Testamento Político de D. Luís da Cunha

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D. LUÍS DA CUNHA Testamento Político D. Luís da Cunha, pintura do séc. XVIII a Quillard, no Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa

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Trata-se do Testamento Político do diplomata D. Luís da Cunha contendo suas principais ideias que pudessem ser aproveitadas pelo então príncipe D. José I

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  • D. LUS DA CUNHATestamento Poltico

    D. Lus da Cunha, pintura do sc. XVIII a Quillard, no Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa

  • D. LUS DA CUNHATestamento Poltico

  • Lus da Cunha

    Nascido em Lisboa, em 25 de janeiro de 1662, e falecido em Paris, em 9 deoutubro de 1740, Lus da Cunha formou-se em Coimbra, em Direito Cannico.

    Com apenas 20 anos, foi nomeado desembargador da Relao do Porto, pas-sando, depois, para a de Lisboa.

    Embaixador Corte de Londres, em 1696, foi ministro plenipotencirio noCongresso de Ultrech, em 1712.

    Conservou-se em Paris, at falecer, como ministro de Portugal naquela Corte.Escreveu Memrias, com a histria poltica da Europa durante meio sculo,

    que se conservaram inditas.De suas cartas, a mais famosa a que dirigiu a D. Jos I, ainda prncipe,

    dando-lhe Conselhos. Ela foi impressa em 1820, com o ttulo de TestamentoPoltico ou Carta escrita pelo grande D. Lus da Cunha ao senhor rei D.Jos I, antes do seu governo.

  • A tristssima e sumamente dolorosa idia, que natu-ralmente se pode fazer, de que El-Rei, nosso senhor, glorioso pai de V.A., nos venha a faltar, o que praza a Deus que no vejamos seno depoisde passados muitos anos; e na doce esperana de que V. A. subir aotrono de seus nclitos avs, para dele gozar por sculos inteiros, tomo aliberdade de me pr com a mais humilde e reverente submisso aos seusreais ps, para que lembrando-lhe que sou o mais antigo ministro que oSenhor Rei D. Pedro, herico av de V. A. no ano de 1700, tirou daCasa da Suplicao para o servir no Ministrio Estrangeiro, e que neleme conservou El-Rei nosso senhor, at agora; e que, fundado nesta an-tiguidade, e no zelo e cuidado com que sempre procurei cumprir com aminha obrigao, pego na pena para ter a honra, no de lhe pedir algumprmio pelos meus servios, mas somente para pr na sua real presenaquais so os meus sentimentos com a liberdade que o dito senhor mui-tas vezes no s me permitiu, mas expressamente me ordenou; e assimme aproveito dela para quando V. A. tomar, com a felicidade que lhe de-sejo, as rdeas do governo dos seus reinos e dilatadas conquistas, para obem dos seus fiis vassalos.

    Se me servir de alguns exemplos, no so tirados da Histria, quefariam larga e fastidiosa a sua leitura, que procurarei abreviar quanto mefor possvel, mas das mximas que vi praticar em Inglaterra, em Ho-landa, e Frana, ainda que nem todas se possam seguir pela diferenados climas, dos governos, dos interesses, dos tempos, e pelos diversosgnios das naes.

    Senhor,

  • Em primeiro lugar, senhor, naquele temido, infausto e natural acidente,que no espero ver, estou bem certo que V. A. no mostrar logo que emcertas cousas quer tomar o contrap do governo de El-Rei seu pai, e que,quando se vir obrigado a faz-lo, ser mostrando que so as diferentes ocor-rncias que o foram a tomar diversas resolues; para que no parea queV. A. as emenda, antes as venera. Que V. A. conservar para uma me tosanta, como a rainha nossa senhora, o mesmo respeito, e fiel venerao,com que at agora a tratou; efeito da admirvel e crist educao, que ele lhedeu. Que V. A. viver com a serenssima princesa do Brasil, sua amabils-sima e real consorte, na mais cordial e sincera confiana que se possa desejar.

    Que mostrar a suas altezas irmos e tios que a sua elevao aotrono no lhe diminuiu em cousa alguma o amor e carinho devido aosangue que corre pelas mesmas veias. Estas obrigaes so pessoais eum dever de homem; mas as de rei, sem ofender as que insinuo, somostrar que V. A. o nico senhor, e que todos, sem exceo de pes-soa, so seus vassalos e dependentes unicamente das suas reais re-solues.

    Debaixo destes supostos j se v que no serei de opinio queV. A., a ttulo de descanso, se sirva de um primeiro-ministro porduas, entre outras, muito fortes razes.

    A primeira porque Deus no ps os cetros nas mos dos prncipespara que descansem, seno para trabalharem no bom governo dos seus rei-nos; trabalho que lhe ser muito breve, se repartir bem e alternativamente assuas horas, porque estou certo que lhe sobejaro as que bastem para as em-pregar nos divertimentos que convm ao seu carter, entre os quais conto oda caa, no porque seja, como alguns dizem, a imagem da guerra, porqueno h armas que menos se lhe paream, pois nela se no v mais que mui-tos cavalheiros, e uma infinidade de ces, que correm atrs dos pobres ani-mais que fogem, e no se defendem; mas porque este divertimento serve adissipar os grandes cuidados de que o Prncipe est sempre ocupado.

    A segunda, e ainda mais forte razo, vem a ser, que o dito ministroordinariamente tira ao soberano o crdito que ele se arroga a si mesmo,desconsola os naturais, e perde muito com os estrangeiros. O duqueMalborough se levantou com o poder, que se devia rainha Ana deInglaterra. O duque de Orleans se arrependeu de haver dado a Lus XVpor primeiro-ministro o cardeal Dubois que, servindo-se daquele emi-

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  • nente carter, concebeu mand-lo prender, havendo-o levantado do pda terra; e por isso, logo que aquele indigno ministro e prelado faleceu,o substituiu no seu lugar, e se nele no lhe sucedesse o duque de Bour-bon, jamais a princesa de Polnia seria rainha de Frana, porque ma-dame de Pri, que o governava, se deixou comprar e, enfim, ningumousou explicar-se em direitura a Lus XV, enquanto viveu o cardeal deFleury, sob pena de perder a sua pretenso.

    Contudo o cardeal, depois de reconhecer que o governo de umato grande monarquia excedia suas foras, achou que Mr. Chavelin tinhatodas as qualidades necessrias para o poder aliviar e o associou aoprimeiro-ministro; mas, vendo que os dois galos no cantavam bem emum s poleiro, viu-se precisado a desfazer-se de Chavelin, antes queChavelin se desfizesse dele, pois que para isso comeava a tomar suasmedidas.

    Isto que digo do primeiro-ministro milita tambm com o valido, queso sinnimos e peste do estado, para que V. A. se no sirva do primeiro,nem se deixe seduzir de quem procura ser o segundo, porque ordinaria-mente ambos cuidam mais em estabelecer o seu poder do que em conservara representao do Prncipe, de que s deviam ser zelosos, e que em Portu-gal mais perigoso, pois que por um intolervel e mpio abuso, temos feitohbito de nos esquecermos de Deus para nos aplicarmos aos seus santos, outidos por tais, costumando dizer que so os seus validos. Mas, senhor, osvalidos do Cu so muito diferentes dos validos da Terra, porque os primei-ros, conforme o nosso provrbio, no rogam seno quando Deus quer; e ossegundos rogam as mais das vezes pelo que nem Deus, nem o Prncipequerem. Deus me preserve de dizer que a aplicao que se faz aos santos,como validos da majestade divina, supersticiosa, porque a Igreja definiuque ela era til mas no necessria; porm digo somente que a que se faz aosvalidos da majestade humana , ainda mal, necessria para ser til em grandeprejuzo da independncia do Prncipe, e da mesma monarquia. Em umapalavra, senhor, todo o poder que o primeiro-ministro, ou valido, se atribuino outra coisa seno uma pura usurpao, por no dizer escandalosofurto que se faz sagrada autoridade do Prncipe. Porm, sem recorrer a ex-emplos estrangeiros, V. A. tem de casa um to terrvel, se quiser refletir so-bre o perigo a que nos exps o ministrio e valimento do conde de CasteloMelhor, e na sua vizinhana o de Filipe III e Filipe IV, que, sem embargo

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  • de serem to grandes monarcas, como no viam as coisas dos seusdomnios seno pelos olhos dos seus primeiros-ministros e validos,no s perderam no mundo a sua reputao, mas tambm a damesma monarquia. V. A. se pode tambm lembrar do pouco casoque pessoalmente se faz de Filipe V, porque se deixava governar pelarainha sua mulher, e esta pelo cardeal Alberoni, at que concorrerammuitas razes para que aquela princesa se cansasse da sua petulnciae o mandasse sair de Espanha.

    Depois de ser o meu pensamento que V. A. fuja de ter umprimeiro-ministro, ou um valido, no sei se lhe ajuntara que tambmse dispensasse de ter um confessor, quero dizer, com este ttulo, por-que com ele o autoriza para querer ingerir-se nas cousas do governo,e fazer-se respeitar, servindo-se do confessionrio para tirar, ouencher o Prncipe de escrpulos, conforme convm aos interessesda sua ordem, dos seus parentes e amigos, de que pudera alegar mui-tos exemplos se no temesse a difuso deste papel; mas como sejapreciso que o Prncipe faa ver aos seus vassalos que regularmentepratica os preceitos da Igreja, dissera que V. A. escolhesse para curada sua freguesia um homem desinteressado, prudente, de boa vida ecostumes, sem ser hipcrita e com cincia que baste para tranqilizara sua conscincia nos casos que lhe propuser e que com ele se con-fessasse; porque tenho observado que a teologia de frades muitoarriscada, principalmente a dos jesutas, que so os que mais a es-tudam e por isso mais aptos para adaptarem as opinies, que possamagradar ao confessado se for Prncipe e no um pobre lavrador.

    Se algum me acusar de que nesta parte abrao as mximas deMaquiavel, enquanto diz que o governo monrquico seria o mais per-feito de todos, se o Prncipe no tivesse validos, nem confessor, con-fesso a minha culpa sem arrependimento, e ainda passo em silncio adama, de que aquele refinado poltico quer que o prncipe seja isentoporque, graas a Deus, entre as muitas virtudes de que dotou a V. A.,tem a de no querer romper a constncia conjugal, e por no autorizarcom o seu exemplo a dissoluo entre os dois sexos, como fez Lus XIVem Frana e Carlos II em Inglaterra que, sem embargo de ser um prn-cipe muito distrado, tinha muito entendimento e costumava dizer que ogoverno das mulheres era o melhor, porque nele governavam os

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  • homens; e que o governo dos homens era o pior, porque nele gover-navam as mulheres, de que em si mesmo tinha a experincia, porquese deixou governar por madame de Porsmouth, assim como LusXIV por madame de Maintenon.

    verdade que S. Majestade teve uma espcie de primeiro-ministro,que foi o Cardeal da Mota; espcie digo de primeiro-ministro, porqueainda que em certo modo fazia as suas funes, nunca o dito senhor orevestiu daquele carter; o que todo o mundo lhe deu (porque eu nuncao achei) foi o de ser muito bom homem, muito modesto, mui bem in-tencionado e muito limpo de mos, com muito pouco conhecimentodos negcios estrangeiros e ainda menos ativo nos domsticos, dois de-feitos irreparveis em quem se encarrega da direo das cousas pblicas,porque deles resulta demorarem-se as resolues que passam pelas suasmos; e assim no vejo em tantos anos de ministrio que fizesse algumacousa em benefcio do reino, tanto a respeito do seu comrcio que dasua navegao, manufaturas e foras assim terrestres como martimas, deque abaixo falarei, passando o tempo em outros projetos, sem resolveralgum; de que veio no deixar posteridade saudade da sua memria. Oque na minha opinio se lhe deve louvar so duas cousas, a primeira dehaver sempre aconselhado a sua majestade de conservar em paz os seusvassalos, quando toda a Europa ardia em guerra, e quando outros po-diam inspirar que se aproveitasse da ocasio em que a Inglaterra a de-clarava Espanha, a fim de forar aquela coroa a que conviesse a cum-prir exatamente o que com ela estipulamos no Tratado de Utrecht, poisuma diverso da parte de Portugal no lhe permitia acudir guerra deItlia com as foras que Frana lhe opunha.

    A segunda foi concorrer com o seu arbtrio para que sua ma-jestade, instrudo da confuso em que Diogo de Mendona Corte-Real deixara os papis das secretarias que servia, principalmente de-pois do incndio das suas casas, em que muitos se desencaminharame outros pereceram, lhe desse melhor providncia, repartindo entretrs secretrios aquele trabalho, a que um s, at quele tempo, nosem queixa das partes, dava tanta expedio sem o poder evitar pelaafluncia e variedade dos negcios j estrangeiros, j domsticos e jultramarinos. E nesta parte um animal, e to grande animal, qual ocamelo, mostra mais juzo e menos presuno do que o homem, pois

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  • somente sofre a carga com que pode, por se no deitar com ela; demaneira que eu comparo a cabea de cada indivduo a um vaso quequando se lhe deita mais gua do que pode conter transborda, derrama-se e se turva a que fica nele.

    Enfim, V. A. sabe a diviso que sua majestade fez das secretarias eos ministros que para elas nomeou, todos muito dignos de servirem comgrande satisfao aqueles empregos, e s se reparou que todos fossemcriaturas do cardeal, principalmente o do Reino, que foi seu irmo, paraque cada qual obrasse conforme ele lhe inspirasse. No digo que esta foia inteno com que aquele prelado fez a S. Majestade a inculca, mas quetais foram as aparncias.

    verdade que S. Majestade nomeou aqueles trs ministros para se-cretrios de Estado, mas nunca lhes quis dar a prerrogativa de conselhei-ros ou ministros de estado, como o cardeal de Fleury pretendeu paraque os embaixadores de Frana lhe dessem o tratamento de excelncia,como se quisesse reservar aquele eminente ttulo como um non plus ultrapara as pessoas de maior nobreza, e mais recomendveis pelos seusmerecimentos e reconhecidos servios. V. A. acha as secretarias dividi-das, porm mais no nome que no efeito, conforme ouo, porque os seuspapis esto na mesma confuso, sabe Deus aonde, porque eu o no sei,sem se repartirem pelos oficiais das secretarias para que cada um se en-tregue dos que lhe pertencem, e com mais facilidade se achem quando seprocurem, ao que V. A. deve dar providncia, nomeando um ministrobem inteligente, para que com os mesmos oficiais faa aquela necessriadiligncia e repartio e se reformem os que faltarem.

    Dos trs secretrios que sua majestade nomeou, vejo no sergrande perda o faltar-lhe o da Marinha, que foi Antnio Guedes Pereira,e ouo tambm lhe podia vir a faltar o do Reino, Pedro da Mota e Silva,que muitas vezes tem pedido licena para se demitir daquele emprego,que o punha na sujeio de no poder gozar do seu descanso, demaneira que se V. A. se acomodar com o seu desejo, ser preciso proveruma e outra secretaria, para as quais tomarei o atrevimento de lhe indicardois ministros, pelo conhecimento que tenho deles e dos seus talentos; asaber: para a do Reino Sebastio Jos de Carvalho e Melo, cujo gniopaciente, especulativo e ainda que sem vcio, um pouco difuso, se acordacom o da nao; e para a da Marinha Gonalo Manuel Galvo de Lacerda,

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  • porque tem um juzo prtico e expeditivo, e serviu muitos anos no Con-selho Ultramarino, aonde adquiriu um grande conhecimento do gov-erno, comrcio e foras das conquistas; e desta sorte gratificaria V. A. commuita vantagem os servios destes ministros, os quais viveriam em boa in-teligncia com o Secretrio de Estado dos Negcios Estrangeiros, MarcoAntnio de Azevedo Coutinho, porque o primeiro seu parente e osegundo sempre foi seu ntimo amigo; mas no decidirei se esta grande e es-perada unio destes trs secretrios de Estado a que mais convm aoservio do amo e do Estado, mais que enquanto neles suponho uma in-tegrrima probidade e que se no amassaro para favorecerem os interessesdos seus parentes e amigos, porque costumamos dizer que uma mo lava aoutra e ambas o rosto, que talvez fica mais sujo se a gua no to pura eto clara como deve ser, isto , sem ter o vcio da paixo ou da prpria con-venincia.

    No digo que o Prncipe seja suspeitoso, mas precatado, e que nen-hum mal lhe faria que os seus ministros assim o concebam, para queno abusem da autoridade que se lhes d; pois da mesma sorte que asuma confiana do Prncipe degenera em fraqueza, da nmia desconfi-ana procede a perplexidade que agita o nimo do Prncipe e o no deixatomar a resoluo que convm. O Senhor Rei Dom Joo IV, hericoav de V. A. e sempre memorvel libertador, quisera que fosse oespelho em que V. A. se visse, para em tudo o retratar, fazia tanta esti-mao de Gaspar de Faria Severim, seu secretrio das Mercs e Expe-diente, que, saindo do despacho, disse diante de meu pai e dos mais quelhe faziam corte, que se podia ser rei de Portugal s por servir-se de umtal ministro: contudo quando tinha alguma noo de que ele queria fa-vorecer alguma das partes, cujos papis devia despachar os expedia pormos do secretrio de Estado; e ainda fazia mais, porque nas consultasdos provimentos que subiam dos tribunais nunca se usou dar os empre-gos aos que vinham nomeados em primeiro lugar ou segundo, antessucedia que, bem informado dos merecimentos dos sujeitos, voltava aconsulta de baixo para cima e dava lugar ao que estava no ltimo, costu-mando dizer que desta sorte se conformava com a consulta e outrasmuitas mximas dignas de se imitarem.

    Bem pudera referir outras muitas precaues que este Prncipetomava para no ser enganado pelos seus ministros; e, contudo, conhe-

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  • cendo ele em certo modo a inocncia de Francisco de Lucena, seu se-cretrio de Estado, o deixou condenar morte porque os fidalgos o fiz-eram passar por traidor, no podendo sofrer que ele aconselhasse a el-rei, que no lhe devia alguma obrigao de lhe porem a coroa na cabea,pois lhe era devida a fim de que no se julgassem credores de grandesrecompensas. Os descendentes deste ministro justificaram depois a suainocncia; e S. Majestade lhe veio a restituir as honras e os bens, em queeu tive alguma parte estando em Madri.

    Mas a Providncia dotou V. A. de uma tal clareza de entendimentoque se servir das suas virtuosas suspeitas para no cair em alguma dasduas sobreditas extremidades; porm, no sendo fcil praticar este meio-termo com todo o sucesso que fora necessrio, creio que, se pode haveralgum, o da boa escolha dos homens que V. A. querer empregar, beminformado das suas aes passadas e presentes para poder julgar das fu-turas, e ach-lo digno da sua confiana, que todavia no deve passar deum certo ponto para que o ministro favorecido no presuma que estsenhor de todo o seu segredo e por conseqncia de todas as suas in-tenes, pondo-o desta sorte em uma espcie de sujeio. Filipe II, deEspanha, nosso injusto conquistador, a quem os castelhanos indevida-mente deram o nome de prudente quando s lhe convinha o de cruel,parricida, sanguinrio, ambicioso e, sobretudo, hipcrita, consideradas assuas indignas aes, temeu que Antnio Peres, clebre na Histriadaquele tempo, as descobrisse e assim as quis cobrir com outra mais in-fame, querendo deix-lo condenar morte pela que ele lhe mandarafazer e, enfim, o mandava assassinar se ele no se salvara em Frana.

    J que me sirvo desta anedota para provar o meu assunto,referirei outra que no o confirme menos e vem a ser que o marqusde Fronteira e o de Tvora, que ambos aspiravam ao valimento doSenhor Rei D. Pedro, nclito av de V. A., estando conversando auma das janelas que olhavam para o Terreiro do Pao, sobreveio pordetrs o sobredito senhor e pondo-lhes as mos sobre os ombroslhes perguntou: "Em que discorrem os marqueses?" E o de Tvora,que era pronto e vivo, lhe respondeu: "Estamos, senhor, vendocomo nos havemos de enganar um ao outro, e ambos a Vossa Ma-jestade": e o pior que dizia a verdade.

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  • O conde de Vilar-Maior, depois marqus de Alegrete, veio, pormorte de um e outro, a gozar daquela fortuna, ainda que sua majestadeem certas coisas a repartia com Roque Monteiro por ser juiz da Incon-fidncia. E coisa notvel que sendo o dito marqus quarenta anos ve-dor da Fazenda e da repartio do Reino, no deixou algum monumentoque acreditasse nem o seu valimento nem o seu ministrio, para quechoremos a sua memria: chore-a embora a sua casa, que tambm aaparentou e enriqueceu, que o que no fez o cardeal da Mota por nofazer nada de proveito nem para si nem para o reino. Deste, que ogrande patrimnio de V. A., deve dar a Deus infinitas graas, porque,podendo-o fazer nascer de uma baixa e pobre distrao, lhe deu por paium to poderoso e magnfico rei, cujas virtudes excedem a mesma gran-deza, como todo o mundo confessa e louva com admirao; consid-erando, porm, que um rei no difere, senhor, de qualquer outro pai defamlias mais que em o ser de muitas e no de uma s, mas as obri-gaes so as mesmas, seja em geral ou em particular, e a demonstraodelas foi o ponto de vista com que comecei este papel. A primeira, pois,que tem um pai de famlias dar competente sucesso sua casa paraque no passe a outra estrangeira. verdade que a Providncia favore-ceu a V. A. com quatro princesas, mas negou-lhe at agora um prncipesem escutar os nossos ardentes votos, que incessantemente lhe fazemos.Pelo que sua majestade, no justo temor de que nos possa continuar estagrande desgraa (porque Deus tem tambm as suas teimas, quando lheno merecemos as suas misericrdias), projetou dar estado senhoraprincesa da Beira com tanto acerto como V. A. sabe. No entro nasrazes que o dito senhor teve para o no pr at agora em execuoporque as ignoramos e seria culpvel atrevimento querer penetrar osseus sagrados mistrios. Digo porm que se Deus dispuser da vida desua majestade, deve ser a sua primeira e louvvel ao do seu felicssimogoverno cumprir aquela que quero chamar ltima vontade, para nosenxugar as lgrimas que nos deve causar a falta de um to magnnimo ebenvolo soberano.

    No estranhe V. A. a um esprito melanclico e envelhecido se lhetrago memria que cada instante o termo da vida quando Deus assimo tem destinado, para que no perca os que ele lhe der para nos segurara sucesso de que tanto necessitamos, por nos no expor a que a senhora

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  • princesa da Beira, cuja tutoria de direito compete a sua me e, por con-seqncia, dela depender dar-lhe estado, se possa lembrar de que essa mais irm do que cunhada e mais espanhola do que portuguesa para seesquecer das mximas que V. A. lhe haver inspirado. Tenho por con-stante que este pouco que digo e muito que pudera dizer sobre um torelevante assunto, no escapa muito alta compreenso de V. A., mas ozelo de bom velho portugus junto a alguma experincia que tenho domundo me faz romper o silncio que em to delicada matria deviaguardar que, como para tudo h homens, quem me assegura de que nohaja alguns to malvolos que por interessadas vistas queiram persuadira V. A. que v passando o tempo, lisonjeando-o de que Deus lhe dar asucesso varonil, que tanto lhe desejamos? Assim o permita a sua divinamajestade; mas neste felicssimo acontecimento, que prejuzo se nosseguiria de termos em Portugal uma segunda e real linha? Eu no o con-sidero, nem creio que haver pessoa alguma que tenha o juzo em seulugar, que o possa imaginar, principalmente se revolver na memria aposteridade que teve o Senhor Rei D. Manuel de gloriosa memria, poislhe veio a faltar na segunda gerao, quero dizer, no infelicssimo SenhorRei D. Sebastio, que se perdeu a si e a ns. Triste lembrana, senhor,para os portugueses que refletem sobre as suas funestas conseqn-cias de que ainda hoje, depois de dois sculos, Portugal se ressente.

    A segunda obrigao de pai de famlias a de ter bem regrado oservio da sua casa, para que cada qual dos seus domsticos faa asfunes que lhe competem, conforme a graduao dos seus empregos, oque a V. A. ser muito fcil, se quiser, como desejo que queira, observaro mtodo que o Senhor Rei D. Joo o IV tinha dado para que nenhumdos oficiais da sua casa faltasse sua obrigao, no que era to rgidoque, querendo servir-se de um, e no o achando, se lhe respondeu quefora chamado Misericrdia; pelo que mandou logo dizer Mesa daquelasanta casa que no fizessem algum irmo dela que fosse criado da sua.

    E quando saa do despacho costumava passar pela galeria, to-mando conhecimento dos fidalgos que lhe faltavam em lhe fazeremcorte; e se algum no tinha aparecido, um ou mais dias, lhe perguntava,quando o via, se estivera incomodado. Isto tudo, senhor, concilia amore, juntamente, respeito.

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  • Tambm costumava comer em pblico ao nosso modo com toda areal famlia, como faziam os reis de Portugal, seus gloriosos predeces-sores, at que, por nossos pecados, os de Espanha vieram introduzir emPortugal as suas etiquetas, fazendo-se quase invisveis, o que no conciliao amor dos vassalos que desejam ver o Prncipe que os governa.

    A Rainha Isabel de Inglaterra, de cuja grande poltica est cheia aHistria, costumava passar pelas ruas de Londres para se deixar ver dosseus sditos, e levando um dia no seu coche o duque de Manon, porentre os clamores daquele grande povo, lhe disse: "Meu prncipe, esteamor que me testemunha esta populaa, so as minhas verdadeiras efiis guardas." E j o nosso sentencioso e admirvel Francisco de S deMiranda disse alguma coisa a este mesmo propsito; a que ajuntarei queo Senhor Rei Dom Joo IV tanto no seguiu esta mxima espanhola queainda fazia mais, pois mandava entrar no estribo do seu coche a clebreMaranhoa, que dominava todas as regateiras da Ribeira, para se fazerpopular, porque costumamos dizer que a voz do povo a voz de Deus,o que nem sempre se verifica.

    No direi que V. A. deixe de ter duas companhias de guarda decorpo a cavalo, de que em outro lugar falarei, no por segurana, maspor autoridade, visto que todos os prncipes da Europa o praticam, unscom mais, outros com menos necessidade; e o pior que at o mesmopapa, sem alguma, se faz acompanhar desta milcia como prncipe secu-lar; triste distino para responder aos protestantes que o increpam destavaidade e no sem justa causa, porque a igreja de Deus no se deve de-fender more castrorum.

    A terceira obrigao do pai de famlias particular a de ter cuidadode que entre ela no haja dissenses por no perturbarem a economia dasua casa; de que se segue que o Prncipe, pai de todas as do seu reino,deve interpor a sua autoridade para compor as diferenas que aconte-cerem entre umas e outras, porque devem vir a ser prejudiciais aos seusestados.

    Deste salutar princpio deriva ser necessrio conhecer os domsti-cos que o servem, principalmente os que esto encarregados das despe-sas da sua real casa, escolhendo um fiel controleur ou revedor de suas con-tas, para escrupulosamente as examinar e a cada trs meses as possa prdiante do Prncipe, e ento as aprove. Bem sei que esta precauo em

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  • uma casa real no poder evitar todos os descaminhos, pois so tantos afurtar e um s a prevenir os furtos disfarados com outros nomes;porm sempre a boa ordem repara muito dano.

    A quarta obrigao de pai de famlias no ter a sua casa endivi-dada; porque ningum rico seno enquanto no deve, o que no sepode evitar todas as vezes que a despesa exceda a receita; e assim toda aeconomia justa e necessria. O Senhor Rei Dom Joo IV no s apraticou com a sua real pessoa, mas queria que os seus criados ativessem, de tal sorte que vendo um dia entrar meu pai, que tinha ahonra de ser seu trinchante-mor, com pourpoint guarnecido com umarendinha de prata, lhe disse: "Vindes muito bizarro, Dom Antnio; masnunca fui to rico que pudesse ter outro semelhante"; e assim era, por-que sempre se vestiu de estamenha; e, por dar um notvel exemplo deeconomia, quando repartia entre os seus criados os coelhos que matavana tapada, queria que os lacaios lhos levassem para casa; porque se desseesta comisso ao amigo ou a qualquer outro, lhe daria dois tostes, queera o mesmo que se os comprasse na Ribeira, de maneira que, paramostrar que a sua inteno era de que os seus vassalos o imitassem,mandou que nenhum viesse ao Pao com os seus cabelos, porque ele osno conservava, e todos se tosquiaram, menos o conde de Vila-Flor. Eporque alguns o acusavam desta espcie de desobedincia, respondeuque era justo que ele os conservasse porque lhe haviam crescido emFlandres e no Brasil entre a plvora e a bala; e sabendo assim servir-sedestes acidentes para meter entre os fidalgos uma nobre emulao, semdegenerar em viciosa inveja para tomar as armas em sua defesa e daPtria, e sobretudo no faltava em ir todas as sextas-feiras Relao paraver sentenciar algum processo cvel ou criminal, costumando dizer quenunca se considerava tanto rei como quando estava vendo fazer justiaaos seus vassalos; e com razo, porque este o maior ato de soberaniado Prncipe. E s quartas-feiras, pelos princpios, fazia vir sua presenao senado da Cmara para saber como os vereadores despachavam e en-tretinham a polcia da cidade; de sorte que os ministros de um e outrotribunal procuravam mostrar que cumpriam as suas obrigaes.

    No quero dizer que V. A. use dos mesmos meios e raros exem-plos daquela estreita economia que o Senhor Rei Dom Joo IV dava aosseus vassalos; porque os fins eram outros e outras as circunstncias em

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  • que o dito senhor se achava, vendo-se obrigado a defender uma causaem que a sua parte adversria tinha dobradas testemunhas para provar oseu direito, sendo a campanha o sanguinolento tribunal onde se davamas sentenas, e contudo a justia da causa superou por esta ver adesigualdade da fora. Porm, no nos devemos reger pelos estupendossucessos que tivemos nesta guerra da venturosa aclamao; porque Deusnem sempre est de humor a fazer milagres; nem eles o foram, mas an-tes muito naturais, porque achamos os castelhanos em diferentes guerrase no souberam fazer a de Portugal para o recuperarem, quando Castelade todas as partes o abraa, exceto pela do poente, que confina somentecom o oceano, por onde os altos predecessores de V. A. foram desco-brir novos mundos e novas terras, para estenderem os seus domnios,no o podendo fazer pelo continente.

    Daqui nasce a grande questo sobre qual seja a melhor posio deum Estado, se a que limtrofe com muitos vizinhos ou a que no temmais que um s, sem embargo de ser mais poderoso. E quanto a mim, asegunda mais feliz; porque o Prncipe que a possui achar menos di-ficuldade em se prevenir contra um inimigo conhecido que contra tantosignorados, e a primeira o expor-se a entrar em todas as guerras que so-brevm, como por exemplo, os Estados de Itlia e de Holanda, que soobrigados a recorrerem a grandes potncias, a fim de que alguns dosseus vizinhos os no venham a dominar, servio que lhes custa bemcaro, pois lhes ficam dando as leis.

    A posio, pois, de Portugal , como digo, a mais venturosa, poisque de perto pode ter os olhos abertos para observar os passos de umapotncia, cuja inimizade est na massa do sangue, ainda quando nela nointerviera o seu interesse e as suas injustas pretenses; isto o que depasso direi, porque em outro lugar mostrarei qual o nosso verdadeirogarante, para que nele ponhamos todo o cuidado.

    Assim como o pai de famlias, segundo acima digo, deve ter a casadesendividada, convm que no a deixe decidida de demandas, que nodo menos inquietao que as dvidas, pela incerteza das decises, prin-cipalmente quando se tm com partes mais poderosas. Praza a Deus queo importante litgio que controvertemos com Espanha sobre a execuodo Tratado de Utrecht, esteja amigavelmente composto, para o quetenho concorrido todas as vezes que sobre a matria tenho sido pergun-tado, lembrando-me do provrbio de que um medocre ajuste valia mais

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  • que um bom processo, ainda quando se ganha; porque muitas vezessucede que se despende mais do que ele importa. Mas quando assim nosuceda e que V. A. ache ainda em aberto esta embaraadssima causa,parece conveniente que todo se aplique a termin-la enquanto vive asenhora rainha catlica, sua augusta irm, que possuindo o esprito de el-rei seu marido, poder dispor o seu ministrio a que de boa-f convenhaem uma racionvel composio, para que nunca mais se possam pro-mover nem estas nem outras quaisquer dvidas.

    A quinta obrigao do pai de famlias de visitar as suas terras paraver se elas esto bem cultivadas, ou se delas se tem usurpado algumaporo, a fim de que lhe no falte a renda que delas tirava para sustentara sua casa; e esta parece tambm ser a obrigao do Prncipe, pois nosabe as que possui, mais que pelo lho quererem dizer, e vai grande difer-ena de ver a ouvir. Se pois V. A. quiser dar uma volta aos seus reinos,observar em primeiro lugar a estreiteza dos seus limites, proporo doseu vizinho. Achar, no sem espanto, muitas terras usurpadas aocomum, outras incultas, muitssimos caminhos impraticveis, de que re-sulta faltar o que elas podiam produzir, e no haver entre as provncias acomunicao necessria para o seu comrcio: achar muitas e grandespovoaes quase desertas, com as suas manufaturas arruinadas, perdidase extinto totalmente o seu comrcio; achar que a tera parte de Portugalest possuda pela Igreja, que no contribui para a despesa e seguranado Estado, quero dizer, pelos cabidos das dioceses, pelas colegiadas,pelos priorados, pelas abadias, pelas capelas, pelos conventos de frades efreiras; e, enfim, achar que o seu reino no povoado como pudera ser,para prover de gente as suas largas e ricas conquistas, de que separada-mente tratarei.

    Estes, senhor, so os perigos, os males de que Portugal padece, etanto mais perigosos quanto so inveterados, e a que V. A., como tam-bm pai de famlias deve acudir, sem desesperar de que se lhes possaachar remdio se no para de todo e radicalmente os sarar, ao menospara aliviar em grande parte o enfermo. Grande seria a minha fortuna se,erigindo-me em mdico consultante, ainda que no consultado, e s peloamor que tenho ao doente, indico os remdios que se me oferecem, noaprendidos na Escola de Avicena, mas nas observaes que tenho feitoem semelhantes enfermidades; e se alguns parecerem violentos, bem

    614 Conselhos aos Governantes

  • sabido o provrbio -- in extremis -- etc. A fim de que se no acuse oesprito do mdico, mas a espcie da enfermidade; de sorte que se tam-bm praticar a arte de cirurgia, cortando pelo vivo, para que os herpesno ganhem a parte que se pode preservar da inteira corrupo.

    constante que se no pode curar algum enfermo sem que o pru-dente mdico observe o seu aspecto, considerando os sintomas, a con-formao do seu corpo, a constituio dos seus humores, as suas forase tome todas as mais indicaes para vir, tanto quanto poder ser, noconhecimento da causa do mal, que o aflige; isto no s para remediar asua queixa, mas para prevenir o de que pode estar ameaado.

    Se o mdico examinar o aspecto, e conformao de Portugal, verlogo que o seu primeiro mal a estreiteza dos seus limites, mal, digo,incurvel, sem nos podermos queixar da Providncia, que assim o per-mitiu, de que resulta o seu mal, que a debilidade das nossas foras proporo das dos seus vizinhos; mas como esta fraqueza seja ir-reparvel, e no tenha remdio especfico, parece se deve recorrer a al-gum que supra parte daquela falta, recorrendo a foras estrangeiras,como j recorremos quando fizemos com Frana o tratado que cadu-cou, e com Inglaterra o que ainda existe, porque o que no mesmo diacelebramos com Holanda nunca se ratificou; porm esta precauo serintil enquanto da nossa parte no fizermos o que devemos e podemosfazer, para nossa defesa, pois o mesmo Deus nos manda que nos ajude-mos para que ele nos ajude.

    A este fim V. A. pode ter: 1) de 25 at 30 mil bons soldados in-fantes, entretidos, e disciplinados, como se no outro dia se houvessemde pr em campanha; 2) bem providos os seus armazns de armas eartilharia com todos os mais materiais, munies, e petrechos de guerra;3) bem reparadas, e melhoradas as fortificaes de todas as suas fron-teiras com muitos engenheiros que no estejam, como agora esto,comendo o soldo ociosamente; de maneira que, ajuntando-se-lhe asmilcias na forma em que Frana com tanta utilidade delas se serve,poder ter um exrcito muito bom para quando a ocasio se oferecer. Aesta fora terrestre ser ainda mais preciso que lhe corresponda amartima; porque Portugal se pode contar entre as potncias que toma-ram este nome pela vizinhana do mar, e pelas frotas que lhe vm dastrs partes do mundo; em cujos termos necessita V. A. de ter pelo

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  • menos 20 navios de guerra de 50 at 64 peas de artilharia, dos quais sepoder servir para comboiar as frotas, e guardar as costas dos insultosdos mouros. Mas como no basta ter navios sem marinheiros para osnavegar, dissera que V. A. se servisse do mtodo que se pratica naMarinha de Frana, mandando alistar todos os do seu reino,repartindo-os em diferentes classes para deles se servir nas ocasies quese lhe oferecerem; e no transcrevo aqui qual seja este mtodo por andarimpresso nas suas ordenaes.

    Ainda que ignoro a quanto montam as rendas no casuais da coroa,ningum me diga que ela no pode sustentar as foras de que acima falo;pois todos sabem as rendas da Sucia e Dinamarca, e no que consiste oseu comrcio, e contudo a primeira entretm 30 navios de guerra, e asegunda 25 com tropas proporo; e se nos quisermos lembrar dotempo em que o Senhor Rei D. Joo IV a restaurou, veremos que semprimeiro haver contratado alguma aliana, sem primeiro ter levantado al-gum exrcito, nem aparelhado alguma armada, e sem possuir o Brasilapesar de tudo resistiu: o que parece tanto mais impossvel, que asprimeiras letras de cmbio que passou para tirar de Amsterd tudo o quelhe era necessrio, ningum quis aceitar, e se apregoaram na praa, e se-riam protestadas, se Jernimo Nunes da Costa (j se sabe judeu) no astomasse. E por este to grande servio lhe deu o dito senhor a patentede seu agente, que o Senhor Rei D. Pedro II confirmou depois a seus fil-hos, Alexandre e lvaro Nunes da Costa; mas Sua Majestade no quiscontinuar este emprego a seu neto por ser judeu, como se seus pais eav fossem cristos.

    Se pois V. A. tiver as foras que lhe indico, no digo que Portugalficaria totalmente curado do mal presente, porque isto no cabe na pos-sibilidade; mas prevendo o futuro, sempre nos daro tempo para resistir-mos aos primeiros insultos dos inimigos, e para esperarmos os socorrosque tivermos estipulado com os nossos aliados, de que nasce ser ne-cessrio reformar o tratado de perptua aliana defensiva, que fizemoscom a rainha Ana de Inglaterra; porque at agora no o renovamos comJorge I e Jorge II, o qual no deixaria de se interessar para que aRepblica de Holanda ratifique o de que j falei, pois a uma e outrapotncia convm a conservao de Portugal, e ainda mesmo Frana,sem embargo das estreitas incluses em que se acha com a coroa de

    616 Conselhos aos Governantes

  • Espanha, porque pela conquista de Portugal poder vir a ser o que dan-tes era, o que parece impossvel vir a ser; mas como o mundo d tantasvoltas, todas concorrero para que ele nesta parte no a d, porque seEspanha estivesse senhora da prata e ouro, e mais produtos de Portugale da Amrica, daria a lei a todas as potncias da Europa; e esta razo deestado o nosso melhor garante, em que contudo no devemos prtoda a nossa confiana.

    Isto quanto segurana do reino; mas a respeito da sua real pessoa,no desconvir de que V. A. tivesse duas companhias de guarda decorpo a cavalo, ainda que, como disse, delas no necessita possuindo oamor dos vassalos; mas porque todos os potentados da Europa intro-duziram este costume, e at o mesmo papa o pratica na considerao deque lhe concilia respeito, sendo que Ecclesia Dei non est defendenda more cas-trorum. bem verdade que assim nesta parte como nas outras se quersuportar que S. Santidade um prncipe temporal: terrvel distino, deque se seguem terrveis conseqncias. Bem vejo que os capites daguarda de p lhe faro oposio pelas prerrogativas que gozam os dasguardas a cavalo, o que facilmente se comporia, continuando os primei-ros as suas funes dentro do palcio, e os segundos as que lhe com-petem quando El-Rei sair fora das portas da cidade, e o seu capito notem a quem mandar. J S. Majestade teve esta mesma teno nomeandoo conde de Tarouca para capito de uma delas, mas como no fosse onico, seu pai embaraou o projeto.

    Neste caso se devia evitar o que el-rei catlico pratica com assuas companhias das guardas, a saber, que devem servir na suacavalaria, de que provm que toda a nobreza nela assente praa, epor isso muito luzido o seu uniforme. Dada esta providncia aoreferido mal, toda a aplicao e trabalho ser perdido, se V. A. nofizer ver que tem grande inclinao, no digo, como j disse, a fazera guerra, mas a ter tudo o que lhe ser necessrio para a sustentar,mostrando juntamente que estima os seus cabos e no despreza ossoldados, que por to limitado soldo sacrificam as suas vidas. Paraeste efeito quisera que V. A. regrasse diferentes tempos, em que cer-tos corpos tanto de infantaria, como de cavalaria e drages, viessem corte para que em sua presena passassem mostra, e fizessem o ex-erccio para ter ocasio de louvar os oficiais que tivessem completos,

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  • e bem disciplinados os seus regimentos, e de mostrar o seu desconten-tamento aos que houvessem faltado a esta obrigao; porque isto temlugar de prmio e de castigo para uns e outros, engendrando entre todosuma nobre e til emulao.

    O uso das outras naes concorre muito para o que digo, comopor exemplo os ingleses que ordinariamente so valorosos, e no fize-ram algum general de grande nome, exceto os duques de Malbourg emilorde Cadogan, porque o seu ponto de vista serem parlamentriospara talvez forarem o prncipe, que deles depende, a lhes dar os empre-gos cveis que desejam; e pelo contrrio, em Frana, onde o Parlamentono tem mais influncia, que nos processos que julga, as armas sopreferidas s letras, de tal sorte que a mulher do primeiro presidente notem lugar na corte, e por conseqncia nem alguma mulher dos becas,quando a de qualquer oficial se pode apresentar s majestades, e por issoesto todos os seus exrcitos cheios de muitos e bons generais.

    Diga Ccero o que quiser nos seus ofcios sobre esta preferncia,porque fala em republicano, e sendo um do mesmo senado dondeemanavam as resolues, que os generais deviam executar na campanha.Eu fui e sou desembargador, mas no daqueles que correm os bancospara o serem, porm nem por isso deixarei de conhecer que V. A. neces-sita mais de ter bons generais que grandes jurisconsultos; porque destescom sete anos de Coimbra pode ter muitos, e daqueles so raros, ou osno pode haver, quando lhes falta a experincia, que no se adquireseno vendo e pelejando, como diz o nosso celebrado Lus de Cames;mas no o podendo ter, pois graas a Deus, e pela admirvel conduta deS. Majestade, vivemos em uma profunda paz, dissera que V. A., subindoao trono, escolhesse alguns fidalgos que houvessem tomado a vida mili-tar, para os mandar servir onde a guerra se fizesse, e voltarem bem in-strudos do que nela se pratica: assim vejo que praticam as outras potn-cias, enquanto gozam da nossa ventura, para quando a perderem.

    Que V. A. se faa informar da bisonheria com que comeamos aguerra no sculo passado, e a do presente, porque os nossos generais eoficiais subalternos a no tinham visto: as gazetas daquele tempo fazemf, porque nelas nos ridiculizam sobre o pouco que sabamos das op-eraes militares. Ainda que seja necessrio mais tempo, e mais prticapara se criarem oficiais que defendam o reino, do que jurisconsultos que

    618 Conselhos aos Governantes

  • administrem a justia, de que a repblica necessita por no cair em con-fuso, por agora falarei somente da punitiva, em que ele mais interes-sado para que os delinqentes sejam severamente punidos, no que emPortugal se pe muito pouco cuidado.

    Eu fui, como j disse, desembargador da relao do Porto e da deLisboa e observei que muitos dos meus colegas, cujo mau exemplotalvez segui, punham todo o seu cuidado em achar razes para no con-denar morte os que a mereciam, a ttulo mal entendido de piedade, ques seria meritria se fosse revelado ao ministro piedoso, que o que livrada fora no cometeria outro delito; mas como raramente se corrigem, sem dvida que de todos os crimes que depois fizerem, devem dar contaa Deus os ministros que lhes conservaram a vida; e digno de reparoque de ordinrio os maiores delinqentes eram os que tinham mais pro-tetores. No h dvida que santo e bom um dos institutos da SantaCasa da Misericrdia, nomeando um mordomo, ou um procurador dospresos; mas ainda seria mais louvvel se ele no fizesse um ponto dehonra de que no seu ano fosse intil a forca, por no ser este o objetodaquela caridade, seno o de aplicar os despachos das suas acusaes,para que os inocentes sejam prontamente soltos, e castigados os conven-cidos conforme os seus delitos, pois enquanto se demoram nas cadeiasfazem Casa da Misericrdia uma grande despesa e no a faz menos omesmo mordomo em procurar os meios para os fazer fugir, e em prati-carem muitas falsidades para os salvar do patbulo, o que no meu pare-cer se devia advertir Casa da Misericrdia, para que se desse por muitomal servida do mordomo que usasse de semelhantes excessos para sal-var os presos e ainda os riscasse daquela santa irmandade, pois que naprontido do castigo consiste uma boa parte da justia, o que entre ns tanto pelo contrrio, que quando um ru vai a padecer, j ningum selembra do seu delito.

    Em Frana no sucede o mesmo, porque os processos dos malfei-tores so todos sumrios, e o juiz do crime se pode servir de todas assugestes que lhe parecem prprias para que o acusado confesse o seudelito, de maneira que em pouco mais de 15 dias lhe d a sua sentena,que, confirmada no Parlamento, vai, ou para a forca, ou para a roda de-pois de lhe darem diversos e rigorosos tratos para que confesse e de-clare, se no seu crime teve alguns scios e descubra outros criminosos:

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  • porm, no basta castigar incessantemente os delitos que se cometem; oponto est em achar meios para que se no cometam principalmente nacorte, debaixo dos olhos do prncipe. O 1 que me ocorre o de semandarem alumiar com lanternas todas as ruas de Lisboa, porque a ob-scuridade da noute facilita os roubos, as mortes, e outros crimes, compena de gals advirtam aos que as quebrarem. Assim se pratica em todasas grandes cidades da Frana e Inglaterra, Holanda, etc. E para estadespesa devem concorrer os moradores por ser para comodidade esossego da sociedade comum; a que ajuntarei que as lanternas no se de-veriam acender somente desde o ms de setembro at o ms de maro,mas todo o ano, ainda que faa luar, porque o vero sempre tem noitesem que se pode fazer o que se pretende evitar. E mandar proibir as es-padas e qualquer outra arma ofensiva a todas as corporaes da cidade emercadores de loja aberta, deixando-as porm a todos que tiverem al-gum emprego na repblica; de que resultaria que muitos por terem aliberdade de trazerem espada se fariam soldados; 2) que do mesmo regi-mento de cavalaria, que est aquartelado em Lisboa, se destacasse umcerto nmero de soldados com seu oficial, imitao do Guai a cavalode Paris, e passeassem muito devagar por toda a cidade para acudirprontamente a qualquer coisa que acontecesse. E para se imitar o de p,tambm quisera que em cada rua houvesse um quadrilheiro, para que to-dos lhe acudissem tanto que ouvissem a sua matraca ou qualquer outroinstrumento que lhe servisse de sinal, como se pratica em Londres e nascidades de Holanda, e por este meio no lhe escapa a pessoa que come-teu algumas desordens, ou alguns; 3) que os corregedores e juzes docrime fossem obrigados a dar ao presidente do pao e ao regedor dasjustias todos os meses uma exata lista das pessoas que moram nos seusbairros, e de que vivem, e como vivem, das companhias que freqentam,e dos que de novo nele vm habitar para no consentir neles nemociosos, nem vagabundos, porque so os que matam e roubam por noserem conhecidos. E como as mulheres pblicas so pela maior parte acausa destes desatinos, no as sofrero nas suas jurisdies, de maneiraque o regedor das justias lhes far culpa das desordens que nelas acon-tecerem. Da mesma sorte tomaro conhecimento dos pobres, para lhesno permitir que peam esmola seno os que absolutamente, e de nen-huma sorte, no puderem trabalhar. Isto se pratica em Holanda, onde

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  • no se v um s pobre, nem s portas das igrejas, nem nas ruas, que em-baraam os que vo missa, e os que por eles passam. A caridade muito louvvel, e o Evangelho a recomenda, mas no para que con-tribua para a ociosidade, de que resulta toda a espcie de vcio.

    Sem embargo do que acima digo que a repblica tem mais interessena boa administrao da justia punitiva que na distributiva, porque lheimporta pouco que a fazenda que pertence a Paulo se julgue a Pedro,pois no faz mais que mudar o possuidor: contudo convm que o prn-cipe somente meta no Supremo Tribunal da Relao as pessoas, cujaconhecida probidade v de par com a sua cincia, pois devem julgar ashonras, as vidas e bens de vassalos; mas como os cargos alteram svezes as inclinaes dos homens e por conseqncia os seus hu-mores, direi que, chegando aos ouvidos de V. A. algumas queixasdeste ou daquele desembargador, ser fcil saber se foi susceptvel decorrupo, quero dizer, mandando tirar uma exata informao dosbens que legitimamente possui, porque seno ignora o que lhe vale oseu emprego com a pendanga de que conservador de alguma naoestrangeira, que eu desejara abolir por ser uma quase servido que atodos pagamos no sem alguns inconvenientes, de que agora seriaintil falar. E combinando a renda que tiver o tal desembargadorcom a despesa que faz, sem escrpulo se pode inferir, que sai daspartes tudo o que a despesa exceder receita, para se lhe tirar o cargo,ou a ocasio de ser pior que o pior ladro, que talvez tem mandado enfor-car; porque este se rouba nas estradas, e arriscando de toda a sorte a suavida, e o ministro, sentado na sua cadeira, rouba sem o menor perigo osbens das partes, vendendo-lhes a justia.

    Se digo que na punitiva se devem evitar as dilaes, tambm justoque na distributiva se abrevie o procedimento das causas, em que muitasvezes assim os autores como os rus tm despendido mais do que elasvalem, sem lhe verem o fim; porm, no s em Portugal onde se sofreeste abuso e sente o mesmo prejuzo. Porque observei que em Frana, emInglaterra e Holanda, no so os pleitos menos dilatados, antes excessi-vamente maiores as despesas que se fazem com letrados, escrives, notrios,procuradores e requerentes, de maneira que nas mos de todos vem a ficarmuita parte da importncia dos processos; do que porm resulta uma certautilidade e vem a ser que as partes algumas vezes se acomodam, ou no

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  • intentam as suas aes por evitarem as ditas despesas e incomodidadesdos pleitos.

    O primeiro motivo deste desconcerto provm na minha opinio dogrande enxame de advogados que temos em Lisboa, uns bons e outrosmaus, mas que todos para comerem devem precisamente aconselhar asdemandas, de que resultam os dios, as separaes dos pais com os fil-hos, dos irmos com irmos, e as inimizades das famlias inteiras, quepassam aos seus descendentes. Pelo que me parecia, que se o seunmero excedesse o de que se necessita para a administrao da justia,dentre todos se escolhessem os de maior reputao, tanto nas letras,como nos costumes para que s eles pudessem advogar parte nas causascveis e parte nas criminais; ao que ajuntaria que os formados nos sagra-dos cnones no pudessem advogar, mas somente os formados em leis,pois vemos que os clrigos tomam tambm este modo de vida; e sedevo dizer tudo, no deviam entrar na Relao, pois que pelos mesmoscnones lhes defendido de concorrerem por qualquer modo que sejapara a morte de qualquer gnero de pessoa.

    Desta reforma dos advogados, que se deveria tambm observar naRelao do Porto, se seguiria: 1) que os admitidos, vendo que nenhumdos outros lhe tiraria o po da boca, antes teriam o que lhes sobrassepara se sustentarem com decncia, seriam mais circunspectos em acon-selharem os seus clientes conforme a justia que lhe achassem e no aindigncia, ou a ambio que tivessem; 2) que nesta suposio seriammenos as demandas, porque sendo o processo instrudo para se aclarar ajustia de cada qual, o grande nmero de advogados os obriga a es-curec-la com os seus sofismas, para chuparem a subsistncia das mes-mas partes que defendem.

    El-rei da Prssia, reconhecendo a exorbitncia dos advogados, or-denou no novo plano que fez para a boa e breve administrao dajustia civil, que no fossem pagos seno depois de dadas as ltimas sen-tenas e avaliando-se o seu trabalho; mas no meu entender este remdiono evita os inconvenientes, que ele quis prevenir, porque sempre ficanas mos das partes ir dando ao seu advogado o que lhe parecer at fi-nal sentena; e tambm me parece bem difcil a avaliao do seu tra-balho por ser necessrio haver respeito importncia da causa, quali-dade dos contendores, reputao dos advogados e aos papis que fize-

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  • ram, e que podero estender como quiserem; alm de que uma parte queest de posse de certa fazenda, que se lhe quer reivindicar, sempre pa-gar sob mo ao seu letrado proporo dos anos, que, fora de tra-paas, o for conservando na mesma posse.

    O dito prncipe ainda fez mais, porque decretou que nenhum proc-esso durasse mais de um ano e assim se comeou a executar emPomernia, que quer dizer terra litigiosa, ou dos litgios, a que aquelespovos, como os nossos minhotos, esto sempre dispostos, e assim den-tro do dito ano se julgaram mil e oitocentos processos e com to boaamostra do pano mandou praticar o cdigo, apartando-se em muitascoisas do direito comum, que diz ser a causa de tantas chicanas. Nocreio que seria necessrio servirmo-nos de semelhante exemplo paraabreviar os pleitos, mas somente de mandar executar a lei, porque ex-aminando a forma de julgar os processos em Frana, Inglaterra e Ho-landa, achei que a nossa mais justa e menos sujeita a dilaes, porquepara todo o processo deu a ordenao o termo limitado a saber, para acitao das partes, para darem o seu libelo, para virem com a sua con-trariedade, rplica e trplica, e para produzirem as suas testemunhas edocumentos, visto que todos os processos se reduzem a provar ou noprovar as aes que se intentam, para pr o juiz inferior em estado deproferir a sua sentena; e como os letrados para a prolongarem usam dasexcees que a mesma ordenao lhes permite, sejam peremptrias, di-latrias ou declinatrias, e ainda das suspeies, dissera que quando nemumas nem outras procedessem, tendo s por objeto ganhar tempo, quea parte perdesse o processo e o letrado fosse condenado a no podermais advogar. E quanto aos agravos de petio, que aos desembar-gadores ocupa uma boa parte do tempo em os julgar, sendo pela melhorparte sobre ordenar o processo e umas meras trapaas para dilatar acausa principal, tambm dissera que neste caso os advogados nofossem s os condenados em quatro mil-ris para a despesa da relao,que todavia a parte paga, mas que a multa fosse muito maior, e a suapriso efetiva de mais ou menos dias, conforme a velhacaria o merecer.

    Lembra-me porm que, reprovando eu a um dos melhores ad-vogados de defender uma causa em que o seu cliente no tinha a menorsombra de justia, ele me respondeu que ele em conscincia o no podiadesenganar, por lhe ter sucedido vencer muitas demandas igualmente in-justas, porque os juzos dos homens eram diferentes, e assim nodesprezava algum fundamento por mais absurdo que fosse, porque

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  • muitas vezes o juiz o abraava sem fazer caso dos mais slidos funda-mentos igualmente a seu favor. Porm este mal, que se no pode evitar,ao menos no ser to grande e to comum se se praticarem os expedi-entes que proponho, reduzindo, como digo, a um certo nmero os ad-vogados, porquanto os que ficarem de fora no perturbaro a sociedadeda repblica.

    Bem considero que muitos dos advogados excludos ficariamsem ter que comer, nem de que viver, ao que se poderia acudir arbi-trando-se para cada grande cidade ou grande vila, proporo dosseus povos, os letrados que fossem necessrios para ali se susten-tarem: quanto mais que o mal particular deve ceder ao comum. So-bretudo a perda dos processos devia ser a pena dos que contra a ditadisposio se servissem sob mo de outro letrado que no fosse dosaprovados pelo Desembargo do Pao, aos quais se deveria proibir teraos que chamamos embandeirados, que no servem mais de que assi-nar os papis, que eles fazem, para se livrarem da priso e das mul-tas, em que na relao so condenados.

    No so somente os advogados os que com as suas trapaas di-latam as sentenas, mas tambm os mesmos juzes, que por preguia de-moram nas suas mos os feitos que lhes foram distribudos, nohavendo algum por grande e embaraado que seja, que no se possa de-spachar em um ms, antes h muitos que bastariam 24 horas para sesentenciarem, para se evitar o grande prejuzo das partes, que vm defora solicitar a sua justia, faltando assim ao governo das suas casas.Tambm dissera que o regedor das justias, que, debaixo do docel daRelao, tem a honra de representar a pessoa do Prncipe, devesse tomara inspeo nos ministros que no davam a expedio necessria aosprocessos que tinham em suas casas, a fim de os admoestar e ainda dedar conta a S. Majestade de que faltavam sua obrigao. Isto no squanto aos desembargadores dos agravos, mas tambm a respeito dosmais juzes que, como adjuntos, despacham na relao os processos dassuas incumbncias.

    Mas passando a outra matria no de menor importncia: acimadeixo dito que se V. A., como verdadeiro pai de famlias, quisesse daruma volta aos seus domnios, observaria em primeiro lugar qual era asua estreiteza, proporo dos do seu vizinho, sobre o que discorri con-

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  • forme me ocorreu; que, em segundo lugar, acharia muitas pores deterras usurpadas ao comum das cidades, vilas e lugares, para mandar ex-aminar estas usurpaes pelos corregedores das comarcas e juzes defora, a fim de se restiturem s comunidades por lhe serem de grandeuso. Acharia muitas terras incultas por serem montanhas ou purascharnecas, para mandar aos mesmos ministros fazer nelas um rig-oroso exame e julgar se so capazes de alguma produo, por ser raraa de que se no pode tirar alguma utilidade, e ser constante que nageral cultura das terras consiste a de todo o reino; para obrigarem osproprietrios a mand-las beneficiar e produzirem, quando mais noseja, grossos matos e rvores, que mais convenham aos terrenos, deque em Portugal h tanta falta para a construo dos edifcios e maisservio domstico; do que em todas as partes se tem cuidado tanto,que no eleitorado de Hannover h uma lei, que dispe que nenhumpaisano possa casar sem provar que tem plantado vinte rvores; oque entre ns tanto pelo contrrio, que me lembro muito bem queo Senhor Rei Dom Pedro, querendo sustentar as fbricas de seda, or-denou que todos os ministros obrigados a dar residncia, nelamostrassem que cada qual da sua jurisdio tinha plantado umaamoreira no seu quintal, ou na terra que trazia arrendada; o que seobservou alguns anos, e h muitos que se no pratica, porque opaisano que um dia plantava uma amoreira, no outro a arrancava,podendo tirar dela o proveito de lhe vender a folha.

    E querendo eu examinar o motivo deste desconcerto, no me veiooutro imaginao seno que o lucro, que se procura aos povos, deveriapreceder fora; porm hoje sou de diferente opinio, vendo que sorsticos e preguiosos, que necessrio for-los a procurar o seumesmo proveito, de que se segue, se o proprietrio ou rendeiros das taisterras incultas, sem atenderem ao lucro futuro por se pouparem sdespesas presentes, as no quiserem cultivar, seria justo que se lhes tiras-sem, vendendo-se ou aforando-se a quem se obrigasse a frutific-las,tanto quanto lhe for possvel, porque importa pouco que se faa uma in-justia a certo particular, quando dessa resulta a utilidade comum, vistoque salus populi suprema lex est, e que a salvao dos povos consiste na cul-tura das terras; e para prova do referido necessrio saber que os nossosreis foram to liberais nas doaes que fizeram aos frades, principalmente

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  • bernardos e bentos, porque supunham que as terras que lhes davameram matos incapazes de produzir algum fruto; mas eles as cultivaramde maneira que hoje so fertilssimas e fazem a grande riqueza dos seusconventos.

    Isto mesmo sucedeu em Flandres; os religiosos das ditas ordensgozam de grandes abadias, que os prncipes lhes concederam pelamesma razo que acima aponto; e por isso no s todas as naes daEuropa pem todo o cuidado na cultura das terras, mas ainda a chinesa;porque o mesmo imperador, para mostrar aos seus vassalos o quanto elaimporta, estabeleceu um dia solene em que ele com os principais da suacorte vai lavrar e semear pela sua mo o trigo, em certa poro de terrapara isso destinada. Nesta cultura das terras entra a conservao eaumento das rvores, dos bosques e dos matos, quando elas no podemproduzir outra coisa, como tambm dos pastos para a criao dos gadosde todas as espcies, porque tudo concorre para a abundncia do pas.

    Da mesma sorte dissera que V. A. acharia certas boas povoaes quasedesertas, como por exemplo na Beira Alta os grandes lugares da Covilh,Fundo e cidade da Guarda e de Lamego; em Trs-os-Montes a cidade deBragana, e destrudas as suas manufaturas. E se V. A. perguntar a causadesta dissoluo, no sei se alguma pessoa se atrever a dizer-lha com aliberdade que eu terei a honra de faz-lo; e vem a ser que a inquisio pren-dendo uns por crime de judasmo e fazendo fugir outros para fora do reinocom os seus cabedais, por temerem que lhos confiscassem, se fossempresos, foi preciso que as tais manufaturas cassem, porque os chamadoscristos-novos os sustentavam e os seus obreiros, que nelas trabalhavam,eram em grande nmero, foi necessrio que se espalhassem e fossem viverem outras partes e tomassem outros ofcios para ganharem o seu po, por-que ningum se quis deixar morrer de fome.

    A segunda parte da causa, que no irreparvel, como em seu lugardirei, foi a permisso que S. Majestade deu aos ingleses para meteremem Portugal os seus lanifcios, principalmente os panos, havendo dozeanos que o dito senhor os tinha proibido, de que resultava que as nossasmanufaturas se iam aperfeioando de tal maneira, que eu mesmo vim aFrana e passei a Inglaterra vestido de pano fabricado na Covilh ou emo Fundo. Para esta desgraa concorreram trs coisas, a primeira querer

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  • o Senhor Rei Dom Pedro comprazer com a rainha de Inglaterra, com aqual acabava de fazer um tratado de perptua aliana defensiva e lhepedia que levantasse a pragmtica; a segunda ser Dom Joo Methuen,seu embaixador, irmo de um grande mercador de panos e assim trabal-hou em causa prpria, sem embargo de que sempre lhe fui contrrio; e aterceira, que ps a foice raiz, foi que o dito embaixador fez conceber acertos senhores, cujas fazendas pela maior parte consistem em vinhos,que estes teriam melhor consumo em Lisboa pela grande quantidade quedeles sairia para fora, se por equivalente desta permisso, Inglaterra seobrigasse a que os vinhos de Portugal pagassem de direitos a tera partemenos que os de Frana; e isto bastou para que o tratado se conclusse epara que as nossas fbricas, como acima digo, totalmente se perdessem.

    No h dvida que a extrao dos nossos vinhos cresceu incom-paravelmente, mas sujeita a que a poderemos perder todas as vezes queos ingleses deixarem de se conformar ao p da letra com o mesmotratado, isto , que os vinhos de Frana no paguem de direitos a teraparte de mais do que os de Portugal; porque logo no tero sada que ag-ora tm, enquanto os primeiros pagam no s a dita parte de mais, masmetade; e nem por isso se deixe de tirar de Bordeaux uma excessivaquantidade por serem melhores, mais baratos e ser mais breve o seutransporte.

    Contudo esta grande exportao de vinhos no to utilssima comose imagina, porque os particulares converteram em vinhas as terras de po,tirando assim delas maior lucro, mas em desconto a generalidade padecemaior falta de trigo, de centeio e cevada, de sorte que se o vinho sai de Por-tugal, necessrio que de fora lhe venha maior quantidade de po.

    Acresce, como deixo dito, que V. A. acharia impraticveis muitoscaminhos, de que em parte provm a decadncia do comrcio inte-rior do reino, no se podendo, ou sendo muito difcil, transportar asfazendas de umas para outras provncias, o que porm se poderia re-mediar, obrigando os moradores circunvizinhos a que por seus tur-nos trabalhassem a fazer mais cmodas as ditas estradas, pois dafreqncia da sua passagem sempre tirariam alguma convenincia;bem sei que em algumas partes seria intil o seu trabalho para dar a co-modidade dos carros.

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  • De Haia para Amsterd e de Amsterd para Haia, alm do correioordinrio, partem todos os dias dois carros de posta cobertos e capazesde receber passageiros, e um grande barco para a fazenda que se quertransportar. Da mesma Haia para Delft, e de Delft para Haia parte umbarco todas as meias horas e de trs em trs parte outro para Roterd epara Leide da mesma sorte que destas cidades e de outras partem paraHaia, alm dos barcos mercantes; tal a freqente correspondncia e talo comrcio que entre elas circula. Para darmos alguma ao nosso, disseraque este negcio se tratasse com o correio-mor, propondo-lhe que de-vesse ter em cada lugar notvel uma boa casa de posta, onde sustentasseum certo nmero de bestas de carga, destinadas a fazerem os mesmosservios dos carros, como tambm cavalos de posta para que deles sepossam servir os mercadores, que necessitarem de mais prontos avisos;pois ningum crer que entre duas cidades de to grande comrcio,como so Lisboa e o Porto, no podem os negociantes ter respostaseno em quinze dias, de que o mesmo correio-mor pode tirar o seuproveito; e quando no lhe convenha, poder S. Majestade tirar-lhe oofcio, pagando-lhe a soma, que por ele deram os seus antecessores, pelovalor da moeda que ento corria, ou assinar-lhe no rendimento do ditocorreio uma conveniente penso, pois que dela tantas vezes tem tiradoos seus interesses. Isto mesmo se praticou com o marqus de Torcey,porque as postas pertenciam aos secretrios de Estado dos NegciosEstrangeiros. El-rei de Castela o tirou ao conde de Ugnati sem esta cir-cunstncia. Frana e Inglaterra se servem deste grande fundo.

    Presentemente as provncias de Holanda o cederam ao novoStathouder, que generosamente o aplicou ao pblico. No quero dizerque o nosso correio produzir to grandes somas, porque nem temostantas correspondncias, nem tanto comrcio; mas no caso de seremmelhor regulados os portes das cartas e mandando-se que todas as quevm das conquistas vo ao correio, estou bem certo que S. Majestadepoder arrendar o dito ofcio com muito considervel vantagem da suareal fazenda, ajustando as condies que parecerem ser mais necessriaspara que as correspondncias, assim domsticas, como estrangeiras, se-jam regulares.

    Como seja de grande conseqncia que se aumente o comrcio in-terior do reino, so os intendentes das provncias de Frana obrigados a

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  • mandar corte um exato extrato do estado da agricultura, matos, guas,pontes, comrcio, caladas, caminhos, estradas, bosques e manufaturasdos lugares da sua jurisdio; e este foi o freio que el-rei cristianssimoquis pr aos governadores das mesmas provncias, que no usavam bemdo poder que nelas tinham. El-rei da Prssia imitou o exemplo e el-reicatlico fez o mesmo em ter intendentes, mas no sei se eles o servemcom igual zelo, de maneira que todas as memrias se remetem aos min-istros que tm cuidado de darem as ordens necessrias para se reparar oque se achar defeituoso.

    Eu creio que no temos necessidade de criarmos estes novos em-pregos, porque o bom governo no depende da sua multiplicidade, masdo zelo com que servem os que subsistem, como por exemplo, os corre-gedores e provedores das comarcas, e os juzes de fora das vilas, quenaturalmente devem fazer o mesmo ofcio dos intendentes por ser tal asua obrigao; mas necessrio que o prncipe lhes faa gravemente sen-tir o seu desagrado, quando a no cumprirem. Eu quisera que fosse umsenhor da corte que lhes tirasse a residncia e no um ministro de Justiacomo eles so, por serem uma limitao de regra: Teu inimigo o oficialdo teu ofcio.

    Disse mais que V. A. acharia que a Igreja pelo menos possua a ter-ceira parte do reino, mas no me atreverei a apontar a este grande malalgum remdio, que no seja mais violento que o lenitivo, que a lei lheaplicou, dispondo no Livro 2 da Ordenao, Ttulo 18, a saber -- Quenenhuma igreja, ou mosteiro de qualquer ordem ou religio que seja,possa possuir alguns bens de raiz, que comprarem ou lhe foremdeixados, mais que um ano e dia, antes os vendero. Assim se quis prati-car no reinado do Senhor D. Joo IV; mas quando o internncioRavizza, saindo de Portugal com caixas destemperadas, o deixou ex-comungado, o Arcebispo de Lisboa, D. Rodrigo da Cunha, tomou sobresi levantar a excomunho, contanto que o dito senhor no fizesse execu-tar a sobredita lei, ao que se conformou, porque as coisas estavam muitofrescas para dar corte de Roma mais um pretexto para no o reconhe-cer.

    Tambm o Senhor Rei D. Pedro, por conselho dos seus ministrose justas queixas dos seus vassalos, que no achavam em que empregar oseu dinheiro, quis que a lei tivesse o seu efeito, de que resultou que todas

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  • as Ordens constituram por seus procuradores os jesutas, que souberamatabafar a obrigao, e pr-lhe em cima a pedra do esquecimento; masnem por isso deixa de estar na mo do soberano o renov-la. E quandoo no queira fazer, por evitar o mal-entendido escndalo, que os ecle-sisticos afetaram, sempre conviria promulgar uma lei, para que daquipor diante nem os frades, nem as freiras, nem os seus conventos pu-dessem herdar bens de raiz, antes fossem alienveis os j adquiridos,sem embargo de que conforme a comum opinio, extremamenteprejudicial ao Estado, seja de que so inalienveis os bens que porqualquer ttulo entram na Igreja. De que se segue que pelo decursodo tempo vir a possuir no s a tera parte do reino, como acimadigo, mas a metade, porque os confessores abrem as portas do Cuaos que na hora da morte deixam s suas ordens, ou s suas igrejas, oque tm, privando assim os seus sucessores do que naturalmente de-viam herdar. A outro abuso se devia ocorrer e vem a ser os falsos pa-trimnios de certos bens, que os pais fazem a seus filhos para se or-denarem, a fim de que no paguem os impostos, supondo j serembens da Igreja; e assim no deveriam gozar desta iseno, nem estesnem quaisquer outros, sobre este mesmo princpio; antes justo quetodos concorram para as despesas do Estado, que se obriga a conservar-lhes a posse em paz e quietao.

    Finalmente disse que no acharia o reino to povoado comopoderia ser; e assim , porque o corpo do Estado sofre sucessivamentequatro sangrias, a que ser necessrio pr-lhe de algum modo asataduras para que de todo se no extenue, quando as suas melhores mi-nas consistem nos mesmos braos que trabalham e aumentam a pro-duo das terras. A primeira sangria a muita gente, que de ambos ossexos entra nos conventos, porque comem e no propagam; e a melhore mais fcil atadura que se lhe poderia pr, seria ordenar que os seusprelados no recebessem nem mais frades, nem mais freiras, at se re-duzirem ao nmero que as suas instituies lhes arbitram, para sepoderem sustentar com as rendas que lhes deixaram.

    verdade que as ordens mendicantes no tm rendas, mas por issomesmo so mais prejudiciais repblica; porm, bem se lhes poder ar-bitrar um mdico nmero de frades a cada convento, para celebrarem osofcios divinos, sem que se pudessem multiplicar, antes as ordens, que se

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  • dizem relaxadas, conviria que se reformassem em si mesmas e noparindo novos conventos, que se deveriam extinguir; e esta seria a ver-dadeira reforma em benefcio do pblico, porque no haveria nem tan-tos frades, nem tantas freiras, que por vida e no por vocao entramnas religies.

    O mesmo digo aqui dos conventos de freiras, onde se acham infi-nitas mulheres, ou porque seus pais as obrigaram a entrar neles, ou porgozarem da liberdade que no tinham em suas casas. Que V. A. se faadar uma lista de todos os frades e freiras que h no reino, e ver que semetade deles e delas se casassem, seja ou no com desigualdade, o queimporta pouco ao Estado, no haveria dvida em que cresceria onmero dos seus sujeitos, e Portugal seria pelo tempo adiante mais po-voado; e a este fim seria de opinio que ficasse livre de pagar algum im-posto todo o lavrador que tivesse trs filhos, porque esta iseno osconvidaria a no ficarem solteiros.

    Bem creio que o papa no teria grande dificuldade em conceder odito breve pelo que respeita s freiras, mas faria muito pelo que toca aosfrades, porque perderia tantos sditos para os dar ao Prncipe, de quemnaturalmente o so. Outro meio se oferece para evitar o mesmo pre-juzo, ainda que no to eficaz, como por exemplo, que S. Santidade porum novo breve ordenasse que nem os frades nem as freiras pudessemprofessar, seno de idade de trinta anos; pois coisa bem estranha queno sejam vlidos os contratos que um menor de vinte e cinco anos fizerpara dispor de quatro mil-ris, e que um menor de quinze possa disporda sua liberdade, to preciosa como ela .

    J se v a utilidade que o Estado retiraria de se adotar um destesexpedientes; porque diminuindo os frades e as freiras, cresceriam oscasamentos, e por conseqncia os povos, ainda que no tanto comoentre as naes onde no h esta casta de gente. Como os clrigos guar-dam o mesmo celibato que os frades, igualmente preciso que os bisposno ordenem mais que os necessrios para o servio das suas igrejas eque fossem exterminados os que fraudulosamente se fossem ordenar aCastela, com reverncias falsas. El-rei de Sardenha acudiu a este abuso,mandando que ningum se pudesse ordenar sem o Placet do Sndico; esobre esta matria teve uma grande disputa com a corte de Roma, quedizia que a tal resoluo infringia a liberdade eclesistica, mas no teve

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  • que dizer quando se replicou que o Conclio de Trento arbitrava tantossacerdotes conforme o nmero dos povos a que deviam administrar ossacramentos, a que o dito Prncipe queria ajuntar mais uma tera parte,mas no privar-se de tantos vassalos para os dar ao papa e deixar de cul-tivar as terras de seus pais e no pagarem os tributos que lhe competiam.

    A segunda sangria, que no deixa de enfraquecer o corpo doEstado, e a que no acho remdio, o socorro da gente que anualmentese manda para a ndia, sem o qual no se poderia sustentar. E como unsmorrem na viagem e o que mais , outros se fazem frades, deveria serum ponto de instruo do vice-rei no permitir que nenhum soldado,que fosse de Portugal, entrasse em alguma religio, pois que para se sal-varem bastante a do seu ofcio.

    A este prejuzo se segue o de que pela mesma razo vm a faltar osmarinheiros, que se debandam e deixam as suas mulheres, de quepoderiam ter muitos filhos. O Brasil no sangra menos a Portugal, por-que sem embargo de j no ser livre a cada qual passar quele Estadosem passaporte, conforme ouo dizer, contudo furtivamente se embar-cam os que ao cheiro das minas querem l ir buscar sua vida.

    O modo de poder povoar aquelas imensas terras, de que tiramostantas riquezas, sem despovoar Portugal, seria permitir que os estrangei-ros com as suas famlias se fossem estabelecer em qualquer das suascapitanias que escolherem, sem examinar qual seja a sua religio, re-comendando aos governadores todo o bom acolhimento, e arbitrando-lhes a poro de terra que quiserem cultivar. De que se seguiria que l secasariam e propagariam, e em poucos tempos os seus descendentes se-riam bons portugueses e bons catlicos romanos em o caso que seusavs fossem protestantes, no que no acho algum inconveniente, antesvi que os ingleses tm mandado para os seus estabelecimentos, naAmrica, vrias colnias do Palatinado, e de melhor vontade iriam parao Brasil e cultivariam grande parte daquele vasto pas, pois certo que,depois do descobrimento das minas, tem diminudo a cultura dos aca-res e tabaco, e por conseqncia o nmero dos navios que traziamaqueles efeitos e o dos marinheiros que o navegavam.

    A insensvel e cruelssima sangria que o Estado leva a que lhe d aInquisio, porque diariamente com medo dela esto saindo de Portugalcom os seus cabedais os chamados cristos-novos. No fcil estancar

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  • em Portugal este mau sangue, quando a mesma Inquisio o vai nu-trindo pelo mesmo meio que pretende querer ved-lo ou extingui-lo; e jo clebre Fr. Domingos de So Toms, da ordem dos pregadores edeputado da Inquisio, costumava dizer: "Que assim como na calcetariahavia casa em que se fabricava moeda, assim havia outra no Rocio, ondese faziam judeus ou cristos-novos, porque sabia como eram processa-dos os que tiveram a desgraa de serem presos, e que em lugar de se ex-tinguirem, se multiplicavam, e ningum melhor do que ele podia falar namatria."

    No entrarei a particularizar o motivo deste infortnio, basta dizersucintamente que a ignorncia em que esto os acusados dos nomes dosque os acusaram, e que devero contestar para escaparem ao fogo, e aprova que fazem as testemunhas singulares para a veemente presunode que o ru tinha uma leve tintura do sangue hebreu, so as verdadeirascausas desta lastimosa tragdia, que desonram Portugal nos pases es-trangeiros, onde o nome de Portugal sinnimo com o de judeu.

    Vi e revi, senhor, com particular satisfao todos os papis que,cheios de erudio, tirada da histria profana, mas nem sempre ven-turosamente aplicada, se escreveram pr e contra na regncia do nclitoav de V. A., quando os cristos-novos de Portugal recorreram a Romapara obterem um perdo geral, ou se reformarem os estilos do SantoOfcio, ao que se opuseram os trs Estados juntos em cortes e os bisposem particular; sobre o que suspendo o meu juzo, ou para melhor dizer,o sujeito em certo modo ao de tantas e to doutas pessoas, quantas,nemine discrepante, reprovaram como mpios os ditos requerimentos; masno deixarei de admirar-me de que os bispos viessem a confessar que osinquisidores eram as luzes do Evangelho e as colunas da f, quandoDeus, s s bocas destes mesmos bispos confiou a preservao e a in-teligncia das verdades evanglicas; destituindo-se assim da sua privativajurisdio para deixarem condenar as suas ovelhas, contentando-se deque os inquisidores lhes faam a graa de os deixarem assistir s sen-tenas dos que relaxam ao brao secular. Oh! tempora! Oh! mores!!!

    Vi tambm muitos papis, assaz longos, em que se apontam osmeios para se extinguir em Portugal o judasmo, mas no vi algum emque se tratasse de acordar a utilidade temporal do reino com a espiritualda religio, que todo o meu objeto. Assento pois por princpio certo,

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  • que ningum negar, que a utilidade temporal de Portugal requere que oreino se no despovoe, antes abunde em gente, e que tambm o espiri-tual nos persuade a que nele se no consintam judeus, inimigos de JesusCristo, sem embargo de que os senhores reis, nossos soberanos, nele ostoleravam e deles se serviam at ao tempo do Senhor Rei D. Manuel, degloriosa memria, que os exterminou, e sem embargo de que em todasas naes da Europa se admitem, e ainda na mesma Roma, contudocomo a lei do reino determinou o contrrio, justo que ela se observe; ecreio que este ser um dos meios que se podiam achar para se combi-narem aqueles dois sistemas que parecem antinmicos.

    Depois a lei do Livro 5, Ttulo 1, 4:

    "Porm, se algum cristo leigo, que antes fosse judeu, ou mouro,quer nascesse cristo, se tornar judeu, ou mouro, ou a outra seita e assimlhe for provado, ns tomaremos conhecimento dele, e lhe daremos apena segundo direito, porque a Igreja no tem aqui que conhecer se errana f, ou no; e se tal caso for que ele se torne f, a fica aos juzes ecle-sisticos darem-lhe suas penitncias espirituais."

    O objeto desta lei no foi somente de castigar o crime de apostasia,que j se sabe ser de morte, mas tambm de prescrever que o con-hecimento deste detestvel delito pertencia ao juzo secular, dandologo a razo, porque se no duvida do erro da f. Poderia vir emquesto se pertenceria tambm ao mesmo juzo secular conhecer doque fosse acusado de ter abraado qualquer outra seita, pois pareceque assim o dispe a dita lei, mas no entrarei nesta disputa, que meapartaria muito do meu assunto. Digo somente que da execuodesta lei se seguiriam muitos benefcios: o primeiro que nohaveria mais cristos-novos que aqueles que se tornarem f efossem remetidos ao juzo eclesistico para lhes darem as penitnciasespirituais, conforme os sagrados cnones determinam, porque sestes so cristos-novos que da sinagoga vo para o altar, como tam-bm o maometano, ou o gentio, para se batizar, mas no aqueles cu-jos pais e avs nunca prevaricaram; o 2, que seriam escusados osatos da f que os nacionais vo ver como uma festa de touros, eos estrangeiros como uma bugiganga pela variedade das insgniasque levam os que vo no dito ato da f, e os inquisidores inven-taram para excitar a curiosidade dos povos; 3, que no se exporiam

    634 Conselhos aos Governantes

  • indignamente, na igreja de So Domingos, os retratos dos que pade-ceram, dos quais, em lugar de se conservar a memria, se devia esquecer.

    Mas se algum objetar que no convm que por este modo ficassea Inquisio sem exerccio, e o povo sem este divertimento, a que chamatriunfo da f, respondo que nunca faltaria aos inquisidores que fazer,nem em que se ocupar; porque ainda que se lhes tirasse este ramo, que o mais pingue da sua jurisdio, sempre lhes ficariam outros muitos emque empreg-la, como, por exemplo, contra os que abraam novasopinies, ou errneas ou herticas, de que achariam infinitos, se eles asno guardassem nos seus coraes exceto aquelas que se no podempraticar sem as comunicar, verbi gratia , as que tendem sensualidade,quero dizer, as dos quietistas e outras semelhantes, ao que se ajunta oconhecimento dos crimes mistifrios, alm de que sempre guardaria aprerrogativa de ter tantos sditos quantos so os seus familiares; e estejaV. A. certo que todas as vezes que houver um tribunal privativo paracastigar certos crimes, sempre far criminosos.

    Lus XIV o instituiu com o nome de Cmara Ardente para conhe-cer dos feiticeiros e envenenadores, e logo foi acusado no menos que omarechal de Luxemburgo e a duquesa de Bovillon, com outras muitaspessoas de distino; pelo que o parlamento de Paris representou ao ditoPrncipe, que se no abolisse o dito tribunal, em pouco tempo, toda aFrana seria acusada daqueles delitos; e no se ouviu falar mais destes,depois que ele se extinguiu.

    Porm, quando este primeiro meio de execuo da dita lei parecer im-prprio para o meu fim, proponho como segundo renovar o do extermnio,que o Senhor Rei D. Pedro promulgou esta determinao, que toda a pessoaque no ato de f sasse convicta do crime de judasmo, sasse do reino notermo de dois meses; e por isso enquanto ela se praticou, estavam quase semexerccio as inquisies a respeito dos judeus; e me lembro que a de Lisboa,para fazer o ato da f, mandou pedir de Coimbra e vora algumas figuras;mas os inquisidores negociaram de maneira que el-rei derrogou a lei, com opretexto de que os judeus com medo do extermnio no ousavam declarar-se com os da sua nao, e assim no havia testemunhas que os acusassem,para que se arrependessem; porm, como a Igreja no julga dos interiores emenos o Prncipe, pouco importa repblica que haja judeus ocultos,quando no escandalizam e conservam as suas casas.

    Lus da Cunha/Testamento Poltico 635

  • A pena do extermnio comeou com o mundo, como se fosse amaior, visto que Deus exterminou a Ado do Paraso, que acabava defazer com as suas prprias mos, e era a sua ptria, porque lhe desobe-deceu; deviam pois os inquisidores contentar-se da existncia da lei, paraque se fosse acabando em Portugal o judasmo; e de saber que elaprovinha da boca do mesmo papa; porque D. Lus de Sousa, que in-imigo desta pobre gente, quere se faa sair do reino.

    O terceiro meio fora, que aos presos pelo crime de judasmo sedessem abertas e pblicas, isto , darem-lhe vista dos nomes das teste-munhas, que neles deram para as poderem contraditar, como se d a ou-tro qualquer criminoso; assim o requereram j os cristos-novos, apa-drinhados pelo marqus de Fronteira, e o Senhor Rei D. Pedro lhes per-mitiu que recorressem a Roma, onde haveriam ganhado o seu processo,se, morrendo o ministro, no entrasse em seu lugar o marqus de Ale-grete, ento de Vilar-Maior, que tomou o contrap do seu predecessor,como de ordinrio acontece, achando a sua conta em se fazer protetorda Inquisio, com o Secretrio de Estado Francisco Correia de Lacerda,sua criatura, os quais dispuseram o dito senhor a mandar a Roma D.Lus de Sousa, bispo de Lamego, para se opor mesma faculdade, quehavia dado aos cristos-novos, de que resultou querer a congregao dosinquisidores de Roma examinar os autos dos que as Inquisies de Por-tugal tinham processado; e porque eles lhe no quiseram obedecer in-tervindo, lhes suspendeu o exerccio, e neste estado ficaram por espaode seis anos, at que S. Majestade lhes permitiu mandarem a D. Lus deSousa certos processos bem escolhidos, para os poder produzir, e assimvoltou D. Lus de Sousa triunfante com a informao dos estilos inqui-sitrios, exceto algumas circunstncias parvi momenti, porm certo quese os cristos-novos tivessem vista das testemunhas que neles do, nos as poderiam contraditar, mas o ru no se veria obrigado a ir dandoem todas as pessoas que conhece, para contestar com as que o acusarame no serem condenados por Diminutos, de que se seguiria que se iriamdiminuindo os cristos-novos e que o so, fiados em que se podem de-fender, no sairo de Portugal com os seus cabedais, que o meu pro-posto.

    Como S. Majestade seja o senhor do dito Tribunal da Inquisiopara o abolir se quiser, claro est que tambm para poder alterar os

    636 Conselhos aos Governantes

  • seus estilos, sejam ou no confirmados pela S Apostlica, para revogara prova que fazem as testemunhas singulares; e ridcula a razo que do conde da Ericieira, na resposta que fez ao padre Antnio Vieira,dizendo que pois a singularidade das testemunhas faz prova no crime delesa-Majestade Humana, com maior fundamento a deve fazer no crimede lesa-Majestade Divina, como se se pudesse fazer argumento de umapara outra, quando na primeira concorre a vida do prncipe e a segu-rana do Estado, e na segunda s se trata da ofensa a Deus, que todomisericordioso; todos sabem a regra geral, de que melhor absolver oculpado que castigar o inocente; e a razo clara, porque o culpadopode-se emendar e a morte do inocente no tem emenda. O maiorcrime que se cometeu no mundo foi o de Ado, que se perdeu a si e nosperdeu a ns para sempre. Todos sabemos como foi processado estedesgraado ru, sendo o mesmo Deus o seu inquisidor que o citou e queouviu a sua defesa, dizendo que fora Eva, que lhe dera por mulher,quem o provocara; e que esta testemunha respondera que a serpente aenganara; e assim ficou este processo feito em todas as formas para queo supremo juiz desse a sentena, que foi, ainda mal, a que nos fez nascerescravos do Diabo. Ningum pode duvidar que Deus podia sentenciaresta terrvel causa sem se servir de semelhantes formalidades, de que re-sulta que os inquisidores s deveriam fazer o que Deus quis observar,dando aos rus vista de testemunhas, mas bem pode ser que seja porcastigo dos judeus no saberem quem os acusa, pois quando feriam a Je-sus Cristo lhe perguntavam por derriso que adivinhasse quem o mal-tratava; passe-se neste sentido se lhes negam as abertas e publicadas.

    J disse que as abertas e publicadas no deviam fazer prova, e agoraacrescento que se ho de ter, ou por falsas ou por suspeitosas. Os que sevo apresentar ao Santo Ofcio no o fazem por arrependidos; masquando ouvem que algum seu amigo ou parente foi preso e o poderacusar, porque ignora que outros o tenham feito, vai pedir perdo,nomeando todas as pessoas que conhece, ou lhe vm cabea, demaneira que sendo invlido o seu testemunho, no ficariam no se-creto as pessoas para fazerem prova contra outras; e assim conviriaque o tal apresentado fosse recolhido na Inquisio, para sair no atoda f como os mais. No s a Inquisio que, pelo seu modo deprocessar, faz crescer o nmero dos cristos-novos, mas tambm as

    Lus da Cunha/Testamento Poltico 637

  • irmandades e confrarias, e por isso se lhes deveria defender que nen-huma, sem exceo, tirasse inquiries de limpeza de sangue, porqueeles vejam os que nelas querem entrar; mas somente de vita, et moribus,consultando sobre eles ao seu proco, pois costumam infamar decristos-novos muito boas famlias que o no so, no deferindo aosestmulos da sua devoo.

    O quarto meio para se extinguir o nome de cristos-novos, e queno se fossem multiplicando, misturando-se com cristos-velhos, seriadecretar que fossem invlidos os seus casamentos e ficassem sendo bas-tardos os seus filhos. E se algum argir que por este modo se estabele-ceriam em Portugal dois diferentes povos qual inimigos contra a unio esociedade da repblica, responderei que isto mesmo se est praticandotacitamente, pois vemos quantos casamentos se deixam de fazer entrecertas pessoas ou famlias, porque de uma ou de outra se tem opinio dedescendentes de algum cristo-novo, de sorte que faria a lei o que faz omal-entendido costume, sem outra diferena seno a que vai do mais aomenos.

    O quinto meio seria abolir as confiscaes para a coroa, a que j oSenhor Rei D. Joo IV tinha dado princpio imitao da repblica deVeneza, que confisca os bens dos c