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    VIOLÊNCIA FICTA NOS CRIMES SEXUAIS: ASPECTOS CONSTITUCIONAIS,NATUREZA DA PRESUNÇÃO E POSSIBILIDADE DO COMPORTAMENTO

    PROVOCADOR DA VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS.

    HEMETÉRIO DO ESPÍRITO SANTO SODRÉ JÚNIOR1 TAISUKE NOGUCHI2

    Resumo: O presente estudo teve como objetivo analisar a violência ficta no direito penal pátrio,estabelecendo uma abordagem sobre a natureza das presunções presente nas alíneas do art.224 do Código Penal o comportamento provocador da vítima menor de quatorze anos e a análiseconstitucional, sobre tal dispositivo. Para tal foi realizada uma pesquisa documental sobre adoutrina disponível do assunto e também da jurisprudência dos tribunais nacionais. Assim,observou-se que há uma grande controvérsia acerca da natureza da presunção de violência noscrimes sexuais. Do que se retira do comportamento provocador da vítima menor de 14 anos,observa-se que há uma grande evolução trazida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, oque influencia na teoria do crime precipitado pela vítima menor de 14 anos. Na análiseconstitucional, após uma breve crítica sobre a presunção estabelecida pelo legislador, evidencia-se que essa presunção viola o princípio constitucional da presunção de inocência com regraprobatória, o Direito penal do fato, o Direito penal da culpa e o princípionullum crimen sine iniuria .Conclui-se pela impossibilidade de se atribuir presunção de violência de natureza absoluta emqualquer das alíneas do art. 224 do C.P sendo o consentimento da menor de 14 anos,plenamente válido, de acordo com o E.C.A., havendo, portanto, impossibilidade de crimeprecipitado por tal vítima. Com o expurgo da presunção de violência, não recepcionada pelaConstituição Federal de 1988, nas hipóteses do art. 224 do CP o crime deixa de ser violento,porque a violência não pode ser presumida, e deixa de ser agressão sexual passando a serabuso sexual.

    Palavra-chave : violência ficta, crimes sexuais, inconstitucionalidade.

    FICTA CRIMES IN SEXUAL VIOLENCE:CONSTITUTIONAL ISSUES, PRESUMPTION OF NATURE AND THEPOSSIBILITY OF

    CAUSED BEHAVIOR VICTIM LESS THAN 14 YEARS.

    Abstract : This study is aimed in analyzing the fiction violence in Brazilian Penal Law, making astudy on the nature of the present assumptions of the art. 224 of the Código Penal, theprovocative behavior of the victim of less than 14 years of age, and its constitutional analysis. Inorder to accomplish this, a documental research was made on the available doctrine of thesubject, and also on the jurisprudence of the national courts. It was noticed that there was a greatcontroversy on the nature of the assumption of violence on the sexual crimes. About theprovocative behavior of the younger than 14 years, it is noticed that there is a great evolution

    brought by the Estatuto da Criança e do Adolescente, that influenced on the theory of the crimepracticed by the victim younger than 14 years. On the constitutional analysis, after a brief critic onthe assumption established by the legislator, it is evidence that this assumption violates theconstitutional principle of innocence with proving rule, the Penal Law of the fact, the Penal Law ofguilty and the principle nullum crimen sine iniuria. It is a conclusion that it’s impossible to assumethe absolute nature of violence inwhichever part of the art. 224 of the Código Penal, being theallowance of the girl younger than 14 years totally valid, in according with the E.C.A.There is, as aconsequence, the impossibility of precipitated crime by the victim. The assumption of he victim,with no reception on the Constituição Federal of 1988, on the hypothesis of the art. 224 of theC.P., the crime becomes non violent, because the violence cannot be assumed, and it turns not tobe sexual aggression, to become sexual abuse.

    Key-words : fictional violence, sexual crimes, inconstitucionality.

    1 Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Pará – CESUPA.2 Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Pará – CESUPA.

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    1 INTRODUÇÃO

    A violência nos crimes sexuais apresenta-se como caráter necessário àtipicidade. Assim, a violência é elemento do crime, caracterizando-se pelo ato deforça praticado na intenção de neutralizar a resistência eventual ou real da vítimade modo efetivo, vis absoluta ou vis compulsiva , ou de maneira ficta oupresumida, na busca de um objetivo que, no caso, seria a satisfação sexual.

    A violência aparece de encontro à resistência e ao dissenso. Estenecessita estar presente durante todo o ato, não se exigindo, entretanto, que a

    resistência esteja presente quando da violência, isso quando há violência real.A presunção de violência (ou violência ficta) deriva da preocupação dos

    legisladores com os casos em que a vítima tem menores possibilidades dedefesa assegurando a tutela penal às vítimas de abuso sexual, ou seja, abuso daimpossibilidade de resistência da vítima. Nesses casos, segundo o art. 224 doCódigo Penal de 1940, prescinde-se da ocorrência ou não de violência real, ouseja, mesmo não havendo a resistência ou o dissenso da vítima, o seu

    consentimento é considerado como inválido ou inexistente, configurando-se odelito.

    A fixação de determinado limite de idade para a presunção de violêncianão tem sido aceita unanimemente pelos juristas. Tal fixação, argumenta-se, nemsempre estará de acordo com o desenvolvimento do indivíduo, que varia depessoa para pessoa, consoante fatores étnicos, mesológicos, dentre outros.

    Por outro lado, pugna-se pela inconstitucionalidade das presunções defato no ordenamento constitucional vigente. Argumenta-se que a ConstituiçãoFederal de 1988 prevê a responsabilidade penal subjetiva, nunca aresponsabilidade penal objetiva ou a responsabilidade pelo fato de terceiro.Vendo na presunção de violência uma presunção de fato, aqueles que defendema inconstitucionalidade da violência presumida sustentam não se poder puniralguém por delito que se presume haver cometido.

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    Com relação à presunção de violência baseada na menoridade da vítima,tem-se defendido a possibilidade de relativização da presunção com base no seucomportamento sexual ou no erro quanto à sua idade.

    Assim, diversas decisões têm apontado a “vida dissoluta da vítima” ou ofato de ela “não ser mais virgem” como causas de absolvição de réusprocessados por estupro. Do mesmo modo, há a possibilidade de absolvição doréu que, acreditando manter relações sexuais com vítima maior de catorze anos,em virtude de sua compleição física e maturidade sexual, acaba por cometerestupro presumido por ter a parceira idade inferior àquela estabelecida em leipara a validade do seu consentimento.

    Ao aplicar a lei, o julgador sem dúvida alguma deve considerar aspossíveis mudanças e transformações da realidade social. No que diz respeito àliberdade sexual, muito mais importante se faz tal análise, pois desde o CódigoPenal de 1940 até os dias atuais, mundo e sociedade sem dúvida mudaram.

    Por outro lado, não se pode perder de vista o fato de que o Brasilapresenta graves problemas de exploração sexual de crianças e adolescentes,sendo necessário, sem dúvida, coibir os abusos através de um melhorentendimento e aplicação das normas de proteção à sexualidade do menor.

    Não há um entendimento pacífico nem na doutrina e nem na jurisprudência a respeito da natureza da presunção de violência pela menoridadeda vítima (art. 224, “a” do CP), de forma que não resta clara a conceituação dapresunção como absoluta ou relativa.

    A distorção da jurisprudência nessa área tem sido a fundamentação decertas decisões absolutórias que nem sempre recaem na inconstitucionalidade dapresunção de crime, mas no comportamento sexual da vítima. O que se deveverificar é quando o consentimento da vítima pode ser dado como válido emrazão do caso concreto (possibilidade de comportamento provocador), semqualificá-la de “degenerada” ou “prostituta”.

    A violência é elementar em alguns crimes sexuais que a exigem comomeio necessário de obtenção da satisfação da libido ou da restrição da liberdade

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    sexual de outrem. Sendo assim, nesses crimes, ausente a violência, estaráexcluído o crime.

    Desta feita, percebe-se que a violência – em face dos crimes em estudo –é conditio sine qua non à sua consumação, sendo certo afirmar que, na suaausência, a conduta torna-se atípica. Quando presentes a resistência e odissenso, que importa a violência(violência real ou efetiva), não existe problemana caracterização e configuração dos delitos em estudo. Entretanto, problemashá quando esta não se impõe, tornando – como citado – a conduta atípica.

    Questiona-se, assim, como tutelar os crimes em que a violência torna-se

    desnecessária porquanto a vítima não pode sequer resistir. Criou o legislador,diante de tal lacuna, a chamada presunção de violência, assegurando a tutelapenal às vítimas de "abuso sexual".

    O critério jurídico-penal da presunção de violência remonta aos práticos.Como bem salientam Hungria, Lacerda e Fragoso:

    Fiel a um tradicional critério jurídico-penal, que remonta aCARPSOVIO, o Códigopresume ou finge a violência, nos crimessexuais, quando a vítima, por sua tenra idade ou morbidez mental, éincapaz de consentimento ou, pelo menos, de consentimento válido(HUNGRIA; LACERDA ; FRAGOSO, 1983, p. 225).

    A Carta Penal vigente, em seu artigo 224, elenca três hipótese deviolência presumida, nos casos em que a vítima: a)não é maior de catorze anos;b)é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; c)não pode,

    por qualquer outra causa, oferecer resistência.

    Aqui, a violência empregada reveste-se de caráter ficto ou presumido, eisque inexistente a violência (real), por falta, inclusive, de resistência a combatê-la.

    Segundo refere Gomes (2001), é para assegurar a tipicidade penal daconduta daquele que abusa da impossibilidade de resistência da vítima que foiimaginado o art. 224 do CP.

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    Teoricamente, para se promover a tutela penal nos casos deabuso e,conseqüentemente, evitar ovácuo de tipicidade [e, por conseguinte, de tutela dobem jurídico liberdade sexual], existem dois sistemas: o primeiro vale-se paratanto da presunção de violência [esse foi acolhido peloius positum ]; o segundo[aceito na Alemanha, Itália, etc.] equipara ou assimila à violência a falta deconsentimento válido [ou impossibilidade de resistência] (GOMES, 2001, p. 19).

    2 NATUREZA DAS PRESUNÇÕES DO ART. 224 DO CP

    Afinal, a presunção é absoluta (iuris et de iure ) relativa (iuris tantum )?Quanto a primeira corrente de pensamento, os seus defensores descartam

    quaisquer situações fáticas como capazes de afastar a violência – aparência davítima, meio social em que vive, sua profissão, seus conhecimentos sexuais e atémesmo seu consentimento –, isto é, estes não possuem o condão de afastar aviolência, ocasião em que a presunção sempre se impõe. Contudo, aqueles quese unem à segunda corrente acentuam que as características pessoais daofendida, sobretudo sua aparência e, com mais razão, seu consentimento, sãocritérios bastantes a excluir a presunção de violência.

    Analisando cada alínea do art. 224 do Código Penal, observa-se que,quanto aos alienados e débeis mentais (art. 224, alínea “b”) mostra-se maisconcisa a posição de que a presunção do presente dispositivo deve ser relativa,só se tendo cabida quando o ofendido apresentar a condição psíquica dosinimputáveis de modo a torná-lo inteiramente incapaz de entender ou de querer oato sexual. Em suma, deve-se analisar a situaçãoin casu , para decidir sobre acondenação ou absolvição do autor que venha a cometer tal ato.

    Não se está discutindo aqui, a necessidade ou não de se presumir aviolência nestes casos, porquanto indiscutível o fato de que uma pessoa quepossui debilidade mental ou é alienada, não poder discernir oquantum de suaconduta ser-lhe ou não prejudicial, carecendo seu consentimento – ainda queexistente de fato – de validade jurídica. Em tais casos, não é a impossibilidade deconsentir ou dissentir que se questiona, eis que, não obstante a vítima possua a

    citada característica, pode, sem restrição, discernir e decidir o que lhe é

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    conveniente ou não (sem validade); discute-se oquão débil ou alienada deve sera vítima para se caracterizar a violência ficta.

    Deve-se afirmar, portanto, que a presunção é relativa (iuris tantum), eisque admite, prova contrária ao conhecimento da debilidade por parte do agressorque deve conhecer a debilidade, ou seja,

    Relativamente à alínea b , pelo próprio enunciado, verifica-se ser apresunção relativa, pois se ressalva ao réu a faculdade de demonstrar aignorância da enfermidade mental do ofendido. Não se trataconseqüentemente de presunção absoluta, por isso que não basta aprova de se tratar de sujeito passivo alienado ou débil mental, mister sefazendo a demonstração de que o agente conhecia o estadopsicopatológico do ofendido. A ressalva era de rigor, pois ninguémignora a existência de enfermos mentais que aparentemente parecemgozar plena sanidade psíquica, injusto sendo se condenasse alguémque com ele praticasse um ato libidinoso ou a conjunção carnal,supondo, ante seu consentimento aparentemente livre e pleno, praticarato ilícito (NORONHA, 1998, p. 188).

    No que tange à alínea "c" do artigo 224 do Código Penal vigente,presume-se a violência quando a vítima de crimes contra os costumes não pode,por qualquer outra causa, oferecer resistência.

    Assim, quer-se referir o legislador à incapacidade de defesa da vítimaque deve ser total, isto é,

    É necessário [...] que seja provada a impossibilidade completa deresistência. Exs.: enfermidade, paralisia dos membros, idade avançada,excepcional esgotamento, sono mórbido, síncope, desmaios, estado deembriaguez alcoólica, delírios, estado de embriaguez ou inconsciênciadecorrente de ingestão ou ministração de entorpecentes, suporíferos,etc. (JESUS, 2002, p. 153).

    Nos casos sobreditos, ocorre a incapacidade de resistir, ou seja, a vítima,enquadrada em qualquer das causas acima não possui capacidade para impedirque seu algoz mantenha a conjunção carnal,v.g., uma pessoa que, apesar depossuir perfeitas condições físicas, está presa em cadeiras de rodas. Ela nãoconsegue reagir ao estuprador que se mostra indubitavelmente superior frente àcondição pessoal da vítima. Não se trata da impossibilidade de consentir ou deconsentimento válido; possui a vítima condições psíquicas e mentais deconsciência do ato que está por sofrer; não pode, todavia, resistir fisicamente a

    ele.

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    Assim, a vítima nestes casos possui plena capacidade de entender ocaráter sexual – e, em casos específicos, o caráter criminoso – da relação a queestá se submetendo (mútuo gozo), com ou sem consentimento. Pode-se impor,desta feita, que se trata de presunção relativa – a exemplo da alínea"b",conquanto mesmo possuindo limitações físicas, sua capacidade de entendimentopermanece imaculada e, por conseqüência, sua capacidade de consentir o atosexual.

    Assim, a alínea em discussão “trata-se, também, de presunção relativa aexigir prova da situação que causou a impossibilidade de defesa. Quando avítima estiver durante o ato em uma das situações mencionadas, mas secomprova que não se opunha ao ato, desaparece, evidentemente, a presunção(RT 683/308)” (MIRABETE, 2001, p. 446).

    Enfim, analisando a situação descrita na alínea “a”, do art. 224, do CódigoPenal Brasileiro, segundo o qual “Presume-se a violência, se a vítima: não émaior de 14 (catorze) anos ”.

    Note-se que o legislador busca, na realidade, tutelar a vítima menor decatorze anos devido a sua innocentia consilii , ou seja, por faltar-lhe capacidadede discernimento sobre o sexo, presume-se que esta não possuidesenvolvimento mental suficiente para consentir o ato sexual.

    É imperioso afirmar que a aferição de critérios subjetivos (v.g.,capacidade de consentir), baseados em simples presunções etárias, além decontrariar a responsabilidade subjetiva, mostra-se descabida, visto que, os

    menores de catorze anos de 1940, quando da publicação do Código Penal, nãoguardam relação com os "menores" de catorze anos de hoje, tão esclarecidos noque se refere a conceitos relacionados à sexualidade, tratados inclusive comodisciplina escolar.

    O imperativo legal da idade de catorze anos, portanto, quando se discute acapacidade de consentir do adolescente, torna-se tão vago quanto dizer que aostreze anos e onze meses e vinte e nove dias, o mesmo adolescente não possuíatal capacidade.

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    Da incoerência e da falta de fundamentos a garantir a eficiência de taiscritérios teóricos, a prática reflete e se converge na certeza de sua ineficiência.

    No que tange à discussão da natureza jurídica da presunção de violênciado dispositivo, há que a assimile como presunção absoluta (iuris et iure ) ou presunção relativa (iuris tantum ).

    A favor da primeira opinião há os argumentos de que o consentimentoda menor é sempre inválido, embora possa ter desenvolvimento fisico epsíquico superior à sua idade, e de que a idade da vítima (menor de 14anos) faz parte do tipo. Além disso, a lei indica que as outras duassituações mencionadas no dispositivo configuram casos de presunçãorelativa, o que não ocorre na letraa . Alinham-se a favor da tese de quea presunção é relativa os seguintes fundamentos: as outras duasalíneas (b e c ) tratam de presunções relativas, e não seria de se excluira alínea a ; a prevalecer a opinião oposta, a menor seria mais protegidaaté que o insano mental, que não tem nenhuma possibilidade deconsciência [...] (MIRABETE, 2001, p. 446).

    É inegável que grande parte da doutrina, como também da jurisprudência,inclinam-se para a aceitação da presunção do art. 224, alínea “a”, do CódigoPenal, como sendo de natureza relativa. Tal entendimento é mais plausível,afinal, se nas próprias alíneas “b” e “c” a presunção é considerada relativa, comoadmitir a presunção absoluta no caso de um menor de catorze anos? Olegislador adotou neste último caso somente critério biológico para caracterizar aimaturidade da vítima, o que é, no mínimo, esdrúxulo. Afinal, sem qualquersombra de dúvidas, a menor de catorze anos é mais mentalmente desenvolvidaque um alienado ou débil mental, tendo, portanto, mais discernimento que este, eassim, mais capacidade para consentir ou não a um ato sexual. Desse modo,

    havendo uma tutela maior do menor de catorze anos, em relação ao alienado oudébil mental, é uma aporia que não poderia existir, sem uma distorçãosistemática de nosso ordenamento jurídico.

    Quanto à jurisprudência pátria, clara é a posição do STF, no julgado, cujarelatoria coube ao Ministro Marco Aurélio, do Habeas Corpus n.º 73.662 - MG,D.J.U. 20.09.96, ora transcrito:

    EMENTA: ESTUPRO - CONFIGURAÇÃO- VIOLÊNCIA PRESUMIDA -IDADE DA VÍTIMA - NATUREZA. O estupro pressupõe oconstrangimento de mulher à conjunção carnal, mediante violência ou

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    grave ameaça - artigo 213 do Código Penal.A presunção destaúltima, por ser a vítima menor de 14 anos, é relativa . Confessada oudemonstrada a aquiescência da mulher e exsurgindo da prova dosautos a aparência, física e mental, de tratar-se de pessoa com idadesuperior aos 14 anos, impõe-se a conclusão sobre a ausência deconfiguração do tipo penal. Alcance dos artigos 213 e 224, alínea "a",do Código Penal. (grifos ora assinalados)

    Não obstante, há decisões em contrário como o do Tribunal de Justiçade Goiás, no julgamento da Apelação Criminal n.º 14194.0.213, D.J.E. 11.04.95,cuja relatoria do Desembargador Juarez Távora de Azeredo Coutinho optou pelapresunção absoluta:

    EMENTA: Recurso de apelação. Estupro. Violência presumida. Se apessoa ofendida, nos crimes sexuais, não for maior de catorze anos,presume-se por avaliação feita pelo legislador, que o autor do crimeatuou com violência, ainda que na realidade tal não tenha ocorrido.Apresunção legal absoluta da violência deve prevalecer , afastadaqualquer dúvida sobre a maturidade da ofendida em se tratando demenor sem auto determinação no campo sexual, incapaz de decidir, comliberdade dada sua pouca idade e sem condições pessoais para repelirpropostas feitas pelo namorado. Recurso improvido. (grifosacrescentados).

    A tornar a questão tão ambígua, melhor seria ao legislador se este jáhouvesse tipificado o ato como crime, sem expressar a presunção de violência.

    Isto, aliás, é o que se está propondo no anteprojeto do Código Penal, em seu art.167, tipificado como abuso sexual de menor ou incapaz, com a seguinte redação:“Praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal com menor de catorze anos,ou pessoa alienada, portadora de deficiência mental ou impossibilitada porqualquer outra causa de oferecer resistência: Pena – reclusão, de quatro a dozeanos”.

    3 A POSSIBILIDADE DO COMPORTAMENTO PROVOCADOR DA VÍTIMAMENOR DE CATORZE ANOS.

    3.1 A EVOLUÇÃO TRAZIDA PELO ESTATUTO DA CRIANÇA E DOADOLESCENTE, NA COMPREENSÃO DA NATUREZA DA PRESUNÇÃOCONTRA MENORES DE 14 ANOS

    O argumento dos que defendem a tese da presunção de naturezaabsoluta, para os quais o legislador estabeleceu a idade de 14 anos como ummarco a ser seguido e contra o qual o juiz não se poderia opor, sob pena de estar

    ultrapassando a sua competência (de somente dizer a lei e não de criá-la), é

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    perfeitamente derrubado quando se faz uma análise do Estatuto da Criança e doAdolescente - E.C.A (Lei n. 8.069 de 1990).

    Segundo este diploma legal, somente se considera como criança osmenores de doze anos. Os indivíduos com idade entre doze anos e dezoito sãoconsiderados adolescentes. Tanto a criança como o adolescente estão passíveisde praticar crime ou contravenção a que, na lei em apreço dá-se o nome deatoinfracional.

    A diferença de tratamento entre a criança e o adolescente é patente, poisenquanto a criança está sujeita às chamadas medidas de proteção, o

    adolescente está sujeito às chamadas medidas sócio-educativas. Estas últimassão tão rigorosas quanto a sanção penal aplicável ao maior de idade, pois, nocaso da internação, prevista no art. 121 do Estatuto em estudo, o adolescentepoderá ter sua liberdade privada por até três anos. Em comparação a um réuadulto, primário e de bons antecedentes, para que o mesmo permanecesse trêsanos recluso em estabelecimento prisional fechado, teria que ter sido condenadoà pena de dezoito anos, cumprindo somente a sexta parte, segundo a progressão

    da pena.

    Esclarecendo melhor, pode-se dizer que, para o legislador mais atual(visto que o E.C.A. é de 1990, enquanto que o Código penal é de 1940), o menorde doze anos não tem capacidade de decisão, diferente do menor entre doze edezoito anos, que a possui. Assim,

    Se o adolescente conta então com capacidade de decisão e,sobretudo, de sujeitar-se a medidas socioeducativas por ato infracional,emerge inconciliavelmente aporética, nos dias atuais, a presunção legaldo art. 224, “a”, do Código Penal, no sentido de que o menor de catorzeanos não tem capacidade ética de entender o ato sexual ou não temcapacidade de manifestar validamente a sua vontade (GOMES, 2001, p.40)

    Afinal, não há como admitir-se que o menor entre doze e catorze anosestá apto para discernir sobre o que é certo e errado, mas não tem capacidadede consentir ao sexo. Ora, é óbvio que é muito mais difícil assimilar a noção docorreto, de agir de acordo com os ditames legais, do que entregar-se a algoinstintivo como o ato sexual.

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    Além disso, o art. 190 do E.C.A ainda possibilita ao adolescente a suaintimação pessoal da sentença, estando claro, portanto, que o adolescente temlegitimidade passivaad causam para procedimento infracional e capacidade paraa intimação da sentença. Por que negar-lhe então a capacidade de compreendero caráter sexual?

    Não se quer, aqui, buscar a total despenalização do sexo praticado contramenores de idade. Pelo contrário, quer-se apenas estabelecer critérios claros edemonstrar a atual realidade do ordenamento jurídico pátrio, para se poder teruma aplicação do Direito mais concisa e objetiva, baseando-se em cada caso eevitando aporias como a expressada pelo professor Luiz Flávio Gomes:

    Se um adolescente de treze anos pratica uma relação sexual com umadolescente da mesma idade, aquele é punido porque [consoante oE.C.A.] entende [ainda que relativamente] o caráter ilícito do fato, édizer, o sentido ético da atividade sexual; ao mesmo tempo,absurdamente, é punido justamente porque a vítima, da mesma idade,[em razão de uma presunção do legislador de 1940], não entende osentido ético do ato. São dois adolescentes da mesma idade: hápunição de um deles porque tem consciência [embora restritivamente]do que faz; a punição, ademais, tem por fundamento a presunção deque o outro não sabe o que faz. Que paradoxo gritante!

    [...]

    Outro argumento que nos parece importante: considere-se uma vítimade treze anos de idade: como vítima, não tem capacidade decompreender o ato sexual [e, portanto, consentir], nos termos davaloração do Código Penal, que é fruto de uma valoração do legisladorde 1940. Se a mesma adolescente praticar atos libidinosos diversos daconjunção carnal com outra pessoa, será sancionada nos termos doE.C.A., já agora porque conta com [relativa] capacidade de entender oque faz. Afinal, essa adolescente de treze anos de idade tem ou nãotem capacidade de compreender o sentido ético dos atos sexuais? [...](GOMES, 2001, p. 40 - 41).

    Tais contradições não podem subsistir, sob pena de comprometer asegurança jurídica do ordenamento pátrio.

    Deve-se considerar o critério da capacidade de discernimento dosmenores entre doze e catorze anos de idade para que se possa concatenar o

    Direito com a posição mais atual, baseada no Estatuto da Criança e doAdolescente, que é de 1990 e, assim, entender a presunção de violência,

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    estabelecida no art. 224, alínea “a” do Código Penal (que é de 1940), comosendo de natureza relativa. Desse modo, se evitarão penalizações injustas,baseadas em meras presunções de natureza absoluta.

    Considerando a presunção como de natureza relativa, em suma, o juiznão estaria ultrapassando a sua competência de dizer o direito, visto que estariarealizando-o de modo mais conciso possível, adequando a lei ao fato de modo aconectá-la com a realidade atual e com cada caso concreto.

    Ressalte-se que, caso a vítima seja menor de doze anos (criança,segundo o E.C.A.), é perfeitamente cabível admitir-se a presunção de natureza

    absoluta, para o ato sexual praticado contra ela, pois que o próprio E.C.A, em seuart. 101, como já ressaltado, demonstra a falta de capacidade de discernimentodestes sujeitos, e, portanto, a sua tutela especial e proteção.

    3.2 O “CRIME” PRECIPITADO PELA VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS

    A vítima, para poder ter um comportamento provocador a ponto de tornaro crime precipitado, deverá ter suficiente maturidade sexual. Note-se que tal

    maturidade não está necessariamente ligada à idade da vítima (ressalvadoscasos extremos como vítimas com menos de 12 anos), mas sim à aquisição dasua autodeterminação sexual.

    Tendo, portanto, essa maturidade, pode-se afirmar ser possíveldemonstrar a capacidade do adolescente menor de catorze anos em consentircom uma relação sexual e, até mesmo, precipitá-la. Tal atitude decorre quando,de algum modo, a vítima, de acordo com a sua vontade própria e conduta,contribui para a realização do crime, através de uma provocação do agente paraque o pratique.

    A vítima, assim, deve buscar o crime como um fim a ser alcançado,podendo mesmo, tal atitude, ser inconsciente, como no caso em que a vítimaprovoca o agente a praticar um ato sexual, em circunstâncias altamentepropícias, sem, contudo, querer tal resultado, ou não acreditar que o mesmo

    venha a ocorrer. Nesse caso, pode-se afirmar que a vítima precipitou o crime,haja vista que qualquer pessoa comum, em sua plena consciência, poderia

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    prever o resultado (crime), diante de tal provocação. Ressalte-se que talprovocação, contudo, deverá ser forte o suficiente para levar o agente a praticar ocrime. Em suma, a vítima deve ser provocadora e não meramente facilitadora,como no caso em que a vítima simplesmente mostra-se altamente atraente eexibicionista, atraindo o agente com sua beleza, sem, contudo, cogitar empraticar o ato sexual.

    Note-se, portanto, que é requisito essencial o pleno discernimento sobrea conseqüência de seus atos. Assim sendo, não há como enquadrar os alienadose débeis mentais (art. 224, alínea “b”) como vítimas provocadoras, visto que,ainda que infimamente, a sua vontade estará viciada pela sua enfermidade. Domesmo modo, os que têm a sua capacidade de resistência reduzida (art. 224,alínea “c”) também não poderão ser enquadrados como vítimas provocadorasdevido ao seu discernimento estar reduzido no momento do ato sexual.

    Já com relação aos menores de catorze anos (art. 224, alínea “a”), nãohá como negar o seu pleno discernimento, inclusive para a responsabilização poratos infracionais, ponto, aliás, já abordado anteriormente na análise do E.C.A.

    Tendo tal consciência reconhecida por lei, portanto, o jovem adolescente, entredoze e catorze anos poderá ter um comportamento provocador.

    Ocorre, que, se o consentimento é válido, não houve violência ficta e,portanto, inaplicável o art. 224 pela falta de discernimento. Não há crime, nemvítima, não tendo que se falar, desse modo, em comportamento provocador davítima.

    De que serviria então a abordagem de crime precipitado pela vítimamenor de 14 anos? Entende-se que há sua aplicação quando ocorre a violênciareal, seja física (vis absolutaou vis corporalis ), seja moral (vis compulsiva ), dandomargem à diminuição da pena do agente baseado no art. 59, “caput” do CódigoPenal Brasileiro.

    Conclui-se, portanto, que o crime precipitado pela vítima menor de 14anos, conforme baseado no E.C.A. e nos argumentos descritos no presentecapítulo, é, tão somente, um comportamento válido da vítima em que desapareceo crime baseado na presunção legal do art. 224, alínea ”a”, do Código Penal.

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    4 ANÁLISE CONSTITUCIONAL

    4.1 CRÍTICA À PRESUNÇÃO ESTABELECIDA NO ART. 224, DO CÓDIGOPENAL.

    O legislador preferiu estabelecer uma ficção jurídica para tutelarsituações em que a vítima de um delito de natureza sexual não tem capacidadede discernimento para oferecer resistência, isto é, esta, nas situações prescritasno dispositivo legal em apreço, não tem capacidade nem para anuir ao ato, nempara barrá-lo. Sendo assim, considera-se juridicamente a situação como tendosido praticado mediante violência.

    Tal situação constitui-se no mínimo estranha. Afinal, a violência real,para poder ser caracterizada, necessita de resistência, seja da forma física, sejada forma moral, muito mais no que tange à pratica de um ato sexual. Ora, se umapessoa, seja ela alienada ou débil mental, menor de 14 anos, ou em situação quea torne incapaz de ter discernimento, é considerada juridicamente como incapazde decidir sobre a querência de uma conjunção carnal, ou de um ato libidinosodiverso, é certo que ela não está resistindo ao ato. Ou seja,

    De se observar que nas hipóteses que estamos enfocando [...], não existeconcretamente violênciareal, natural, seja na forma devis corpori illata [violência física], seja na modalidadevis animo illata [violência moral ou graveameaça]. Só se pode falar em violência efetiva, mesmo que enfocada nesseduplo sentido — violência física ou grave ameaça —, quando háresistência davítima [dissentimento real, ainda que seja totalmente prescindível ato heróico],que deve ser vencida ou quebrada. Aresistência [concreta, indiscutível],destarte, para além de configurar a expressão notória do dissenso ou adinamização da vontade contrária da vítima, é requisito típico de todos oscrimes sexuais violentos que atentam contra o bem jurídicoliberdade sexual.Sem ele, não há que se falar em fato típico. (GOMES, 2001, p. 17).

    Assim sendo, o legislador pátrio baseou-se no tradicional critério jurídico-penal de Carpsovio, segundo o qual “quem não podia consentir, dissentiu ”, paratutelar a situação em que vítimas não sofrem violência, mas ao mesmo temponão tem capacidade para discernir sobre o sexo (HUNGRIA, 1983, p. 225).Buscou, portanto, criar a presunção de violência já citada, para coibir aagressãosexual daquela pessoa que é impossibilitada de oferecer resistência por falta dematuridade, por que é alienada ou débil mental, ou por qualquer outra causa3,

    3 Posição contrária: Leyser Hommel, para o qual “o incapaz de querer é também incapaz de não querer. Éum indiferente : nec nolle nec velle3” (HOMMEL apud HUNGRIA, 1983, p. 226).

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    enfim, chega-se à conclusão, portanto, que o legislador visa a punir o agente poruma ação não praticada, o que seria uma inaceitável afronta ao princípio dareserva legal (legalidade) e da tipicidade, corolários básicos do Direito Penalcontemporâneo.

    Nesse sentido, observe-se a seguinte decisão:

    O princípio da legalidade fornece a forma e o princípio dapersonalidade [sentido atual da doutrina], a substância da condutadelituosa. Inconstitucionalidade de qualquer lei penal que despreze aresponsabilidade penal subjetiva4

    O decisum acima exposto trata da inconstitucionalidade de qualquer

    decisão que não leve em conta a responsabilidade penal subjetiva do agente. Emtodo e qualquer fato típico o agente deve estar imbuído de dolo ou, no mínimo, deculpa, quando assim estiver previsto no tipo legal, para poder ser penalizado.

    Note-se, portanto, que o ordenamento jurídico pátrio, no Direito Penal, étotalmente avesso à responsabilidade penal objetiva, não podendo haverresponsabilização penal sem culpa e, por conseguinte, responsabilização penalpresumindo-se a prática de um crime.

    Desse modo, para que o agente possa ser punido pela realização de umfato típico, este deve ter consciência da realização do tipo penal e da suaantijuridicidade, bem como possuir discernimento para comportar-se de acordocom esse entendimento.

    Assim sendo, não há como se conceber que a presunção de violência sejaentendida como de natureza absoluta. Afinal, é evidente a existência do princípionulla poena sine culpa 5 no Direito Penal.

    Do mesmo modo, não está inteiramente correta a posição de que apresunção de violência seja de natureza relativa, pois, como bem observa LuizFlávio Gomes,

    Os relativistas, em suma, procuram assentar a doutrina de que épossível prova em sentido contrário ao da presunção legal. Assimprocedendo, entretanto, não só continuam vinculados à presunção do

    4 STJ – Resp. 46.424-2 RO, 6ª. Turma, relator Min. Luiz Vicente Cernicchiaro.5 Não há pena sem culpa

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    legislador [...], como, em última instância, acabam por defender ainversão do ônus da prova (GOMES, 2001, p. 75).

    Não está se questionando, no presente trabalho, a necessidade ou não de

    tutela daqueles incapazes de consentir a um ato sexual. Não resta dúvidas deque os sujeitos elencados no art. 224 do Código Penal merecem a tutela legalaqui mencionada. No entanto, tal tutela não pode ser feita de forma esdrúxula e,por que não dizer, inconstitucional, considerando os sujeitos simplesmenteculpados ou não baseados na presunção legal de violência, que se constitui,afinal, em uma presunção de fato.

    Ora, imagine-se um caso em que não houve qualquer resistência davítima6, em que o autor realizou o ato (sexual) de modo até carinhoso ecuidadoso. Juridicamente, presume-se a violência, pois a mesma não terádiscernimento para consentir ao ato, mas necessário se faz questionar essapresunção. Afinal, não se está diante de um Estado de Direito, em que oordenamento jurídico prescreve a presunção de inocência? Será que, neste caso,pode-se desconsiderar o ditame máximo presente no art. 5º, inciso LVII, da CartaMagna Pátria7?

    Quando o legislador estabeleceu a presente ficção jurídica, relacionou-acom a incapacidade de os sujeitos do art. 224 consentirem ao ato sexual. Note-se, entretanto, que em todos os casos do referido dispositivo legal, a “vítima”poderá vir a anuir ao ato sexual, de acordo com a situação. No caso da menor de14 anos (alínea “a”), esta pode ter pleno discernimento do que é o sexo,afastando a innocentia consilii . Para os alienados e débeis mentais (alínea “b”),pode ser que os mesmos não tenham seu discernimento afetado a ponto deafastar-lhe a noção da realidade, e, conseqüentemente, do ato sexual, como nocaso dos “fronteiriços”. Por fim, nas outras causas que afastam o discernimento(alínea “c”), o estado da “vítima” dependerá do caso concreto para se dizer se amesma estava ou não capacitada para anuir ao ato sexual8.

    6 Note-se que aqui estamos tratando de todos os casos presente nas alíneas “a”, “b”, e “c”do art. 224, do CP.7 “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penalcondenatória”.8 Note-se que tais pontos já foram abordados em capítulo anterior.

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    Aceitar simplesmente a presunção legal é concordar que a legislaçãoinfraconstitucional (Código Penal) se sobrepõe à Constituição Federal, base detoda nossa legislação nacional, o que seria um absurdo. Tal questão será maisbem abordada.

    4.2 O CONTEÚDO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E OSLIMITES CONSTITUCIONAIS DAS PRESUNÇÕES EM DIREITO PENAL

    As presunções legais em Direito Penal contam com limites. A intervençãopunitiva estatal está sujeita a regras procedimentais bem como a limites materiais(GOMES, 2001). Embora seja possível estabelecer presunções em Direito Penal,

    existem barreiras ou “limites” instransponíveis para o estabelecimento depresunções em matéria criminal. Uma dessas barreiras é a presunção deinocência.

    O princípio da presunção de inocência foi constitucionalizado em 1988,estando previsto no art. 5º, inc. LVII, da Constituição Federal de 1988 assimredigido: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado desentença penal condenatória” .

    O texto legal citado acima não faz menção explícita ao princípio dapresunção de inocência. Segundo Gomes (2001), tal dispositivo foi inspirado notexto italiano de mesmo teor9 e refere:

    [...] nosso Constituinte evitou a utilização da locução “presunção deinocência”. Quis adotar uma postura “neutra”, asséptica, no queconcerne à posição do acusado diante do processo penal. Essa suapretensão, no entanto, longe está do verdadeiro [e atualmente tríplice]significado que o princípio da presunção de inocência possui. Amens

    legislatoris não corresponde, sabemos, muitas vezes, ao texto escrito(GOMES, 2001, p. 111).

    O autor, quando se refere à “neutralidade” adotada pelo legisladornacional, quer na verdade enfocar que não se utilizou expressamente umapostura liberal e nem antiliberal na redação dada ao art. 5º, LVII, da nossa Magna

    9 No eixo da discussão sobre o conteúdo da presunção de inocência está uma clássica e histórica polêmicatravada entre correntes liberais e antiliberais nas Escolas Penais Italianas. Sobre tal polêmica v., TORRES,Jaime Vegas.Presunción de inocencia y prueba en el processo penal . Madrid: La Ley, 1993, p. 20.

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    Carta, tal qual foi feito com a Constituição italiana depois de superado o regimefascista.

    Essa neutralidade, contudo, é apenas aparente. O art. 1º da ConstituiçãoFederal do Brasil deixa claro que há um Estado Constitucional e democrático deDireito, ao mesmo tempo em que garante “a dignidade da pessoa humana” (inc.III), afirma a inviolabilidade da liberdade (art. 5º), exige prisão fundamentada, etc.Por tudo isso, é evidente que, na Constituição, a liberdade individual vem emprimeiro lugar, devendo-se considerar que o princípio da presunção deinocência10 está inscrito no inciso LVII do art. 5º da Constituição Federalbrasileira.

    Desta feita, o princípio da presunção de inocência conta com a ricasubstância que lhe conferem os tratados e textos internacionais que tratam sobredireitos do homem e direitos humanos em geral, inclusive material limitadora,como se verá adiante.

    Gomes (2001), ao tratar da natureza jurídica da presunção de inocência,aponta dois pontos de vista através dos quais se pode delimitar o conteúdo de talpresunção. O primeiro deles seria o ponto de vistaextrínseco (formal) e osegundo seria o ponto de vista intrínseco (substancial), vejamos o que diz omestre:

    No que concerne à natureza jurídica da presunção de inocência urgedestacar o seguinte: do ponto de vistaextrínseco [formal ], destarte, noBrasil, o princípio da presunção de inocência configura um direitoconstitucional fundamental , é dizer, está inserido no rol dos direitos egarantias fundamentais da pessoa [art. 5.º]. Do ponto de vistaintrínseco

    [substancial ] é um direito de natureza predominantemente processual,com repercussões claras e inequívocas no campo probatório , dasgarantias [garantista ] e de tratamento do acusado . Cuida-se, por último,como não poderia ser diferente, de uma presunçãoiuris tantum , é dizer,admite prova em sentido contrário (GOMES, 2001, p. 114).

    O que o autor, em síntese, quer explicar, é que do princípio em teladerivam regras a serem seguidas e que impõem limites à atividade legisferante.Assim, a presunção de inocência pode ser estudada comoregra probatória , como

    10

    De acordo com o pensamento de Manzini, tal norma não estabelece presunção alguma de inocência, masapenas declara que “o imputado não é considerado culpado até condenação a definitiva”. Além deManzini, seguem a mesma linha de pensamento Guarnieri, Frosali, Vannini, Leone etc. (apud TORRES,op. cit., p. 31)

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    regra de tratamento ou como regra de garantia . Aqui, abordar-se-á apenas aprimeira, por ser a que mais interessa ao presente trabalho.

    Antes, porém, convém salientar que do processo de constitucionalizaçãoda presunção de inocência, tal como afirmado no início do presente capítulo,deve-se extrair algumas conseqüências jurídicas inafastáveis, atreladas que sãoàs garantias dos direitos e garantias fundamentais, conforme divisão prevista naatual Constituição Federal.Segundo Gomes (2001), essas garantias11 são “não jurisdicionais” ou “jurisdicionais”.

    Assim, dentre as primeiras destacam-se: a) a aplicação imediata do

    preceito, tal como previsto no art. 5º, § 1º, da Constituição Federal de 1988; b) avinculação de todos (poderes públicos e particulares), que lhe devem estritaobediência. No que concerne às garantias jurisdicionais, pode-se assinalar: a) oacesso à jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF/88); b) o controle da constitucionalidadedas leis que exige o reconhecimento da primazia das normas constitucionais (apresunção de inocência não pode sucumbir a uma presunção legalinfraconstitucional em sentido contrário). Como refere Luiz Flávio Gomes,“A

    presunção de inocência, porque dotada de supergarantias, em síntese, é deimperativa observância e aplicação, inclusive no que concerne ao âmbito dasinfrações e procedimentos administrativos” (GOMES, 2001, p. 115).

    4.2.1 A Presunção de Inocência como Regra Probatória

    Como visto anteriormente, no sistema jurídico brasileiro todo acusado épresumido inocente até que se comprove legalmente sua culpa. A culpa que aqui

    se faz referência é a “culpabilidade” e não a culpastricto sensu ou culpa dodireito (negligência, imprudência ou imperícia).“É a atribuição culpável de uminjusto típico ao seu autor” (GOMES, 2001, p. 117).

    Veja-se a valiosa lição de Jaime Vegas Torres sobre o assunto:

    Certamente, a “culpabilidade” do acusado não é, a rigor, objeto deprova; objeto de prova são os fatos e a culpabilidade não é um fato,senão um conceito jurídico. Mas quando se atribui a um sujeito aculpabilidade em relação com uma determinada infração criminal não sefaz outra coisa que afirmar a existência de uns fatos que se ajustam a

    11 O autor utiliza o termo supergarantias dos direitos.

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    uma descrição típica penal e a participação nos mesmos do sujeito emquestão. Neste sentido, a expressão “declarar a culpabilidade” não ésenão uma forma abreviada de referir-se à afirmação da certeza de unsfatos que se ajustam em um tipo penal e da participação nos mesmo doacusado; e a utilização do conceito de prova em relação à culpabilidadedeve entender-se, igualmente, como uma forma abreviada de se referirà prova de todos e cada um dos fatos que integram o tipo penal e àparticipação nos mesmos do acusado (TORRES, 1993, p. 43).

    De acordo com o art. 156 do CPP, o ônus de comprovar os fatos e aatribuição culpável cabe a quem formula a acusação. De acordo com Jesus(2003), o fato típico constitui expressão provisória da ilicitude e o injusto penal(fato típico e ilícito) é indício da culpabilidade respectiva. Segundo Gomes (2001),neste âmbito ocorre um conjunto de presunções não refutadas (ou não

    refutáveis) que favorecem a acusação. Deste modo, a ilicitude e a culpabilidadenão são objeto da prova acusatória12. Em conclusão, o que compete à acusaçãoé a demonstração inequívoca dos fatos e da participação do acusado nessesfatos.

    Acompanhando o pensamento desse autor, pode-se deduzir que oprincípio da presunção de inocência, instituto de direito preponderantementeprocessual, enquanto regra probatória possui íntima conexão com três princípios(limitadores) pertencentes ao Direito Penal que são: a) princípio do fato (Direitopenal do fato); b) princípio donullum crimen sine iniuria(Direito penal da lesão ouperigo de lesão ao bem jurídico); e c) princípio da imputação pessoal ou subjetiva(Direito penal da culpa).

    4.3 A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 224 DO CP DIANTE DO PRINCÍPIODA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA.

    A violência é fato e fato não se presume. O Min. Luiz Vicente Cernicchiaroassim já se manifestou, ao proclamar que“fato não se presume [...]. Existe ounão existe. O Direito penal da culpa é inconciliável com presunções de fato” (Resp. 46.424-2-RO, STJ, 6ª Turma, relator Min. Luiz V. Cernicchiaro, j.14.06.1994, DJU 08.08.1994, p. 19.576.).

    De acordo com Luiza Nagib Eluf, o voto do Min. Cernicchiaro, transcritoparcialmente na obra da autora citada, nos dá a seguinte lição:

    12 A culpabilidade deve ser aqui entendida segundo o finalismo de Wezel, ou seja, como juízo dereprovação, tal como visto anteriormente no capítulo que trata da violência real.

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    A responsabilidade penal, consoante princípios constitucionais, ésubjetiva. Não se transige com a responsabilidade objetiva e, muitomenos, a responsabilidade pelo fato de terceiro. Além do mais,conseqüência lógica, impõe-se a culpabilidade (sentido moderno dotermo), ou seja, reprovabilidade ao agente da conduta delituosa. Emconseqüência, não há, pois, que sustentar-se em Direito Penal,presunção de fato. Este é fenômeno que ocorre no âmbito daexperiência. Existe, ou não existe. Não se pode punir alguém por delito,ao fundamento de que se presume que o cometeu. Tal como o fato, ocrime existe ou não existe. Assim, evidente a inconstitucionalidade doart. 224 do CP. (ELUF, 1999, p. 66).

    Trata-se de verberar contra a inconstitucionalidade da presunçãoestabelecida no dispositivo em tela, e não dele por inteiro. Isso porque apresunção legal de violência desobriga o acusador de comprová-la. Assim, a

    preocupação do órgão acusador, nos casos legais de violência ficta, seria apenascomprovar a situação fática embasadora da presunção (que a vítima seja menorde 14 anos, débil mental, etc.), ou seja, apenas uma parte dos fatos, a outra (aviolência) é dada pelo legislador (GOMES, 2001).

    Essa desobrigação de provar a culpabilidade (que aqui significa fatos eparticipação nos fatos pelo acusado), confronta claramente com o princípioconstitucional da presunção de inocência, como regra probatória, que exige do

    acusador a prova dos fatos (em sua integralidade), como visto no tópico anterior.

    4.3.1. A presunção legal de violência como violação ao “princípio do fato”(Direito penal do fato).

    O princípio donullum crimem sine actiodá a diretriz do Direito penal dofato. Assim, a responsabilidade do agente deve atrelar-se sempre a um fato

    (existente no plano realístico e comprovado no plano processual) (GOMES,2001). Tal princípio (princípio do fato) aparece no atual direito penal como limitematerial doius puniendi.

    Como refere Luiz Flávio Gomes,“A culpabilidade no Direito penal, emsuma, é culpabilidade do fato isolado, não culpabilidade de caráter. O juízo deculpabilidade só pode recair sobre o fato do agente, não sobre seu caráter oumaneira de pensar” (GOMES, 2001, p. 123).

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    No art. 224 do Código Penal, ao presumir a violência, o legislador naverdade presume um fato. Assim, não importa se essa presunção constitui ounão elemento do tipo, até porque só se considera a violência real em suasmodalidades vis absoluta e vis cumpulsiva , como elemento do tipo, nos crimessexuais. Se esta não ocorreu, presume-se um fato e viola-se, assim, o princípiodo direito penal do fato, pelo que deve ser tida como inconstitucional a presunçãode violência.

    4.3.2. A presunção legal de violência como violação ao princípio do nullumcrimen sine iniuria.

    De acordo com o art. 13 do Código Penal, não pode haver crime semresultado. Esse resultado, de acordo com Gomes (2001), só pode ser o jurídico,no sentido de lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico tutelado e aofensividade deve derivar da conduta do agente.

    Ainda para Gomes (2001), o nullum crimen sine iniuriaintegraefetivamente o conceito de fato típico. É o mesmo que dizer que integra tambéma antijuridicidade penal que não existe sem o resultado.

    Se do ponto de vista formal a ilicitude (antijuridicidade) é a contradiçãoda conduta com o ordenamento jurídico (JESUS, 2003), do ponto de vistamaterial a ilicitude é a contradição do fato típico com todo o ordenamento jurídico,como ressalta Juan Bustos Ramirez, citado por Luiz Flávio Gomes:

    A ilicitude é, pois, a contradição do fato típico com todo o ordenamento jurídico em virtude de uma afetação efetiva do bem jurídico ... não bastasó a determinação ou determinabilidade do âmbito situacional e com

    isso do comportamento, senão também há de reger o princípio donullum crimen sine iniuria , isto é, não há delito sem uma determinadalesividade ou afetação do bem jurídico ... deste modo se exclui todaclasse de presunções do Direito penal (RAMIREZ apud GOMES, 2001,p. 125).

    Se o bem jurídico tutelado nos crimes sexuais é a liberdade sexual, queimporta na liberdade de não se envolver em atos sexuais sem a livremanifestação da vontade e se o legislador presume a ofensa a esse bem, umavez que violência real não houve, não houve também ofensa ao bem jurídico

    liberdade sexual , fica claro que a presunção estabelecida no art. 224 do CPtambém viola o princípio donullum crimen sine iniuria .

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    4.3.3. A presunção legal de violência como violação do princípio do Direitopenal da culpa.

    De acordo com Gomes (2001), o Direito Penal da culpa possui duplosiginificado: um deriva do causalismo (responsabilidade subjetiva); o outrodecorre do finalismo (a culpabilidade como reprovabilidade) e refere:

    E como pressuposto básico de um ou de outro sentido temos oseguinte: só pode haver responsabilidade penal se o fato punívelpertence ao seu autor do ponto de vista material. Isso implica queninguém pode ser punido por fato praticado por outra pessoa [oupresumido por outras pessoas] (GOMES, 2001, p.126).

    No voto do Min. Cernicchiaro visualiza-se o mesmo entendimento:

    A conjugação dos princípios da reserva legal e da responsabilidadepessoal fornece subsídio para demonstrar que a Constituição repele aresponsabilidade pelo fato de outrem e a responsabilidade objetiva [...] otipo descreve conduta. Invariavelmente encerra o verbo vocábuloindicativo de comportamento que, por sua vez, traduz vinculação devontade [...] Se a infração penal é indissolúvel da conduta, se a condutareflete a vontade, não há como pensar o crime sem o elementosubjetivo. O princípio da legalidade fornece a forma, e o princípio dapersonalidade, a substância da conduta delituosa. Pune-se alguémporque praticou ação descrita na lei penal. Ação, vale respisar, nosentido material. Conseqüência incontornável: é inconstitucionalqualquer lei penal que despreze a responsabilidade subjetiva (Resp.46.424-2-RO, STJ, 6ª Turma, relator Min. Luiz V. Cernicchiaro, j.14.06.1994, DJU 08.08.1994)

    Falta, assim, na presunção de violência o vínculo material do agente como fato. Nos casos de violência ficta, a violência não é fato do autor, senão dolegislador, e por isso ofende ao princípio da culpabilidade (Direito penal da culpa),pelo que a presunção deve ser tida como inconstitucional.

    5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Por tudo o que foi exposto na presente pesquisa, pode-se concluir que,dentro das naturezas da presunção de violência legal estabelecida nas alíneas doart. 224 do Código Penal, todas são de natureza relativa, visto que não há comonegar que tanto os alienados e débeis mentais, como aqueles que estãoimbuídos de outras causas que lhe reduzem a capacidade de consentimento e osmenores de 14 anos, são, em determinados casos, perfeitamente capazes deentender o ato sexual e de consentir com ele.

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    Quanto ao comportamento provocador da vítima menor de 14 anos,observou-se, que, a partir do E.C.A., não há mais como se tratar esta, baseando-se somente no Código Penal (que é de 1940), posto que, na visão do legisladormais atual, criador daquela lei (de 1990), o menor entre doze e catorze anos têmdiscernimento para distinguir o certo e o errado e para sofrer uma medida sócio-educativa por seus atos ilícitos (atos infracionais). Assim, é claro que se olegislador assim o estabeleceu, entendeu também que este indivíduo pode terdiscernimento para consentir ao ato sexual (consentimento válido).

    Quanto ao crime precipitado pela vítima, este se observa inócuo, visto que,sendo o consentimento da vítima menor, entre doze e catorze anos, válido, nãohá crime, e, portanto, não há vítima e, muito menos, precipitação por parte desta.

    Da análise constitucional do art. 224 do Código Penal, pode-se observarque a primeira parte do referido dispositivo é flagrantemente inconstitucional. Olegislador ordinário não pode presumir fatos contra o acusado. Essa presunçãode violência viola o princípio da presunção de inocência, o direito penal do fato, oDireito penal da culpa e o princípio donullum crimen sine iniuria . Dessa assertiva,

    verifica-se que a presunção de violência caracteriza-se como presunção de fato enão pode, portanto, integrar o tipo violento, ou seja, não pode ser consideradaelemento do tipo nos crimes sexuais que exigem a violência como pressupostopara a obtenção do prazer sexual.

    Trata-se de inconstitucionalidade parcial, referente somente à presunçãoestabelecida pelo legislador. Do contrário, todo abuso contra menor, alienadomental ou congênere não encontraria respaldo em figura típica e, assim, passariapor algo não proibido.

    No entanto, com o expurgo da presunção de violência, não recepcionadapela Constituição Federal de 1988, sobrevive a parte legítima do referidodispositivo. Nesse sentido, verificou-se que existeabuso sexual nas trêshipóteses elencadas no art. 224. O crime deixa de ser violento (agressão sexual )porque a violência não pode ser presumida. Se o ato for violento, ou seja, se

    houver emprego efetivo de violência ou grave ameaça contra a vítima, o queresulta configurado é um crime deagressão sexual (estupro – art. 213 –,

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    atentado violento ao pudor – art. 214 –, ou rapto violento – art. 219). Do contrário,se nesses crimes a vítima estiver em uma das situações previstas no art. 224 doCP, o que se configurará é oabuso sexual .

    Por tudo que foi exposto no presente trabalho, pode-se estabelecer, emrelação aos crimes sexuais em geral, algumas premissas importantes: 1ª) quandoa vítima dissente e sua resistência é vencida, seja pela violência real ou graveameaça, o que se configura é o crime violento; 2ª) quando a vítima não resistenem consente, porque incapacitada de oferecer resistência (em virtude da idade,da debilidade mental, ou por qualquer outra causa), surge o crime sexualabusivo, que não é nem violento nem voluntário (crimen nec voluntarium necviolentum ); 3ª) quando a vítima consente invalidamente, também se está diantedo crimen nec volutarium nec violentum ; 4ª) por fim, quando a vítima consentevalidamente, não há nenhum crime sexual, por falta de tipicidade (uma vez quese trata de um ato voluntário).

    Espera-se, por fim, que o presente trabalho possa contribuir para o melhorentendimento do art. 224 do Código Penal Brasileiro. Embora não se tenha

    pretendido esgotar as discussões sobre o tema, espera-se também, que omencionado dispositivo seja substituído por outro que melhor proteja as crianças,os adolescentes, os débeis mentais etc., doabuso sexual.

    REFERÊNCIAS

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    jurisprudência. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 1999.

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    JESUS, Damásio E. de.Direito penal: parte especial. 25. ed. rev. e atual. SãoPaulo: Saraiva, 2002. v.2.

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    NORONHA, E. Magalhães.Direito Penal. 23. ed. rev. e atual. São Paulo:Saraiva, 1998.

    TORRES, Jaime Vegas.Presunción de inocencia y prueba em el processopenal. Madrid: La Ley, 1993.