é nossa (A Pál-utcai fiúk, Hungria/EUA, 1969)Títulos Alternativos: The Boys of Paul StreetGênero: DramaDuração: 110 min.Tipo: Longa-metragem / ColoridoProdutoras: Groskopf, MAFILM Stúdió 1Diretor: Zoltán FábriRoteiristas: Endre Bohem, Zoltán FábriElenco: Mari Törõcsik, Sándor Pécsi, László Kozák, Anthony Kemp, William Burleigh, John Moulder-Brown, Robert Efford, Mark Colleano, Gary O’Brien, Paul Bartleft, Earl Younger, György Vizi, Julien Holdaway, Péter Delmár, Jancsó MiklósFonte: http://epipoca.uol.com.br/filmes_detalhes.php?idf=16768, acessado em 30 de março de 2009.
Revista de Cultura AJUFE36 Revista de Cultura AJUFE 37
editoriaponto de vista
Em matéria de Direito Ambiental, Vladimir Passos de
Freitas é, sem dúvida, uma das grandes referências no
Brasil e no mundo. Professor universitário da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná e desembargador apo-
sentado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF
4ª), com sede em Porto Alegre (RS), Vladimir é daqueles
cidadãos incansáveis que, diariamente, lembram e relem-
bram o papel ativo que todos devemos ter diante da
preservação do meio ambiente.
Ambientalista de coração – e de ação –, Vladimir diz
se admirar por ter passado ileso e não ter “levado um soco”
até hoje, já que, por tantas vezes, chamou a atenção de
pessoas que jogaram lixo no chão, deixaram a torneira
aberta ou extrapolaram no uso de energia elétrica.
“Outro dia um grupo de jovens caminhava no parque
Barigui, em Curitiba, e eu ia com meu filho. Nisso, um
jogou uma garrafa no chão. Eu avancei, peguei a garrafa e
entreguei a ele, dizendo: ‘Olhe, você deixou cair no chão’”,
conta Vladimir.
Nascido em São Paulo, em 1945, Vladimir é autor, co-
autor e organizador de 18 livros na área do Direito. Entre as
obras, dois grandes clássicos do Direito Ambiental: o livro A
Constituição e a efetividade das normas ambientais, que está
na 3ª edição, e Crimes contra a natureza, escrito na década
de 1980, em parceria com Gilberto P. Freitas, e considerado
o primeiro livro sobre crimes ambientais no Brasil.
“Eu tinha como meta escrever um livro sobre crimes
ambientais. Telefonei ao meu irmão e ele me respondeu
que o tema não merecia um livro. Consegui convencê-
lo dizendo que um dia esse seria o grande tema da
humanidade”, conta Vladimir, relembrando a época em
que tinha como sonho escrever a obra que hoje já está
na 8ª edição.
Ao longo de sua trajetória, Vladimir já ministrou mais
de 200 palestras sobre Direito e meio ambiente em vários
estados e em países como Estados Unidos, Portugal, Quê-
nia e Tailândia. Atualmente, é o representante brasileiro
do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
(Pnuma) para a capacitação de juízes na América Latina e
co-chair do Grupo de Especialistas do Judiciário da União
Internacional para a Proteção da Natureza.
No dia a dia, Vladimir divide seu tempo entre ministrar
aulas e palestras, promover estudos de grupo na área de
Direito Ambiental e de Sistema Judiciário, escrever livros e
artigos e dar consultorias relacionadas ao meio ambiente.
Além disso, o desembargador aposentado é presidente
do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judi-
ciário (Ibrajus), fundado em 2006 para colaborar com o
aperfeiçoamento do Judiciário.
Em entrevista à Revista de Cultura AJUFE, Vladimir
Passos de Freitas analisa a legislação ambiental brasileira.
Para ele, em termos de efetividade, as normas ambientais
estão longe de alcançar o padrão ideal. O jurista alerta, por
exemplo, para os poucos efeitos surtidos, a partir da Lei de
Crimes Ambientais, na responsabilização da pessoa jurídica
em matéria ambiental. Ele fala também sobre os conflitos
de competência no âmbito ambiental. Confira a entrevista.
Qual a importância da Amazônia para o equilíbrio ambien-
tal mundial?
A Amazônia é considerada o maior ecossistema exis-
tente no mundo. Sua importância está nas suas florestas,
Ambientalista, sim.Fundamentalista, nãoReportagem de Renata Camargo
que colaboram para evitar o aquecimento
global, nas suas águas, que no futuro poderão
servir a pessoas deste e de outros continentes,
na biodiversidade, que pode servir na confecção
de remédios para a população, na preservação
da fauna, enfim de múltiplas formas. O des-
matamento pode influenciar negativamente
outras regiões. Cientistas argentinos afirmam
que a seca e os vendavais no Rio Grande
do Sul e Argentina seriam consequência do
desmatamento da Amazônia.
Quais os desafios mais relevantes do ponto de vista
jurídico quando se fala em Amazônia?
Creio que convencer as pessoas que
residem no local de que o desenvolvimento
só vale se for sustentável, de nada adiantando
elevar o PIB pelo corte desenfreado de ma-
deira e, no futuro, quando encerrado o ciclo
de exploração, termos cidades empobrecidas
e decadentes. Outro problema é a extensão,
que dificulta muito a fiscalização dos órgãos
ambientais e da polícia.
A Amazônia Legal é formada por nove estados. Em
termos de políticas públicas ambientais, é coerente
tratar esses estados da mesma maneira?
Não, não é coerente. Mas a autonomia
dos estados não permite que a União imponha
uma política única. A União só pode legislar,
editar normas gerais, mas não pode impor que
os estados façam ou deixem de fazer algo.
A regularização fundiária da Amazônia é apresen-
tada pelo governo como o primeiro passo para
desenvolver de maneira sustentável a região. O
senhor concorda com essa estratégia?
Sim, a regularização fundiária é importan-
tíssima para um desenvolvimento sustentável.
Mas não é tarefa fácil. Há problemas nos títulos
de domínio, inclusive fraudulentos, ensejando
a ação da Corregedoria Nacional de Justiça.
Propostas de uso sustentável de recursos seriam
uma saída para a população da Amazônia?
Sem dúvida. O desenvolvimento passa
pela preservação do meio ambiente. Assim
manda a Constituição. Mas não é tarefa fácil.
O empreendedor nem sempre está disposto
a abrir mão de parte de seu lucro a favor do
interesse público. Um exemplo típico é o das
áreas de reserva legal. Na Amazônia, o pro-
prietário está impedido de utilizar 80% de seu
imóvel rural, deixando-o como reserva, a fim
de preservar a fauna e a flora. Mas é claro que
nem todos assim procedem. E a fiscalização,
em razão das distâncias, é ineficaz.
O senhor é autor de diversas obras com interface
ambiental. Na sua avaliação, a cultura jurídica já
incorporou os princípios ambientais?
Sim, a cultura jurídica na área ambien-
tal avançou muito nos últimos anos. Em
passado relativamente recente, não havia
Referência no ramo do Direito Ambiental, Vladimir Passos de Freitas analisa a legislação ambiental brasileira e afirma que “falta muito para chegarmos ao ideal de efetividade dessas normas”
“O empreendedor nem sempre está disposto a abrir mão de parte de seu lucro a favor do interesse público. Um exemplo típico é o das áreas de reserva legal”
Revista de Cultura AJUFE38 Revista de Cultura AJUFE 39
editoria editoria
mais do que cinco ou seis livros de doutrina e pouca
jurisprudência. Atualmente, temos cerca de 200 livros
na área do Direito Ambiental, alguns deles analisando
temas específicos, como tributação ambiental, crédito de
carbono ou matas ciliares. Mudou muito e para melhor.
Em 1992, conversando com um colega do TRF 4ª sobre
a necessidade do Direito Ambiental fazer parte das provas
do concurso para juiz, ele me respondeu sorrindo: e por
que não o Direito Eletricitário? Agora o Direito Ambiental é
obrigatório nos concursos de todo o Brasil. Esse é só um
exemplo. Eu poderia citar vários.
Qual a sua avaliação sobre a efetividade das normas ambien-
tais brasileiras?
Não é ideal, mas dentro de um quadro internacional
estamos acima da média. O Ministério Público tem tido
um papel relevante e isso só ocorre no Brasil. No Judiciário,
a evolução é constante, o nível das decisões judiciais
melhorou. Agora temos muitas e boas decisões judiciais.
Tribunais outrora indiferentes, agora possuem precedentes
de ótima qualidade. O Tribunal de Justiça do Paraná é
um exemplo. A Polícia Federal, depois da especialização
da delegacia de crimes ambientais e contra o patrimônio
histórico, em 2002, melhorou muito. Mas os órgãos
ambientais ainda padecem de falta de estrutura e pessoal,
e os meios tecnológicos ainda são escassos. Enfim, falta
muito para chegarmos ao ideal, mas já construímos um
padrão razoável de efetividade.
Parte do setor produtivo defende que a legislação ambiental
brasileira obstaculiza a produção agropecuária. Qual a sua
avaliação sobre isso?
Não concordo. Na verdade, o inconformismo está nas
áreas de reserva legal, que são de 20% nas regiões Sul e
Sudeste, e nas de preservação ambiental, como encostas
de morros, beira de rios e outras. A produção agropecuá-
ria é importante para todos nós. A chamada agroindústria
é um sucesso. Mas não podemos tornar nossas terras um
“mar de cana”, ou uma monocultura de soja, ou pinus, com
graves problemas ambientais.
A legislação ambiental brasileira é muito rigorosa?
Não. Nossas multas são irrisórias, se comparadas
com as impostas nos Estados Unidos. Nossa lei de crimes
ambientais tem penas simbólicas. O tráfico de espécimes
da fauna para o exterior significa uma pena de seis meses
a um ano, o que chega a ser um estímulo aos traficantes.
E na área das indenizações civis, as dificuldades com a
realização da prova pericial e a quantificação do dano
beneficiam milhares de réus. Em outros países, como
o Panamá, o laudo feito pelo órgão ambiental pode ser
aproveitado na ação de reparação civil. Aqui não.
Tendo em vista a ponderação de interesses, como agir quando
políticas públicas mitigam bens ambientais?
Vendo mais longe, pode-se dizer que os bens ambien-
tais são necessários para o futuro da humanidade na terra.
Assim, não adianta dar apoio a políticas públicas com
sacrifício da população. Há um acórdão do Superior Tribunal
de Justiça (STJ) em um caso de loteamento clandestino
na beira da represa Guarapiranga, em São Paulo, que é
emblemático. No conflito de interesses, o voto do relator,
ministro Otávio Noronha, optou pela retirada de cerca de
150 famílias, porque se ali elas permanecessem, lançando
dejetos à represa, possivelmente em alguns anos nem água
teriam os milhões de habitantes da grande São Paulo.
Em relação à resolução de conflitos de competência ambiental
entre municípios, estados e União, já é possível vislumbrar algum
consenso no âmbito jurisdicional?
Não, no âmbito jurisdicional persistem muitas dúvidas.
Principalmente na área cível. Recentemente, uma decisão
isolada do ministro do STF Cezar Peluzo, pela primeira vez,
dispôs sobre a competência para emitir licença ambiental.
Era um caso de Salvador, Bahia, onde o licenciamento era
feito pelo município, com a concordância do Ibama. O
Ministério Público Federal, no entanto, não se conformava
e ingressou em juízo, recebendo o apoio do TRF 1ª Região.
Mas ainda são poucas as decisões dos tribunais, e isso
colabora para a insegurança jurídica, com graves problemas
econômicos. Certa feita, quando eu era presidente do TRF
4ª. Região, uma alta autoridade ambiental do
Rio Grande do Sul procurou-me desesperado
com as liminares dadas em ações que tinham
a concordância do Ibama e do órgão estadual.
Os empreendedores, inclusive estrangeiros,
ficavam totalmente desprotegidos quando,
depois de cumprirem todas as exigências,
eram surpreendidos por liminares da Justiça.
Infelizmente, nada pude fazer, pois a matéria
era jurisdicional.
Na sua avaliação, o Poder Legislativo é omisso por
não editar lei complementar sobre esses conflitos?
Sem sombra de dúvida.
Qual o caminho mais eficaz para diminuir esses
conflitos de competência?
A lei complementar que se espera desde
1988 é o primeiro passo. E acórdãos explícitos
nos casos submetidos a julgamento, o segundo.
Os desembargadores e ministros, perdidos nos
milhares de recursos que recebem, não se dão
conta da relevância de definir as competências
na área ambiental. Os anos passam e a
insegurança jurídica persiste. Aí está algo de
que não podemos nos orgulhar.
Como o senhor avalia as medidas compensatórias
no âmbito ambiental e a licença ambiental como
fator de troca?
As medidas compensatórias são comuns
nos grandes empreendimentos e até nos de
porte médio. Não é raro, por exemplo, que mine-
radoras cuidem de escolas, ou asfaltem ruas
de uma cidade. Ou ainda que empreendimen-
tos imobiliários em áreas urbanas entreguem
e cuidem de áreas verdes por um prazo razoa-
velmente longo, como cinco anos.
O recém-sancionado Código Ambiental Catarinense
tem causado polêmica. O senhor concorda com a
“estadualização” da legislação ambiental?
Os estados podem legislar sobre matéria
ambiental, mas nunca sobre matéria que, por
ser lei geral, caiba à União. Santa Catarina
legislou sobre aspectos que afrontam o Código
Florestal de 1965, considerado “norma geral”.
Tudo indica que será considerado, ao menos
parcialmente, inconstitucional.
Em sua avaliação, o atual Código Florestal brasileiro
deve ser remodelado?
Sendo de 1965, creio que ele deve ser
atualizado. Há dispositivos completamente
fora do contexto, como um que dá poderes
à Polícia Florestal para autuar em flagrante o
infrator, contrariando a Constituição Federal
que enfeixa essa atividade nas mãos da Polícia
Judiciária Federal ou Civil. Outro irreal é o que
mantém as áreas de mata ciliar em rios ou
córregos urbanos. São descumpridos de sul
a norte, porque é impossível o cumprimento.
Uma adequação à realidade seria bom, pois
as leis não devem levar ao absurdo.
Como o senhor avalia as ações do Poder Legislativo
em termos de criação e modificação de normas
ambientais nos últimos anos?
As alterações das leis ambientais em
tempos mais recentes correm sempre risco
sério de retrocesso. Hoje não passariam leis
excelentes, como a Lei 6.938, de 1981, que
instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente,
ou a Lei 7.347, de 1985, que trata da ação
civil pública.
O senhor escreveu o primeiro livro sobre crimes
ambientais do Brasil. Em relação a outros países,
como o senhor avalia a legislação de crimes
ambientais brasileira? Ela é muito severa?
É uma boa pergunta e de difícil resposta.
Há países, como a Argentina, em que a
proteção civil é ótima e a penal quase ine-
“Nossa lei de crimes ambientais tem penas simbólicas. O tráfico de espécimes da fauna para o
exterior significa uma pena de seis meses a um ano, o que chega a ser um estímulo aos traficantes”
“Os desembargadores e ministros, perdidos nos milhares de recursos que recebem, não se dão conta da relevância de definir as competências na área ambiental”
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editoria editoria
xistente. Outros, como a Itália e o Paraguai, em que o
forte é a proteção penal do meio ambiente. A legislação
penal do Brasil é avançada, é objeto de uma só lei e
favorece os acordos para recuperação do dano. Não a
considero severa. Não conheço nem 12 casos de prisão.
O mérito maior é mesmo o de possibilitar transações e
suspensões do processo com recuperação da área ou
medidas compensatórias. Quanto ao livro, vou contar uma
passagem boa. Eu me interessava pela matéria desde a
década de 1970, quando era promotor no litoral do estado
de São Paulo e tinha como meta escrever um livro. Mas o
serviço como juiz federal era muito e eu ia adiando essa
meta. Em 1988, perdi uma eleição para presidente da
Ajufe e, um dia, voltando para casa, pensei: “Bem, agora
eu não tenho o que fazer, a Vara está em dia e, por isso,
vou realizar meu sonho de escrever aquele livro”. Telefonei
ao meu irmão e ele me respondeu que esse tema não
merecia um livro. Consegui convencê-lo dizendo que um
dia esse seria o grande tema da humanidade. Para poder
escrever fui ao órgão ambiental do Paraná e, reunido com
procuradores e pessoal da área técnica, fui perguntando
o que significavam aquelas cautelas da lei florestal ou da
fauna. Gravei tudo e até hoje guardo a fita.
A responsabilização penal da pessoa jurídica em matéria ambiental,
instituída pela Lei 9.605/08, surtiu ou surte o efeito desejado no
sentido de redução de danos ambientais?
Algum efeito surtiu, mas bem aquém do ideal. O des-
conhecimento do assunto, o conformismo dos penalistas
mais tradicionais, a falta de disposição para as coisas novas,
fez com que a jurisprudência custasse a se consolidar. Até
hoje, a maioria dos tribunais não tem um precedente.
Como tem se comportado a jurisprudência sobre essa possibilidade
de responsabilização?
Em 2003, o TRF 4ª, em acórdão do Desembarga-
dor Federal Elcio Pinheiro de Castro, julgou o primeiro
caso. A partir daí, alguns tribunais de Justiça, como o do
Rio Grande do Sul, de São Paulo e de Santa Catarina,
emitiram decisões favoráveis. O STJ, ao início hesitante,
passou a aceitar a possibilidade de responsabilizar a
pessoa jurídica, desde que na companhia de uma física.
E o STF, em agosto de 2008, sinalizou que aceita tal tipo
de responsabilidade, em acórdão relatado pelo ministro
do Supremo Ricardo Lewandowski, no qual a discussão
central ficou por conta de caber ou não habeas corpus
para trancar a ação penal.
E o que dizer da responsabilização penal de pessoas físicas em
matéria ambiental? Houve redução de danos?
Sim, com certeza. Principalmente por meio de com-
posições com o Ministério Público. A intimidação também
é um fator inibitório.
O senhor é autor da obra Direito Ambiental em Evolução. Em qual
direção caminha a evolução do Direito Ambiental?
Caminhamos para uma absoluta predominância do
Direito Ambiental sobre todos os ramos do Direito. Não
existirão matérias alheias ao Direito Ambiental. Estamos
apenas no começo, mas já vemos a verdadeira “invasão”
no Direito Civil, Administrativo, Bancário e outros ramos.
O caminho é divulgar a matéria, torná-la obrigatória nos
cursos de graduação, exigi-la nos concursos de servidores,
alargar seu campo de atuação.
Alguns críticos dizem que o Direito Ambiental brasileiro não inclui
o “homem” como bem ambiental. O que pensa a esse respeito?
Essa é uma crítica desarrazoada, pois o art. 225,
caput, da Constituição é nitidamente antropocêntrico. O
homem continuar a ser o centro de tudo. Ao meu ver exa-
geradamente. Temos que cuidar de nossos companheiros
de viagem, os animais, as plantas, a terra.
Em relação à conscientização ambiental, o senhor acredita
que a população brasileira já consegue mensurar danos e
riscos ambientais ou, em sua maioria, ainda permanece leiga
sobre o tema?
Avançamos bastante, mas a maioria ainda está longe
de ter consciência ambiental. Pensam que meio ambiente
é proteger os bichos e não jogar lixo nas ruas. No entanto,
continuam a gastar energia elétrica inutilmente, a dirigir
um veículo por pessoa, a tomar banhos, ou permitir que
seus filhos tomem, cuja duração é exagerada. Brasília é
o exemplo máximo. Prédios fechados, janelas escuras e
ar condicionado dia e noite. Em uma cidade de imensa
claridade. Que arquitetura é essa?
Tendo em vista o citado art. 225, caput, da Constituição, qual deve
ser o papel de cada um nessa defesa do meio ambiente?
O papel é de ativismo, na vida diária, na vida pro-
fissional, em tudo. Tenho dezenas de passagens em que,
como cidadão, agi. Até me admiro por não ter levado
um soco, pois já chamei a atenção de gente fazendo a
barba com a torneira aberta, jogando lixo na rua, lavando
a calçada com aquelas horríveis mangueiras a jato, coisas
assim. Não me importo. Sigo firme. Às vezes, com
delicadeza. Outro dia um grupo de jovens caminhava
no parque Barigui, em Curitiba, e eu ia com meu filho.
Nisso, um jogou uma garrafa no chão. Eu avancei, peguei
a garrafa e entreguei a ele, dizendo: “Olhe, você deixou
cair no chão”.
O senhor se considera ambientalista?
Creio que não só eu me considero, mas que todos
assim me consideram. Mas não sou fundamentalista. Sei
perfeitamente os limites. Como juiz, por vezes, decidi
contra a tese do Ministério Público. Ambientalista sim,
mas com percepção de todos os problemas que nos
envolvem, inclusive sociais e econômicos. E me orgulho
disso. Quando estivermos em 2025, com falta de água,
poluição do ar e em cidades quentes e desagradáveis,
meus descendentes se lembrarão de mim com orgulho. E
eu, seja lá onde estiver, se tiver oportunidade de dizer algo,
direi: “Olhem, a minha parte eu tentei fazer bem feita”.
“A maioria das pessoas ainda está longe de ter consciência ambiental. Pensam que meio ambiente é proteger os bichos e não jogar lixo nas ruas”
“As alterações das leis ambientais em tempos mais recentes correm sempre risco sério de retrocesso. Hoje
não passariam leis excelentes como a que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente”
Revista de Cultura AJUFE42 Revista de Cultura AJUFE 43
academia
De todas as cidades do Brasil, o Rio
de Janeiro é a que mais tem história para
nos contar. Sua história vem de longe. Na
verdade, vem do primeiro dia do ano de
1502. Uma flotilha – capitaneada, de direito,
por um protegido do rei Dom Manuel1, mas
de fato comandada pelo experiente Américo
Vespúcio2 – fundeou-se no estuário (assim
se acreditou) de um rio volumoso, cercado
de luxuriantes montanhas, que se tornavam
azuis à medida que se afastavam da vista do
navegante extasiado3. No governo-geral do
desembargador Mem de Sá, houve sucessivas
refregas e escaramuças para desalojar os
calvinistas franceses trazidos por Villegaignon4.
Em pleno reinado de Dom Sebastião, o
capitão-mor Estácio de Sá, a mando do
governador-geral, saiu da Bahia rumo à Baía
de Guanabara5. Foi impedido de atracar pelos
gentios e franceses. Rumou, então, para
São Vicente, onde conseguiu mais gente e
melhor equipagem. Voltou com o propósito
de fundar naquele sítio uma nova colônia, a
qual deu o nome Cidade de São Sebastião
do Rio de Janeiro. Em 1º de março de 15656,
Estácio de Sá7 mandou limpar uma boa área8
e edificou uma tranqueira (paliçada) para
proteger a feitoria contra ataques de tamoios
e franceses9. Em novembro de 1711, chegou
o revide dos franceses: o Rio de Janeiro foi
invadido por marinheiros de Duguay-Trouin,
que exigiram dinheiro, gado e açúcar para
devolver a cidade aos portugueses.
De 1763 a 1960, a cidade foi a capital
política da Colônia, do Reino, do Império e,
por último, da República. O Rio nunca perdeu
o título de Cidade Maravilhosa, de cidade
do samba e do carnaval, do futebol, dos
intelectuais, das favelas e das morenas bem
torneadas e queimadas de sol.
A Cidade de São Sebastião do Rio de Janei-
ro, porém, não poderia sequer imaginar que sua
paz bucólica estava para ser perturbada para
sempre em razão das guerras napoleônicas.
Se a marinha de Pitt havia derrotado Napoleão
Bonaparte nos mares, no continente o exército
francês vencia10. Com a capitulação da Prússia,
Napoleão impôs (Decreto de Berlim) o
P.R. = Príncipe Real = Ponha-se na ruaPor Adhemar Ferreira Maciel
Seduzidas pelos luxos da realeza, as pessoas cediam de bom grado suas casas para os nobres. Em um Brasil colônia, a chegada da Família Real portuguesa mudaria para sempre a realidade do país
bloqueio dos portos do continente europeu
para os navios ingleses. Dinamarca e Portugal,
todavia, ainda continuavam neutros. Napoleão,
então, não teve dúvida: firmou secretamente
com a Espanha a invasão e o retalhamento de
Portugal (Tratado de Fontainebleau).
Por mais de uma vez, o Brasil já havia sido
lembrado como uma alternativa segura para a
transferência da Corte portuguesa, sobretudo,
em caso de emergência. A estratégia era
antiga e encontrava precedentes na Europa.
Padre Antônio Vieira, no século XVII, com suas
visões messiânicas do Quinto Império, teria
aconselhado Dom João IV a transferir-se para
o Brasil11. Mais tarde, sem ameaça aparente
de invasão estrangeira, o embaixador Dom
Luís da Cunha (1668-1740) insistiu na saída
da Corte de Portugal. Também no governo do
Marquês de Pombal (1750-1777), cogitou-se
da transferência da Corte de Dom José I para
a América portuguesa. Mas só em agosto
“A chegada da Família Real portuguesa, em março de 1808, trouxe uma série de transtornos
iniciais à cidade do Rio de Janeiro”
“Por mais de uma vez, o Brasil já havia sido lembrado como uma alternativa segura para a transferência da Corte portuguesa”
REFERÊNCIAS
1 Dom Nuno Manuel. Nuno Manuel era irmão do camareiro-mor do rei, ambos filhos do bispo da Guarda com uma ama do soberano (cf. VARNHAGEN, Francisco Adolfo. História geral do Brasil, 7ª ed.,1962, t. I, p. 82). Para alguns historiadores, quem se achava no comando era Gonçalo Coelho (ver as notas de rodapé de CALMON, Pedro. História do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1963, I v., p. 86). Amerigo Vespucci, em sua duvidosa Lettera al Soderini – uma mistura de realidade e fabulação -, não menciona o nome de Gonçalo Coelho.
2 Ibidem, p. 83.
3 Foi um “notável engano cosmográfico” tomar a Baía de Guanabara como a foz de um grande rio (cf. VARNHAGEN, ob. cit., p. 322).
4 Cf. CALMON, Pedro, ob. cit., p. 265 e seg.
5 ROCHA PITTA. A história da América portuguesa. São Paulo: W. M. Jackson Inc., v. XXX de Clássicos Jackson, 1965, p. 125.
6 Cf. ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial (1500-1800). Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, Publifolha, 2000, p. 77.
7 Coincidentemente, foi no dia do padroeiro da cidade (S. Sebastião) que Estácio de Sá recebeu uma flechada no rosto, falecendo dias depois (cf. CALMON, ob. cit., p. 290). Cf., ainda, ROCHA PITTA, ob. cit., p. 129.
8 Acredita-se que o sítio ficava no Outeiro da Glória, antigo Morro do Léry. (cf. VARNHAGEN, ob. cit., p. 339). Jean de Léry, um huguenote que se desentendeu com Villegaignon, foi, com outros colonos, ocupar parte do continente (Sobre Léry, consulte http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean_de_L%C3%A9ry. Acesso em 31.03.2008).
9 Diversos fatores contribuíram para afastar os franceses do Rio de Janeiro: a energia de Mem de Sá, a habilidade
Revista de Cultura AJUFE44 Revista de Cultura AJUFE 45
editoria editoria
de 1807, o Príncipe Regente Dom João
tomou a decisão de vir para sua colônia12.
Oficialmente, foi no dia 30 de setembro
de 1807, no Palácio de Nossa Senhora da
Ajuda, que o Conselho de Estado Português13
sacramentou a transferência imediata da
Família Real para o Brasil: o exército franco-
espanhol estava prestes a invadir Portugal14.
Em 29 de novembro daquele ano de 1807,
às sete da manhã, quando as tropas de Junot
já se achavam nas cercanias de Lisboa, a
frota luso-inglesa deixou a barra, rumando
para o Brasil15.
A chegada da Família Real portuguesa,
em março de 1808, trouxe uma série de
transtornos iniciais à cidade, cuja população
andava entre 50 mil16 e 60 mil17 habitantes.
Ruas tresandando a urina, fezes e amônia.
Animais soltos. Porcos chafurdando na lama.
Ratos indo e vindo, espiando curiosos para os
passantes. Muitas vezes, como relatam Von
Spix e Von Martius menos de uma década
depois, a limpeza pública ficava a cargo de
urubus, “por esse motivo protegidos”18. A
água potável, que era captada no morro do
“Não há dúvida de que o Março de 1808 nos trouxe alento, esperança e, sobretudo, união, evitando que o Brasil se rachasse em múltiplos e pequenos países”
Corcovado, chegava à cidade por meio de um
imponente aqueduto construído em 174019. A
seguir, era vendida por escravos em vasilhames
sem tampa ou em odres já aquecidos pelo
sol ou pelo corpo do transportador20. Os
dejetos humanos, tal como nos burgos e
cidades europeias da Idade Média, eram
transportados em carroças ou nas costas
suarentas de “tigres” (escravos)21, para serem
despejados no mar ou nos fossos mandados
fazer pelo Senado da Câmara. A falta de
higiene e cuidado sanitário fez com que
doenças como o tifo e a varíola plantassem
“tenda” definitivamente na cidade22. Esse foi o
Rio de Janeiro que a comitiva real, composta
de mais de 4 mil pessoas23, encontrou pela
frente e iria habitar.
Como não havia casas para todos, o gover-
no optou por solução bem da época: requisitou
as melhores moradias de comerciantes, qua-
se todos eles portugueses. O procedimento
administrativo era o mais sumário possível:
colocava-se na porta da habitação requisitada
as iniciais “P.R.” (Príncipe Real), e a residência
estava automaticamente requisitada… O vulgo,
na fina ironia carioca, traduzia o “P.R.” como
“ponha-se na rua”24.
Muita gente, enfeitiçada pela maneira
afetada das damas e dos alfenins da Corte,
cedia de bom grado suas casas e seus serviçais
para os áulicos. Com isso, sentia-se prestigiada,
pois estava prestando favor ao Príncipe25.
do Padre Nóbrega, o desencanto de Coligny com Villegaignon e as lutas entre católicos e huguenotes na França (cf. SOUTHEY, Robert. História do Brasil. Trad. Luis Joaquim de Oliveira e Castro. Belo Horizonte: Livraria Itatiaia Editora Limitada, 1981, v. 1, p. 205 e 219). 10 MAUROIS, André. História da Inglaterra. Trad. Carlos Domingues. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, p. 401 e seg.
11 Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Transfer%C3% AAncia_da_corte_portuguesa_para_o_Brasil_(1808-1821)#Antecedentes. Acesso em: 12.04.2008.
12 Dom João, que fez que ia assinar o decreto por cinco vezes, tinha verdadeiro pavor só de pensar em atravessar o Oceano Atlântico (cf. WILCKEN, Patrick. Império à deriva: a corte portuguesa no Rio de Janeiro (1808-1821). Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005, p. 32).
13 O Conselho, em sua maioria, era pela neutralidade. Havia, porém, partidários da Inglaterra e partidários da França (cf. BRANDÃO, Fernando Antônio Xavier: A viagem marítima da família real portuguesa para o Brasil. Belo Horizonte: IHGMG, 2008, p. 4).
14 Cf. OLIVEIRA LIMA. Dom João VI no Brasil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006, p. 47.
15 Ibidem, p. 54. Segundo Kenneth H. LIGHT (A viagem marítima da família real: a transferência da corte portuguesa para o Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 224 e seg.) a frota que saiu de Lisboa era formada de 57 navios (naus, brigues, fragatas, bergantins, escunas e corvetas) portugueses e britânicos. Para uma visão resumida, consulte BRANDÃO, ob. cit., p. 7.
16 LUIZ EDMUNDO. O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, p. 58. Também os naturalistas alemães (bávaros) Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, que estiveram no Brasil de 1817 a 1820, falam que o Rio de Janeiro devia ter uma população de 110.000 habitantes. Antes da chegada da Família Real, a população era estimada em 50.000 almas (Viagem pelo Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, I v., p. 52).
17 Para John Luccock, comerciante inglês que chegou cerca de 3 meses depois da vinda da Corte portuguesa, a população do Rio de Janeiro era de 60.000 habitantes (cf. GOMES, Laurentino. 1808. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007, p.155). Só para se ter uma idéia, no ano de
1800, Londres era a maior cidade do mundo: um milhão de habitantes (cf. PORTER, Roy. London: a social history. Cambridge, Massachusetts, 1995, p. 186). A população de Lisboa andava em pouco mais de 200.000 habitantes (cf. WILCKEN, ob. cit., p. 45).
18 SPIX/MARTIUS, ob. cit., p. 64.
19 O modelo da construção foi um aqueduto de Lisboa, construído no tempo de D. João V ( ibidem, p. 49).
20 Spix e Martius, depois de elogiarem a qualidade da água fresca captada, afirmavam que ela ficava comprometida quando transportada “por meio de negros pouco asseados”. Admoestavam que se devia chamar a atenção da “saúde pública, a fim de acabar com isso.” O governo, por outro lado, prestaria um “relevante serviço à população se encanasse água para muitas casas particulares” (ibidem, p. 49).
21 Os “tigres” eram recipientes destinados aos dejetos de cada casa (cf. EDMUNDO, Luiz, ob. cit. p. 63). Quem transportava o barril nas costas acabou por receber o mesmo nome (cf. HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª ed., 35. impressão. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986).
22 EDMUNDO, Luiz, ob. cit., p. 20.
23 FAORO fala entre 10.000 e 15.000 civis (cf. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo. 10. ed.: Globo/Publifolha, 2000, v. I, p. 281). LUIZ EDMUNDO (ob. cit., p. 58) alude a 15.000. Pedro CALMON menciona 10.000 (cf. CALMON, Pedro. História do Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1963, vol. IV, p. 1.390). MALERBA, Jurandir (A corte no exílio. São Paulo: Civilização Brasileira, 2000, p. 20, 202 e 233), diz “aproximadamente em 15.000 almas” embarcaram para o Brasil. As fontes primárias de Kenneth LIGHT (diários de bordo), porém, reduzem o número de civis para 4.500, no máximo.
24 Cf. FAORO, ob. cit., p. 290. No mesmo sentido, CALMON, ob. cit., p. 1.400.
25 Como o tesouro real estivesse minguado, Dom João, que não gostava de favores gratuitos, passou a recompensar aqueles que lhe serviam: distribuiu honrarias. Observa João ARMITAGE que durante o governo de Dom João VI distribuiu-se mais títulos e insígnias do que em todos os reinados anteriores da Casa de Bragança (História do Brasil, 3ª ed. Rio: Livraria Editora Zelio Valverde, 1943, p. 35)
Revista de Cultura AJUFE46 Revista de Cultura AJUFE 47
editoria editoria
Por certo, a requisição de habitações não
era novidade no final do século XVIII e início
do século XIX. Mas as requisições, quase
sempre, eram para abrigar temporariamente
tropas militares. Não para alojar civis, muito
menos, uma Corte inteira.
Alguns anos antes de a Corte portuguesa
ser transladada para o Brasil, requisições de
casas nos Estados Unidos da América, no lugar
de gerar títulos nobiliários e orgulho nacional,
geraram revolta e fomentaram uma guerra:
a Guerra da Independência (Revolution). A
preocupação com a requisição de moradias
por militares em tempo de paz era tão
grande que até uma emenda à Constituição
Federal – a Emenda nº. 3 – foi aprovada em
1791. Era frequente, mesmo em tempo de
paz, a requisição de residências particulares
de colonos por militares ingleses. O arbítrio
aumentou sobremaneira após um incidente
grave, em 16 de dezembro de 1773, que
ficou politicamente conhecido como Boston
Tea Party. O Parlamento britânico, como
retaliação, baixou uma lei (Quartering
Act), determinando a ocupação das casas
dos colonos que tivessem participado do
bloqueio naval ou da destruição da carga
de chá trazida por navios que se achavam
atracados na baía de Boston. Essa e outras
leis britânicas da época, que foram apodadas
pelos comerciantes e colonos americanos de
Leis Intoleráveis,26 apressaram a reunião de
representantes de todas as colônias (salvo
a da Geórgia), na cidade da Filadélfia. Essa
reunião deu origem ao Primeiro Congresso
Continental, que plantou, como já se disse, as
raízes da independência.
Para o colono não havia humilhação
maior do que ter sua casa requisitada para
abrigar e alimentar soldados.27 Thomas
Cooley ressalta que:
“É difícil imaginar meio mais terrível de
opressão do que seria, sob a autoridade do
Executivo, ou de um comandante militar, lotar
a casa de uma pessoa cheia de ódio com uma
companhia de soldados, que deveriam ser
alimentados e aquecidos a suas custas”.28
Talvez se possa estabelecer um paralelo
entre a requisição arbitrária de residências
tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil.
Lá, como cá, havia um ressentimento, um
ódio velado por parte do colono contra a
metrópole. Ocorre, porém, que os estadu-
nidenses sempre se consideraram com os
mesmos direitos que os ingleses da Corte
de São Tiago (St. James).29 Conosco, aqui no
Brasil, isso não ocorria. A população do Rio
Janeiro era predominantemente de negros
ou mestiços,30 que não tinham voz política
nem administrativa. Daí, para nós, a vinda da
Família Real trouxe um sentimento de união,
de orgulho, um “sentimento nacional”, como
testemunhou John Luccock em suas Notas
sobre o Rio de Janeiro.31
Não há dúvida de que o Março de 1808
nos trouxe alento, esperança e, sobretudo,
união, evitando que o Brasil se rachasse
em múltiplos e pequenos países, como
movimentos políticos anteriores já tinham
mostrado claramente.32
Obras citadas
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean_de_L%C3%A9ry. Acesso em 31.03.2008.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Transfer%C3%AAncia_da_cor-te_portuguesa_para_o_Brasil_(1808-1821)#Antecedentes. Acesso em: 12.04.2008.
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Adhemar Ferreira Maciel é Ministro aposentado do Superior Tribu-nal de Justiça e membro da Academia Mineira de Letras Jurídicas.
26 Cf. SELLERS, Charles, MAY, Henry, MCMILLEN, Neil. Uma reavaliação da história dos Estados Unidos. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 62.
27 FERGUSON, John H., McHENRY, Dean E. The American federal government. New York: McGraw-Hill Book Company, Inc., 1950, p. 149.
28 Tradução livre. No original: It is difficult to imagine a more terrible means of oppression than would be the power in the executive, or in a military commander, to fill the house of an obnoxious person with a company of soldiers, who shall be fed and warmed at his expense (COOLEY, Thomas. The general principles of constitutional law in the United States of America. 4th ed. Boston: Little, Brown, and Company, 1931, p. 264)
29 A Declaration do Primeiro Congresso Continental (13.10.1774) firmou que os ancestrais dos colonos que primeiro se fixaram nas colônias “(já) se achavam, por ocasião de sua emigração da mãe-pátria, habilitados a todos os direitos, liberdades e imunidades dos súditos livres e natos do reino da Inglaterra” (…were at the time of their emigration from the mother country, entitled to all the rights, liberties, and immunities of the free and natural-born subjects with the realm of England). No tocante ao colono considerar-se com os mesmos direitos do inglês da metrópole, ver STORY, Joseph, Commentaries on the constitution of the United States. New York: Da Capo Press, 1970, v. 1, p. 163.
30 Cerca de dois terços da população eram de negros e mestiços (cf. MALERBA, ob. cit., 126).
31 Apud Malerba, p. 225.
32 A vinda de D. João VI para o Brasil frustrou os planos de Napoleão, que já havia até escolhido oficiais para governar o Rio de Janeiro (Kellermann), a Bahia (Laborde) e o Maranhão (Loyson) após a queda de Portugal (cf. AMEAL, João. História de Portugal. Porto: Livraria Tavares Martins, 1940, p. 581).
Revista de Cultura AJUFE48 Revista de Cultura AJUFE 49
editoriaacademia
apenas para ilustrar. Claro que não se pode
fazer muitas coisas ao mesmo tempo, mas
algumas, pois de outra forma poderíamos cair
no abuso mencionado no conhecido ditado
popular que leciona: “o homem dos sete
instrumentos não toca bem nenhum!”.
Se organizarmos racionalmente nossas
atividades, poderemos ter mais tempo e
aproveitar aquilo a que chamamos o intertempo,
o somatório dos intervalos ou espaços entre
dois ou mais tempos… Sentimos, assim,
que o tempo comporta os estudos filosófico,
sociológico, funcional e profissional. Não é
sem razão que surgiram disciplinas como a
Cronoanálise, Cronologia, etc.
De qualquer modo, temos que valorizar
bem o tempo, inclusive o tempo de lazer
sadio, como já o fizera Laurindo Rabelo, em
seu belo e conhecido soneto A conta do
tempo ou, segundo outros, O tempo:
“Deus pede estrita conta de meu tempo,
É forçoso do tempo já dar conta.
Mas, como dar sem tempo tanta conta,
Eu que gastei sem conta tanto tempo?
Para ter minha conta feita a tempo
Dado me foi bom tempo e não fiz conta.
Não quis sobrando tempo fazer conta,
Quero hoje fazer conta e falta tempo.
Oh! vós que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis esse tempo em passatempo:
Cuidai enquanto é tempo fazer conta.
Mas, ah! se os que contam com seu tempo,
Fizessem desse tempo alguma conta,
Não choravam como eu o não ter tempo”
(Gravação do Jornalista AZ, Rádio Mundial,
anos 50, e www.sonetos.com.br, acesso
Google, fevereiro-2009).
Por sua vez, o saudoso Constancio
Vigil, em sua Terra virgem, escrevera com
notável elegância:
“O tempo, como o vento, seca as lágrimas.
Como a água, tudo devolve. Como o fogo,
reduz as coisas a cinzas. Como o sol, tudo
esclarece. Aclara o confuso, descobre o
recôndito, encontra o perdido, reconcilia os
inimigos, põe à prova o amor e a amizade,
cega e confunde os ambiciosos, abate o
orgulho, extingue as paixões, dá conformidade.
Quem se joga contra ele, terá o malogro.
Quem o aguarda, torna-se poderoso e quem
o toma como aliado, estabelece comércio
com a Sabedoria”.
Aqui, portanto, a nossa homenagem ao
bom uso do tempo, sem deixar de lado o
precioso tempo do lazer, do esporte e do
descanso, ao lado do tempo de atividade
para todos. Neste pequeno estudo, nosso
esforço é também no sentido de abrir
perspectivas de mais valorização e melhor
análise do tempo, de maneira que sejam
respeitados os variados pontos de vista dos
demais seres humanos.
Suposto que o espaço seja a distância entre dois pontos, o tempo
é o espaço entre dois fatos, a espera entre dois eventos.
Entretanto, de acordo com a Teoria da Relatividade, “o tempo e
o espaço em si reduzem-se a meras sombras e só uma espécie de
interrelação entre ambos dá um caráter de independência”.
Uma das mais belas páginas da literatura universal lembra:
“Tudo tem o seu tempo determinado e há tempo para todo o
propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer e tempo de morrer,
tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de
matar e tempo de curar, tempo de derrubar e tempo de edificar; tempo
de chorar e tempo de rir; tempo de prantear e tempo de saltar; tempo
de espalhar pedras e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar e
tempo de afastar-se de abraçar; tempo de buscar e tempo de perder;
tempo de guardar e tempo de deitar fora; tempo de rasgar e tempo
de coser; tempo de estar calado e tempo de falar; tempo de amar e
tempo de aborrecer; tempo de guerra e tempo de paz”… (Salomão,
Eclesiastes, 3:1-8).
Nós, os membros da sociedade contemporânea, precisamos usar
bem e dominar carinhosamente o tempo, de modo racional. Do con-
trário, ele nos domina e nos devora, como Saturno a seus próprios filhos.
Por outro lado, a chamada “falta de tempo” significa, quase sempre,
desorganização de nossa parte, quando não preguiça e negligência. E
isso dizemos porque, muitas e muitas vezes, é possível fazermos mais
de uma coisa ao mesmo tempo. O cotidiano está cheio de exemplos
claros e práticos.
Na atual sociedade de consumo e de competição, as pessoas usam
o tempo para mais de uma coisa ou assunto, quais sejam: estudar
viajando ou viajar estudando, dirigir fumando ou fumar dirigindo, dirigir
“celularizando”, ler na fila, amar na fila, falar comendo, ou comer falando,
fazer dois cursos, médio ou superior ao mesmo tempo, etc. Na zona
rural, cantar capinando, capinar cantando. São esses alguns exemplos,
O tempo e a falta de tempoPor Adão de Assunção Duarte
O homem moderno está, cada vez mais, escravo do espaço entre dois fatos ou da falta de espaço entre eles. Organize seu tempo e faça dele alguma conta, é o que recomenda o autor
“Se organizarmos racionalmente nossas atividades, poderemos ter mais tempo e aproveitar aquilo a que chamamos o intertempo, o somatório dos intervalos ou espaços entre dois ou mais tempos”
Adão de Assunção Duarte é Juiz Federal aposentado e professor universitário em Salvador (BA). .
Revista de Cultura AJUFE50 Revista de Cultura AJUFE 51
academia editoria
Disciplinando o uso de algemas pela
polícia, recentemente, em 22/08/2008, o
Supremo Tribunal Federal editou a Súmula
Vinculante nº 11, de seguinte teor:
“Só é lícito o uso de algemas em casos de
resistência e de fundado receio de fuga ou de
perigo à integridade física própria ou alheia,
por parte do preso ou de terceiros, justifica-
da a excepcionalidade por escrito, sob pena
de responsabilidade disciplinar, civil e penal
do agente ou da autoridade e de nulidade
da prisão ou do ato processual a que se
refere, sem prejuízo da responsabilidade
civil do Estado”.
A Excelsa Corte, por seu plenário, invocou,
como suporte de sua decisão, vários preceitos
constitucionais, entre eles o que coloca a
dignidade da pessoa humana como um dos
fundamentos do Estado Democrático de
Direito e os que, resguardando os direitos
fundamentais, proíbe o tratamento desumano
e degradante do indivíduo, a violação da
imagem das pessoas e o que assegura ao
preso o respeito à sua integridade física e
moral (CF – art.1º, III e art. 5º, III, X e XLIX).
Em nível infraconstitucional, baseou-se,
entre outros dispositivos, no artigo 284, do Có-
digo de Processo Penal (Não será permitido o
emprego de força, salvo a indispensável no
caso de resistência ou de tentativa de fuga do
preso); no art. 350, do Código Penal, que cuida
do crime de exercício arbitrário ou abuso de
poder (Ordenar ou executar medida privativa
de liberdade, sem as formalidades legais ou
com abuso de poder); e na Lei 4.898/65, que
trata do abuso de autoridade (Art. 4º. Constitui
também abuso de autoridade: a) ordenar
ou executar medida privativa de liberdade
individual, sem as formalidades legais ou
com abuso de poder).
DIREITO PROCESSUAL ANTERIOR
Nesse passo, o Supremo Tribunal, ao
impor a igualdade negativa (a de que,
como regra, ninguém pode ser algemado),
retrocedeu à tradição de nosso vetusto
direito, sob a égide da Corte Imperial, que
outorgou impositivamente, debaixo dos
Algemas: regra ou exceção?Por Paulo Fernando Silveira
Amparado pelo direito à vida e pela proteção à integridade física, previstosna Constituição, o autor tece argumentos contrários à Súmula Vinculante nº 11, que diz que o uso de algemas só é lícito em casos de resistência
canhões, a Constituição de 1824 (oferecida e jurada por
Sua Majestade), colocando nas mãos deste, ao lado do
Poder Executivo, o poder moderador, fonte de privilégios
espúrios para os homens ricos do país (o imperador
nomeava os senadores para o exercício vitalício do cargo,
nomeava e destituía os juízes de direito) e para o clero,
cujos bispos eram também por ele nomeados, sendo
que todos os membros da Igreja – o catolicismo era a
religião oficial do Estado – recebiam remuneração estatal
(padroado), como se fossem funcionários públicos (CF-
1824, arts.101 e 102).
Dentro desse contexto, não é de admirar o acolhimento,
na época, pelo menos na lei formal, das denúncias do
marquês de Beccaria (o criminalista italiano Cesare
Bonesana – 1738-1794), quanto aos cruéis tratamentos
dispensados aos criminosos nos presídios, impondo-se
sanção ao funcionário que conduzisse o preso “com ferros,
algemas ou cordas”, salvo o caso extremo de segurança,
justificado pelo condutor (artigo 28, do Decreto nº 4.824,
de 22/11/1871, que regulamentou a Lei nº 2.033, de
20/09/1871)1. Já imaginou um barão, um conde, um
duque ou um padre sendo algemado? Seria loucura!
Além do mais, naquele tempo em que a existência da
desigualdade era fato aceito passivamente, a criminalidade
e a violência eram mínimas: era normal deixar as portas
das casas abertas durante o dia.
VÁCUO LEGISLATIVO
O Supremo Tribunal Federal resolveu editar a
súmula vinculante em face do vácuo legislativo, isto é, da
ausência de norma específica na Constituição de 1988 e
de legislação própria sobre o uso de algemas, eis que o
comando, expresso no artigo 199, da Lei de Execução Penal
– Lei nº 7.210, de 11/07/84 (O emprego de algemas será
disciplinado por decreto federal) não foi, até o momento,
cumprido pelo Poder Executivo.
Todavia, a meu ver, com todo o respeito, a Excelsa
Corte de Justiça não foi feliz nessa sua surpreendente
e inovadora iniciativa de normatização, generérica e
apriorística, da conduta policial.
ATO DISCRICIONÁRIO CONFORME O COSTUME
Digo surpreendente porque até então, durante toda a
vigência do atual Código de Processo Penal, que é de 1941,
o uso de algemas sempre foi considerado ato discricionário
do policial que efetua a prisão. A discrição, na verdade, era
de fato duvidosa. Primeiro, porque o agente geralmente
não tinha algema para ser empregada. Seu uso com mais
intensidade só está acontecendo nos dias atuais. Depois,
porque a algema, como regra, só era aplicada na prisão
de pessoa pobre, considerada a priori como elemento
perigoso e violento, e raramente (se é que houve algum
caso) em gente rica e poderosa, sempre tida como gente
de bem, o que sempre causava repulsa e protesto da elite
dominante – inclusive pelos veículos de comunicação de
sua propriedade, quando alguém de seu meio era tocado
pela polícia ou condenado pelo Poder Judiciário.
Coincidência ou não, a Súmula Vinculante nº 11, de
agosto de 2008, foi editada logo após a prisão de um
1 Mirabete, Julio Fabbrini. Execução Penal. 5.ed.São Paulo: Atlas, 1993, pg.462.
“A Excelsa Corte de Justiça não foi feliz nessa sua surpreendente e inovadora iniciativa de normatização,
generérica e apriorística, da conduta policial”
Revista de Cultura AJUFE52 Revista de Cultura AJUFE 53
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banqueiro e de um ex-prefeito da capital
paulista, em que ambos foram algemados.
Foram ignorados os surdos clamores de uma
sociedade saturada de injustiças no sentido
de ser implementado já, de modo sério, para
valer para todos, indistintamente, o princípio
constitucional da igualdade. Ao contrário,
optou-se, nos moldes dos tempos imperiais,
por uma igualdade negativa, de difícil, senão
impossível, realização que, por isso mesmo,
continua privilegiando os poderosos.
Portanto, até o advento dessa súmula
vinculante, a utilização da algema, no ato da
prisão, constituía ato discricionário do agente
encarregado da missão. Agora, a súmula proibiu
o seu emprego, exceto nos restritos casos a
que se refere. Logo, presentemente, a vedação
da prática do ato de prevenção e contenção
constitui a regra. E a excepcionalidade da
medida ficou vinculada aos parâmetros auto-
rizados pela citada súmula. Em resumo, a
discricionariedade foi extinta de vez, restando
o ato vinculado apenas a casos restritíssimos,
em que o policial está autorizado a algemar
o preso, desde que justifique, por escrito, as
razões da tomada da medida extrema.
VALORES ATUAIS A SEREM PRESERVADOS
Entendo, porém, ao contrário, que – numa
interpretação realística, que venha ao encontro
das sentidas necessidades atuais de igualdade
e de segurança da população – perante nossa
Constituição Federal, a utilização da algema,
quando da prisão em flagrante delito ou por
ordem judicial, deve constituir a normalidade,
figurando como exceção a sua não utilização.
A meu ver, há valores maiores em jogo do que
os suscitados pelo Supremo Tribunal Federal.
O direito à vida e à segurança e a proteção
à integridade física do agente e de terceiro
são garantidos pela Constituição Federal. O
emprego da algema visa, fundamentalmente,
preservar esses valores.
Mesmo no caso de comparecimento do
preso a juízo – e todas as vezes em que o
detento estiver fora da cela, em ambiente
público –, este também deve ser algema-
do. Durante a audiência, o magistrado, se
achar conveniente, pode mandar liberá-lo,
ouvindo-se, antes, o agente policial sobre a
periculosidade do réu.
Acredito que o uso de algema no ato
da prisão se impõe porque vivemos tempos
modernos, de ostensiva violência pública, em
que os marginais, isolados ou em quadrilhas
organizadas, como regra, têm demonstrado
pouco respeito pela vida alheia, sem que se
possa esperar deles que atendam, pacífica e
mansamente, à voz de prisão e se disponham,
sem reação, a ser conduzidos, ordeiramen-
te, à delegacia de polícia. Mesmo os que
acatam a ordem devem ser algemados para
a própria segurança e proteção, bem como
do agente e de terceiros.
Assim, o emprego da algema, no ato da prisão, data
venia, torna-se imprescindível por várias razões, evidentes
por si, a saber: a) para proteção e segurança da integridade
física do policial encarregado da diligência contra possíveis
e inesperados atos de agressão do preso; b) para resguardar
a incolumidade física de terceiros, ante atos de rebeldia do
prisioneiro; c) para evitar a fuga do preso; d) para evitar a
destruição de provas; e, finalmente, e) para proteção do
próprio preso, que pode, inclusive, em desespero, atentar
contra sua própria vida (suicídio).
RESPONSABILIDADE DO AGENTE E DO ESTADO
Aliás, se o preso não for algemado e houver dano a
terceiros, o policial responderá civil e criminalmente por
negligência e o Estado por danos materiais.
Por isso mesmo, não se compreende porque, em se
tratando a prisão de um ato tão perigoso, o uso de algema
seja negativamente disciplinado, a priori, por quem não
corre qualquer risco de vida ou de ferimento. Ocorre-me
a figura do almirante que, em terra firme, quer dispor, por
meio de regulamento, sobre a conveniência de o capitão
de um navio – que se encontra em alto mar, em vias de
naufragar, ao enfrentar uma violenta borrasca – atirar a
carga ao mar ou arriar as velas.
Não está dito aqui que os eventuais excessos no uso
da algema (por exemplo, a duração por tempo maior do
que o necessário ou depois que o detido já estiver dentro
da cela) não possam ser declarados inconstitucionais,
mas isso numa análise do caso concreto, posteriormente
à ocorrência do fato. Quanto à exposição do preso pela
mídia, a televisão, a meu ver, pode mostrar o ato da prisão
e a condução do preso algemado, desde que as tomadas
sejam feitas na via pública, sendo proibidas dentro do
distrito policial. Inconstitucional, também, parece-me a
permissão de entrevista do preso no recinto da delegacia,
mormente sem a presença do advogado de defesa.
A PRISÃO COMO ÚNICO FATO CONSTRANGEDOR
É obvio que o emprego da algema constitui uma
intrusão menor na privacidade do indivíduo do que o
próprio ato da prisão. Este, sim, atenta contra sua liberdade,
sua dignidade, sua integridade moral e sua imagem pública.
Decorre daí que, se o ato da prisão for legal, seja em
flagrante delito ou por ordem judicial, o uso da algema é
constitucionalmente permitido, eis que, além de se tratar
do uso moderado de força contra o preso, autorizada por
lei, visando proteger interesses maiores, como o direito à
vida e à integridade física do agente policial e de terceiros,
causa muitíssimo menos constrangimento do que a
própria prisão.
O interesse do Estado (agindo publicae utilitatis
causa) de evitar risco de vida, ou de danos pessoais, de
seus agentes policiais ou de terceiros – que autoriza o
uso de algema – sobrepuja, de muito, o individual ( jus
libertatis), e mais ainda relativamente à pretensa ofensa
– pelo único fato do emprego da algema – à dignidade e
imagem daquele que é preso.
O EMPREGO DE FORÇA NO ATO DA PRISÃO
Há de se reconhecer que, inerente ao ato da prisão,
encontra-se a autorização legal do emprego de força coer-
citiva necessária à sua realização – quem pode refutar
isso? – por parte do agente que o executa. Logo, o ato de
algemar está inserido, naturalmente, como meio moderado
e imprescindível à implementação da medida, para que ela
ocorra, eficazmente, sem risco de vida ou de ferimentos
para o policial, para terceiros e para o próprio preso.
“A discricionariedade foi extinta de vez, restando o ato vinculado apenas a casos restritíssimos, em que o policial está autorizado a algemar o preso”
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VALORES CONSTITUCIONALMENTE PROTEGIDOS
Evidentemente, o risco de vida que corre o policial que
executa a diligência merece maior proteção constitucional
do que uma pretensa agressão, reflexa e indireta, ao
direito de privacidade (ou intimidade) do preso pelo
uso da algema, quando, na realidade, o constrangimento
sofrido decorre, precisamente, do ato ostensivo da prisão,
em princípio legal e legítima. É o preço que o indivíduo
paga para o resguardo, a proteção e o bem da sociedade.
Como é a prisão que causa o constrangimento, se esta
for, no futuro, tida como ilegal, o indivíduo tem direito
a receber do Estado a indenização pelos danos morais
que sofreu em decorrência dela. Mas não pelo fato, por
si só, da utilização da algema. Todavia, se a prisão for
legal, não haverá constrangimento pessoal juridicamente
protegido, eis que ele decorrerá não da prisão, mas do
delito praticado, do qual haveria fortes indícios de que o
detido foi o seu autor.
Portanto, a meu ver, o uso das algemas (atividade
meio), longe de ser uma agressão contra a dignidade do
indivíduo, ou degradar a sua imagem – eis que ele vai
legalmente, afinal, ser aprisionado, isto é, ficar trancafiado
atrás das grades (objeto-fim) –, constitui um dever para
o agente policial, que deve empregar, indistintamente, o
instrumento de prevenção e de contenção em todas as
pessoas, sempre que ocorrer a prisão, a fim de que seja
dado cumprimento ao princípio constitucional da igualdade
de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza
(CF – art.5º, caput).
O USO DE ALGEMAS POR POLICIAIS NOS ESTADOS UNIDOS
Nos Estados Unidos, a U. S. Supreme Court, ao julgar
o caso Muehler v. Mena (2005)2 considerou constitucional
o uso de algemas numa simples busca e apreensão
domiciliar determinada pela Justiça, sem especificação
dos nomes dos eventuais ocupantes de uma casa, que
foi indicada com precisão apenas pelo endereço.
Iris Mena foi algemada numa garagem por duas a três
horas, durante o curso da diligência, enquanto dois poli-
ciais, autorizados por um search warrant judicial, faziam
a busca de armas letais e procuravam por evidências de
formação de quadrilha (gang membership) na residência
ocupada por ela e mais quatro elementos, todos não
identificados previamente.
Falando por uma Corte unânime – os julgamentos, lá,
são sempre feitos pelo plenário, de modo a tornar única
e indiscutível, sem divergências de turmas, a decisão do
tribunal e anunciadas como “Acórdãos da Corte”, ou seja,
a posição final da Corte, e não como voto de determinado
ministro, fato que valoriza muito, politicamente, o Poder
Judiciário –, o Chief Justice Rehnquist enfatizou que:
“A jurisprudência firmada sob a quarta emenda3 (a
que autoriza a busca domiciliar ou pessoal, semelhante
à prevista nos arts. 242 a 250, do Código de Processo
Penal brasileiro, também condicionada à existência de
fundadas razões que a autorizem), há muito reconhece
que o direito de se fazer uma prisão ou uma parada
investigatória carrega consigo o direito do uso de algum
grau de coerção física ou a ameaça de efetivá-la. (Fourth
Amendment jurisprudence has long recognized that the
right to make an arrest or investigatory stop necessarily
carries with it the right to use some degree of physical
coercion or threat thereof to effect it). (…) Não obstante
o risco de perigo, inerente à execução de um mandado
de busca por arma, ter sido suficiente para justificar o uso
de algemas, a necessidade de deter múltiplos ocupantes
tornaram o uso de algemas muito mais razoável. (Though
this safety risk inherent in executing a search warrant for
weapons was sufficient to justify the use of handcuffs,
the need to detain multiple occupants made the use of
handcuffs all the more reasonable)”.
Salientou, ainda, que “o uso de força pelos policiais,
em forma de algemas, para efetuar a detenção de
Mena na garagem, como a detenção de outros três
ocupantes da casa, foi razoável porque os interesses
governamentais superam a intrusão marginal (no direito
de privacidade do preso). (The officers’ use of force in
the form of handcuffs to effectuate Mena’s detention in
the garage, as well as the detention of the three other
occupants, was reasonable because the governmental
interests outweigh the marginal intrusion)”. Finalmente,
esclareceu que “os interesses governamentais não só
de deter pessoas, mas o de usar algemas, alcançam o
seu zênite quando, como aqui, um mandado judicial
autoriza a busca de armas e quando um procurado
membro da quadrilha reside no local. Nessa situação
inerentemente perigosa, o uso de algemas minimiza
o risco de danos tanto para os agentes como para os
ocupantes. (The governmental interests in not only
detaining, but using handcuffs, are at their maximum
when, as here, a warrant authorizes a search for
weapons and a wanted gang member resides on the
premises. In such inherently dangerous situations, the
use of handcuffs minimizes the risk of harm to both
officers and occupants)”.
A RELEVÂNCIA DO DIREITO CONSTITUCIONAL COMPARADO
O leitor menos avisado poderia alegar que o
direito constitucional americano nada tem a ver com o
brasileiro e que, lá, eles seguem a common law, como
costumeiramente se ouve falar. Esse argumento é
totalmente inconsistente, porque a Constituição americana
de 1787, além de ser escrita, é a mais rígida de que já se
ouviu falar: está em vigor há mais de 220 anos e recebeu
apenas 27 emendas. Lá, para uma emenda entrar em vigor
não basta o Congresso simplesmente editá-la. É preciso,
em respeito ao princípio federalista (a Constituição é
resultado do pacto celebrado entre a União e os diversos
Estados-Membros, não podendo, assim, ser alterada
unilateralmente por uma das partes), que três quartos das
assembleias estaduais a ratifiquem. Com a Constituição, as
leis escritas (statutes) do país devem guardar fina sintonia,
sob pena de inconstitucionalidade, ou seja, de serem
declaradas nulas, de valor algum. A common law constitui
uma exceção, sendo utilizada, principalmente, nas ações
de indenização por danos (tort actions).
Depois, porque a Constituição brasileira, desde a
primeira republicana de 1891, é, em sua estrutura de
divisão de poderes e de proteção aos direitos civis, uma
cópia da americana. Foi uma sábia opção feita por Rui
Barbosa que, abandonando o modelo francês, em que
o Judiciário não é poder político (o juiz é escravo da
lei), e o inglês, em que o Judiciário não é independente,
pois está subordinado ao Parlamento (a Câmara dos
Lords é sua última instância), resolveu libertar o fraco
Judiciário brasileiro, que vinha despojado de autonomia
– eis que, ao tempo do Império, o juiz era nomeado e
demitido pelo imperador, ao seu livre alvedrio – e dotá-lo,
como ramo governamental não eleito, do poder político
de anular leis feitas pelos poderes eleitos (Congresso
Nacional e Executivo).
O USO DE ALGEMAS EM PAÍSES CIVILIZADOS
Costumam dizer contrariamente ao uso de algemas
2 Muehler v. Mena 544 U.S. (2005).3 The Fourth Amendment to the United States Constitution provides: “The right of the people to be secure in their persons, houses, papers, and effects, against unreasonable searches and seizures, shall not be violated, and no Warrants shall issue, but upon probable cause, supported by Oath or affirmation, and particularly describing the place to be searched, and the persons or things to be seized.”
“Costumam dizer, contrariamente ao uso de algema, que nos países civilizados tal não acontece. Esse argumento não merece, data venia, consideração”
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COMO TORNAR SEM EFEITO A SÚMULA VINCULANTE
Por isso que, agora, resta saber como tornar sem
efeito essa súmula vinculante do Supremo Tribunal, vez
que ela sintetiza a interpretação constitucional da matéria
feita pela Excelsa Corte e que, por isso mesmo, não
pode – nem deve –, no momento, ser descumprida. O
respeito à Instituição é mais importante do que opiniões
pessoais. Afinal, queremos viver num governo de leis e
não de homens!
Assim, vê-se que o governo não pode mais, a título de
regulamentar o art.199 da Lei de Execuções Penais, dispor
por decreto, de forma diferente. Tampouco ao Congresso
Nacional é permitido alterá-la diversamente por meio
de lei. Ambos terão que se ater, compulsoriamente, às
diretrizes traçadas pela Súmula Vinculante nº 11. A situação
presente, em termos legislativos, é bem pior do que a
anterior, antes da edição da referida súmula.
Entendo haver, portanto, só duas soluções para
tornar essa súmula sem efeito, se esse for o objetivo dos
que discordam de sua aplicação. Primeiro, o Congresso
Nacional deve elaborar uma emenda constitucional
por meio da qual superará o entendimento esposado
pelo Supremo Tribunal Federal. Para esse fim, ele está
constitucionalmente autorizado. Em virtude de nossa
forma republicana de governo, o Poder Legislativo é,
também, ao lado dos outros dois ramos governamentais
– todos harmônicos e independentes entre si –, legítimo
intérprete do texto constitucional. Em segundo, os
doutrinadores devem emitir comentários contra o teor
da súmula, de modo a sensibilizar o Supremo Tribunal
Federal a revogá-la.
que, nos países civilizados, a exemplo da Inglaterra (como se
os Estados Unidos não o fossem!), tal prática não acontece.
Esse argumento não merece, data venia, consideração.
Observe-se que a Augusta Corte brasileira extraiu
a vedação do uso de algemas de um contexto en-
volvendo diversos preceitos constitucionais, ignorando
o costume, já quase centenário, do uso do poder dis-
cricionário da polícia na matéria. Logo, não é pertinente
a comparação da medida com o costume de outra
nação. Na Inglaterra, é costume o policial não portar
arma de fogo, diversamente do nosso costume e das
leis brasileiras.
Por outro lado, se se pretende dar execução real,
de forma positiva, ao princípio da igualdade – um dos
sustentáculos de nossa Constituição – a Inglaterra também
não serve de base, eis que, lá, o princípio da igualdade
não é aplicado em sua plenitude, havendo evidentes
atenuações. Tratando-se de uma monarquia, nela há,
presentemente, rei, rainha, príncipes, duques e lords. Eles
desfrutam, em razão do costume, de diversos privilégios.
Por exemplo, só pode ser membro da Câmara dos Lords
quem for de estirpe nobre, em razão do nascimento.
Assim, lá, afora a educação e a cultura do povo, não existe
interesse, nos tempos modernos, em algemar, igualmente,
todas as pessoas que forem presas cometendo delitos.
Essa situação lembra a mesma existente aqui no Brasil
no tempo do Império!
Atento à diferença de costumes, a comparação, para
ser válida, há de ser feita com base em fundamentos
constitucionais. É de nossa Constituição, que expressa,
normativamente, nossa cultura, costumes e tradições, que
o STF extraiu reflexamente, de uma zona de penumbra,
a proibição do uso de algemas, já que não há dispositivo
claramente dispondo nesse sentido. Fora do âmbito da
Constituição, os costumes e tradições de outros povos
servem, apenas, para efeito de outras comparações, como
a sociológica, por exemplo.
Diferente do Brasil, onde as leis regem, aprioris-
ticamente, a conduta das pessoas (Ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão
em virtude de lei – CF – art.5º, II), é de se ver que
os anglossaxões não dispõem de Constituição escrita,
regendo-se por alguns éditos com força constitucional
(a Magna Carta, de 1215, The Petition of Rights, de
1628, o Habeas-Corpus Act, de 1679, o Bill of Rights de
1689 etc). Lá, no Reino Unido, sim, predomina o direito
consuetudinário (common law) pelo qual o costume
é que gera o direito, o qual é declarado, caso a caso,
inicialmente pelo Judiciário, formando o precedente
(stare decise). A lei, se vier (não há necessidade de
vir), acatará obrigatoriamente o precedente, podendo
ampliar direitos.
Penso, pois, que a comparação constitucional
mais própria, adequada e pertinente é a que é feita
entre a Constituição brasileira e a americana – que
é, e continua sendo, o seu mais forte, evidente e
exponencial paradigma.
De todo modo, o objetivo dessas considerações, ao
analisar a matéria, não é o de exaltar o direito alieníge-
na. Procurou-se resolver a questão, efetivamente, com
base na coerente e perfeita interpretação dos princípios
constitucionais inseridos em nossa Carta Política, tendo-
se em mente a nossa atual realidade – repleta de crimes,
violências e corrupções – e as legítimas aspirações do
povo brasileiro em alcançar, de imediato, a igualdade de
fato e de direito.Paulo Fernando Silveira é Juiz Federal aposentado, advogado e escritor membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro.
Referências1. Abraham, Henry J. and Perry, Barbara A. Freedom & The Court. 6.ed.New York: Oxford University Press, 1994.2. Garvey, John H. and Aleinikoff, T. Alexander. Modern Constitutional Theory: A Reader. St.Paul, Minn.: West Publishing Co., 1991.3. Silveira, Paulo Fernando. Devido Processo Legal. 3.ed. Belo Horizonte: Del Rey,2001.4. The Fourth Amendment to the United States Constitution of 1787.5. Tribe, Laurence H. American Constitutional Law. 2.ed.Mineola,New York: The Foundation Press, Inc., 1988.6. Mirabete, Julio Fabbrini. Execução Penal. 5.ed.São Paulo: Atlas, 1993.7. Rehnquist, William H. U.S. Supreme Court: Muehler v. Mena 544 U.S. (2005).
“O Congresso Nacional deve elaborar uma emenda constitucional pela qual superará o entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal”
“O risco de vida que corre o policial que executa a diligência merece maior proteção constitucional do
que uma pretensa agressão, reflexa e indireta”
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editoriasaiba mais
O QUE É A AMAZÔNIA?
A Amazônia é uma região delimitada pela bacia do rio
Amazonas e coberta, em sua maior parte, pela Florestal
Amazônia – conhecida também por Floresta Equatorial
da Amazônia ou Hiléia Amazônica. Essa é a maior flo-
resta tropical do mundo e possui 60% de cobertura
em território brasileiro. Entre as características, estão
árvores com copas densas e abundantes, vegetação
rasteira muito escassa e fauna composta, em geral, por
animais de pequeno e médio porte que, em sua maioria,
habitam as copas das árvores, como papagaios, tucanos,
pica-paus, morcegos, macacos, além de bichos como
roedores e marsupiais.
A bacia do rio Amazonas é formada por importantes
afluentes como o rio Negro, o rio Tapajós e o rio Madeira.
O principal deles, o rio Amazonas – considerado o mais
volumoso do mundo –, nasce na cordilheira dos Andes e
atravessa, além do Brasil, outros oito países da América do
Sul: Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa,
Peru, Suriname e Venezuela. No Brasil, o chamado bioma
Amazônia ocupa 49,29% do território nacional e é sete
vezes maior que a parte francesa da Amazônia.
Para efeito de políticas públicas e legislação, o Estado
brasileiro definiu o conceito de Amazônia Legal. Esse
termo engloba uma área composta por nove estados
brasileiros pertencentes à bacia do rio Amazonas. Essa
denominação reúne regiões de semelhantes problemas
econômicos, políticos e sociais, que foram agrupadas na
tentativa de melhor planejar o desenvolvimento social e
econômico da região amazônica.
A Amazônia Legal abrange os estados do Acre, Amapá,
Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocan-
tins, além de parte do Maranhão. Ao todo, essa área
corresponde a cerca de 61% do território brasileiro, o que
representa aproximadamente 5,2 milhões de km².
Segundo levantamento do Instituto Homem e Meio
Ambiente da Amazônia (Imazon), desse total de área,
2,6 milhões de km² corresponde à região conservada
da Amazônia, com apenas 5% de cobertura florestal
desmatada; 1,2 milhão de km² é coberto por cerrados,
campos e campinaranas; 0,514 milhão de km² é área
desmatada, em antigas zonas de colonização, e cerca
de 0,7 milhão de km² situa-se em novas fronteiras de
desmatamento e ocupação.
O avanço da fronteira na Amazônia é um processo
relativamente recente. Ele foi impulsionado pelo governo
brasileiro nas décadas de 1960 e 1970, por meio de
incentivos à ocupação e integração da Amazônia. De
acordo com o Imazon, nas décadas de 1980 e 1990,
apesar da redução dos investimentos públicos em
projetos de infraestrutura, a ocupação da região se
intensificou com o boom da atividade madeireira
associada ao crescimento da pecuária, do agronegócio
e da especulação de terras públicas.
Os encantos da AmazôniaReportagem de Renata Camargo
Nesta 7ª edição, a Revista de Cultura AJUFE homenageia a Amazônia. Aos leitores, os organizadores oferecem ricas histórias e variadas informações sobre esse mundo arraigado de florestas com verde intenso e cores mil da arte e cultura dos povos amazônicos. Nesta reportagem, serão apresentadas as principais manifestações culturais e artísticas dos povos que habitam os estados considerados da Amazônia, dados importantes sobre espaço e ocupação do território, além de curiosidades sobre essas terras que compõem a maior floresta tropical do mundo. Aproveitem!
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em formato de cabeça de gado) e exploram temáticas
regionais como rituais indígenas e costumes ribeirinhos,
por meio de alegorias e encenações.
BOI CAPRICHOSO
O Boi-Bumbá Caprichoso tem origem atrelada à histó-
ria dos três irmãos da família Cid: Raimundo, Pedro e Félix.
Vindos de Crato, no Ceará, os irmãos Cid embarcaram
rumo à Amazônia em busca de uma nova vida. Devotos de
São João Batista, eles prometeram a este um boi de pano
caso tivessem êxito na nova terra. Fruto da promessa, o boi
dos irmãos Cid surge em 20 de outubro de 1913. Anos
mais tarde, Félix Cid, repentista, tornou-se o amo do Boi.
O Boi Caprichoso é representado pelas cores azul e
branca. No passado, antes do grupo se tornar uma agre-
miação folclórica, o Boi era passado de uma família para a
outra, cujo chefe da casa se tornava oficialmente o dono
do Boi e tinha como missão cuidar e preparar a alegoria
para as tradicionais brincadeiras da época, que eram feitas
na rua em meio a fogueiras acessas por foliões.
Conta-se que o nome Caprichoso surgiu para definir
algo “intrínseco” ao boi e às pessoas que cuidam dele,
que seriam cheios de capricho. O sufixo “oso”, significando
“provido ou cheio de glória”, somado a “capricho” significaria
“extravagante e primoroso”.
BOI GARANTIDO
O Boi vermelho e branco é conhecido como Boi-Bumbá
Garantido. Esse boi foi criado por Lindolfo Monteverde,
neto de um ex-escravo de origem maranhense. Crescido
em meio a histórias de um boi que dançava para divertir
adultos e crianças – feito da carcaça de uma rês morta e
coberto de tecido –, Lindolfo queria manter a tradição da
brincadeira com o boi, contada por seu avô.
Foi em 12 de junho de 1913, véspera do dia de
Santo Antônio, que Lindolfo fundou o Boi Garantido.
Anos depois de sua fundação, o Boi, que começou
como uma brincadeira junina, tornou-se coisa séria.
Lindolfo ficou muito doente e fez uma promessa a
São João Batista: se melhorasse, o seu boizinho sairia
às ruas enquanto ele estivesse vivo. A partir de então,
todos os dias 12 de junho (véspera de Santo Antônio)
e 24 de junho (São João), o Garantido dança na frente
das casas, animando os foliões.
O nome Garantido foi dado por Lindolfo porque
nas disputas dos bois-bumbá nas ruas, a cabeça de seu
boizinho nunca quebrava ou ficava pendendo pro lado.
Então, o criador dizia que seu boi “sempre saía inteiro,
isso era garantido”.
FESTIVAL DE CIRANDA DE MANACAPURU
Entre danças e músicas, a ciranda é uma das
manifestações populares que se apresentam fortemente
na cultura amazônica. A ciranda é expressa por meio de
cantigas de roda e movimentos desenvolvidos a partir
de uma grande roda, em que, para compor os sons, são
utilizados instrumentos de pau, de corda e de sopro, como
curimbós, maracas, ganzás, banjos, cacetes e flautas.
O Festival de Ciranda de Manacapuru é a mais famosa
das festividades de grupos de ciranda. Essa manifestação
cultural teve início com o professor José Silvestre do
Nascimento e Souza, que – após aceitar a proposta do
diretor da época do Colégio Comercial Sólon de Lucena,
em Manaus, para montar um cordão folclórico para a
Para se ter ideia do crescimento ocupacional na Ama-
zônia, a população na região aumentou de 5,4 milhões de
habitantes, em 1960, para 22,5 milhões, em 2004, o que
corresponde hoje a cerca de 12% da população brasileira.
Desses, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), a maioria (73%) vive nas cidades e apenas
27% está no campo. Em 1970, essa situação era invertida,
sendo que 64% da população amazônica vivia em meio
rural e apenas 36%, em urbano.
A ARTE E A CULTURA AMAZÔNICA
Segundo a mitologia grega, “amazonas” que dizer
“mulher guerreira”. Conta a lenda que as amazonas faziam
parte de uma tribo de mulheres que montavam a cavalo,
manejavam arco e flecha e viviam sem admitir a presença
de homens em suas terras. Até mesmo os bebês do sexo
masculino eram rejeitados e mortos ao nascer. Aventureiros
que ousavam desbravar terras desconhecidas morriam de
medo só de pensar em cruzar o caminho das amazonas.
Foi em 1541, descendo o rio em busca de ouro na
região dos Andes, que o espanhol Francisco de Orellana
deparou-se com índias icamiabas – que, segundo o folclore
brasileiro, seriam de uma tribo de mulheres guerreiras, de
sociedade rigorosamente matriarcal e que não aceitavam
a presença de homens. Assustado com as guerreiras às
margens do rio, Orellana e sua tripulação teria chamado
as indígenas de “amazonas”, em referência às bravas
mulheres da mitologia grega.
A cultura amazônica é rica em diversidade étnica
e artística. É uma cultura bastante influenciada pelas
manifestações dos povos indígenas e negros descendentes
de africanos, com uma riqueza inimaginável oriunda
também da cultura ribeirinha. São os ribeirinhos, que
vivendo ao longo das margens dos rios, oferecem um
riquíssimo apanhado de histórias, ritmos, vibrações e mitos
à cultura amazônica. As lendas da Amazônia são contadas
em festivais como o Festival Folclórico de Parintins e o
Festival de Ciranda de Manacapuru.
FESTIVAL FOLCLÓRICO DE PARINTINS
Um dos principais palcos das manifestações cul-
turais da Amazônia é o Festival Folclórico de Parintins,
no estado do Amazonas, um evento conhecido interna-
cionalmente. É no festival que acontece a disputa entre
grupos de boi-bumbá (ou bumba-meu-boi), que, por
meio de artes cênicas, músicas, cenografias e figurinos,
expressam toda a grandiosidade da cultura amazonense,
que aparece mesclada com elementos das culturas
ibérica, árabe e indígena.
A cada ano, em Parintins – cidade a 420 km da
capital, Manaus, na ilha fluvial de Tupinambara e lo-
calizada no Baixo Amazonas, próximo à fronteira com
o Pará –, grupos ligados aos bois-bumbá Caprichoso
e Garantido fazem da rivalidade uma show de arte,
cores e músicas. Nos primeiros dias de festival, vários
grupos folclóricos se apresentam fantasiados, com
representações de lendas ao som de toadas e cantos
indígenas e teatralização de rituais.
Mas é no último fim de semana do mês de junho
o apogeu da festa. É nessa data que o festival popular
se transforma em uma das maiores festas folclóricas
do mundo. A céu aberto, as duas agremiações – o Boi
Garantido, de cor vermelha, e o Boi Caprichoso, de cor
azul – se apresentam no Bumbódromo (arena, projetada
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escola – teria ensinado aos alunos a “Dança da Ciranda”,
que inicialmente ficou conhecida como Ciranda de Tefé.
O que era uma brincadeira, tornou-se um festival com
competição entre grupos de ciranda. Desde 1997, a festa
traz equipes que, por meio da dança, das fantasias, das
coreografias, dos ritmos e das músicas, se apresentam
no Cirandódromo, em Manacapuru, município localizado
a cerca de 84 km de Manaus.
Entre os elementos da ciranda estão o Cupido Deus do
amor, um incentivador de paixões, representado por uma
criança com arco e flecha; o Galo Bonito, personagem que
homenageia as damas da cidade de Tefé; e o Carão, um dos
mais importantes personagens da ciranda, representado
por um pássaro negro que é perseguido pelo caçador.
DANÇAS TÍPICAS
A cultura amazônica é muito rica em danças típicas. Uma
das mais conhecidas é a Dança do Carimbó. Tradicional do
Pará, o Carimbó é conhecido, por alguns estudiosos, como
a única dança do país em que se percebe a influência dos
três povos que formam a sociedade brasileira: o batuque
africano, os instrumentos indígenas e a coluna curvada, e
o estalar de dedos dos portugueses.
A dança é interpretada por casais que iniciam os passos
em duas fileiras e vão dançando em voltas e galanteios
entre si. As mulheres, cheias de encanto, costumam tirar
sarros dos companheiros. Um dos pontos altos da dança é
quando o cavalheiro tenta apanhar com a boca um lenço
que a companheira estendeu no chão.
Também entre as manifestações populares, está o xote
bragantino, do Pará. Com origem nas danças folclóricas
da Escócia, na segunda metade do século XIX, o xote
tem influência de vários ritmos de diversos países, entre
eles a valsa vienense. No Pará, o xote foi cultivado pelos
portugueses, sendo, anos depois, fortemente influenciado
pelos escravos africanos, que fundaram a Irmandade de
São Benedito, no município de Bragança.
Foi lá que teve origem a Marujada, uma das mais
tradicionais festas populares do Pará, que é realizada para
louvar a São Benedito. Trata-se de um auto dramatiza-
do, constituído basicamente por mulheres, enquanto os
homens são tocadores ou, simplesmente, acompanhantes.
Em fila, a dança é feita de passos curtos e ligeiros, em
volteios rápidos, ora numa direção, ora em outra.
O Lundu também é uma dança de origem africana
muito conhecida na Ilha de Marajó, no Pará. Composta
de movimentos sensuais, o Lundu foi, por muito tempo,
considerado uma dança vulgar no Brasil. Mas, aos poucos,
essa dança ressurgiu de maneira mais comportada. Ela
simboliza um convite que os homens fazem às mulheres
“para um encontro de amor sexual” e se desenvolve por
meio de movimentos ondulares de grande volúpia.
Também muito expressivo no folclore amazônico
é a Dança do Siriá, a mais famosa dança folclórica
do município de Cametá (PA). É considerada uma
expressão de amor e gratidão ante um acontecimento
que, para indígenas e escravos africanos, representava
algo sobrenatural, como uma benção. Ela se inicia
mais lentamente e, à medida que os versos vão se
desenvolvendo, o ritmo aumenta a velocidade. Os
passos são feitos por pares que fazem volteios com o
corpo curvado para um lado e para o outro.
VOCÊ SABIA…
• O jornal inglês The Guardian elegeu a praia Alter do Chão, localizada
às margens do rio Tapajós, no oeste do Pará, como a melhor praia do
Brasil. Antiga aldeia dos Borari, a praia ficou à frente de paraísos como
Fernando de Noronha, em Pernambuco, e Jericoacoara, no Ceará;
• Pesquisa divulgada na revista internacional Nature Geoscience,
mostra que a poeira do deserto do Saara, na África, tem influência
importante no regime de chuvas da Amazônia;
• Durante o ciclo da borracha no Brasil (1870-1912), a Amazônia
foi responsável por quase 40% das exportações brasileiras. O
Teatro Amazonas, cartão postal de Manaus, é símbolo da riqueza
dessa época;
• Quando os portugueses aqui chegaram, os indígenas brasileiros
eram mais de seis milhões. Hoje, o país tem apenas cerca de 300
mil índios. Enquanto a população do Brasil cresceu 27 vezes, a dos
índios diminuiu 20 vezes;
• Na época do descobrimento, havia em torno de 1,3 mil línguas
indígenas no Brasil. Hoje, restam apenas 170;
• A vazão do rio Amazonas corresponde a 20% da vazão conjunta de
todos os rios da terra;
• O maior peixe de água doce do mundo é encontrado no Amazonas.
Trata-se do pirarucu, que chega a 2,5 metros de comprimento e peso
de 250 quilos;
• A vitória-régia, um dos símbolos da Amazônia, chega a medir dois
metros de diâmetro.
FONTESWikipédia – A enciclopédia livre
Imazon – Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia
www.imazon.org.br
Enciclopédia Virtual sobre Amazônia – Amazônia de A a Z
portalamazonia.globo.com/amazonia_az.php
Amazônia.org – http://www.amazonia.org.br
WWF Brasil – www.wwf.org.br
www.pa.sebrae.com.br
www.manacapuru.am.gov.br
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outras palavras
A noite ameaçando ir embora. O preto
virando cinza. O sono, o cansaço da véspera,
de todas as vésperas, inúteis, vazias.
Caminhos já decorados. Árvore de um
lado, árvore de outro; um morrinho lá, outro
mais longe. Abismos, pontes, pontezinhas,
pontonas. Desce montanha, sobe montanha,
curvas, repetições, tédio.
O motorista desliza com indiferença,
sabendo da inutilidade das idas e das vindas,
das noites que surgem e que se vão, sempre
adeus, sempre noites. Das madrugadas que
ameaçam auroras, mas que só trazem dias
comuns, iguais.
Um clarão surge lá longe, ameaçando
incêndio. É o sol que tenta despertar o mundo
para a alegria, enfeitando-o todo, esverdeando
as plantas, clareando a areia, azulando o
mar, pintando as casas, os parques, as flores,
acordando as crianças.
O motorista pensa na sua infância, naquela
criança raquítica que ficou lá atrás, lá longe,
tentando entender o mundo, decifrar a vida.
Lembra-se de sua mãe, doente, lavando
roupa, sempre se queixando de dores, da
pobreza, do mundo.
Sua mãe morta e ele pulando corda,
pulando, pulando, para se confundir.
Seu pai, bêbado irresponsável, largando
sua mãe morta e voltando ao botequim
para beber mais ainda. O pai sumindo dias
e dias, reaparecendo, dando-Ihe surras e
desaparecendo para sempre.
O barraco se desmoronando, a chuva
entrando. As cobertas rasgando, o frio gelando.
Dor de dente, dor nas costas, dor de viver, dor
de existir, dor de só não ter.
Vontade de crescer para trabalhar, casar,
ter filhos e se compensar neles.
A chuva ameaçando, a chuva despen-
cando. Tempestade, já conhecida e manjada,
finge que não vem. A nuvem lá longe, depois
vai chegando. O parabrisas não funcionan-
do direito, o mundo todo embaçando; as
figuras se confundindo todas. Ter que parar
o caminhão, ficar sem ar, vendo o mundo
derreter-se lá fora.
O mundo limpo, com arco-íris e tudo. De
novo na estrada, correndo, correndo, como se
tivesse um destino.
A vontade de possuir alguém, de quem
pudesse ter saudades, para ter vontade e ânimo
de ir, ou de voltar. Alguém para fazer compa-
nhia à sua lembrança, ao seu pensamento.
Alguém que não o deixasse confundir a
lua com a bolota da Shell. Que o fizesse feliz
vendo as estrelas.
Que transformasse as montanhas, as ár-
vores, o céu, as pontes, pontezinhas, pontonas,
a chuva, o arco-íris, tudo em emoção.
Vera Brant é escritora e empresária.
O motorista de caminhão na estradaPor Vera Brant