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Sumario Editorial Ana Maña López Calvo de Feijoo, Adriana Benevides Soares, Alexandra Cleopatre Tsallis, Deise Mancebo, Deise María Leal Fernandes Mendes, Rita María Manso de Barros. p. 702-705 Artigos Psicología Fenomenológica, Psicanálise existencial e possibilidades clínicas a partir de Sartre André Barata Nascimento, Carolina Mendes Campos, Fernanda Alt p. 706-723 Liberdade, alienacao e criacao literaria: reflexóes sobre o homem contemporáneo a partir do existencialismo sartriano Amana Rocha Mattos, Ariane Patricia Ewald, Fernando Gastal de Castro p. 724-766 Um olhar sartriano para o especialismo "psi" contemporáneo Michelle Thieme de Carvalho Moura p. 767-791 O debate entre paganismo e cristianismo em duas obras de Kierkegaard: contribuicóes para urna reflexao sobre os processos de subjetivacáo Cristine Monteiro Mattar p.792-816 Reflexóes sobre as bases para a edificacáo de urna psicología Kierkegaardiana Myriam Moreira Protasio p. 817-832 O método fenomenológico em psicología: urna leitura de Nilton Campos Adriano Furtado Holanda p. 833-851 A consciéncia e o mundo na fenomenología de Husserl: influxos e impactos sobre as ciencias humanas Carlos Diógenes Cortes Tourinho p. 852-866 Intencionalidade: estrutura necessária a urna psicología em bases fenomenológicas Roberto S. Kahlmeyer-Mertens p. 867-882 O plantao psicológico como possibiiidade de interlocucáo da psicología clínica com as políticas públicas Emanuel Meireles Vieira, Georges Daniel Janja Bloc Boris p. 883-896 ISSN 1808-4281 Estudos e Pesquisas em Psicología | Rio de Janeiro | v. 12 | n. 3 | p. 700-701 | 2012

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Sumario

EditorialAna Maña López Calvo de Feijoo, Adriana Benevides Soares, Alexandra CleopatreTsallis, Deise Mancebo, Deise María Leal Fernandes Mendes, Rita María Manso deBarros.

p. 702-705

ArtigosPsicología Fenomenológica, Psicanálise existencial e possibilidades clínicasa partir de SartreAndré Barata Nascimento, Carolina Mendes Campos, Fernanda Alt

p. 706-723

Liberdade, alienacao e criacao literaria: reflexóes sobre o homemcontemporáneo a partir do existencialismo sartrianoAmana Rocha Mattos, Ariane Patricia Ewald, Fernando Gastal de Castro

p. 724-766

Um olhar sartriano para o especialismo "psi" contemporáneoMichelle Thieme de Carvalho Moura

p. 767-791

O debate entre paganismo e cristianismo em duas obras de Kierkegaard:contribuicóes para urna reflexao sobre os processos de subjetivacáoCristine Monteiro Mattar

p.792-816

Reflexóes sobre as bases para a edificacáo de urna psicologíaKierkegaardianaMyriam Moreira Protasio

p. 817-832

O método fenomenológico em psicología: urna leitura de Nilton CamposAdriano Furtado Holanda

p. 833-851

A consciéncia e o mundo na fenomenología de Husserl: influxos e impactossobre as ciencias humanasCarlos Diógenes Cortes Tourinho

p. 852-866

Intencionalidade: estrutura necessária a urna psicología em basesfenomenológicasRoberto S. Kahlmeyer-Mertens

p. 867-882

O plantao psicológico como possibiiidade de interlocucáo da psicologíaclínica com as políticas públicasEmanuel Meireles Vieira, Georges Daniel Janja Bloc Boris

p. 883-896

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicología | Rio de Janeiro | v. 12 | n. 3 | p. 700-701 | 2012

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Atendimento psicológico em instituicóes: da tradicao á fenomenologíaexistencialJuliana Vendruscolo

p. 897-910

Desdobramentos clínicos das propostas humanistas em processos depromocao da saúdeMarcia Alves Tassinari

p. 911-923

Suicidio de universitarios: o vazio existencial de jovens nacontemporaneidadeElza Dutra

p. 924-937

Mundo como fundamento da psicoterapia de grupo fenomenológicaLuís Eduardo Frangáo Jardim

p. 938-951

Reflexóes fenomenológico-existenciais para a clínica psicológica em grupoAna Tereza Camasmie, Roberto Novaes de Sá

p. 952-972

A clínica psicológica em urna inspiracao fenomenológica - hermenéuticaAna Maña López Calvo de Feijoo

p. 973-986

Da crise do sujeito á superacao da confissao clínicaAlexandre Marques Cabral

p. 987-1006

A Clínica como poiéticaMónica Botelho Alvim

p. 1007-1023

Segao Clio-PsychéHistoria e reflexao sobre as políticas de saúde mental no Brasil e no RioGrande do SulMiriam Thais Guterres Días

p. 1024:1045

A experiencia de autores judeus da psicoiogia sobreviventes do holocaustoMilena Callegari, Marina Massimi

p. 1046:1062

Comunicagao de Pesquisa

Urna historia da Abordagem Centrada na Pessoa no BrasilAlexandre Trzan-Ávila, Ana María Jacó-Vilela

p.1063:1069

Resénha

Resenha do livro A existencia para além do sujeitoRoberto S. Kahlmeyer-Mertens

p. 1070-1077

Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 700-701, 2012. 701

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EDITORIAL

Ana María López Calvo de Feijoo*Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Adriana Benevides Soares*Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Alexandra Cleopatre Tsallis*Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Deise Mancebo**Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Rita Maria Manso de Barros*Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Em novembro de 2011, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro,reuniram-se os representantes de diferentes países latino-americanos:Argentina, Perú, México, Colombia e Brasil, no 4o Congresso Latino-americano de Psicoterapias Existenciais e enfoques afins. Para arealizagáo desse grande encontró, bem como para a publicagáo desteDossié, intitulado Psicología Existencial e suas práticas, pudemoscontar com a hospitalidade da Universidade do Estado do Rio deJaneiro, que abriu incondicionalmente as portas de sua morada paraabrigar nao só o evento, mas também os artigos, resenhas ecomunicagáo de pesquisa que decorreram do Congresso. Nessaoportunidade foram apresentados diferentes modos de pensar aPsicología na perspectiva da existencia, por meio de diálogos,questionamentos e reflexóes, com o cuidado de acolher as diferengas,sem a pretensáo de transformá-las no mesmo.Neste número da Revista Estudos e Pesquisas em Psicología,ocupamo-nos em reunir parte dos diferentes enfoquesfenomenológicos apresentados neste encontró, trazendo um propósitosemelhante ao do Congresso, qual seja, afirmar que "representamostodo um leque de abordagens, ou de olhares, ou de perspectivasteóricas que guardam entre si algumas semelhangas". Assim, por meiodesta publicagáo facilitamos que mais vozes se fagam ouvir, abrindoespago para as pesquisas fenomenologicas, ampliando cada vez maisos diferentes ecos do pensamento existencial, humanista efenomenológico em Psicología.Os artigos que compóem este volume tratam de diferentes temas,dentre eles: Filosofía e Psicología da existencia; fenomenología eeducagáo; fundamentos existenciais e humanistas para urnaperspectiva social em Psicología; Husserl, consciéncia e método; a

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicología Rio de Janeiro v. 12 n. 3 p. 702-705 2012

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perspectiva existencial e humanista; corpo e corporeidade. O primeiroartigo é da autoría de um estudioso reconhecido em seu país deorigem, Portugal. Trata-se de André Barata que, em parceria com duasbrasileiríssimas, Carolina Campos e Fernanda Alt, escreveu um textosob o título Psicología Fenomenología, Psicanálise existencial epossibilidades clínicas a partir de Sartre.Sartre foi tema de outros artigos. Em Liberdade, alienagáo e criagáoliteraria: reflexoes sobre o homem contemporáneo a partir doexistencialismo sartriano, Amana Rocha Mattos, Ariane Patricia Ewalde Fernando Gastal de Castro, inspirados na nogáo de liberdadedesenvolvida por Sartre, tratam dos aspectos sócio-históricos efilosóficos do surgimento e consolidagáo da modernidade. MichelleThieme, também com base no pensamento de Sartre, discute osespecialismos em: Humano, científicamente humano? Um olharsartriano para o especialismo psi contemporáneo.Dois artigos abordam a filosofía de Sóren Kierkegaard, trazendo áPsicología a complexidade das reflexoes deste filósofo sobre aexistencia humana. Saoeles: O debate entre paganismo e o cristianismo, de Cristine MonteiroMattar e Reflexoes sobre as bases para a edificagao de uma Psicologíakierkegaardiana, de Myriam Moreira Protasio.Dentre os artigos que tratam da fenomenología encontramos emAdriano Holanda um estudo histórico intitulado O métodofenomenológico em Psicología, uma leitura de Nilton Campos. Holandanos lembra como Nilton Campos introduziu no Brasil, no ano de 1945,a fenomenología por meio de estudos serios e bem fundamentados. Noartigo de Carlos Tourinho, intitulado A consciéncia e o mundo nafenomenología de Husserl: influxos e impactos sobre as cienciashumanas, encontramos os fundamentos da fenomenología e umadefesa da atitude fenomenológica em Husserl, com vistas áconsciéncia transcendental. Por fim, Roberto Kahlmeyer-Mertens traz adiscussáo sobre intencionalidade e Psicología, com o títuloIntencionalidade: uma estrutura necessária para uma Psicología combases fenomenológicas.Entre os artigos que tratam das práticas psicológicas que sedesenvolveram com base nos referenciais humanistas, existenciais efenomenologicos encontramos artigos que tratam da clínica psicológicaem saúde pública. Dentre eles, um artigo que articula com maestría aclínica psicológica com as políticas públicas, cujo título é O plantáopsicológico como possibilidade de interlocugao da Psicología clínicacom as políticas públicas, escrito em parceria por Emanuel MeirelesVieira e Georges Daniel Janja Bloc Boris. Juliana Vendruscolo traz umartigo que versa sobre Atendimento psicológico em instituigáo: datradigáo a fenomenología existencial. Márcia Tassinari discute em seu

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artigo o tema Desdobramentos clínicos das propostas humanistas emprocessos de promogáo de saúde e, por fim, Elza Dutra, preocupadacom situagoes de suicidio, nos apresenta o texto Suicidio universitario:o vazio existencia! de jovens universitarios.Outros manuscritos discutem as psicoterapias de grupo em urnaperspectiva fenomenológica: Luis Eduardo F. Jardim escreve sobreMundo como fundamento da psicoterapia de grupo fenomenológica.Roberto Novaes de Sá e Ana Teresa Camasmiere, com o títuloreflexóes fenomenológico-existenciais para a clínica psicológica degrupo, discutem a possibilidade de aproximagáo entre a fenomenologíahermenéutica de Martin Heidegger e a experiencia clínica de grupo,com vias a refletir sobre dois aspectos importantes do cotidianopsicoterápico: o diálogo clínico e o vínculo psicoterapéutico.A Psicología clínica em urna perspectiva fenomenológico-existencial éapresentada em alguns dos artigos que compoem este dossie. Dentreeles temos o de Ana Maria López Calvo de Feijoo que, com o título Aclínica psicológica em urna inspiragáo fenomenológica - hermenéutica,defende a possibilidade de urna clínica psicológica articulada nessasbases. Alexandre Marques Cabral, em Da crise do sujeito a superacaoda confissao clínica, escrevendo sob o ponto de vista da filosofía,analisa de modo poético a possibilidade de urna clínica psicológica quedialogue com o pensamento de Heidegger. Também em um estilopoético, escreve Mónica Alvim o artigo A clínica como poética.Na sessáo Clio-Psyqué, sob a responsabilidade de Ana Maria Jacó-Vilela, encontramos dois artigos que tratam da historia da Psicología,sao eles: A experiencia de autores judeus da Psicología sobreviventedo holocausto e Historia e reflexáo sobre as práticas de saúde mentalno Brasil e no Rio Grande do Sul. O primeiro é de autoría de MilenaCalegari e Marina Máxime e, o segundo, foi escrito por Miriam ThaisGutierez Dias.

Por fim, consta de nosso dossie urna comunicagáo de pesquisa, quetrata de urna historiografía e se intitula Urna historia da abordagemcentrada na pessoa no Brasil, da qual participam o mestrandoAlexandre Trzan-Ávila e sua orientadora de mestrado Ana Maria Jacó-Vilela. Temos, ainda, urna resenha, escrita com muita sensibilidade porRoberto Kahlmeyer-Mertens que, mesmo sendo filósofo alcanga aesséncia da clínica existencial que a autora, Ana Maria López Calvo deFeijoo, trata em seu livro A existencia além do sujeito.Sao muitos os registros que apontam para a Psicología como umespago de pluralidade e diversidade, o que compromete, e muito, apossibilidade de urna unidade. Mas, nestes nossos encontros, bemcomo nesta publicagáo, pudemos constatar que, mais rico do que origor da unidade, a pluralidade em diálogo pode se sustentar e, mais

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ainda, se aproximar da vida em seu acontecer mais originario, no quala pluralidade é sua própria constituigáo.

Notas*Professora Adjunta do Instituto de Psicología da UniversidadeEstadual do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.**Professora Titular do Instituto de Psicología da UniversidadeEstadual do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

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ARTIGOS

Psicología Fenomenológica, Psicanálise existencial epossibilidades clínicas a partir de Sartre

Phenomenological psychology, existential psychoanalysis andclinical possibilities from Sartre

André Barata Nascimento*Universidade da Beira Interior - UBI - Covilha, Lisboa, Portugal

Carolina Mendes Campos**Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, Rio de Janeiro, Rio deJaneiro, Brasil

Fernanda Alt***Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,Brasil

RESUMOEsse artigo visa clarificar o ámbito preciso em que se constituem trescampos distintos de consideragao do pensamento de Sartre para o universoda psicología. Em primeiro lugar, o campo de urna psicología fenomenológicasartriana, particularmente aprofundado na fase inicial das investigagoesfenomenológicas de Sartre. Em segundo lugar, o campo de urna proposta depsicanálise existencial como alternativa e resposta á psicanálise freudiana.Por fim, as possibilidades de urna clínica inspirada no pensamento de Sartre.É crucial levar a cabo estas demarcagoes, ultrapassando incompreensoes, eencorajando urna atitude cuidadosa, dialogante, sobretudo na busca porobter consequéncias para a ideia de urna prática clínica inspirada em Sartre.Com efeito, esta prática clínica a partir de urna perspectiva sartriana só podeser constituida através da exploragao heurística, no relacionamento entredescoberta e invengao, dos legados que Sartre deixou na forma de urnapsicología fenomenológica original e de urna psicanálise existencial.Palavras-chave: fenomenología, psicología, psicanálise, clínica, Sartre.

ABSTRACTThis paper aims to clarify trie precise scope in which three distinct fields ofconsideration of Sartre's thought, to trie world of psychology, areconstituted. Firstly, the field of a Sartrean phenomenological psychology,particularly extended in the initial phenomenological investigations of Sartre.Second, the scope of a scheme for an existential psychoanalysis as analternative and a response to Freudian psychoanalysis. Finally, the idea of aclinical practice inspired by Sartre's thought. It is critical to carry out theseboundaries, overcoming misunderstandings, and encourage a caring anddialoguing attitude, especially with regard to aimed consequences to theidea of a clinical practice inspired on Sartre. In fact, this clinical practicefrom a sartrean perspective can only be build up based on the heuristic

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicologia | Rio de Janeiro | v. 12 | n. 3 | p. 706-723 | 2012

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André Barata Nascimento, Carolina Mendes Campos, Fernanda AltPsic. Fenomenológica, Psicanálise exist. e possibilidades clínicas a partir de Sartre

exploration, by the relationship between discovery and invention, of thelegacies that Sartre has left in the form of an original phenomenologicalpsychology and of an existential psychoanalysis.Keywords: phenomenology, psychology, psychoanalysis, clinic, Sartre.

1 Introducao

Esse trabalho se propóe a estabelecer urna organizagáo a respeito detres campos distintos que ligam o pensamento de Jean-Paul Sartre ápsicología, a saber, a psicología fenomenológica, a psicanáliseexistencial e as possibilidades para urna clínica. Mais ainda,pretendemos clarificar o ámbito preciso no qual cada um desses trescampos se constituem no interior da obra sartriana. Para isso, iremosdiscutir questóes diretamente abordadas pelo autor, assim comoquestóes apenas indicadas pelo mesmo, que apontam na diregáo de umcaminho ainda por se fazer, isto é, desenvolvimentos possíveis a partirda obra de Sartre. Em primeiro lugar, vamos apontar brevemente asbases husserlianas que permitem a Sartre desenvolver sua própriapsicología fenomenológica, aprofundada, sobretudo, em seus estudos epublicagoes dos anos 30. Do mesmo modo, iremos elencar os principáisdesdobramentos obtidos por Sartre a partir de tais investigacóes. Emsegundo lugar, discutiremos o campo sartriano de urna proposta depsicanálise existencial como alternativa e resposta á psicanálisefreudiana. Finalmente, faremos algumas reflexóes sobre aspossibilidades de urna clínica inspirada no pensamento de Sartre.Acreditamos que esse percurso aqui desenliado pode servir comonorteador para estudantes e profissionais que desejem se aproximar daobra sartriana e pensar outras perspectivas para um trabalho clínico.

2 Psicología Fenomenológica: a formacao de um campo

Em seu artigo sobre fenomenología para a Enciclopedia Britannicadatado de 1927, Husserl (2001), logo de inicio, estabelece urnadiferenciagáo do trabalho fenomenológico em dois planos deinvestigagáo. De um lado, urna fenomenología transcendental,claramente dirigida as estruturas últimas da consciéncia que urnainvestigagáo fenomenológica consegue alcangar através dos seusrecursos próprios - époché, reflexáo, variagáo eidética, intuigáo edescrigáo; do outro, o campo de urna psicología fenomenológicadirigida á multiplicidade das vivencias intencionáis com o intuito de asapreender diferenciadamente no seu significado essencial.Se a fenomenología transcendental se propóe a reformar a filosofíano sentido da sua transformagáo em urna ciencia de rigor ou, ao

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menos, como base para todas as outras ciencias, já a psicologíafenomenológica, visa constituir urna psicología, metodológicamentebem fundada, que proporcione urna compreensáo em profundidadeda vida psicológica do humano. Por exemplo: obter a elucidagáoconcreta da essencia de vivencias intencionáis particulares, tais comoa de emogóes, ou um tipo de consciéncia intencional como aconsciéncia imaginante.Nos seus primeiros textos filosóficos, Sartre nao só se mostraperfeitamente conhecedor desta distingáo entre urna fenomenologíatranscendental e urna psicología fenomenológica, como acrescenta,enquanto intérprete do pensamento do fenomenólogo alemáo, queesta psicología nao é incompatível com urna psicología daexperiencia. Lé-se por exemplo em A Imaginagáo:

Ele [Husserl] nao nega que naja urna psicología daexperiencia, mas pensa que, para atender ao mais urgente, opsicólogo deve constituir antes de tudo urna psicologíaeidética. [...] será urna "psicología fenomenológica": ela fará,no plano intramundano, pesquisas e fixagoes de essénciascomo as da fenomenología no plano transcendental.(SARTRE, 2008, p.122)

É fácilmente demonstravel que grande parte do esforgo de Sartre ñassuas obras iniciáis vai na diregáo nao de urna fenomenologíatranscendental, mas da tal psicología fenomenológica que Husserlconstituirá como ciencia fenomenológica. Isto é inteiramente claroquer em A Imaginagáo (1936), O Imaginario (1940), Esbogo paraurna teoría das emogóes (1939) e A Transcendencia do Ego (1936),todas elas obras que refletem a preocupagáo de Sartre em demarcar,seja quanto objeto, seja quanto ao método, o ámbito preciso de urnapsicología fenomenológica. A dispersáo de títulos terá, pelo menosem parte, relagáo com a desistencia de Sartre em concluir um livroque se intitularía justamente A Psique.Os enunciados metodológicos sobre esta ciencia podem ser vistos porexemplo em A Imaginagáo:

[...] O método da fenomenología pode servir de modelo aospsicólogos. Certamente, o procedimento essencial dessemétodo continua sendo a "redugao", a epoché, ou seja, acolocagao entre parénteses da atitude natural; e está bementendido que o psicólogo nao efetua essa epoché epermanece no terreno da atitude natural. Contudo, feita aredugao, o fenomenólogo tem meios de pesquisa quepoderao servir ao psicólogo: a fenomenología é urnadescrigao das estruturas da consciéncia transcendentalfundada na intuigao das esséncias dessas estruturas.Naturalmente, esta descrigao opera-se no plano da reflexao.(SARTRE, 2008, p. 119-120)

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A psicología fenomenológica implica a suspensáo, por decisáometodológica, da atitude natural, assim posta entre parénteses. Eprocede por reflexáo, colocando portanto a consciéncia como tema desi mesma, consciéncia refletida posicionada pela consciénciareflexiva, sem, contudo, haver entre elas coincidencia.Por sua vez, em A Transcendencia do Ego, diversas consideragoesmetodológicas sao feitas no mesmo sentido, sublinhando o caráterreflexivo da psicología fenomenológica, assentada em descrigoes defatos fenomenológicos - o que Sartre chama de urna ciencia de fato -e nao em consideragóes que relevassem de urna filosofía crítica, aoestilo kantiano ou neokantiano (SARTRE, 1994).

3 Elementos para urna Psicología Fenomenológica Sartriana

Acreditamos que nao será improprio denominar como psicologíasartriana os resultados que Sartre adquire em sua investigagáopsicológica de carácter fenomenológico. Admitindo entáo urnapsicología sartriana nestes termos, há um conjunto de enunciados deconsiderável originalidade que Ihe podem ser imputados.

3.1 EmocóesO mundo apresenta-se á consciéncia como obstáculos e dificuldades aserem transpostos, que envolvem sempre algum coeficiente deadversidade. As emogóes introduzem nestas relagóes um elementode modulagáo ñas significagóes com que os objetos mundanos seapresentam a urna consciéncia, "temperando" a adversidade. Sartrefornece um exemplo muito simples desta plasticidade: quando apercepgáo de que um cacho de uvas nao está afinal ao alcance damáo, a consciéncia transforma a sua relagáo com o mundoemocionalmente. O cacho de uvas torna-se irrefletidamente menosatraente - agora, cacho de uvas verdes -, resultando que aadversidade do mundo fica, assim, amenizada pelo desinvestimentoemocional (SARTRE, 2007). Outros exemplos: urna emogáo como aalegría é urna antecipagáo do gozo que as distancias e asadversidades superadas adiante viráo a proporcionar, e a tristezatraduz urna relagáo inibida com o mundo, inibindo, com isso,adversidades que se adivinham frustrantes. Esta modulagáo plásticaaltera nao tanto o mundo, na sua objetiva adversidade, mas amaneira como o vivemos. Contudo, nao sendo possível ¡solar urnasignificagáo do mundo da referencia á sua vivencia, tal como nao épossível falar de urna adversidade do mundo a nao ser por referenciaa quem a sofra, na verdade a vida emocional, segundo Sartre (2007),introduz um ingrediente de magia ñas relagóes com os objetos domundo.

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3.2 ImaginagáoComo a emogáo, também a imaginagáo é urna relagáo com o mundo,mas urna relagáo pela qual a consciéncia faz aparecer, sobre ummundo que nega, e, portanto, sobre a sua adversidade e resistencia,irrealidades imaginadas. Na sua efetiva ausencia, ou mesmoinexistencia, nada prende as imagens da imaginagáo ao mundo, aindaque, como bem nota Sartre, nada nelas seja original, tudo nelas éoriundo do "já conhecido", revelando na verdade urna pobrezaintrínseca que nada dá a conhecer. A sua fungáo é outra, bem maispróxima da fungáo da emogáo, com que tende a cooperar. Porexemplo, a emogáo de alegría pode fazer-se acompanhar pelaimagem da fonte dessa alegría, ou a emogáo da cólera pela imagemde quem encoleriza.

3.3 EstadosA fina análise de Sartre dá conta que "estados" como o do odio ou odo amor só se constituem através da reflexáo e de urna formadubitável, bem diversamente das emogóes, como a de atragáo ou ade repulsa. Por exemplo, posso ser consciéncia de repulsa e da cólerapor Pedro e, no entanto, nao estar certo de que o odeie. A imediatezemocional da repulsa e da cólera nao se estende ao "estado" de odio.Com efeito, acrescenta Sartre, o odio é, entáo, objeto transcendenteque me aparace através da experiencia irrefletida de repulsa(SARTRE, 1994). Os estados, de que o amor e o odio constituemexemplo, sao objetos transcendentes para a consciéncia, revelándo-se, por isso, de urna perspectiva de conhecimento, como realidadesfalíveis, e ainda, de urna perspectiva existencial, como realidadesinertes, incapazes de qualquer determinagáo da vida da consciéncia.

3.4 QualidadesDa mesma maneira que os estados se constituem reflexivamentecomo se fossem a disposigáo psíquica de que emanariam as emogóes- "sinto repulsa porque o odeio", por exemplo -, ou para usar urnaterminología mais técnica, unidade noemática de espontaneidades, asqualidades se constituiríam, por seu turno, como substratos daquelesestados, como potencialidades de que os estados seriam atualizagáo.- "Amo porque tenho a qualidade ou defeito de ser urna pessoaapaixonada", por exemplo.

3.5 EgoA vida espontánea da consciéncia irrefletida seria, por lago mágico,emanagáo de estados psíquicos, que, por seu turno, seriamatualizagóes de potencialidades, a que Sartre chama qualidades, eque, na unidade sintética desta pluralidade de objetos transcendentesá consciéncia, vale como Ego de urna consciéncia. Toda esta projegáosó sucede no momento em que a consciéncia se desdobra em

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reflexáo, o que significa que, enquanto tal nao sucede, ou seja,enquanto permanecemos no plano da consciéncia irrefletida, naotemos a experiencia do Ego; na verdade, nem sequer temos um Egoai, que permanecesse, porém, inapercebido. Na vida irrefletida daconsciéncia fica evidenciada a ausencia de papel do Ego pela suaausencia em absoluto. Diz Sartre (1994): "O Ego aparece á reflexáocomo um objecto transcendente, que realiza a síntese permanente dopsíquico" (p.65). Talvez nao seja excessivamente arrojado reconhecernesta transcendencia que, no entanto, unifica, em urna instanciatotalmente externa á consciéncia, a vida psíquica humana, fungáosimilar ao estadio do espelho em Lacan e que, curiosamente, éapresentada no mesmo ano em que Sartre publica quer ATranscendencia do Ego quer A Imaginagáo. É, com efeito, em 1936,no Congresso internacional de psicanálise de Marienbad que Lacan,suportado em evidencia empírica (oriunda da psicología da infancia eda etologia), expóe e interpreta a reagáo distintiva que as changasmanifestam quando postas diante da sua própria imagem refletidanum espelho.Laplanche e Pontalis resumem a nogáo de estadio do espelho daseguinte forma:

Segundo Jacques Lacan, fase da constituigao do ser humano,que se sitúa entre os 6 e os 18 primeiros meses; a changa,ainda num estado de impotencia e falta de coordenagaomotora, antecipa imaginariamente a apreensao e o dominioda sua unidade corporal. Esta unificagao imaginaria opera-sepor identificagao com a imagem do semelhante como formatotal; ela é ilustrada e actualizada pela experiencia concretaem que a changa percebe a sua própria imagem numespelho. O estadio do espelho constituiría a matriz e oesbogo do que será o eu (LAPLANCHE & PONTALIS, 1992, p.176-177).

Observe-se, porém, que Lacan e Sartre nao dizem exatamente omesmo. Antes seria o caso de o entendimento lacaniano de "moi" e ode Sartre convergirem ao entenderem ambos o eu como unidadetranscendente da vida psíquica, unidade na verdade constituida eapenas aparentemente constituinte da consciéncia. É claro que Lacanvai bem mais longe na sua caracterizagáo do estadio do espelho, atépelo recurso que faz a informagáo empírica, mas nao pensamos errarse afirmarmos que o estadio do espelho de Lacan corroboraclaramente o entendimento sartriano do ego.

3.6 Vida PsíquicaOs cinco pontos enumerados atrás expóem um quadro geral da vidapsíquica fortemente marcada pelo que poderíamos designarexternalismo sartriano. Nao há um "dentro" ou "interior" daconsciéncia, ela é inteiramente o seu exterior, e Ihes sao táo

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transcendentes os tragos do seu mundo como os do seu Ego,jogando-se sempre "fora" de si a significagáo da sua vida consciente.E é, portanto, ñas coisas ai fora que as significagóes aparecem. É ñascoisas, ñas próprias coisas, que urna consciéncia encontra a sua vidaemocional.

4 Psicanálise Existencial: o método

Diante do panorama sobre aquilo que poderíamos entender como odesenvolvimento de urna psicología fenomenológica ñas máos deSartre, podemos observar, entáo, que esta só se distingue dahusserliana no plano dos resultados que obtém e nao tanto no planoda circunscrigáo da psicología fenomenológica enquanto ciencia. Éclaro ñas referencias que fizemos anteriormente, designadamente emA Transcendencia do Ego e em O Imaginario, que Sartre adota, semreservas, o método fenomenologico de Husserl, procurando empregaras indicagóes que este prescrevia, diferenciando atitude natural eatitude fenomenológica, recorrendo ao gesto intelectual da epoché,assumindo a intuigáo de esséncias como objetivo a alcangar, após umprocedimento rigoroso, de reflexáo, explicitagáo e descrigáo.Podemos, entáo, dizer que nao é quanto ao seu método queencontramos alguma originalidade, pelo menos face a Husserl, napsicología fenomenológica de Sartre. É sim, como pudemos observar,nos seus resultados, desde o inicio, claramente distintos dos deHusserl em pelo menos dois aspectos. Primeiramente, umentendimento diferente a respeito da intencionalidade da consciéncia- se para Husserl a intencionalidade é tomada como essencial áconsciéncia, para Sartre, e por urna radicalizagáo manifesta, aintencionalidade revela-se afinal como tudo o que a consciéncia podeser, ou seja, seu único modo de ser. Em segundo lugar, mas em claraarticulagáo com esta primeira diferenga, um entendimento divergentesobre o papel e o lugar do Ego na relagáo com a consciéncia - paraSartre, ao contrario de Husserl, a nenhum nivel, e de maneiranenhuma, tem cabimento considerar urna imanéncia do Ego áconsciéncia. Em suma, se faz sentido falar de urna psicologíafenomenológica específicamente sartriana será apenas no plano dosseus resultados e nunca no plano da sua constituigáo como ciencia,aspecto em que realmente se coloca numa posigáo de quemsubscreve positivamente o método proposto por Husserl para urnapsicología fenomenológica.

Cabe indagar, em seguida, se este tipo de distingóes que acabamosde fazer para a psicología fenomenológica também é pertinentequando deslocamos a atengáo para a psicanálise existencial. Pelomenos urna boa razáo justifica a pergunta. Da mesma maneira que apsicología sartriana se apresenta como um desenvolvimento, ainda

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gue parcialmente divergente, de urna psicología fenomenológicaconstituida como disciplina por outro autor, Husserl, também apsicanalise existencial se apresenta como um desenvolvimentocrítico, mas ainda assim um desenvolvimento, de urna psicanaliseconstituida como disciplina e prática por outro autor, Freud.No entanto, as diferengas agui sao muito mais extensas, envolvendoaspectos relacionados com o entendimento do psiguismo e daconsciéncia e relacionamentos entre estes, assim como consideragóesmetodológicas. De urna forma muito sintética, há um desacordófundamental guanto á metapsicologia freudiana, e há ainda umdesacordó fundamental guanto á forma de abordagem, de tendenciasabstraías e taxonómicas, mecanicistas ou, ao menos, biologistas,praticada pela psicanalise freudiana. Por isso, é com alguma razáogue se pode dizer gue Sartre é um continuador de Husserl, ainda gueIhe enderegando algumas críticas, nao se podendo dizer o mesmo emrelagáo a Freud. De fato, na melhor das hipóteses, é legítimo afirmargue Sartre é um crítico de Freud, ainda gue se disponha a se inspirarna psicanalise. Mas é importante avahar mais cuidadosamente aposigáo de Sartre, enguanto representante da fenomenologia gue, aomesmo tempo, se apresenta como proponente de urna psicanaliseexistencial.A apreciagáo crítica gue, por regra, os fenomenólogos fazem dapsicanalise classica freudiana dirige-se sobretudo á sua pressuposigáode urna base pulsional de carácter biológico. A esta tendencianaturalizante, gue faria radicar últimamente o psiguismo numadimensáo fisiológica, oporiam os fenomenólogos, como urnaresistencia bem característica das humanidades, urna dimensáo designificagáo dos fenómenos psíguicos. O problema nao reside,contudo, numa falta de atengáo da psicanalise relativamente a estadimensáo significativa. Pelo contrario, é manifesta e reconhecida arelevancia gue para a psicanalise e para Freud dispóem asrepresentagóes e a interpretagáo das suas significagóes. Oextraordinario impacto da psicanalise ñas ciencias humanas e ñashumanidades em geral deve-se muito a esta onipresenga, depois deFreud, da significagáo na consideragáo da vida psíguica. O problemaestaría, portanto, nao ai, mas na incompatibilidade entre estadimensáo de significagóes e, depois, a outra, simplesmente natural,biológica, fisiológica, de gue realmente Freud jamáis abdica. É nestesentido gue Sartre identifica urna contradigáo profunda napsicanalise, ao estabelecer ao mesmo tempo um elo explicativo ecompreensivo nos fenómenos gue estuda (SARTRE, 2007). Afenomenologia, pelo menos numa primeira abordagem, tende a reagirmal a urna apresentagáo gue mistura tanto a dimensáo fisiológicacom a significativa, guanto as dimensóes explicativa e compreensiva,esforgando-se por dar conta de urna incompatibilidade de principioentre estas. Pressente-se agui todo o debate entre fato natural e

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humanidade, explicagáo e compreensáo, causalidade e sentido,ciencias do natural e ciencias do humano.Em meio a reflexóes como estas torna-se claro que a base dapsicanalise existencial nao se apresenta independente da psicologíafenomenológica, do mesmo modo em que fica compreensível a críticade Sartre a Freud através de Husserl. Pois, o método sartriano,pensado na esteira próxima de Husserl e em vista da constituigao deuma ciencia, nao é dispensado com a proposta de uma psicanaliseexistencial. Contudo, é evidente que o acento deixa de ser colocadona pretensáo de constituigao de uma ciencia, tornando-se bem menora subordinagáo, por assim dizer, ao espirito disciplinar que Husserlperseguía. Mas se quisermos pensar aínda o que de fato diferencia apsicología fenomenológica sartriana de sua psicanalise existencialpara além de Husserl e Freud, devemos ressaltar a forte influencia deoutros dois autores no desevolvimento desta última. Isto é, uma dasmaneiras por que podemos distinguir a psicanalise existencial dapsicología fenomenológica sartriana está na menor presenga deHusserl, compensada por uma maior presenga de Heidegger em OSer e o Nada, assim como na maior presenga de Marx em Questóesde Método.A psicanalise existencial se revela assim como um método pensado apartir de ¡números diálogos, críticas, inspiragóes e contraposigóescom a teoría destes autores principáis. Este esforgo de Sartre emdesenvolver um método que de fato possibilitasse a compreensáo dohomem como liberdade em situagáo, sem reduzí-lo a determinismos,é sua maior contribuigáo as ciencias humanas e a todos aqueles quebuscam realizar um estudo compreensivo de uma vida particular.Além disso, o filósofo nao se restringe somente ao ámbito daprodugáo teórica, mas mostra a aplicabilidade de seu método depsicanalise na produgáo de biografías. Isto é, Sartre póe em práticasua psicanalise existencial por meio do que se costuma chamar de"analisandos de papel", célebres personalidades analisadas pelométodo sartriano como Baudelaire, Mallarmé, Genet e Flaubert, deforma a corroborar com o desejo do autor de nao permanecer restritoa uma filosofía contemplativa, mas desenvolver um método quepossibilitasse uma prática.Deste modo, é em O Ser e o Nada, em meio as influencias já citadas,que Sartre (2001) desenvolve seu método a fim de encontrarfundamentos para algo que fosse além de uma simples descrigáo dasestruturas do Para-si, modo de ser da realidade humana. O autorparece realizar um verdadeiro passeio que vai do ontológico aoempírico e que redunda, entáo, em sua possível psicanalise. Ao longodo capítulo de Psicanalise Existencial de O Ser e o Nada, Sartre fazdiversas referencias a tal urgencia metodológica, urgencia esta querevela sua necessidade de pensar outro caminho, que ultrapassassealguns problemas deixados por Freud. Suas indagagóes o levam a

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afirmar que urna invesíigagáo da realidade humana só poderia serlevada adiante se conduzida de acordó com um método específico; eesta é, por fim, a moíivagáo primordial de sua psicanálise existencial(SARTRE, 2001).As questóes de Sartre com a metodología provém de seus estudossobre psicología e, principalmente, sobre a teoría freudiana, com aqual mantinha constante "diálogo" intelectual. Segundo Cannon(1993), a posigáo adotada pelo existencialista é "por e contra Freud"(p. 16), pois, é na psicanálise que ele encontra inspiragáo parapensar sua proposta, ao mesmo tempo em que se torna um de seusgrandes críticos, reformulando nogóes centráis deste pensamento.Urna das principáis divergencias entre Sartre e Freud refere-se aofato de que a psicanálise empírica freudiana define o homem por seusdesejos. Para Sartre (2001), o psicólogo que parte deste pressuposto"permanece vítima da ilusáo substancialista" (p.682) entendendo odesejo como um "conteúdo" da consciéncia, existente no homem.Para a psicanálise existencial, essa questáo foi superada pelafenomenología, a qual estabelece desde o inicio que se todo desejo édesejo de um desejado, ou, em outras palavras, se desejo um copod'água ou um corpo de mulher nao posso, de modo algum, considerarque esse copo ou esse corpo residem em meu desejo, posto que paraSartre todo e qualquer objeto desejado está fora, é objetotranscendente para a consciéncia desejante.Ainda neste caminho, Sartre (2001) alerta para outro erro comum nainvestigagáo psicológica, que consiste em reduzir o homem a urnacombinagáo de esquemas abstratos e universais considerando essageneralizagáo um fato irredutível, expressáo máxima do espirito deanálise. Ele exemplifica tal questáo através de urna descrigáo de PaulBourget a respeito de Flaubert que se sustenta no dado genérico,como por exemplo, urna "ambigáo desmedida" para justificar e tragarurna suposta "psicología" do escritor francés. Para Sartre, talexplicagáo de Bourget é vaga, pois apenas exprime o que consideracomo "corpos simples da psicología", isto é, determinagóes abstraíasque tanto poderiam ser estas como quaisquer outras, que naopossuem relagóes internas entre si já que nao alcangam o verdadeiroirredutível da vivencia em questáo. Em resumo, a crítica sartrianaindica que este tipo de análise nao nos leva a outro lugar que nao odas generalizagóes abstraías, das afirmagóes solías, como dizersimplesmeníe que Flauberí era "alio e ruivo" (SARTRE, 2001). Énesse seníido que se consírói sua proposía; a de chegar a umverdadeiro irreduíível, um irreduíível que nos saíisfaga e que naorenegué o dado individual e concreío, mas que vá além da simplesassociagáo de absíragóes combinadas e agrupadas por deíerminismoscausáis.Como via de acesso a urna compreensáo saíisfaíória do homem,Saríre propóe a nogáo de projeío fundameníal. Ele paríe da idéia de

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que a pessoa é uma totalidade e que cada uma de suas escolhas, dasmenores as mais significativas, devem ser consideradas comoexpressáo integral da pessoa em questáo, expressando sempre enecessariamente um sentido transcendente. A psicanalise existencialpretende, entáo, compreender o projeto fundamental do homem,realizando uma comparagáo entre suas escolhas de modo a destacaro fio condutor que as unifica, já que "em cada uma délas acha-se apessoa em sua inteireza" (SARTRE, 2001, p. 690).O trilho a percorrer na psicanalise existencial deve, entáo, ser umtrilho de escolhas, em que a significagáo de cada uma délas deve serencontrada em outras escolhas mais originarias. A presungáo daproposta sartriana é de que as escolhas estejam concatenadas numarede de reenvíos de sentido, cabendo ao trabalho de análise fazeresse percurso de modo a destacar tal sentido que as unifica. Destaforma, a ambigáo sartriana de colocar em discussáo a possibilidadede uma psicanalise existencial se sustenta para além de uma simplesdescrigao empírica. O que o filósofo pretende é gerar um método dedecifragáo e elucidagáo das vivencias, tal como o de Freud e, paraisso, como afirma o próprio Sartre (2001), "convém sublinhar [...] emque medida a psicanalise existencial irá inspirar-se na psicanalisepropriamente dita, e em que medida irá diferir radicalmente" (p.696).Os pontos de aproximagáo elencados por Sartre dizem respeito aofato de que ambas as psicanálises tomam o homem como uma"historizagáo perpetua", sendo inconcebível considerá-lo apartado desua situagáo. Além disso, ambos concordam que a própria pessoa naose encontra em uma posigáo favorável para se autoanalisar sendo arelagáo de alteridade promotora de novas perspectivas e ,por essemotivo, frutífera para quem deseja se conhecer. Também ambosconsideram que todo ato é simbólico, porém, na psicanalise propostapor Sartre se faz importante manter essa simbólica sempre aberta eflexível no intuito de nao impregnar a percepgáo do analista com arigidez e a "poeira" da teoría que embagam o seu olhar, recaindo emuma descrigao pautada em dados abstratos e genéricos. Para Sartre,esse é um dos principáis "erros" de Freud, o de ter estabelecido alémde uma simbólica rígida, um irredutível substancial também a priori,a saber, a libido, contaminando assim toda a rica leitura simbólicapelo viciado ángulo de interpretagóes semi-prontas que partemsempre de um mesmo cenário de sentidos.

No entanto, a diferenga mais radical entre os dois autores reside naincompatibilidade em relagáo ao ponto chave de toda edificagáoteórica da psicanalise freudiana, o inconsciente. Para Sartre, somossempre consciéncia mas nem sempre conhecimento, o que naosignifica, de modo algum, considerar que haja uma instanciainconsciente. Essa discordancia fundamental acontece como umdesdobramento coerente e derivado de toda a ontologia estabelecidadesde a introdugáo de O Ser e o Nada. Uma vez que Sartre vé a

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realidade humana como liberdade, uma liberdade que implica emabertura para os seus possíveis e por isso se faz comprometida eengajada com sua situagáo, considerar a possibilidade de umainstancia inconsciente seria como que permitir ao homem uma eternadesculpa, ou seja, uma eterna possibilidade de nao assumir suaprópria angustia e inconsistencia que sao características de seu modode ser.Além disso, a nogáo de inconsciente provoca uma cisáo entreinstancias conscientes e inconscientes que co-pertecem a umamesma interioridade psíquica. Tanto a concepgáo de umainterioridade psíquica quanto a ideia de uma possível cisáo eminstancias que formariam ainda um "aparelho", nao se encaixam ñasbases fenomenológicas de Sartre. Através da própria fenomenología esua primazia da intencionalidade, além do auxilio de Heidegger parase pensar nosso modo de existir como "diaspórico", isto é, perpetuafuga de si, tais ideias que nos remetem a um sujeito interiorizado aosmoldes de Descartes nao se sustentam. Sendo assim, naopoderíamos, através da psicanálise existencial, buscar um "lá dentro",um "por detrás", que precisa ser investigado e desvelado, posto que,ao tomarmos o homem enquanto consciéncia "de ponta a ponta"devemos considerar que tudo está em ato, num só golpe, claro comouma ventanía (SARTRE, 2005a).Em linhas gerais estes sao os pontos principáis elencados por Sartreem sua primeira elaboragáo da psicanálise existencial em O Ser e oNada. Contudo, há um segundo momento de desenvolvimento de seumétodo no qual ele introduz ao seu pensamento alguns elementos domarxismo. A influencia do marxismo, crescente a partir dos anos 50,levou Sartre a evitar um tipo de discurso excessivamente centrado naconsciéncia e na existencia individual e que Ihe merecerá, alias,críticas da parte de intelectuais comunistas - como Lukács (1973) etambém Marcuse (1948). Censuravam-lhe o pensamento por seruma especie de "filosofía burguesa", ainda que com um certo aspectoradical que poderia entusiasmar os menos prevenidos.Em Questóes de Método, texto introdutório da Crítica da RazáoDialética, encontramos o desenvolvimento da psicanálise existencialem novos contornos. Sartre (1987) se mostra, neste trabalho,empenhado em "constituir uma antropología estrutural e histórica"( p . l l l ) , a partir de uma interlocugáo, desta vez, com Marx, tendo emvista uma compreensáo de homem que nao o dissolvesse "em ácidosulfúrico", como faziam, segundo ele, certas vertentes domaterialismo dialético. Apesar das mudangas de perspectivas, seusobjetivos se situam dentro de uma intengáo que ainda permaneceviva, a de nao sucumbir em abstragoes, conforme podemos identificarem sua crítica ao marxistas:

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Pensar, para a maioria dos marxistas atuais, é pretendertotalizar e sob, este pretexto, substituir a particularidade porum universal; é pretender conduzir-nos ao concreto eapresentar, sob este título, determinagoes fundamentáis masabstraías (SARTRE, 1987, p.133)

Nesta obra, Sartre prossegue em uma discussáo crítica sobre atendencia do marxismo de dissolver o particular no universal,reivindicando que devemos entender o homem como aquele que é aomesmo tempo o produto de seu próprio produto e um "agentehistórico que nao pode, em caso algum, passar por um produto"(SARTRE, 1987, p.150). O único recurso possível para talcompreensáo de homem é entendé-lo como um projeto queinterioriza a exterioridade e exterioriza a interioridade, isto é,processo dialético de superagáo da realidade dada rumo a um campode possíveis. É célebre a afirmagáo que Sartre ai faz neste sentido:"Para nos, o homem caracteriza-se, antes de tudo, pela superagáo deuma situagáo, por aquilo que consegue fazer do que foi feito dele,embora nunca se reconhega na sua objetivagáo" (SARTRE, 1987, p.151-152). Este será o limite que imunizará Sartre perante o contagiodo anti-historicismo e da morte do sujeito que varrerá a Franga,sobretudo nos anos 70, anos fináis de sua vida.As ideias sartrianas de inspiragáo marxista refletem assim os pontosprincipáis responsáveis pela reformulagáo e enriquecimento de seumétodo de psicanálise existencial. Esta nova etapa é tambémmarcada pela introdugáo, em Questoes de Método, do métodoprogressivo-regressivo de Henri Lefebvre como via de investigagáo deuma vida particular, método que passa a ser usado a partir de entáonos trabalhos biográficos, cujo exemplo mais expressivo encontra-seem O idiota da familia (SARTRE, 1988).Diante de todo o caminho percorrido até aqui, podemos observar comclareza as contribuigóes de Sartre á psicología. Desde sua psicologíafenomenológica ao seu método de psicanálise existencial, o filósofonos oferece novas bases de pensamento para o estudo do homemque possibilitam uma compreensáo, ao mesmo tempo, de suahistoricidade e de sua singularidade. De fato, esta grandecontribuigáo nos aponta um caminho, mas o desenvolvimento de taisquestoes no ámbito de uma prática clínica nao faz parte, a nosso ver,do legado sartriano. Como vimos, Sartre tinha como objetivo de suapsicanálise o estudo de seus "analisandos de papel", mas asimplicagóes de sua psicología e psicanálise para a clínica hoje é aindauma tarefa que nos propomos a pensar.

5 Para uma clínica de inspiracao sartrianaNao é verdade que possamos afirmar confortavelmente que Sartretenha formulado os principios para uma prática clínica baseada na

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sua filosofía e na sua psicología. Se é legítimo fazer-se mengáo seja aurna filosofía sartriana seja a urna psicología sartriana, ambasorigináis, nao se justifica, porém, falar de urna clínica sartriana. Istonao impede, bem entendido, que se pense urna prática clínicainspirada em Sartre. Como se sabe, em O Ser e o Nada, Sartre iadeixando o aviso de que ainda faltava á psicanálise existencial o seuFreud.Quando Sartre afirma faltar á psicanálise existencial o seu Freuderemos estar assumindo, de urna forma clara e razoável, faltar ápsicanálise existencial a sua clínica. Neste ponto divergimos daquelesque, um pouco apressadamente, juntam a urna filosofía e a urnapsicología sartrianas, urna clínica de Sartre. Apesar destas ressalvas,já na obra de 1943, Sartre deixa nítidamente indicada urna pretensáode que urna clínica viesse a constituir-se, sobretudo pela referenciaexplícita que ele faz á relagáo clínica, chegando a apontar algumasnuances fundamentáis de como deveria ser urna atitude de umpsicanalista existencial em oposigáo a atitude de um psicanalista debase freudiana.Dispostos os dados assim, cabe dar conta da existencia deimportantes elementos no pensamento de Sartre que constituemcontributos para inspirar urna prática. Em outras palavras, quando setrata de pensar na clínica com base em Sartre, devemos adentrar nacriagáo de algo novo, que nao foi desenvolvido pelo autor, e que nosjoga no terreno vivo da experiencia, mas precisamente a partir doquadro de referencias constituidos no seio da sua psicologíafenomenológica e da sua psicanálise existencial.Tal quadro confronta-nos prontamente com a afirmagáo sartriana deque a introdugáo de um apriorismo no relacionamento conduz a urnainapelável suspensáo da própria relacionalidade. Do mesmo modoque a existencia precede a esséncia, considerada a pessoa na suaindividualidade, podemos também afirmar que o encontró concretona relagáo precede qualquer esquema que a procurasse caracterizarem abstrato. Isto quer dizer, em primeiro lugar, que devemos partirdo próprio terreno vivo da experiencia e da relagáointersubjetividade.Há no espago clínico o acontecimento de urna relagáo entre duaspessoas que se predispóem a urna situacao clínica. Assim sendo,quais sao as condigóes desta situagáo? Como afirma Renato Mezan(2002), a demanda de quem procura ajuda, independente dametodología clínica, é quase sempre a mesma: "sofrer menos, vivermelhor, compreender algo de si e da forma como se relaciona com osdemais" (p.40). Portanto, ocorre assim, alguém que procura por umservigo de ajuda e paga por ele. Por um viés objetivo, podemosdestacar que há um espago e um tempo que constituem urna sessáo,e esta desde o inicio já contém as finalidades desejadas, conformeaponíamos, para aquele espago, sem que sejam revelados, no

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entanto, explícitamente, os meios para tal. A preocupagáo com osmeios é justamente urna questáo de método, o que seráfundamentalmente o marco divisor de aguas das diferentesabordagens teóricas em psicología clínica.De recorte fenomenológico, a clínica de inspiragáo sartriana doará aofenómeno da compreensáo o papel principal, reivindicando com issourna constante necessidade de se pensar na atitude daquele quecompreende, como urna atitude fenomenológica. A nosso ver,somente esta postura diante do fenómeno faz com que ele revele seusentido criado a partir da relagáo que se dá naquele espago, naoprocurando sentidos prontos que seriam constituidosaprioristicamente.Assim, o objetivo da clínica será permitir que este espago seja abertoá aparigáo do ato de criagáo dos sentidos, ao invés de urna busca porverdades independentes da relagáo que ali está em jogo. Apossibilidade de criagáo dos sentidos, nesse caso, é urna possibilidadeaberta pela relagáo intersubjetiva que se estabelece entre dois para-sis sob o modo de ser para-outrem. Ambos, analista e analisandodesfrutam nesse caso do olhar do outro como objetivagáo necessariapara a compreensáo do fenómeno por um "lado de fora", e naosimplesmente na "luz que ilumina sem relevos" da subjetividade(SARTRE, 2001). Desta maneira, ambos possibilitam a aparigáo deurna construgáo de sentidos conjunta, através de urna relagáo deconfianga que se sustenta no ponto de vista de outrem, de um outroperfil, do mesmo fenómeno.Apesar deste trabalho intersubjetivo conjunto, devemos destacar queambos envolvidos na relagáo para-outrem da clínica nao ocupamlugares semelhantes nessa situagáo. Pois, enquanto o analista ocupaseu lugar justamente de analista, o analisando busca encontrar algode si naquele espago, o qual de alguma forma indica ser o tempo dasessáo pertencente as suas questóes pessoais. Deste modo, esteslugares definidos constituem urna característica inerente á situagáoclínica que provocará, por sua vez, a maneira pela qual seráestabelecida tal relagáo. Isto é, cabe ao analista entáo urnadisponibilidade de abertura para receber aquilo que o outro traz, paraouvir de maneira ampia, sem que isso, no entanto, caracterize urnapassividade ou urna ausencia impossível de sua própria subjetividade.O que devemos é pensar novamente em urna abertura de atitude,que interrogue os sentidos prontos ou feitos, e que leva em contaurna postura náo-judicativa em relagáo aquilo que aparece, aomesmo tempo legitimando como dado real as próprias vivencias doanalista como parte integrante da constituigáo dos sentidos.Urna clínica de inspiragáo sartriana se caracteriza por urna buscaconjunta de se construir novos ángulos de visáo sobre as diferentesperspectivas já constituidas. Urna atitude fenomenológica implica emtomar o outro enquanto fenómeno que se manifesta através dessas

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diferentes perspectivas. Esse outro "multifacetado" se revela pelahistoria de vida familiar que narra, pelas circunstancias atuais de seuhorizonte existencial, pela maneira e tom através dos quais comunicaas suas questóes, pela forma como se veste, pela maneira que sesenta, por aquilo que escolhe dizer, inclusive pelas próprias escolhasde má-fé que realiza. Todo esse mosaico de facetas significa aexpressáo do projeto que faz de si, e nenhum desses ángulos é"falso", nem mesmo as mentiras e omissóes.Se, de fato, podemos pensar assim, consideramos que o objetivo dotrabalho clínico é permitir á pessoa a possibilidade de que ela mesmapossa vir a reconhecer-se. Como afirma Sartre, o olhar do outropermite o reconhecimento de minha condigáo existencial, já queatravés dele me é dado um "lado de fora", isto é, um ángulo meu,que seria impossivel de atingir sozinho. Para me reconhecer como tal,necessito deste outro que me olha. Desta forma, diz Paulo Perdigáo(1995), "só estou capacitado a formular um juízo objetivo, saber-mede determinado modo [...] porque esse tipo de autoconhecimentopassa pelo Outro" (p. 143). Tal condigáo de me reconhecer diantedeste outro que me olha é belamente expressa por Sartre na cartaque Daniel escreve a Mathieu no romance Sursis:

Durante um instante, foste o mediador entre mim e mimmesmo, o mais precioso do mundo aos meus olhos, pois essesólido e denso que eu era, que queria ser, tu o percebias taosimplesmente, tao vulgarmente, como eu te percebia. [...]Compreendi, entao, que a gente só se podia alcangar atravésdo juízo de outrem [...] Que angustia descobrir súbitamenteesses olhos como um ambiente universal do qual nao possofugir [...] Transformo para uso próprio, e com toda a tuaindignagao, a palavra imbécil e criminosa de vosso profeta,esse 'pensó, logo existo' que tanto me fez sofrer - poisquanto mais eu pensava menos me parecía existir - e digo:véem-me, logo existo (SARTRE, 2005b, p.398).

Tal parodia sartriana do cogito, "véem-me, logo existo", exprime essafundamental condigáo que nos liga irremediavelmente ao outro,principalmente se pretendemos alcangar uma compreensao a respeitode nos mesmos. O homem de Sartre, "misterio em plena luz", carecedos meios necessários para se alcangar, posto que desfruta de tudoao mesmo tempo "sem sombra, sem relevo, sem relagáo degrandeza; nao por que essas sombras, valores e relevos existam emalguma parte e Ihe estejam ocultos, mas sobretudo porque concernea uma outra atitude humana estabelecé-los" (SARTRE, 2001, p. 698).Ainda se faz pertinente pontuar que, apesar da relagáo ser necessáriaao reconhecimento, o maior intuito de uma clínica de inspiragáosartriana, segundo nosso entendimento, deve ser a criagáo dapossibilidade de que a própria pessoa consiga se reconhecer na suaangustiante liberdade. Reconhecer designa: conhecer de novo,

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conhecer o que já compreende, distinguir, admitir, autenticar,endossar, declarar-se, confessar-se, assumir-se, conciliar-se. O quepretendemos é justamente como diz Sartre: "reivindicar comodecisiva a intuigáo final do sujeito" (2001, p.702), ou em outraspalavras, esperamos que o outro seja capaz de se identificar comoabertura, de admitir sua incompletude, de endossar seu modo de serescolhido, em suma de assumir-se como liberdade por se fazer.O fato de podermos identificar no rastro da obra de nosso autor um"caminho a seguir" em vista de urna clínica psicológica de recortesartriano, nao suprime, a nosso ver, as dificuldades teóricas emetodológicas a serem enfrentadas. Por este motivo, buscamosdemarcar, no presente artigo, o ámbito preciso em que se constituemtres campos distintos de consideragáo do pensamento de Sartre parao universo da psicología. Em primeiro lugar, o campo de urnapsicología fenomenológica sartriana, particularmente aprofundado nafase inicial de suas investigagoes fenomenológicas e que langa a basepara seus percursos futuros. Em segundo lugar, o campo de urnaproposta de psicanálise existencial como alternativa e resposta aométodo freudiano. Por fim, o campo de urna clínica inspirada nopensamento de Sartre, que, como procuramos mostrar, proporciona apossibilidade de adentrarmos na criagáo de algo novo, que nao foidesenvolvido diretamente pelo autor, mas que nos joga no terrenovivo da experiencia heurística, no balango entre a descoberta e ainvengáo.

Referencias

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SARTRE, J.P. Questáo de Método. In. Sartre (Os Pensadores). SaoPaulo: Nova Cultural, 1987.

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. O imaginario: psicología fenomenológica da imaginagáo.Sao Paulo: Ática, 1996.

. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica.Petrópolis: Vozes, 2001.

. Situacóes I: criticas literarias. Sao Paulo: Cosac Naify,2005a.

. Sursis. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005b.. Esboco para urna teoria das emocóes. Porto Alegre:

L&PM, 2007.. A imaginacao. Porto Alegre: L&PM, 2008.

Enderece» para correspondenciaAndré Barata NascimentoDepartamento de Comunicagao e Artes - Universidade da Beira Interior - UBI -Covilha, Lisboa, PortugalEnderego: Alameda Dom Afonso Henriques, 62, 4.° Esq. 1900-183 LisboaTelefone: (351) 9634533email: [email protected] Mendes CamposPontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, Rio de Janeiro, Rio deJaneiro, BrasilEnderego: José Roberto Macedo Soares n. 12/102, Gávea cep: 22470-100Telefone: (21) 2521-7641Email: [email protected] AltUniversidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,BrasilEnderego: José Roberto Macedo Soares n. 12/102, Gávea cep: 22470-100Telefone: (21) 2521-7641Email: [email protected]

Recebidoem: 31/05/2012.Reformulado em: 30/11/2012.Aceito para publicagao em: 30/11/2012.Acó m pan ha mentó do processo editorial: Ana Maria López Calvo de Feijoo

Notas^Filósofo, Professor Doutor em Filosofía pela Universidade de Lisboa, Portugal**Psicóloga Doutoranda em Psicología Clínica pela Pontificia Universidade Católica doRio de Janeiro- PUC-Rio***Psicóloga, Doutoranda em Filosofía pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro- UERJ

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ARTIGOS

Liberdade, alienacáo e criacáo literaria: reflexóessobre o homem contemporáneo a partir doexistencialismo Sartriano

Freedom, alienation and literary creation: considerations onthe contemporary man from the perspective of Sartreanexistentialism

Amana Rocha Mattos*Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,Brasil

Ariane Patricia Ewald**Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,Brasil

Fernando Gastal de Castro***Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

RESUMOO presente artigo reúne reflexoes a respeito de tres diferentes temas dacontemporaneidade, tendo como referencial comum o pensamento dofilósofo francés Jean-Paul Sartre. O artigo inicia com a discussao sobre ossentidos de liberdade que sao compartilhados em nossa sociedade atual; emseguida, discute as relagoes de trabalho na contemporaneidade que isolam ohomem no produtivismo serial; e por fim, elabora urna reflexao sobre ostatus do imaginario e sua relagao com o mundo da vida, a literatura e aciencia. A discussao dessas temáticas é feita tendo como paño de fundo osaspectos sócio-históricos e filosóficos do surgimento e consolidagao damodernidade, pensados sob o ponto de vista da ideia de liberdade sartriana.Palavras-chave: Liberdade, Alienagao, Imaginario, Existencialismo, Jean-Paul Sartre.

ABSTRACTThis paper presents the discussion on three different themes related tocontemporaneity, having as common referential the thought of the Frenchphilosopher Jean-Paul Sartre. The paper initiates with the discussion on themeanings of freedom that are shared in our society; then, it duscusses thecontemporary work relations that isolate men in serial productivism; finally,it brings a reflexión on the status of the imaginary and its relation with theworld of life, literature and science. The background of these discussions arethe social, historical and philosophical aspects of the upcoming andconsolidation of Modernity, considered by the perspective of the Sartreanidea of freedom.Keywords: Freedom, Alienation, Imaginary, Existentialism, Jean-PaulSartre.

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicología Rio de Janeiro v. 12 n. 3 p. 724-766 2012

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Amana Rocha Mattos, Ariane Patricia Ewald, Fernando Gastal de CastroLiberdade, alienagao e criagao literaria

1 Introdugao

Este texto é resultado de um trabalho conjunto, o qual vem sendodesenvolvido por nos desde 2011. Ministramos conjuntamente urnadisciplina no Programa de Pós-Graduagáo em Psicología Social/UERJ,a qual resultou numa mesa redonda no "IV Congresso Latino-Americano de Psicoterapia Existencia! e Enfoques Afins", emnovembro de 2011 na UERJ. A iniciativa de realizarmos estestrabalhos em conjunto está diretamente ligada nao apenas á nossaafinidade teórica mas,também, á nossa visáo crítica sobre asquestóes que mobilizam a subjetividade e a psicología no mundocontemporáneo.É fundamental esclarecer que optamos por construir um texto em quecada um trabalhasse suas reflexóes dentro do tema que nosaproximou, o qual transformamos em título para este artigo. ;esentido, procuramos montar o texto na sequéncia que consideramosmais coerente para o leitor e que reproduzisse, em parte, a trajetóriade nossas discussóes, tanto na disciplina da pos quanto na mesaredonda no congresso. Dessa forma, apresentamos reflexóes arespeito de tres diferentes temas que tém como horizonte comumaos autores, o pensamento do filósofo francés Jean-Paul Sartre. Oartigo é iniciado com a discussáo sobre os sentidos de liberdade quesao compartilhados em nossa sociedade atual; em seguida, discute asrelagoes de trabalho na contemporaneidade que isolam o homem noprodutivismo serial; e por fim, elabora urna reflexáo sobre o status doimaginario e sua relagáo com o mundo da vida, a literatura e aciencia. A partir de diferentes referenciais teóricos, a discussáodessas temáticas é feita tendo como paño de fundo os aspectossócio-históricos e filosóficos do surgimento e consolidagáo damodernidade, pensados sob o ponto de vista da ideia de liberdadesartriana.No primeiro item, Amana Mattos faz a revisáo da ideia de liberdadedifundida em nossa sociedade contemporánea, pensando como essanogáo traz elementos próprios do liberalismo - corrente teórica epolítica que se consagrou como um pensamento hegemónico ao longodo século XX ñas ciencias humanas, economía e filosofía. Saolevantados alguns problemas que a difusáo dessa ideia no imaginarioe ñas práticas sociais acarreta, como a valorizagáo extrema doindividualismo, a privatizagáo do exercício da liberdade e adespolitizagáo dessa nogáo. Para essa discussáo, as contribuigóes deSartre sao cruciais. Ao criticar a liberdade liberal como exaltagáo daescolha individual, o filósofo destaca o aspecto intersubjetivo da agáolivre, o que torna questionável a concepgáo de liberdade comoatributo e direito do individuo. Sartre discute ainda a dimensáoinerradicável de alteridade da liberdade, o que implica aimprevisibilidade do ato livre, por um lado, e a necessidade de

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engajamento e responsabilizagáo do sujeito no exercício de sualiberdade, por outro.No segundo item, Fernando de Castro aborda as nogoes de liberdadecomo "livre praxis" e objetivagáo da subjetividade, o que nos permitepensar a alienagao como liberdade alienada. Em seguida, desenvolvea ideia de urna "ascensáo do dominio do prático inerte", abordandotres formas sócio-históricas definidas de organizagáo do trabalho,diretamente ligadas ao crescimento da alienagao. Sao essas1 aburocracia, com seu correlato antropológico que é o homem adaptadoá norma,2 o taylorismo, com seu correlato antropológicocaracterizado pelo homem máquina, e3 o new management e a teoríado 'capital humano', com seu correlato antropológico constituido pelohomem hiperativo. Em cada urna dessas formas sócio-históricas, épossível encontrar um crescimento do campo prático inertedominando as possibilidades individuáis. O ponto comum dessas tresformas sócio-históricas de organizagáo social do campo prático inerteé a «negagáo da liberdade», em fungáo de urna pretensa razáouniversal apoiada num racionalismo cientificista que altera aautonomía em heteronomia. Em seguida, analisa a especificidade domomento sócio-histórico atual caracterizado por um dominio daimpotencia e da solidáo serial em fungáo de um realidade socialparadoxal. O new management, ao fazer apelo tanto a urna lógicaexistencial de engajamento pessoal quanto a um homemhiperprodutivo e individualista, cria um impasse entre a possibilidadede construgáo de si mesmo e a possibilidade de construgáo do sersocial, onde o suicidio, ligados as condigóes de trabalho nos diasatuais, pode se revelar como o ápice da alienagao vista comoliberdade-alienada.

Finalmente, no último item, Ariane Ewald discute a nogáo deimaginario e a literatura como campo de investigagáo e criagáo, o quenos leva a urna reflexáo sobre o processo de construgáo da escritaem pesquisas e, consequentemente, sobre as publicagóes resultantesdas mesmas. A Literatura desde muito cedo para Sartre, constitui-secomo fonte de questionamento sobre a condigáo humana e tambémcomo modo de expressao de suas ideias. Em seus primeiros textospublicados, nos anos 1930, ele ensaia suas inquietagóes filosóficas deforma académica e, ao mesmo tempo, em expressao artística: ANáusea é seu mais belo exemplar. O resultado deste procedimentorendeu-lhe notoriedade como escritor e ele compreendeu que as duasformas de expressao podiam caminhar conjuntamente, cada urnaexplorando suas próprias facetas, sem perderem fólego nemprofundidade.Tomando esta relagáo entre estes modos de expressao táo diferentescomo ponto de partida, este item procura discutir como a Literaturase constituí como espago de reflexáo sobre a vida e também comocampo de trabalho para a Psicología Social, tendo a nogáo de

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imaginario como ponto fundamental para compreendermos que aciencia é também processo de criagao e que o imaginar faz parte dos"procedimientos" académicos em todos os sentidos.Com este artigo, pretendemos iluminar algumas questóescontemporáneas - liberdade, trabalho, literatura - a partir dascontribuigoes de Jean-Paul Sartre. Ao visitarmos esses temas sob aperspectiva do filósofo francés, a atualidade da obra sartriana serevela como urna importante aliada para discutirmos questóes táocaras á psicología.

2 Contribuigóes de Jean-Paul Sartre para pensarmos aliberdade na contemporaneidade: urna crítica á ideia deliberdade liberal

A ideia de liberdade que circula em conversas e debates, que é vividae sentida como dimensáo importante da vida pessoal, que aparececomo valor prezado ñas relagóes e nos vínculos contemporáneos, naosurge espontáneamente no cotidiano e no pensamento das pessoas.Como um problema caro as ciencias políticas e á filosofía, a historiado conceito de liberdade se mistura com a própria historia damodernidade. Objeto de grandes disputas teóricas e de poder, a ideiade liberdade tem urna trajetória que percorre as principáis escolas edominios da filosofía e das ciencias humanas.No que se refere a essa discussáo, urna das correntes teóricas maisimportantes das ciencias políticas e da economía é, certamente, oliberalismo. Desde seu surgimento revolucionario, na luta daburguesía contra o poder soberano dos monarcas no contesto doIluminismo, até os dias atuais, marcados pela economía de mercadoe pela hipertrofia das liberdades individuáis, é possível identificarelementos na teoría liberal que forjaram urna nogáo muito específicade liberdade que está amplamente difundida em nossa sociedadehoje.Neste subitem, apresentaremos a nogáo de liberdade liberal que vemse difundindo em nossa sociedade para, em seguida, desenvolvermosas críticas que Sartre teceu a essa acepgáo de liberdade, deslocandoo centro da questáo da liberdade de escolha individual para oproblema da existencia e das relagóes intersubjetivas.

2.1 A ideia de liberdade hoje e a valorizacao do individuo

A liberdade surge como um valor central em nossa sociedade. Vemsendo experienciada no último século numa acepgáo bem particular,marcada por questóes que sao próprias do contemporáneo, como oindividualismo, a competitividade, o consumo e o desenraizamentodos individuos. Ainda que essas questóes se encontrem acirradas e

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em destaque na contemporaneidade, é possível tragar suacontinuidade com temas que vém sendo pensados desde osurgimento da modernidade. Esse é o caso da ideia de sujeito, queemerge com os autores iluministas da filosofía e das ciencias sociaisque tematizaram o poder e as relagóes entre homens e Estado,exaltando a necessidade de emancipagáo de fato e de direito doshomens em relagao ao poder despótico do Rei, e trazendo o elogio deurna racionalidade encarnada no cidadáo.Entre os pensadores que discutiram o governo democrático ou, aomenos, a necessidade de que o monarca nao governasse ácima da leidos homens, percebemos a conexáo da nogáo de sujeito racional,autónomo, capaz de introspecgáo, com a nogáo de individuo comum,que tem seus interesses próprios e que vive num Estado modernoregido por convengóes e leis, feitas pelos homens e para os homens.É o caso de John Locke que, no final do século XVII, toma a ideia decontrato apresentada por Thomas Hobbes, pensando-a como umacordó feito por homens livres e racionáis visando a fundagáo de umpoder limitado que os governasse. Com isso, Locke tira o poder degovernar a sociedade da esfera religiosa e despótica, tratando essepoder como urna concessáo de todos e de cada um dos homens paraque a vida em sociedade seja possível.

Seguindo as discussóes dos autores fundamentáis para oliberalismo, especialmente daqueles que constituíram as bases dopensamento que orientou a Revolugáo Francesa (Jean-JacquesRousseau, Thomas Hobbes), poderíamos supor que a constituigáo docidadáo livre das sociedades democráticas deveu-se á difusáo dasideias da filosofía iluminista. A afirmagáo de Voltaire, em pleno séculoXVIII, no auge do Iluminismo, denota claramente o projeto deformagáo e esclarecimento do homem: "No essencial, em suaacepgáo mais apropriada, a ideia de liberdade coincide com a dosdireitos do homem. O que quer dizer, finalmente, ser livre senáoconhecer os direitos do homem? Pois conhecé-los é defendé-los."(VOLTAIRE apud CASSIRER, 1997, p. 336; grifos do autor).Consolida-se, assim, a importancia da autonomía e da independenciapara que os cidadáos pudessem participar politicamente dasociedade.

Teóricos do liberalismo concordam que o movimento passou pordiferentes fases relacionadas ao contexto político-económico europeue mundial. A Declaragáo Americana da Independencia e a RevolugáoFrancesa langaram as bases para os Direitos Universais do Homem,compreendendo as nogóes de liberdade individual e igualdade entreos sujeitos. Os pensadores liberáis dessa época criticavam acentralizagáo do poder no Estado monárquico e a limitagáo dasliberdades civis. Mas é com o advento da economía industrial, nasegunda metade do século XIX, que as ideias liberáis se firmaram nopanorama mundial e as conquistas do liberalismo se efetivaram:

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liberdade religiosa, direitos humanos, um governo representativoresponsável e a legitimagao da mobilidade social (MERQUIOR, 1991).Para Kolm (1984), o liberalismo é o pensamento político e económicoda modernidade por excelencia, por trazer em sua proposta todos oselementos que sao caros ao mundo moderno:

O liberalismo se justifica, de principio, pela liberdade. Depois,pelo bem-estar e pela eficacia económica que a liberdadeeconómica sem entraves acarreta. Liberdade e bem-estarpromovem a felicidade. E, fundamentalmente, o liberalismoeconómico repousa sobre o individualismo e o respeito aoDireito, e, em particular, á propriedade individual. Ora, essessao os valores que se diz mais fortes e mais gerais no mundomoderno. (KOLM, 1984, pp. 11-12)

Vemos definir-se na contemporaneidade urna ideia difundida deliberdade que foi consolidando-se em torno da valorizagáo daindependencia individual. A defesa da liberdade de escolha e dedecisáo, a ser realizada no plano individual, é sua principal marca.Trata-se de urna liberdade que prioriza a liberagáo do individuo deobstáculos externos, empecilhos que se coloquem entre o individuo ea realizagáo de seus desejos e projetos. Esse sentido de liberdade,recurrente na teoría liberal, define-se pelo que o filósofo Isaiah Berlínchamou de "liberdade negativa", isto é, a situagáo em que o individuoé mais livre quanto menos impedimentos se coloquem em seucaminho, em suas agóes (BERLÍN, 2002).

Urna das consequéncias mais perceptíveis de tal acepgáo deliberdade é a privatizagáo de seu exercício. A prática da liberdade, aagáo livre, passa a ser algo que concerne á esfera privada, aoindividuo, e em condigóes ideáis deve sofrer o mínimo possível deregulagao exterior (seja vinda de outros individuos, de outros grupos,ou do Estado). É o que destaca Benjamín Constant, pensador liberalfrancés, já em 1815, em seu importante texto "Da liberdade dosantigos comparada á dos modernos" (CONSTANT, 1985 [1815]).Nesse texto, o autor compara a liberdade valorizada na modernidadeentáo emergente, que ressalta a primazia do individuo, suapreocupagáo com a vida e os interesses privados, com a liberdadeexercida na polis da Grecia Antiga. Na liberdade dos antigos, haveriaurna busca pela igualdade entre os cidadáos, pois esta, somada áliberdade, seriam a pré-condigáo para o exercício da política na esferapública - atividade mais nobre a que um cidadáo da polis poderiaalmejar.

Como desdobramento do efeito de privatizagáo da liberdade nomundo moderno, muitos autores váo destacar que ocorre urnadespolitizagáo do exercício da liberdade. Urna vez que a liberdadepassa a ser algo que diz respeito á realizagáo, á felicidade e aosinteresses particulares dos individuos, afastando-se de questóes

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relacionadas ao mundo coletivo, público, comum, a agáo livre torna-se um prazer e urna conquista do individuo independente. Todosquerem ser livres, e para que isso seja plenamente buscado (mas naonecessariamente alcangado), impóe-se um afastamento completo dequestóes públicas. Como bem resumiu Hannah Arendt, o mundomoderno reitera a convicgáo liberal de que "quanto menos política,mais liberdade" (ARENDT, 1972). Para que os interesses individuáissejam defendidos na esfera pública, a modernidade aposta nademocracia representativa: alguns políticos profissionais se dedicamas questóes que dizem respeito á sociedade como um todo, enquantoos cidadáos comuns se liberam para viverem suas vidas privadas ebuscarem a felicidade individual.

2.2 A liberdade em Sartre e o problema da intersubjetividade

Tendo feito esta breve introdugáo sobre como, na modernidade, aideia de liberdade destaca-se hegemonicamente por sua acepgáoliberal, gustaríamos agora de trazer algumas contribuigóes feitas porSartre a esse tema, destacando as críticas feitas pelo autor áperspectiva liberal de liberdade como exercício individual da escolha eda independencia, e expondo seus principáis argumentos parapensarmos a liberdade implicada constitutivamente naintersubjetividade.

Para os autores liberáis, ser livre é um direito a ser exercido econfigura-se como um valor na sociedade, capaz de trazer afelicidade e a realizagáo pessoal aos cidadáos. Acontece que a agáolivre é, muitas vezes, acompanhada por sentimentos que naocorrespondem a essa realizagáo pessoal que preconiza a teoríaliberal. Ao contrario, o agir livre leva constantemente os sujeitos a sedepararem com o mal-estar, com conflitos, com a angustia. Aliberdade pode parausar os sujeitos, levando-os a dilemas éticos e apensamentos inquietantes. Essa dimensáo constituí parte do exercícioda liberdade, e precisa ser pensada a partir de outro referencialteórico que nao apenas o das teorías liberáis individualizantes, postoque estas nao priorizam dois aspectos cruciais da liberdade: a relagáocom o outro e a dimensáo do confuto.

Ao longo de sua obra, Sartre propóe que a liberdade sejapensada como urna experiencia constitutiva da agáo humana. Emsuas críticas mais contundentes ao pensamento liberal, Sartre definea "livre escolha" do liberalismo como urna escolha que se realizaentre opgóes já dadas, que negligencia a reflexáo do sujeito sobrecomo encaminhar sua vida, sobre quais opgóes sao válidas paraserem objeto de escolha, e quais nao. Essas seriam reflexóes queprovocariam a angustia no exercício da liberdade. Esse sentimentonao discutido pela teoría liberal aparece, no existencialismo, quandoo sujeito toma consciéncia de que pode mudar sua agáo (seus

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valores), pois esta é resultado de sua liberdade, ou, melhor dizendo,sua agáo é sua liberdade. Isso significa dar-se conta de que oconjunto de possíveis que aparecem diante de si quando um sujeitoestá em situagáo de escolha é produzido pela condigáo desse sujeitono mundo, na qual ele está intimamente implicado. As possibilidadesde escolha nao sao, para Sartre, dadas de saída, mas sao colocadaspelo sujeito a partir de seus valores, de sua posigáo no mundo, doque o autor chama de seu projeto. Opgóes que se colocamclaramente para alguns sujeitos nao sao sequer cogitadas por outrosque se encontram na mesma circunstancia. É conhecida a frase deSartre em O Ser e o Nada a esse respeito: "Quando delibero, osdados já estáo langados." (SARTRE, 2007, p. 557)

Além de relacionar as opgóes que aparecem numa escolha aoexercício da liberdade, Sartre enfatiza que o fato do sujeito efetivarsua escolha nao dissipa as demais opgóes. Isso ocorre porque elastém relagáo com as questóes que o próprio sujeito se coloca em suavida, estando ligadas á sua vivencia e seus valores. Escolher entreopgóes possíveis apenas evidencia um caminho que está sendotomado, mas nao faz com que as opgóes restantes sejamcompletamente alheias ao sujeito a partir da escolha feita. Comoafirma Barata, ao comentar o conceito de liberdade em Sartre,

[...] trata-se de dar conta do facto de que nao há realmenteuma capacidade, por parte do sujeito que sustenta umaescolha, de eliminar as alternativas de escolha preteridas.[...] O que eu decido nao deixa, por ter sido decidido, depermanecer apenas uma possibilidade entre outraspossibilidades. (BARATA, 2005)

Essa característica da liberdade humana, de ser sempre umarealizagáo de possíveis, faz com que o sujeito tenha que lidar com ofato de que suas escolhas poderiam ter se dado de outra maneira.Além disso, o filósofo enfatiza o quanto os sujeitos estáo concernidosnos rumos que suas vidas tomam, mesmo que eles os atribuam aeventos independentes de sua vontade. Nesse sentido, Sartre quertrazer a discussáo da liberdade para o campo da responsabilizagáo,da implicagao, ainda que isso nao signifique, de maneira alguma, queo sujeito tenha dominio dos efeitos provocados por seu agir livre.

No que diz respeito á maneira como a filosofía moderna lidacom a temática da liberdade - profundamente inspirada pelos autoresiluministas e liberáis -, Sartre chama atengáo para o fato de que osrealistas (filósofos e cientistas humanos que tomam a realidade comodada, como uma evidencia) nunca se preocuparam efetivamente como problema do outro ao pensarem a natureza humana, tomando ooutro como um dado, assim como os demais fenómenos da natureza.No estudo realista sobre o outro, feito pela psicología positivista, porexemplo,

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[a] hipótese que melhor explica o comporta mentó do outro éa de urna consciéncia análoga á minina, cujas diferentesemogoes nele se refletem. [...] a maioria dos psicólogospermanece convictos da existencia do outro como realidadetotalitaria de estrutura idéntica á sua. Para eles, a existenciado outro é certa, e provável o conhecimento que temos déla.(SARTRE, 2007, p. 292-293)

Assim, a tradigáo realista do conhecimento pensa o sujeito comodado, e o outro é entendido como urna duplicagáo do sujeito. Napsicología positivista, o estudo dos individuos se dá através daobservagáo de seu comportamento e desenvolvimento, entendidoscomo eguivalentes (ou análogos) em todos os casos. O outro é maisum individuo.Sartre afirma ainda gue, no gue diz respeito ao idealismo, o estudoda pessoa nao é urna prioridade, pois autores como Kant ou Spinoza,estáo preocupados em estabelecer as "leis universais dasubjetividade", no primeiro caso, ou a "esséncia do homem", nosegundo, perdendo-se a guestáo da pessoa concreta: "tanto para oidealista como para o realista, impóe-se urna conclusáo: pelo fato degue o outro nos é revelado em um mundo espacial, é um espago realou ideal gue nos separa do outro." (SARTRE, 2007, p. 301).As correntes idealistas e realistas sao dominantes na filosofíaocidental. Sartre, assim como os demais existencialistas, estáimplicado em denunciar gue esse projeto de conhecimento nao deixalugar para a existencia, para o homem no mundo. Ao falar do espagogue separa o sujeito do outro, tradicionalmente pensado pela filosofíacomo real ou ideal, Sartre toca em um ponto gue nos remete aoproblema dos limites da liberdade: na tradigáo realista (empirista,positivista, da gual decorre a teoria liberal), o espago em gue aliberdade e, principalmente, seus limites se dáo é o espago empírico,observável. O conceito de liberdade negativa na teoria liberal exprimeessa natureza do espago: liberdade de ir e vir, de se expressar, denao sofrer coergóes. Já na tradigáo idealista, a liberdade estárelacionada á ideia de autonomía, de regras estabelecidas pelopróprio sujeito para orientarem sua conduta moral. O espago em guea liberdade e a falta de liberdade se dáo é o espago ideal - o espagodo pensamento racional. Erguer urna máxima para si mesmo e agirsegundo essa máxima, de tal maneira gue sua agáo seja válida paratodos, é o imperativo categórico kantiano gue melhor define oconceito de autonomía. A universalidade é o dominio, por definigáo,do exercício da liberdade enguanto autonomía.

O grande problema silenciado nessas duas tradigóes é a questáo dooutro. Nao do outro tomado como igual, semelhante, cujasnecessidades, motivagóes e capacidades se eguivalem as minhas.Nem do outro enguanto encarnagao do sujeito racional, assim como o

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próprio sujeito livre. Mas do outro que desconhego, que nao possoantecipar, prever, controlar, e com o qual tenho que me haver noexercício de minha liberdade. É essa relagáo com o outro que Sartrepretende enfatizar:

[...] a liberdade do outro revela-se a mim através dainquietante indeterminagao de ser que sou para ele. Assim,este ser nao é meu possível, nao está sempre em questao nocerne de minha liberdade: ao contrario, é o limite de minhaliberdade, seu "reverso", nesse sentido em que nos referimosao "reverso da moeda"; [...] a própria materia de meu ser éa imprevisível liberdade de um outro. (SARTRE, 2007, p.337; grifos nossos)

Vemos como a mesma expressáo que aparece na nogáo de liberdadenegativa, a saber, o outro como "limite de minha liberdade", ganhana teoría existencialista um sentido que nao o de obstáculo. Aqui, olimite da liberdade nao é pensado como alguém que se antepoe comoum estorvo á realizagao das escolhas do individuo, mas antes, dada acondigáo de fundamento que a figura do outro adquire para aliberdade do sujeito, esse limite se define como a impossibilidade dedominio completo, por parte do sujeito livre, de sua agáo e de suasconsequéncias. Em outras palavras, colocar o outro como fundamento- e limite - da liberdade é afirmar a condigáo imprevisível,inantecipável do ato livre. O outro que me aparece nao me remete "aexperiencias possíveis, mas a experiencias que, por principio, estáofora de minha experiencia e pertencem a um sistema que me éinacessível." (SARTRE, 2007, p. 295).Sartre é um autor que pensa o problema da liberdade colocando-secriticamente em relagáo as teorías individualizantes sobre o tema.Para o filósofo, o eu só é em presenga do outro. A concepgáo de que"eu tenho meu fundamento fora de mim" afirma a relagáo com ooutro como constitutiva da experiencia de liberdade. "O outro é omediador indispensável entre mim e mim mesmo" (SARTRE, 2007,p.290). A tensáo constante que se presentifica na relagáo com ooutro - urna relagáo que tem a marca da liberdade humana - sedeve, para Sartre, ao fato de que os sujeitos estáo a todo momentotentando apreender quem é o outro, ao mesmo tempo em que esteque se quer apreender (pelo olhar, por meio de juízos) sempreescapa á objetificagáo. Do mesmo modo, o sujeito se percebe sendoapreendido pelo outro, e essa situagáo desconfortável (porque reduzo sujeito a urna imagem, á condigáo de objeto, destituindo-lhe de suasubjetividade) é por ele recusada. O exercício da liberdade éconstitutivamente conflituoso. Nos termos de Sartre, "O confuto é osentido originario do ser-Para-outro." (SARTRE, 2007, p. 454).Em O Ser e o Nada, Sartre prioriza a discussáo da liberdade narelagáo intersubjetiva eu-outro. O outro é um desconhecido, por

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definigáo, isto é, nao pode ser pensado á minha imagem esemelhanga, antecipado ou controlado. Ainda assim - e por contadisso a angustia se faz presente - tenho que me haver com o outrono exercício da liberdade: "a própria materia de meu ser é aimprevisível liberdade de um outro." (SARTRE, 2007, p. 337).Estando emaranhado no outro que nao se pode prever, a existenciado outro funda a impossibilidade de dominio completo do sujeitosobre suas agoes livres e sobre suas consequéncias.Entretanto, é na Crítica da Razao Dialetica (em especial no segundovolume) que Sartre vai discutir o agir livre em sua dimensáo coletiva,nos grupos humanos. A importancia dessa obra para o campo dapsicología é enorme, urna vez que ela aborda a agáo livre a partir dosujeito, mas considera a dimensáo coletiva imprescindível para queesse processo seja compreendido. Quando dizemos "dimensáocoletiva", cumpre destacar que esta nao se compóe de individuossemelhantes: surge ai a figura do terceiro como instancia naoidéntica ao sujeito. É essa náo-identidade que confere aimprevisibilidade aos fenómenos humanos. Para Sartre, o errocomum dos sociólogos (e de todos os estudiosos dos gruposhumanos) é de considerarem "o grupo urna relagáo binaria(indivíduo-comunidade), quando trata-se de urna relagáo ternaria."(SARTRE, 2003, p. 473).No segundo volume da Crítica, Sartre se dedica a discutir osprocessos de constituigáo dos agrupamentos humanos em diferentesmomentos, procurando, através da crítica, determinar suaracionalidade. O filósofo se pergunta a partir de quais circunstanciasexteriores se constituem os grupos, e identifica que essascircunstancias sao bem distintas dependendo do tipo de grupo éformado, no que diz respeito á sua complexidade e sua coesáo.Entretanto, é ñas relagóes intersubjetivas que o grupo éressignificado, totalizado ou mesmo fragmentado. Sartre reserva aessas relagóes a chave para a compreensáo do agir livre emcoletividade sem, com isso, descartar a dimensáo subjetiva, como ofizeram tantos pensadores que analisaram a formagáo e ocomportamento das massas e turbas, e mesmo das instituigóes eorganizagóes. Ele afirma:

Essa dialetica do grupo é, certamente, irredutível a dialeticado trabalho individual, mas sua existencia também naosubsiste por si mesma. Assim, [...] sua inteligibilidade é a deurna Razao constituida, cuja dialetica da livre praxisindividual seria a Razao constituíate. (SARTRE, 2002, p. 506,grifos do autor)

Tomemos como um exemplo dessa dialetica a situagáo de juramentonum grupo. O filósofo qualifica o juramento como "invengáo dapermanencia prática" num grupo em fungáo dos constantes perigos

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de fragmentagao gue esse grupo pode sofrer. Esses perigos nao saonecessariamente de origem externa ao grupo, mas surgemjustamente porgue o grupo é formado por sujeitos livres:

[...] a possibilidade de urna livre secessao manifesta-se comopossibilidade estrutural de cada praxis individual; e essapossibilidade revela-se em cada outro terceiro como amesma enquanto esse terceiro, aqui, a redescubre em si.[...] Quando a liberdade faz-se praxis comum para servir defundamento á permanencia do grupo, produzindo por simesma e na reciprocidade mediada sua própria inercia, essenovo estatuto chama -se juramento. (SARTRE, 2002, p. 514)

O juramento, como "reciprocidade mediada", é a implicagáo recíprocados membros de um grupo ñas promessas feitas. É a garantía gueuns oferecem aos outros de gue nao váo mudar no futuro, guepermaneceráo leáis ao juramento feito. É preciso entender ojuramento no grupo nao como um obstáculo á liberdade individual,como o liberalismo o conceberia (tanto é gue o juramento sartrianonao pode ser lido como o contrato social hobbesiano), mas comorealizagáo, obra da própria liberdade. Ele funciona como "minhacaugáo contra mim mesmo" e, ao mesmo tempo, regulagáo doterceiro no grupo. Ele é permanente exercício da liberdade porgue atodo momento eu, ou outro integrante do grupo, pode decidirlivremente abandonar o grupo, traí-lo, se aliar a um grupo deoposigáo ou inimigo. A esse respeito, Sartre destaca:

É evidente que "livremente" - aqui, como em toda parteneste estudo - refere-se ao desenvolvimento dialético deurna praxis individual, surgida da necessidade e que superaas condigoes materiais em diregao a um objetivo preciso.Portanto, a traigao e a desergao provocadas pelo terror ousofrimento sao, desse ponto de vista, livres praxis enquantocondutas organizadas que correspondem a ameagasexternas. (SARTRE, 2002, p. 517).

A compreensáo sartriana no juramento no grupo como puro exercícioda liberdade nos ajuda a entender de gue forma o autor articulaliberdade, subjetividade e coletividade em seu texto. Ainda gue sejapensado como um ato subjetivo, o juramento (assim como tantosoutros processos coletivos) só pode ser significado no grupo. Opróprio sujeito só se apropria de seu ato guando este Ihe é remetidopelos outros, pelo terceiro. O juramento, num grupo, implica seusintegrantes ñas promessas feitas, mas pode ser rompido a gualguermomento. Trata-se de urna imagem bem esclarecedora a respeito daliberdade em Sartre, gue, como tentamos explicitar agui, distingue-seradicalmente da concepgáo individualizante e autossuficiente daliberdade no liberalismo.

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Além disso, o entendimento da dimensáo de intersubjetividade queconstituí o humano torna mais clara a abordagem de Sartre quando oautor valoriza o aspecto ativo da liberdade, do fazer, do inventar.Pensar um cenário em que as marcagoes de pertencimento,orientagáo e garantía sao socialmente confusas e ambiguas, como é ocaso da cidade contemporánea, e refletir sobre as relagóes aiestabelecidas, pode ganhar outros sentidos ao tomarmos a propostaexistencialista de que os valores precisam ser inventados na agáolivre. "O conteúdo [da decisáo] é sempre concreto e, por conseguinte,imprevisível; há sempre invengáo. A única coisa que importa é saberse a invengáo que se faz se faz em nome da liberdade." (Sartre,1987, p. 20).Falar de decisóes e de escolhas, de julgamentos e de valores nateoría existencialista é, sem sombra de dúvidas, falar de atoshumanos que se dáo em situagáo, isto é, em contextos reais,envolvendo pessoas existentes. Enfatizar esse aspecto é crucial paraentendermos em que sentido o existencialismo se coloca crítico áliberdade negativa, ao conceito de livre arbitrio e á ideia deautonomía racional - todas essas, definigóes formáis e vazias, queprescindem do contexto em que se realizam para serem definidas.

3 A alienagao como liberdade alienada : consideracóes sobreas formas de alienagao do ser livre no mundo do trabalho

Nosso objetivo neste item é pensar a alienagao como liberdadealienada. Nossa primeira tarefa consiste em considerar brevemente anogáo de liberdade, dentro dos limites da filosofía sartriana e mostrarcomo tal nogáo implica a alienagao como seu correlato ontológicofundamental. Em seguida, trataremos as formas de alienagao do serlivre no ámbito da racionalidade capitalista, com o objetivo demostrar o crescimento progressivo do dominio do campo práticoinerte sobre a praxis individual a ponto de assistirmos, nos dias dehoje, o ápice desse processo no problema do suicidio ligado ascondigoes de trabalho (CASTRO, 2011).

3.1 Liberdade e alienagao

A liberdade pode ser definida como a livre praxis, que nega eultrapassa o campo sócio-material passado e presente em diregáo aum porvir (SARTRE, 1985). É assim que o próprio ato de projetar-see temporalizarse, inerente a praxis humana, aparece como livre, ámedida que tal ato dá-se sempre como a realizagáo de um possíveldentro de um campo de possíveis. Um processo, portanto, de criagáohistórica, visto que toda liberdade reenvía a urna praxis constituinteda historicidade tanto singular como coletiva.

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No entanto, toda praxis constituinte nao existe como purasubjetividade que se transcende em diregáo a seus fins, mas como"subjetividade objetivada" (SARTRE, 1985). Ou seja, comoobjetivagáo de si no mundo socio material, como a marca de seusprojetos fixada nos objetos e na praxis alheia. Escrever um artigo,dar urna palestra, ler um livro, discutir com alguém, tocar uminstrumento, dar urna aula, sao formas da subjetividade se fazermundo, de ganhar urna forma impressa na vida dos outros e ñascoisas, quer dizer, de totalizar-se organizando e significando o campoprático. A objetivagáo, neste sentido, é o próprio ser livre existindopara além de mim, ñas coisas e nos outros, como forma essencial doprocesso de fazer-se.Assim, a liberdade definida como livre praxis e como objetivagáo,aparece como condigáo de possibilidade da alienagao. Quer dizer,como a condigáo de alteragáo mais ou menos profunda de minhasobjetivagóes pela livre praxis dos outros dentro de um campo social-material estruturado. A alienagao, como correlato ontológico daliberdade, implica, portanto, que toda liberdade, ao mesmo tempo emque atravessa o campo social e fixa suas marcas na historia dosoutros e nos objetos, é também atravessada pelo campo social epelas praxis alheias, estando assim, sujeita a distorgóes,modificagóes e inversóes produtoras do estranhamento do sujeito emrelagáo a si mesmo. A alienagao, dessa forma, é o outro que metorno, nao como simples resultado de minha livre praxis, mas comoresultante das atividades dos outros que se apropriam de minhasobjetivagóes e alteram seu sentido. Por essa razáo, é possível definira alienagao como urna liberdade alienada, sem deixar por isso de serliberdade.Para aprofundar a questáo, faremos um pequeño retrocesso a Hegelna sua dialética do senhor e do escravo (HEGEL, 2008 [1807]). ParaHegel, o escravo se faz escravo, na medida em que realiza pela lutacom seu senhor, urna renuncia de si mesmo em prol da vontadesoberana, e o senhor faz-se senhor, quando seus atos correspondema urna renuncia da liberdade do escravo em prol de sua vontade queprevalece. Desta maneira, temos que o ser do escravo deixa de terqualquer caráter substancial, para tornar-se urna realizagáo históricacaracterizada pela renuncia de sua liberdade em fungáo da vontadedo outro, ou seja, um processo que implica a praxis escrava sedespossuindo de si para ser governada pela vontade do senhor. Oescravo, assim, realiza seu ser fora de si na liberdade do senhor. Maso contrario também se mostra verdadeiro, visto que o senhorsomente realiza-se como tal quando o escravo renuncia o ser para sifazendo-se para o outro conforme a liberdade do senhor. O que querdizer que o ser do senhor realiza-se nao somente em si mesmo nasua soberanía, mas fora de si pela praxis de renuncia do escravo,bem como pelo seu trabalho. Um perpetuo "ser para além de si

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mesmo no outro" como sublinha Sartre (1985), dando á relagáo dedominagáo o caráter de urna luta recíproca.Porém, como sustenta Sartre, "a falha de Hegel é nao reconhecer quea materialidade é o intermediario necessário entre duas liberdades"(SARTRE, 1985, p.224). Ou seja, para aprofundar a dialéticahegeliana que compreende a alienagao como luta e confuto entreduas liberdades (KOJÉVE, 2002), faz-se necessário compreender ascondigóes sócio-materiais que tornam possível a renuncia do escravode sua própria liberdade em prol da vontade do senhor. Nessesentido, o poder do senhor nao se baseia na aceitagáo desse porparte do escravo, mas a "aceitagáo de seu poder é, na verdade, ainteriorizagáo da impotencia em recusá-lo" (SARTRE, 1985 : p.714).Quer dizer que a situacao sócio-material em que se encontra oescravo é de tal ordem, a ponto de Ihe colocar na impotencia dianteda vontade soberana do senhor. A impotencia, portanto, revela urnaforma de organizagáo coletiva do escravo constituida pela serialidade(SARTRE, 1985) como característica de um determinado conjuntohumano que implica, por um lado, a solidáo de cada um face aosdemais (nao posso contar com os outros, nao confio em ninguém,tenho que fazer a minha parte, etc.,) e, por outro, relagóes deintercambialidade e de alteridade serial. Ou seja, vejo-me fazendoparte, como todos os outros, da mesma serie (sou o mesmo que osdemais e ocupo um lugar na ordem serial). No entanto, essa relagáode reconhecimento mutuo está fundada na dependencia comum a umcampo prático inerte que organiza do exterior o coletivo serial: "Aserie é um modo de ser do individuo" como diz Sartre (1985), noqual a unidade dele com todos os outros e de todos os outros com eleé dada sempre alhures, dependendo de um ser fora de si quedetermina e organiza o tempo e a vida coletiva. O escravo, portanto,renuncia livremente seu ser livre pela impotencia de afrontar o poderdo senhor sozinho e vé-se constrangido por todos os outros amanter-se escravo em fungáo de encontrar-se inserido em umcoletivo serializado dentro do qual vive relagóes de isolamento e demutuo condicionamento em fungáo das exigencias do campo práticoinerte as quais estáo todos submetidos.

3.2 Formas de alienagao do ser livre no mundo do trabalho

A fim de pensar mais concretamente as formas de alienagao do serlivre em meio a coletivos serializados, convém situar a especificidadesocial-histórica da instituigáo capitalista, que possui como umelemento decisivo "nao a acumulagáo como tal, mas a transformagáocontinua do processo de produgao visando o crescimento do produtocombinado com a redugáo dos custos" (CASTORIADIS, 2004, p.98).O empreendimento capitalista busca, assim, justificar-se por seu"racionalismo económico", baseado na maximizagáo do produto

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conjugada á minimizagáo dos custos, via uma utilizagáo eficaz dosrecursos. É á luz desse novo valor, instituido como racional edominante, que nascem dois elementos fundamentáis para odesenvolvimento da racionalidade capitalista: o homo oeconomicuscomo individualidade típica da era capitalista e o papel da técnica. Oser humano transforma-se em homo oeconomicus á medida em queexiste no mundo tentando constantemente maximizar-minimizar suasutilizadades-desutilidades, seus custos-benefícios, sendo um homemque calcula e move-se pelo principio da eficacia. Por outro lado, opapel da técnica pode ser visto também como outra transformagáoessencial dentro da nova instituigáo capitalista que comega a dominaros países da Europa e em suas extensóes coloniais a partir do séculoXVIII. Conforme Castoriadis "um trago particular dessa evolugáo datécnica deve ser destacado: ela é, de maneira preponderante,orientada para a redugáo e depois para eliminagáo do papel dohomem na produgáo" (CASTORIADIS, 2004 , p.101). A instituigáo docapitalismo comporta, portanto, o fetichismo da técnica, ao torná-laessencial e fazer o homem que trabalha inessencial.A utilizagáo da burocracia pela empresa capitalista como forma deorganizar o trabalho é o primeiro grande esforgo, no ámbito domundo do trabalho, para eliminar o papel do humano dentro daestrutura produtiva. Após a Revolugáo Industrial na Inglaterra, aRevolugáo Francesa e o desenvolvimento económico da Alemanha, adominagáo de uma tecnocracia de engenheiros sobre a estruturagáodo campo prático industrial passou a imperar no ámbito do trabalho(POUGET, 1998), de forma a fazé-lo escapar ao controle de quemtrabalha (TRAGTEMBERG, 2006). Pela primeira vez observa-se, emrelagáo ao trabalho artesanal dos ateliés (POUGET, 1998), umaseparagáo entre o trabalhador e os meios de produgáo: a divisáo dotrabalho passa a ser objeto de racionalizagáo segundo os principiosdo homo oeconomicus e o novo papel da técnica, transformando aorganizagáo em instituigáo (SARTRE,1985). Quer dizer: na fábricapré-burocrática (ou seja, anterior á segunda Revolugáo Industrial)imperava o poder personalizado do burgués dentro de umaorganizagáo prática baseada no dominio do trabalhador sobre atécnica de trabalho. A fábrica burocratizada implica, ao contrario, queos cargos e as relagóes de subordinagáo sejam institucionalizadospelas normas e leis produzidas por uma tecnocracia: a organizagáodo trabalho se hipostasia num sistema técnico de prescrigáo decargos e de relagóes hierárquicas que impessoaliza a lógicaorganizacional e seu funcionamento. Obedecemos á racionalidadeburocrática e nao a fulano ou beltrano, realizamos trabalho conformeas prescrigóes do cargo e acatamos as ordens conforme a hierarquiae nao por ser X ou Y que nos ordena. Conforme Sartre "a instituigáo,como renascimento da serialidade e da impotencia, precisa consagrar

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o poder para garantir sua permanencia pela lei. Sua autoridaderepousa na inercia e na serialidade" (SARTRE, 1985, p.686).A ordem burocrática dentro da fábrica é, portanto, a primeira grandeinvengáo do homem burgués para dominar técnicamente aorganizagáo do trabalho, obedecendo ao principio racional demaximizagáo da produgáo e minimizagáo dos custos, promovendourna utilizagáo eficaz dos recursos. O ideal, portanto, do racionalismoburocrático dentro da empresa capitalista, seria que cada um secomportasse estritamente conforme o cargo prescrito e obedecesseincondicionalmente á ordem hierárquica, para, dessa forma, osistema maximizar a produgáo e minimizar seus custos. Ou seja, oideal é transformar o homem em inessencial diante da instituigáoburocrática fetichizada pela técnica. O objeto prático inerte produzidopelos tecnocratas da administragáo burocrática está justamente nainstituigáo dos cargos, da ordem e dos procedimentos, capazes deorganizar-subordinar o trabalho coletivo as normas-leis impessoais. Alivre praxis descobre-se assim, organizada do exterior, separada dequalquer poder sobre os meios de produgáo, submetida aoracionalismo contábil do homo oeconomicus e ao fetichismo datécnica prescrita pela tecnocracia. A praxis constituinte está,portanto, desde a raiz, alterada em sua historicidade, visto queencontra-se alienada de si em prol da lógica fabril, que se apropria daobjetivagáo da subjetividade em beneficio da eficacia produtiva. Umsistema, dessa forma, serializante desde sua raiz, pois estrutura ocampo prático de cada um do exterior, via a instituigáo de normas,cargos e da ordem, visando a supressáo do singular em prol douniversal, constituindo um sistema de relagoes em que o Eu é dirigidopelo Outro (TRAGTEMBERG, 2006). A praxis soberana torna-se,portanto, aquela da autoridade institucional do conselho executivo daempresa e de seus técnicos de produgáo, que se impóe por meio dainstituigáo burocrática como a "razáo imperante", ou seja, comoorganizadora racional do campo prático sob a forma de mediadorúnico, essencial e nao recíproco para cada trabalhador. Todosnecessitam mediarem-se em sua atividade de trabalho únicamentepela instituigáo, como organizadora unívoca e essencial do trabalhocomum. A livre praxis transforma-se assim, em praxisinstitucionalizada (SARTRE, 1985) do trabalhador serializado face áagáo organizadora e náo-recíproca da praxis soberanainstitucionalizada. Cada trabalhador, no ámbito na nova fábricaburocratizada, produz-se interiorizando o caráter essencial daracionalidade burocrática e o caráter inessencial de sua própriapraxis, ou seja, realizase a si mesmo como ferramenta do projeto doOutro.

Assim, através dessa relagáo unívoca e inessencial, cada trabalhadorinstitucionalizado desfaz-se de sua própria liberdade em proveito daeficiencia inerte da burocracia, sendo o caráter serial do processo

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encontrado no fato de todos fazerem o mesmo e, portanto, passarema se comportar serialmente. No entanto, tal forma de desfazer-se desi implica um trabalho sobre si, um trabalho da própria liberdadesingular para recusar o que Ihe é próprio em prol da liberdade doOutro que ela atualiza. A alienagao aparece neste nivel como "a vidado Outro que se realiza por intermedio de minha própria vida"(SARTRE, 1985, p.714), nao por urna pura recusa de "arriscar aprópria vida" como diria Hegel (KOJÉVE, 2002), mas como"obediencia na serialidade", quer dizer, como obediencia mediadapela praxis coletiva de meus vizinhos que também obedecem e, porisso, condicionam minha obediencia como impotencia.O taylorismo e a Teoría Geral da Administragáo, que o primeiroajudou a fundar, aparecem como urna importante renovagáo doburocratismo fabril e de seu poder serializante. A instituigáoburocrática, que separa a atividade de trabalhado (inessencial) dosmeios de produgáo (essencial), ganha urna nova especializagáotécnica com a administragáo científica do trabalho, para a qual a éticada eficacia e a subordinagáo do homem á máquina tornam-seprincipios essenciais (TRAGTEMBERG, 2006). A ética da eficaciatraduz-se, em Taylor, pela análise minuciosa dos tempos emovimentos da atividade de trabalho e pela prescrigáo de cadatarefa, maximizando os tempos-movimentos em prol daprodutividade ótima e do mínimo desperdicio. A subordinagáo dohomem á máquina e a tarefa prescrita aparece como imperativo daeficacia, visto que toda invengáo de um novo gesto e toda liberdadede agir diante das exigencias dadas seriam urna ameaga áracionalidade empresarial e, portanto, um erro inaceitável. A gestáode pessoal na fábrica taylorista ocupa, do mesmo modo, um lugarcentral. Baseia-se no recrutamento do homem certo para ocupar olugar certo, na formagao que visa melhor treinar para o exercício dodesempenho da tarefa prescrita, num controle rigoroso baseado emurna vigilancia rígida e, ainda, em urna política de salario que sepretende motivante\punitiva para que o trabalhador aceite submeter-se á ética da eficacia. Desenha-se, desse modo, urna renovagáoessencial da organizagáo burocrática, baseada na centralizagáo dotrabalho de concepgáo em um departamento especializado, no qualos engenheiros de produgáo programam a máquina industrial dentrodos principios técnicos baseados na análise dos tempos-movimentose na consequente prescrigáo das tarefas e da gestáo eficaz dosrecursos materiais e humanos.

Com o advento da fábrica taylorizada e com as posteriores inovagóesadministrativas de Fayol, Elton Mayo e, por conseguinte, daconsolidagáo da Teoría Geral da Administragáo, cria-se urna gestáoempresarial especializada em produzir um campo prático inerte capazde subordinar o trabalho coletivo as exigencias de eficacia,produtoras da serializagáo. Conforme Tragtemberg, com o advento do

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taylorismo vé-se um processo "de valorizagáo do capital pelo trabalhoem que o operario nao utiliza os meios de produgáo. Sao estes que outilizam (...) e sua maior preocupagáo concentra-se no fluxo mecánicodos objetos e na manipulagáo humana conforme criterios utilitarios"(TRAGTEMBERG, 2006, p.241). O coletivo señalizado, concebidocomo máquina técnicamente planejada para produzir o máximo como mínimo de porosidade é, portanto, o ideal da fábrica científicamenteadministrada. A grande inovagáo serializante, trazida assim pelaadministragáo científica do trabalho, encontra-se na "análise dotrabalho", que possui como criterio essencial a ética da eficacia. Emsíntese, produziu-se urna inovagáo técnica (a análise do trabalho)como meio de criar um novo objeto prático inerte (a prescrigáo datarefa científicamente estabelecida) que passou a operar comoorganizador essencial e único de cada praxis individual. A fábrica,agora científicamente organizada, implica, dessa maneira, noaumento do poder alienante da burocracia, visto que aparece comourna especializagáo do modo de útiliza gao/alte ragao da livre praxisobjetivada em fungáo de um racionalismo produtivo renovado.

3.3 A liberdade alienada dentro do mundo do trabalhocontemporáneo

Seria um enorme equívoco considerar os novos principiosgestionários, nascidos nos últimos trinta anos para administrar aempresa capitalista, como essencialmente diferentes daspreocupagóes que motivaram tanto o surgimento do racionalismoburocrático quanto da administragáo taylorista (CASTRO, 2011). Onew management, a teoría do capital humano, as novas regras deexcelencia (GAULEJAC, 2005) vieram a constituir as nogóes de basede um sistema gestionário formado a partir de urna situagáo de crisetanto da ideología de justificagáo do capitalismo posta em cheque apartir dos movimentos de maio de 68, como também de suareprodugáo, posta em cheque pela crise económica do inicio dadécada de 1970 (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 1999). Um sistema que,seguindo rigorosamente os principios do homo oeconomicus e dopapel da técnica, inventa novas formas de produgáo serial dentro daempresa ao fazer crescer o poder organizador do campo práticoinerte sobre a praxis individual.Os movimentos de maio de 1968 possuíram tanto o caráter derevolta estudantil quanto o de revolta operaría. Grosso modo,estudantes e trabalhadores enfatizaram a crítica á alienagao, ámiseria do cotidiano, á desumanizagáo do mundo regido pela técnica,á falta de autonomía e de criatividade. No que diz respeito ao dominiodo trabalho e da produgáo, a crítica recaiu sobre o poderhierarquizado, o autoritarismo, as tarefas prescritas, os horarios e ascadencias impostas, em suma, contra o sistema taylorista e a divisáo

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do trabalho (CASAVECCHIE, 2008). A luta dos movimentos de maiode 68, portanto, dirigiu-se contra os dois fundamentos de justificagaodo sistema social capitalista, quais sejam, contra a exploragao (achamada "crítica social") e contra seu caráter alienante (a chamada"crítica artística"), segundo Boltanski e Chiapello (1999). Em suma,maio de 68 foi um movimento social que se engajou na luta contra aexploragao do trabalho e a favor da autonomía.Por outro lado, os países industrializados, principalmente os daEuropa ocidental e os Estados Unidos, passaram a viver urna gravecrise económica. O tripe keynesiano, formado pelo estado investidore mediador, por urna política de bem estar social, e pela iniciativaprivada, havia esgotado suas possibilidades de desenvolvimento ereprodugáo da ordem capitalista (HARVEY, 1992). A emergencia daseconomías do leste asiático e a crise do petróleo exigiam a busca denovas formas de organizagáo da produgáo que retomassem aprodutividade e fossem capazes de enfrentar a nova competitividadeinternacional. E, por fim, o poder sindical, com sua capacidade deproduzir um número elevado de movimentos de greve e frear aprodugáo, representava, para a perspectiva do capital, um custo deprodugáo a ser vencido.Assim, o novo sistema de gestáo que se desenvolveu como respostaa tais necessidades de justificagao e de produtividade do capitalismodo final do século XX, constituiu-se de urna jungáo de dois aspectosantagónicos. Por um lado, ele assimila, á sua maneira, a críticaartística ao sistema, com suas reivindicagóes de autonomía ecriatividade, que possui, por principio, a reivindicagáo dehumanizagáo do trabalho e das formas de organizagáo social. E, poroutro, desenvolve novas formas de racionalizagáo do trabalho,visando sua maior exploragao a custos mais baixos. Aos novostécnicos da gestáo empresarial coube, portanto, a responsabilidadede inventar urna nova forma de organizar e gerir o trabalho,portadora, desde sua raiz, de um paradoxo: propaga-se urnaideología humanizante e justificadora das novas formas deorganizagáo e, ao mesmo tempo, produzem-se novas formas deexploragao do trabalho para tornar os sujeitos hiperprodutivos.Segundo Le Goff (1999), os preceitos de maio de 68 sao integradosao novo sistema ideológico manageriel, de maneira a desvinculá-lo deseu imaginario revolucionario original e a incorporá-lo a um discursode modernizagáo organizacional. O modelo nao será o do trabalhadorassalariado portador de um "saber-fazer", mas o do colaborador,comprometido subjetivamente com a empresa, e portador de um"saber-ser". A nova ideología gestionaría, portanto, desloca seucaráter prescritivo da atividade e de seus modos operacionais para osujeito e seus modos de ser. Ser participativo, saber dialogar, aceitarcríticas, ser tolerante, franco, engajado no progresso continuo,aderido subjetivamente á empresa, passam a constituir principios

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básicos da nova forma de gestáo. Para Le Goff (1999), o "saber-ser"torna-se o coragáo do novo processo gestionário, com suasexigencias de flexibilidade de tempo, competencias, tarefas edeslocamentos, tudo isso, sobre a base de um discurso dedesenvolvimento pessoal e individual. Conforme Gaulejac (2009), oideal de excelencia mostra-se um dos conceitos chaves das novasprescrigoes gerenciais, o que significa ser fora do comum e engajadosubjetivamente em ser performante. A empresa, dentro dessa novamentalidade gerencial, deixaria de ser um lugar de exploragáo-alienagáo para tornar-se portadora da modernizagáo e dodesenvolvimento individual.Paralelamente a essa nova ideología gestionaría, urna novaracionalizagáo do sistema produtivo se desenvolve. Urna síntese desuas principáis características pode ser a seguinte. Urna busca pela"mensuragáo" rigorosa das competencias, numa tentativa dequantificagáo cada vez maior da performance individual, qualificadapor Le Goff (1999) e Gaulejac (2009) como urna especie dequantofrenia. A "individualizagáo" se ergue como um principio,¿aseada ñas medidas de salario variável em fungáo da produtividadee nos dispositivos de avaliagáo individual (DEJOURS & BÉGUE, 2009).A "diminuigáo de custos" com salario torna-se sinónimo demodernizagáo, seja a partir de demissóes em massa (ANTUNES,1999) ou da criagao de diversas formas de subcontratagáo e detrabalho temporario, via terceirizagáo e constituigáo de empresas deservigos, ajudando na transformagáo dos proletarios em prestadoresde servigo. Urna forte ofensiva contra o poder sindical faz parte aindado novo sistema, na qual a contradigáo capital-trabalho e os temastais como alienagao e exploragáo tendem a ser banidos do interior daempresa em prol da exigencia de colaboragáo e da ideia daorganizagáo como portadora de modernizagáo. Urna gestáo porobjetivos, conforme sustentam Dejours e Bégue (2009) portadora deurna intensificagáo do ritmo das tarefas e de urna desqualificagáo dotrabalho em prol de objetivos financeiros a curto prazo, torna-sefundamental. E, por fim, urna contradigáo entre manager, portadordo novo modelo gestionário baseado na redugáo de custos, ñasmetas de produtividade e na ideología do "saber-ser" etrabalhadores, portadores do "saber-fazer" próprios de sua atividadeprofissional. Gestáo e trabalho, nesse sentido, distanciam-se um dooutro, funcionando a partir de lógicas diferentes, motivo pelo qual,constata-se o aumento progressivo do assédio moral, da violencia, dapressáo e dos conflitos entre gestores e funcionarios.É possível compreender, a partir do exposto ácima, que o paradoxonao constituí um acídente ou um desfuncionamento do novo sistemagerencial, mas é parte essencial de sua lógica serializante. ConformeLe Goff (1999), está-se diante de um management paradoxal, ámedida que funciona a partir de duas lógicas antagónicas e, ao

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mesmo tempo, necessárias dentro da fábrica atual: é preciso serautónomo e, ao mesmo tempo, ser em conformidade as normasestritas de produtividade e performance. O mesmo sustenta Linhart(2004), para quem o novo sistema manageriel desenvolvido para amodernizagáo das empresas se estabelece a partir de duas demandascontraditórias: ser participativo e ser submisso. Da mesma forma,Gaulejac (2008) assinala que urna característica fundamental dasmudangas vividas pelas empresas é a passagem da contradigáo aoparadoxo. Por um lado, a contradigáo de classe entre as categoríasdos trabalhadores e dos patróes é substituida pela individualizagáoradical e por urna lutte des places1, e a administragáo taylorista ésubstituida pelo novo management que, ao trabalhar para produzir ovalor para os acionários, mostra-se incapaz de criar mecanismos demediagáo sociais, levando ao crescimento da solidáo serial. Oparadoxo mostra-se, assim, o novo elemento serializante no interiorda empresa capitalista, pois cria dois objetos práticos inertes que seopóem: de um lado, urna materialidade composta por exigenciaseconómico-financeiras de hiperprodutividade com diminuigáo decustos e, de outro, um ideal de realizagáo pessoal e excelencia comoforma do sujeito colocar sua própria existencia - e nao só sua forgade trabalho - a servigo da maximizagáo produtiva (GAULEJAC, 2009).O campo prático inerte constituido pela nova empresa é entáo,aquele do ideal irrealizável (DUJARIER, 2006). O homo oeconomicus,calculador, que avalia as agóes de forma a otimizar a produtividade, aaproveitar ao máximos seus recursos e diminuir ao mínimo suasperdas, se desloca do bureau des méthodes para um ideal depersonalidade ao qual todos exige-se que todos adiram. Conforme anova teoría do capital humano (GAULEJAC, 2009), o individuo e suascapacidades cognitivas, afetivas e relacionáis passa a ser concebidocomo um capital a fazer frutificar e a se fazer valorizar para melhorenfrentar a luta pelo emprego, dentro de um mercado cada vez maiscompetitivo. Por outro lado, o computador, i-phones, tabletes, bemcomo, as avaliagóes individuáis, passam a compor o novo campoprático inerte dentro da empresa modernizada com suas exigencias,ritmos, formas de pressáo e objetivos fixados do exterior queinviabilizam qualquer ideal de realizagáo pessoal. O poder serializantedas novas formas de gestáo evidencia-se, portanto, pela unidadeformada por dois objetos prático inertes contraditórios: o ideal desaber-ser e excelencia individual e urna realidade prática de superexigencia produtiva. A libre praxis objetiva-se, dessa maneira, em umcampo prático extremamente alienante. O trabalho realizado(enquanto subjetividade objetivada) nunca é suficiente, pois éprofundamente alterado pela exigencia de ter que ser fora docomum. E, como complemento, as objetivagóes do trabalho dosujeito para os outros sao utilizadas contra o próprio sujeito, como

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um meio na luta competitiva pelo ideal de excelencia buscado porcada um contra todos os outros.O que há de comum entre o racionalismo burocrático, aadministragáo científica do trabalho e a nova ordem manageriel é,sem dúvida, a estruturagáo de um campo prático inerte dominante,que visa despossuir o homem de si mesmo e fazé-lo aceitar aestruturagáo de seu ser fora de si, tal como realizada pelo Outro. Ouseja, a empresa capitalista, perseguindo o projeto fundamental efundante de sua racionalidade económica, possui na serialidade ofundamento da organizagáo do coletivo. Tal condigáo coloca a livrepraxis individual e constituinte de historicidade sob tensáo, visto quea cada um cabe a necessidade de renunciar a si mesmo para existirconforme a ordem instituida, fazendo com que a agáo individualtorne-se a interiorizagáo da vontade do Outro. Existir como cargo naempresa burocrática, como coisa/recurso dentro organizagáotaylorista, ou como recurso-excelente dentro da nova ordemmanageriel implica, nesse sentido, em urna dupla tarefa que unificaliberdade e alienagao no ámbito de cada praxis individual. Por umlado, a necessidade assumida e vivida de agir sobre si mesmo tendoque renunciar o desejo de ser e de fazer singular, que se evidenciaum duro e violento trabalho de mutilagáo de si mesmo. Segue-se asegunda tarefa, complementar á primeira, de fazer-se conforme osfins estranhos a si, ditados pelo campo prático inerte organizado doexterior pelos experts na organizagáo do trabalho. A livre praxisindividual faz-se, assim, como interiorizagáo da vontade do Outro quese impóe como reguladora de um coletivo serializado em prol de umobjetivo organizacional de produtividade máxima e mínimodesperdicio.

3.4 Esbogo da inteligibilidade da agao de classe e docrescimento da alienacao em nossos dias

A nosso ver, a especificidade da alienagao produzida pelas novasformas de gestáo do trabalho aos nossos dias, encontra-se no seucaráter individualizante e, por consequéncia, destrutor das formas deser em comum (CASTRO, 2010). Baseando-nos na Critique de laRaison Dialectique de Sartre (1985), especialmente quando o filósofotrata de nos fornecer urna inteligibilidade dialetica da agáo de classe,quer dizer, que nao perca de vista a livre praxis individual e de gruponegando o dado e totalizando o campo sócio-material para fazer ahistoria, é possível considerar que vivemos, atualmente, umcrescimento do dominio do campo prático inerte e da serialidade.A inteligibilidade da agáo de classe trazida por Sartre na Critiqueimplica, segundo Simont (1998), tres aspectos fundamentáis : aexistencia de grupos como pura combatividade, que ao romperem aimpotencia serial operam a fusáo da praxis individual em urna praxis

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comum e organizada, capaz de negar a ordem instituida em prol deum futuro outro. Junto com a existencia dos grupos combativos,encontraríamos ainda, de um lado, a classe enquanto dispersao seria\e, de outro, os aparelhos institucionalizados tais como partidos,sindicatos, etc. Portanto, a agáo de uma classe sobre a outra, comopor exemplo, a capacidade de impor licenciamentos de massa porparte da grandes empresas com objetivo de aumentar o valor dasagóes para os acionários (CASTRO, 2011), os ajustes económicos quevisam a acomodagáo fiscal para que os Estados possam honrar seuscredores internacionais, dependem, para serem bem sucedidos, daconfiguragao interna de uma determinada classe em relagao á outra.A instauragao do taylorismo na Franga somente teve éxito depois dasegunda guerra mundial, visto que no entre guerras os grupos detrabalhadores como pura combatividade predominavam face áimpotencia serial e sua dispersao passiva. É possivel assim, segundoClot (2010), compreender o processo de instauragao daadministragáo científica do trabalho na Franga como estando emfungáo, por um lado, do crescimento da oferta de máo de obradesqualificada oriunda das colonias, bem como, por outro lado, porum crescimento da burocratizagáo dos grupos combativos, via ofortalecimento dos partidos comunistas e sindicatos. Ou seja, adialética da classe trabalhadora francesa transforma-se, no pos-guerra, no sentido de uma institucionalizagáo-burocratizagáo de suasestruturas e de um aumento da impotencia serial, o que, por sua vez,tornou a luta pela implementagáo da organizagáo científica dotrabalho nesse país possivel de ser realizada por parte da classe dosproprietários das grandes industrias.

Se tomarmos ainda como exemplo o movimento dos trabalhadorespaulistas do ABCD no final dos anos setenta do século XX, é possiveltambém considerar a agáo de classe sob o mesmo prisma: aconstituigáo de grupos enquanto pura combatividade, que foramcapazes de fundar as cámaras setoriais no interior das empresas,constituidas por trabalhadores e empresarios e feitas para discutir apolítica para o setor metalúrgico, uma expressáo da predominanciados grupos organizados sobre a dispersao serial no interior da agáodos metalúrgicos naquele contexto.No entanto, é possivel observar, nos dias atuais, uma transformagáoprofunda na agáo de classe. A crise do ideal revolucionario -essencialmente moderno, conforme Castoriadis (1992) - com oadvento da chamada pós-modernidade, o crescimento daburocratizagáo das estruturas sindicáis e partidarias e, ainda, aconsequente ampliagáo do coletivo serial, transformamprofundamente as condigóes da agáo no interior da classetrabalhadora. Por outro lado, a emergencia de uma nova configuragaoda classe burguesa globalizada, constituida por uma "hiperburguesia"segundo expressáo de Gaulejac (2009), composta por grandes

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acionistas, gestionários dos fundos de agóes, banqueiros,conselheiros estratégicos e corretores de grandes agenciasfinanceiras, comegaram a dar o ritmo as trocas financeiras. Aeconomía passa a ser dominada segundo os principios deinstabilidade, da hiperatividade e de adesáo ao presente, que impóemum nova organizagáo do campo prático inerte, baseado noindividualismo exacerbado e competitivo e na desconstrugáo doslagos sociais. Assistimos, desta maneira, um crescimento de umcampo prático inerte imposto pela praxis dessa nova burguesíafinanceira globalizada, campo esse baseado na exigencia deexcelencia (geradora de frustragáo) na escassez de tempo (geradorade hiperatividade) e de espago (geradora de exclusao social).A dialética hegeliana do senhor-escravo, enriquecida pela mediagáo

das condigóes sócio-materiais de nosso dias, produtoras de umaumento da serialidade coletiva e da centralizagáo do poder ñas máosde urna hiperburguesia financeira permite, portanto, considerar nossaépoca como permeada pelo crescimento da impotencia e dainsignificancia (CASTORIADIS, 2002), quer dizer, por um aumentosignificativo da serialidade coletiva.Um caso pode nos servir de exemplo para compreendermos aliberdade alienada dentro desse processo histórico de crescimento daimpotencia e da insignificancia serial. Jean-Marc era conselheiro depatrimonio de um banco regional, que, ao final da década de 1990,foi incorporado ao banco Crédit Mutuel2. Filho de agricultor, atravésde seus estudos conseguiu chegar a ser bancário em 1980 e ascenderna carreira para tornar-se conselheiro de patrimonio. Tinha orgulhode sua ascensáo social e de seu trabalho, que consistía em orientaras pessoas em suas demandas, ajudá-las em seus interesses, numarelagáo de proximidade e confianga. Fazia seu trabalho o melhor quepodia, com reconhecimento dos seus pares e junto com urna unidaequipe formada por tres colegas conselheiros de gestáo. Para Jean-Marc, ele havia encontrado sua identidade (MOREIRA &PROLONGEAU, 2009).Após a fusáo entre seu banco e o banco Crédit Mutuel comegaramurna serie de transformagoes organizacionais. Ele comegou a perder odominio do seu tempo, porque o agendamento de seus compromissospassaram a ser feitos automáticamente por urna central, via internet.Nao tinha mais autonomía de decidir o tempo que poderia ficar comum cliente, pois o tempo entre um cliente e outro era decidoautomáticamente em fungáo das exigencias comerciáis deprodutividade. Novos objetos prático inertes passam assim a existir,capazes de governar do exterior o tempo e o ritmo de seu trabalho. Oobjetivo do trabalho também se alterou: nao era mais o"aconselhamento", segundo Jean Marc, mas sim o vender produtos eatingir as cifras estipuladas, fazendo com que o conteúdo de suaatividade mudasse radicalmente. Nota-se, neste aspecto, urna

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modificagáo do campo prático capaz de alterar profundamente osentido desejado de seu trabalho. Acrescentam-se, um método degestao anónimo no qual as decisoes chegavam por correio eletronico,um sistema de individualizagáo dos rendimentos que criava aconcorréncia com seus colegas e urna relagáo com seu managerdireto baseada na cobranga diaria de resultados financeiros e, tudoisso transpassado pela exigencia de comprometimento com amodernizagáo da empresa. Podemos observar, assim, o sistema degestao paradoxal sendo posto em prática. Por um lado, a gestao dotempo e da performance individual feito tanto á distancia (pelocomputador) como de perto (pela pressáo do novo gerente), capazesde tirar totalmente o poder de agir do sujeito sobre seu trabalho ealterar profundamente o seu sentido. Por outro, um sistema deinjungóes baseados num ideal de comprometimento que afirma aexcelencia pessoal/organizacional.Mas Jean-Marc, por sua vez, quería atingir os objetivos fixados e naoadmitía fraquejar, porém, recusava a maneira como era exigido afazé-lo. Eis, portanto, urna situagáo paradoxal vivida do interior. Aomesmo tempo urna nova ordem produtiva que elimina o sentido dotrabalho, cria a hiperatividade e corta os lagos sociais, solicita,paradoxalmente, o engajamento subjetivo com os novos ideáis demodernizagáo organizacional. Jean-Marc participa desse processo naosomente como objeto de manipulagáo, mas como livre praxisimplicado em corresponder as injungóes paradoxais, passando a fazercoisas que se tornam mais e mais insuportáveis para si mesmo.Observamos, nesse sentido, a liberdade alienando-se pelo processode invalidagáo de si, aceitando a violenta alteragáo de suaobjetivagáo em fungáo da impotencia serial: nEu me sentíadesprezível, pois eu cruzava com as pessoas [clientes] na rúa no diaseguinte, e nunca, nunca eu quis que urna só dessas pessoasdissesse que eu era um ladreo, que eu havia abusado da confiancadélas [...] eu me sentía rumo ao abismo [...] eu nao conseguía maisme sentar no meu escritorio! Quando eu chagava, eu já me sentíamal físicamente, eu me disse um dia que eu podería fícar violento,jogar o computador pela janela. Eu nao quería chegar a esse ponto"(MOREIRA & PROLONGEAU, 2009, p.42). Dessa maneira, quanto maiso sujeito responde as injungóes paradoxais de engajamento subjetivoe hiperprodutividade, mais torna-se despossuído de si mesmo e maistransforma-se em um ser outro insuportável. Jean-Marc era quemmentía ou iludía seus clientes, e nao mais quem os orientava, eraquem competía com seus colegas e nao mais quem estava ligado aeles e, ainda, era alguém que tinha se tornado desprezível para si epara os outros e nao mais um orgulho e um modelo. Urna divisáoentre seu ser para si desejável e seu ser para o outroinstrumentalizado e totalizado desde o exterior pelas exigencias donovo campo prático inerte. Jean-Marc, procura seu superior para

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dizer que os novos objetivos eram irrealizáveis mas recebe comoresposta um reforgo da pressáo em cumprir suas metas. Ele buscouainda resolver o problema junto ao diretor da agencia, e tentouacesso á mais alta hierarquia, mas, devido ao anonimato da novaorganizagáo virtual do trabalho, nao encontrou apoio nem suporte.Acrescentando-se a isso, foi fechando-se e isolando-se dentro de suafamilia, na tentativa de resolver por conta própria seus problemas notrabalho, um comportamento típico do homem serializado pelo idealde excelencia, que assume a inteira responsabilidade pelos seusfracassos. Uma reuniáo com seu diretor servirá de desencadeador deuma crise suicida. Exigido a escrever em um mural o número decontratos fechados durante a jornada de trabalho e informado quenao teria mais secretaria e que contaría, dali para frente, somentecom seu computador, Jean-Marc entrou em crise. nEu me sentíadesorientado, sem ter como escapar [...] eu me perguntava onde éque eu estava, o que eu tinha feito da minha vida!". Fechou-se emseu escritorio e viveu uma crise de choro. A noite nao conseguiudormir, ficando de pé a caminhar em círculos e olhando-se noespelho, até que pela primeira vez, pensou em suicidar-se.Jean-Marc expressa a dialética senhor-escravo típica da nossa época,com sua forma específica de alienagao do ser livre. Submetido asnovas exigencias paradoxais do novo sistema gestionário, vé-se cadavez mais diante da necessidade de operar sobre si mesmo a renunciade seu modo de ser, precisando trabalhar e corresponder asdemandas da nova ordem produtiva. A cada momento em queprecisa agir sobre si mesmo, acumula-se a experiencia de despossuir-se e de realizar outro ser que aquele correspondente a seu projeto-desejável. A impotencia de Jean-Marc evidencia, ainda, a serialidadedo coletivo produzida pelos novos agentes da reorganizagáoempresarial. "É necessário, afirma Charles C, expert e conselheiro deempresas multinacionais cotadas na Bolsa, sentir-se em perigo,adaptar-se, investir. [...] eu trabalho para a desumanizagáo daorganizagáo e do management, no sentido de suprimir tudo que éinterno ao homem" (PIVERT, 2009). Charles C. e Jean Marcconstituem, assim, a dialética alienante da liberdade de nossa época,caracterizada pela violencia de uma libre praxis soberana sobre umcoletivo cada vez mais serializado por uma situagáo paradoxal.Somente a alienagao, compreendida como liberdade alienadaresultante do poder serializante da nova ordem produtiva, permite, anosso ver, inteligir o sofrimento de Jean-Marc, sua crise e aformulagáo da ideagáo suicida. A alteragáo profunda do sentido desua praxis, o trabalho sobre si mesmo que renuncia seu modo de sere fazer para adaptar-se a fins estranhos aos desejados, a impotenciada situagáo serial fruto de uma situagáo de classe onde reina a apatíae a impotencia, a reorganizagáo do campo prático inerte orientadopara a anulagáo do homem singular em prol da razáo produtiva feito

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por urna hiperburguesia financeira globalizada, todos esse elementossao compreensíveis se consideramos liberdade e alienagao comounidades de um mesmo processo. Urna liberdade como praxisconstituinte e objetivagao de si mesmo no mundo sócio-material ondenecessita cada vez mais anular-se. Urna liberdade impotente eserializada que vé sua objetivagao alterada e transformada pela novaordem instituida, a ponto de nao suportar mais caminhar pela rúa eficar face a face com as outras pessoas. Como diz Sartre, "quandoobedego a urna ordem, minha liberdade se destrói livremente,despojando-se de sua transparencia para realizar aqui, nos meusmúsculos, em meu corpo em agáo, a liberdade do outro. É aliberdade do outro, seja alhures, no outro, ou vivida por mim, queobtém sentido pela minha agáo" (SARTRE, 1985, p.726).

4 Eu e os "meus arredores": imaginario, criagao, Literatura

Itabira é apenas urna fotografía na parede. Mas como dói!Carlos Drummond de Andrade

A frase da epígrafe, do nosso poeta Carlos Drummond de Andrade,define nessas poucas palavras a esséncia da discussáo deste item.Itabira, em Minas Gerais, é a cidade natal de Drummond, a partir daqual a nogáo de "pertencimento" pode ser claramente aplicada. Afotografía de Itabira na parede, que provavelmente ele olhavaquando escreveu esta frase, era urna cidade táo viva quanto aquelapela qual caminhava na sua infancia e juventude. Sua frase expressa,em outras palavras, que urna imagem nao é apenas urna imagem, émuito mais que isso, mas é, ao mesmo tempo, também urnaimagem. Isto também significa que a imagem possui urna conexáocom o mundo, que é feita no "entre", na relagáo.Para discorrer sobre a relagáo que as palavras do subtítulo destetexto anunciam - imaginario, criagáo, existencialismo, Literatura -,terei como horizonte de reflexáo a nogáo "mes entours", meusarredores, que Sartre utilizou no seu livro O Ser o Nada (SARTRE,2007, p. 619 e sgts). Tomei esta decisáo para o percurso deste itemporque percebo-a como fundamento para pensar a relagáo entrecriagáo e imaginario, táo cara a todos nos, "artesáos intelectuais"3.De inicio, tratarei de alguns aspectos essenciais do imaginario e dacriagáo, para entáo relacionar com "meus arredores". Existencialismoe Literatura estáo sendo norteados á medida que o texto avanga.A nogáo de criagáo desperta sempre certa desconfianga entre algunsde nos, já que ela fácilmente se liga a de imaginario, táodesqualificado pelas características que o encerram, como já aponteiem antigo texto (EWALD, 1996).4 A referencia ao imaginario é quasesempre tomada como algo "fora da realidade", "irreal", alguma coisa

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táo afastada da realidade que se torna "fantástica". É a partir dessavisada que muitos de nos usamos o termo imaginario para nosreferirmos as artes de maneira geral. Á excegáo do movimentoRealista-Naturalista na literatura e ñas artes plásticas, cuja propostaera a representagáo nao idealizada da realidade, a arte derepresentar, ou re-apresentar, supóe em si o direito a criar, inventar,idealizar, imaginar. Émile Zola (1840-1902), um ferrenho defensor doRealismo, que mais tarde reavaliou sua postura um tanto cientificista,afirmava em seu manifestó, O romance experimental (1982), que oartista escritor deveria submeter-se á fisiología, isto é, exporespecialmente as condigóes fisiológicas, a influencia dos meios e dascircunstancias que determinam o que a pessoa é. Na sua visáo, empleno século XIX e no contexto de um cientificismo exacerbado, oromance, segundo ele, se reduziria á tarefa de experimentar everificar as leis obtidas através da observagao, segundo o modelo dométodo experimental do médico Claude Bernard. Foi o que realizouem varios de seus romances que nos servem, sem dúvida, de fontedocumental sobre a sociedade e os estilos de vida no século XIX. Oseu livro Como se casa, como se morre (ZOLA, 1999) é um dosmelhores exemplos desta forma narrativa, apesar do seu tamanhoreduzido. Talvez seja exatamente grandioso por isto: concentrar emtáo pequeño espago comportamentos evidentes das classes sociaissobre o casar e o morrer. Imbuido, portanto, das prerrogativas dopositivismo sociológico e psicológico, ele afirma que

O Naturalismo, ñas letras, é [...] o retorno á natureza e aohomem, a observagao direta, a anatomía exata, a aceitagaoe a pintura do que existe. A tarefa foi a mesma tanto para oescritor como para o cientista (Zola, 1982, p.92).

[O romance naturalista] É impessoal, quero dizer que oromancista nao é mais que um escrivao que se abstém dejulgar e de concluir. O papel estrito de um cientista é exporos fatos, ir até o fim da análise, sem arriscar-se na síntese;os fatos sao estes, a experiencia tentada em tais condigóesdá tais resultados (ZOLA, 1982, p. 103-4).

Felizmente nao estamos mais no século XIX e o século XX comega aficar no passado. Felizmente as ideias de Emile Zola nao vingaram -ele mesmo foi um dos que reconheceu que foi sectario ao tentartranspor para o dominio das letras o método rígido do cientista(MANZANO, 2008, p. 142), acreditando píamente na ideia de que aciencia é neutra - e pudemos usufruir dos delirios artísticos de muitosescritores.O problema sobre o qual tratarei neste item comega entáo a sedelinear: ficgáo e realidade, imaginario e real. Dualidadesinseparáveis, instigantes e fetichizantes, no sentido etimológico do

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termo fetiche: feitigo. É neste novelo cheio de nos que a criagao sesitúa, representando, á sua própria maneira, a realidade;confrontando-a, ultrapassando-a, e nos incitando a refletir sobrenosso tempo, nosso futuro, nosso passado, sobre isto que chamamos"vida".O problema entáo que se delineia é o da dicotomía real-imaginário.Em psicología, na maior parte das vezes, tendemos a nos aproximardaquela ideia básica proveniente de urna visáo da ciencia baseadañas nogoes de certeza e precisáo (EWALD, 2011). No dominio doocidente e da ciencia, com o primado da razáo, optou-se, em certamedida, por abrir máo da riqueza proporcionada pelas formas deconhecimento, entre elas a do imaginario. Porém, em pleno séculoXXI, sabemos que a certeza e a precisáo, que caminhamparalelamente aos nossos fazeres e saberes, estáo distantes dosanseios, pelos menos de alguns de nos, de construirmos urnapsicología nestes moldes. Entáo, resta-me aqui lidar exatamente comeste "constrangimento", o da imprecisáo, e esperar que vocescompreendam algumas das ideias que gostaria de compartilhar sobreesta questáo que tanto me fascina.Comecemos com algumas das nogoes que Jean-Paul Sartre expóe emA Imaginagao, um texto dos anos 1930.

A imagem de meu amigo Pedro nao é urna vagafosforescencia, um rastro deixado em minina consciéncia pelapercepgao de Pedro: é urna forma de consciéncia organizadaque se relaciona, á sua maneira, a meu amigo Pedro. É urnadas maneiras possíveis de visitar o ser real Pedro. (SARTRE,1980, p. 110).

Nao há, nao poderia haver imagens na consciéncia. Mas aimagem é um certo tipo de consciéncia. A imagem é um atoe nao urna coisa. A imagem é consciéncia de alguma coisa.(SARTRE, 1980, p.120, grifos do autor).

Para compreender o que ele está dizendo dentro do contexto destesseus dois trabalhos, gostaria de mostrar-lhes algo:

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JACK KIRA

O que voces veem sao imagens - fotografías - de dois cachorros;eles moram comigo. O primeiro é o Jack, um border-collie de 9 anos,e o segundo é a Kira, urna pastor-belga de 13 anos. O que vemos, aliprojetado, sao manchas sobre um suporte organizadas de tal formaque consigo, claramente, distinguir Jack e Kira. Mas nao é só isso. Seique sao imagens, que possuem características próprias, que saodiferentes daquelas dos meus caes reais. Mas o fato de estarem ali,projetados, nao significa que eles desapareceram; meus caes reaiscessaram de ser para mim e, no entanto, ei-los ali diante de mimnovamente.Ora, se retirarmos as imagens projetadas, podemos fácilmente trazé-los de volta: imaginem os meus caes; imaginem eles aqui nesteauditorio; eu imagino Jack correndo por entre as cadeiras atrás dasua bolinha - ele desee e sobe continuamente estas escadas e ficaesperando que um de nos a jogue novamente para ele; e vejotambém Kira, calmamente deitada ao meu lado enquanto estoulendo, olhando para mim atentamente - de vez em quando elalevanta a cabega e me olha e volta a deitar. Estes caes que imaginei,assim como os que voces imaginaram, sao realmente Jack e Kira?Sim e nao, diria Sartre, pois possuem qualidades bastantesemelhantes com meus caes, mas nao sao Jack e Kira. A imagem quevoces criaram e a que eu criei, a partir das fotografías projetadas,tem urna "identidade de esséncia" com meus caes, mas essa"identidade de esséncia" dos meus caes nao está acompanhada deurna "identidade de existencia". Sao os mesmos dois caes, é verdade,mas eles aqui existem de outro modo, existem em imagem e sao táoverdadeiros quanto os outros. Sao caes em "planos de existencia"

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diferentes. Portanto, a imagem nao é uma coisa, mas ela se constituípara mim enquanto objeto, na relagáo que eu estabelego com ela.Isso significa que ao imaginar Jack e Kira, as imagens dependem deuma relagáo que estabelego com este objeto a partir do meuimaginario, mas nao significa dizer que as imagens de meus caes saoos meus caes, nem que estas imagens sao inferiores por serem"simulacros" de Jack e Kira. O fato de Jack e Kira nao estarem aquitambém nao faz com que deixem de existir; as imagens sao suas"aparigóes" e "se dáo no momento mesmo em que aparecem comoalgo diverso de uma presenga" (SARTRE, 1980, p. 6).Ora, o que me parece claro aqui, é que falamos de uma identidade do"senso íntimo". Isto quer dizer que ao criar imagens para mim,estabelego um vínculo com minha criagao, uma relagáo deintimidade, de proximidade, de afetividade; estabelego um tipo desenso íntimo. Estas imagens sao e nao sao, portanto, parte de meumundo; nao sao, já que sao ausencia; e sao já que o que criei foifeito a partir da intimidade que estabelego com estas ausencias.Neste sentido, o sentimento que a imagem de Kira e Jack produzemem mim é o mesmo produzido por Kira e Jack "em pessoa". O quecostumamos fazer corriqueiramente é confundir os dois sentimentosprovenientes de objetos diferentes.Ao colocar a fotografia de meus caes na minha carteira, por exemplo,nada mais fago do que buscar renovar/manter, constantemente, omesmo sentimento que tenho por eles. Talvez coloquemos fotografíasñas carteiras, celulares, ou as postemos no facebook, orkut e outrasferramentas tecnológicas, por acharmos bonitinho ou porque "todomundo faz". Estes sao "menores" como dizia Kant5, nao possuemautonomía da razáo e necessitam que outros Ihes digam o que devemfazer. Mas muitos de nos colocamos estas imagens pararenovar/manter o sentimento/afeto que temos por aquilo que ali seencontra retratado. A questáo residirá sempre em nao confundirmosos planos de existencia e sabermos que uma imagem nao restituirá apessoa amada. O sentimento que tenho pela minha cachorra Kiracontinua sendo renovado cada vez que olho sua imagem. Apesar deela ter morrido há sete anos e suas lembrangas estarem um poucoesmaecidas, a cada visada minha ela se reconstituí, se renova e tentómanter íntegros meus sentimentos por ela. Jack é outra historia, eleagora está com nove anos.O que Sartre chama de "metafísica ingenua da imagem", é esta naodiscriminagáo entre os planos de existencia e acreditar que aimagem, por ser semelhante ao objeto, existe como o objeto, isto é,existe como coisa.Em certa medida, podemos dizer que este "senso íntimo" que criamoscom as imagens, pode ser pensado também como uma reconstituigáoda experiencia. Esta é, para mim, a conexáo para a literatura comoconstituigáo da experiencia. É isto que propóe Simone de Beauvoir

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em seu texto, pouco lido e comentado: Literatura e Metafísica, de1946. "É no seio do mundo que pensamos" (1965, p.80), afirma ela,ao indicar que muitos de nos ficamos perturbados quandopercebemos a separagáo entre um mundo gestado através de umromance e um outro, gestado pelos tratados filosóficos.

Se alguns escritores escolheram reter apenas um destes doisaspectos da nossa condigao, erguendo assim barreiras entrea literatura e a filosofía, outros, pelo contrario, procuraramdesde há muito exprimi-lo na sua totalidade. O esforgo deconciliagao a que hoje se assiste situa-se na sequéncia deurna longa tradigao, responde a urna exigencia profunda doespirito. Porque suscita, entao, tanta desconfianga?(BEAUVOIR, 1965, p. 80).

Ainda temos encontrado esta desconfianga. A ficgao ainda é vista comum olhar atravessado e despossuída de sentido de verdade. Mas suaproposta nunca foi esta, nem se pode pensar que a ficgao estádisposta a se contrapor á linguagem da ciencia na busca de urnaverdade absoluta. Nem a ciencia faz isso. Quem o faz sao aquelesque se consideram absolutamente sapientes do que significa ciencia enesta sapiencia, depositam sua limitagáo, sua miopía, como já disseDrummond neste poema.

A Verdade DivididaCarlos Drummond de Andrade

A porta da verdade estava abertaMas só deixava passarMeia pessoa de cada vez.Assim nao era possível atingir toda a verdadePorque a meia pessoa que entravaSó trazia o perfil de meia verdadeE a sua segunda metadeVoltava igualmente com meios perfisE os meios perfis nao coincidiam...Arrebentaram a porta.Derrubaram a portaChegaram ao lugar luminosoOnde a verdade esplendía seus fogosEra dividida em metadesDiferentes urna da outra.Chegou-se a discutir qual a metade mais belaE carecía optar.Cada um optou conformeseu capricho,sua ilusao,sua miopia.6

Nao é "por cuidado com ornamentagáo ou embelezamento", lembraJacques Colette em seu pequeño livro Existencialismo, que muitos

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dos grandes pensadores como Kant, Hegel ou Schopenhauer,invocam poetas em seus textos. Também nao é por acídente que secita ou se faz remissáo a romancistas, dramaturgos, pintores epoetas, pois suas palavras valem tanto quanto a dos filósofos ecientistas; e suas reflexoes expressas em linguagem artística sao, damesma forma, táo profundas e importantes quanto as outras. Comoafirma ainda Jacques Colette,

[...] Lidando sempre com o vivido, a prosa literaria dáespontáneamente as palavras urna espessura, um peso desentido que, aos olhos do filósofo, se mostra inicialmenteinarticulável. [...] Nao sendo ciencia rigorosa, a filosofíacontém "urna prosa literaria escondida", conserva um mínimode equivocidade gragas á qual se pode salvaguardar algumacoisa do vivido [...]. (2009, p.115)

Já citei em outros textos varios autores/pensadores que reiteram estaconcepgáo e nao quero aqui me repetir. Esta discussáo está tambémevidente no livro que organizei - Subjetividade e Literatura (EWALD,2011) - cujos autores dos 16 textos expóem, cada um á sua maneira,esta relagáo táo próxima que nos, psicólogos, deveríamos ter com aLiteratura. Ao mesmo tempo, gostaria de chamar atengáo para otrabalho de James Wood, ensaísta, romancista e crítico literarioinglés, Como funciona a ficgáo, publicado em 2011 no Brasil. Oargumento forte e ampio neste seu livro, diz que "[...] a literatura é,ao mesmo tempo, artificio e verossimilhanga, e que nao há nenhumadificuldade em unir esses dois aspectos" (2011, p. 12). Isto se dá porum motivo bem simples, mas que tendemos a ignorar: o uso daprobabilidade. Para isto, ele langa máo do argumento de Aristótelesna sua Poética, na qual diz que

[...] a historia nos mostra 'o que Alcebíades fez'; a poesia -isto é, a narrativa de ficgao - nos mostra 'o tipo de coisa quepodia acontecer' a Alcebíades. Aqui, a ideia importante esubestimada é a plausibilidade hipotética - aprobabilidade: a probabilidade envolve a defesa daimaginagao crível contra o incrível. Decerto é por isto queAristóteles escreve que urna impossibilidade convincente namimese é sempre preferível a urna possibilidadeinconvincente. O peso real recai ¡mediatamente nao sobre asimples verossimilhanga ou a referencia (visto que Aristótelesreconhece que um artista pode representar algo que éfísicamente impossível), e sim sobre a persuasao mimética: atarefa do artista é nos convencer de que aquilo podia teracontecido. Assim a plausibilidade e a coeréncia interna setornam mais importantes do que a exatidao referencial. Eesta tarefa, naturalmente, demandará um grande artificioficcional, e nao um mero registro informativo (WOOD, 2011,p. 12; grifos em itálico sao do autor, em negrito sao meus).

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Esta plausibilidade hipotética, que é a probabilidade, coloca-nosexatamente diante daquilo que nos, pesquisadores, fazemos no nossocotidiano de pesquisa com nossos objetos. Nos os observamos,descrevemos, mas fundamentalmente os indagamos a partir do nossopróprio arsenal reflexivo e nossas ferramentas. A metodología, nosensina a também socióloga Maria Cecilia Minayo, incluí as concepgoesteóricas de abordagem, o conjunto de técnicas que possibilitam aapreensáo da realidade e também o potencial criativo dopesquisador (1994). Nos também, a partir dos elementos que,meticulosamente, coletamos, realizamos continuas "viagensimaginarias", ensaiando hipóteses, experimentando probabilidades,construindo "castelos no ar", confeccionando, como um artesáo, suaspróprias ferramentas e seu artesanato. É dessa forma que o sociólogoCharles Wright Mills denomina o nosso fazer: "artesanato intelectual"(2009), pois o trabalho intelectual está sempre inserido num tempo elugar e nao está separado da nossa vida.Wright Mills defende que o "potencial criativo" é parte do quedenomina "imaginacao sociológica", que consiste na capacidadepessoal do pesquisador de fazer, das preocupagoes sociais, questóespúblicas e indagagóes perscrutadoras da realidade. A "imaginacaosociológica" "[...] é urna qualidade de espirito que Ihes ajude a usara informagáo e a desenvolver a razáo, a fim de perceber, comlucidez, o que está ocorrendo no mundo e o que pode estaracontecendo dentro deles mesmos" (1980, p . l l ) .O que se apresenta aqui é, portanto, o que denominamoscapacidade criadora e experiencia do pesquisador, este tempo deamadurecimento e de ruminagáo que nos auxilia a ampliar nossoshorizontes reflexivos, a ensaiar a plausibilidade hipotética donosso saber, auxilia na visualizagáo dos varios pedagos do seumaterial e que, em certo momento, vocé os conecta. Verdadeiro"artesanato intelectual", na acepgáo de Wright Mills, pois as ideiassao subprodutos da vida cotidiana e nao figuram num mundo além.As partes, reitera Sokolovski no seu livro Introdugáo aFenomenología,

[...] sao somente compreendidas contra o fundo dos todosapropriados, que multiplicidades de aparéncias aportamidentidades, e que ausencias nao fazem sentido exceto como(sic) jogadas contra as presengas que podem ser alcangadaspor meio délas. A fenomenología insiste que a identidade e ainteligibilidade estao disponíveis ñas coisas, e que nosmesmos somos definidos como aqueles para os quais estasidentidades e inteligibilidades sao dadas. (Sokolovski, 2004,p. 12).

Resta-nos imaginar e fazer o que urna recente autora, pesquisadorano Trinity College em Cambridge, escreveu em seu primeiro livro

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publicado, Brigid Lowe. Perguntar se a ficgáo faz afirmagoesverdadeiras sobre o mundo é descabida, "porque a ficgáo nao nospede para acreditar ñas coisas (num sentido filosófico), e sim paraimaginá-las (num sentido artístico)".

Imaginar o calor do sol ñas costas é totalmente diferente deacreditar que amanha vai fazer sol. Urna experiencia é quasesensual, a outra é totalmente abstraía. Quando contamosurna historia, mesmo querendo ensinar urna ligao, nossoobjetivo primario é gerar urna experiencia imaginativa (apudWood, 2011, p. 203).

Temos que ter claro, infelizmente, como diz Maurice Blanchot, que"[...] a obra de ficgáo nada tem a ver com honestidade: ela trapaceiae só existe trapaceando" (1997, p. 187). É um eterno engodo. "Suarealidade, continua ele, é o deslizamento entre o que é e o que nao é,sua verdade, um pacto com a ilusáo. Ela mostra e retira; vai aalgum lugar e deixa crer que o ignora. É no modo imaginario queencontra o real, é pela ficcao que se aproxima da verdade"(1997, p. 187, grifos meus).Isto nao transforma textos como A Metamorfose de Kafka e A Fomede Knut Hansum, por exemplo, em menos aflitivos e verdadeiros. Nosemocionamos com o imaginario produzido pela literatura nao porqueos tomamos erróneamente por realidades, afirmava Samuel Johnson,um grande especialista em Shakespeare, mas porque esta"representagóes" trazem realidades á nossa mente \apud Wood,2011, p. 204). A arte, para George Eliot, pseudónimo da romancistaMary Ann Evans que viveu no século XIX, "é a coisa mais próxima davida; é um modo de aumentar a experiencia e ampliar nosso contatocom os semelhantes para além do nosso destino pessoal" (apudWood, 2011, p. 205).Se eu sou eu e meus arredores, meu imaginario é parte constitutivadeste meu mundo e disto que sou. A significagáo que constituímos éresultado desta interagáo, que conecta homem e mundo no processode construgáo de sentidos. O social, desta forma, se produz atravésde urna verdadeira rede de sentidos, de marcos de referencia, quetambém sao simbólicos, através dos quais os homens se comunicam,criam urna identidade coletiva e designam o seu lugar frente asinstituigóes de poder desta dada sociedade. Através de suasrepresentagóes ideológicas, exprimem seus desejos e aspiragóes,justificam seus objetivos, concebem o passado como o deseiamrecordar, constituindo-o para si, e criam utopias para o seu futuro. Éassim que constituímos o passado que desejamos recordar e onde ascoisas ganham a espessura que passamos a Ihes atribuirtransformando e assimilando o passado e o heterogéneo, permitindo-nos cicatrizar nossas feridas, reparar nossas perdas, reconstituirforgas perdidas, inventar e reinventar, a partir daí, futuros possíveis,

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como urna narrativa que deve ser continuamente repetida para naonos perdermos de nos mesmos.No mundo real, diz Simone de Beauvoir,

[...] o sentido de um objeto nao é um conceito apreensívelpelo entendimento puro: é o objeto enquanto se nos desvelana relagao global que mantemos com ele e que é agao,emogao, sentimento; pede-se aos romancistas paraevocarem essa presenga de carne e osso cujo complexidade,cuja riqueza singular e infinita, ultrapassa qualquerinterpretagao subjetiva. [...] subjugado pela historia que Iheé contada, o leitor reage aqui como perante osacontecimentos vividos. Comove-se, aprova, indigna-se, porum movimento de todo o seu ser, antes de formular juízosque arranca de s\ mesmo sem que tenhamos a presungao deIhos ditarmos. É isso que confere valor a um bom romance.Ele permite efetuar experiencias tao completas, taoinquietantes como as experiencias vividas (1965, p. 81).

Ao falar sobre os "arredores", Sartre se utiliza de nogóes comoadversidade e utensilidade, nogóes estas que dependem inteiramentedo projeto pessoal, pois as mudangas que vivencio sao captadas pormim como motivos para abandonar ou seguir em frente, á luz destemeu projeto existencial. O exemplo de Sartre é esclarecedor: ele dizque quer chegar á cidade vizinha de bicicleta o mais rápido possível.Ora, isso subentende o tal projeto pessoal: o lugar onde estou, adistancia a ser percorrida e a livre adaptagáo dos meios (esforgos)para que eu possa alcangar este fim. Mas, neste percurso, fura umpneu da minha bicicleta, o sol está muito forte, o vento sopra defrente, etc., e nada disto eu havia previsto. Sao os arredores e semdúvida, afirma ele, se manifestam no e pelo meu projeto principal:assim, o pneu furado é somente um transtorno ou um impedimento;o vento se apresentará como vento ou como urna barreira pesadademais para ser atravessada por mim neste percurso; nao se podenegar, que o sol esteja quente, mas sou eu que designo aquilo queme é suportável e insuportável, sou eu que crio estrategias para lidarcom a adversidade.A realidade é constituida por sujeitos que fabulam, representam,simbolizam o real e o possível (TEVES, 1992, p. 7). Os "fatos", asadversidades, os "arredores", fazem parte da estrutura da situagáo;nos "topamos" com eles continuamente, mas eles sempre sao fatospara alguém que Ihes atribuí significagóes. Isto significa dizer queprolongamos nossa subjetividade nos fatos e nos projetamosininterruptamente nesse mundo aparentemente dado e imutável.Neste sentido, os fatos sao sempre trabalhados pela significagao e osujeito encontra-se situado na corrente da historia em meio aoprático-inerte. Isto significa também que, tanto a Literatura como aCiencia, sao fatos atravessados pela subjetividade. Ao mesmo tempo,

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este mundo duro e opaco é constituido significativamente a partir deexpectativas e possibilidades, a partir de plausibilidades hipotéticasque cada um de nos projeta em torno de si. Mas vivemos em temposde rendigáo da liberdade as determinagoes, diz Franklin Leopoldo eSilva (2008), urna submissáo cega á dimensáo objetiva do mundo. Sesomos livres e determinados, estamos reduzindo esta relagáodialética exclusivamente a um de seus polos, deixando-nos constituirpela exterioridade objetiva. Há urna simplificagáo e banalizagáo daexperiencia, como já bem afirmava Marcuse em seu Ideología daSociedade Industrial (1967). Trata-se de um paradoxo extremamenterevelador, indica Franklin Leopoldo e Silva,

[...] para quem desejar fazer um diagnóstico dacontemporaneidade: a experiencia banalizada é aquela quese caracteriza pela renuncia do sujeito a participarativamente das transformagoes de sua própria historia e dofluxo mais íntimo de sua própria temporalidade. Nestesentido se pode dizer que as possibilidades emancipadorasde um mundo em mutagao se dissolvem no frenesí alienanteda vivencia absolutamente externa e completamenteimpessoal da rotina as transformagoes, com a qual oindividuo convive no modo de um consumo indiferente doque é sempre novo e sempre igual". (2008, p. 161-162).

Rosa Monteiro, escritora espanhola, em seu livro intitulado A louca daCasa (2004), expressáo usada por Santa Tereza de Jesús para sereferir á Imaginagáo, diz que "escrevemos na escuridáo, sem mapas,sem bússolas, sem sinais reconhecíveis do caminho. Escrever éflutuar no vazio" (p.72). Talvez ela tenha razáo. Se alguns de vocesjá esteve diante desta experiencia, entendem bem o que ela estádizendo. Entenderáo também que "[•••] Um pensamentoindependente é um lugar solitario e ventoso" (p. 44) e quediariamente topamos com palavras, frases, poesías "[...] que nossurpreendem com sua verdade, que nos comovem e nos sustentam,que abalam o edificio do hábito até os alicerces" (WOOD, 2011, p.122).Gostaria de finalizar com urna frase do poeta inglés John Donnecitada por Ernesto Sabato, que dizia que:

"[...] ninguém dorme na carreta que o conduz do cárcere aopatíbulo e que, no entanto, ou todos dormimos desde amatriz até a sepultura, ou nao estamos inteiramentedespertos.Urna das missoes da grande literatura: despertar o homemque viaja rumo ao patíbulo" (2011, p.25).

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5 Consideragóes fináis

Apesar de nao ser comum, entre psicólogos, nem a abordagemde questóes como as que aqui destacamos, nem a referencia a Sartrecomo interlocutor para tais discussóes, acreditamos que este é umcaminho prolífico para a Psicología. Um dos objetivos fináis desteartigo, foi o de indicar as possibilidades de trabalho com o referencialsartriano e dar destaque a temas que sao pouco usuais na Psicologíamas que sao fundamentáis para os estudos sobre a subjetividade,sobre as relagoes que a atravessam e sobre como tudo isto estáconectado ao mundo social no qual vivemos.A partir deste artigo nos foi possível indicar caminhos plausíveis paraurna Psicología carente de renovagáo teórica e de articulagáointerdisciplinar. Partimos, nesse sentido, de dois pontos comuns - apsicología e o existencialismo sartriano - e indicamos, a partir desses,tres diregóes possíveis, quais sejam: a ciencia política visto pelacritica sartriana á nogáo de liberdade; o mundo do trabalho,compreendido enquanto crescimento da alienagao e da serialidade; e,por fim, o imaginario como criagao e a necessidade epistemológica deintegrá-lo no campo científico da Psicología.Tais diferentes possibilidades representam ao mesmo tempo, nonosso ponto de vista, a riqueza que o pensamento de Sartrerepresenta enquanto instrumento teórico e metodológico para refletircriticamente sobre o homem e a ciencia do homem nacontemporaneidade, bem como urna certa unidade de nossasreflexóes. Urna riqueza que nos permite renovar, como já dito, opensar psicológico com nogóes que, ao se oporem ao conceitospositivitas herdados das ciencias da natureza, nos oferecem novascompreensóes do homem enraizado em seu processo histórico, comosujeito implicado com o mundo social. Urna renovagáo da psicologíaque reivindica urna liberdade situada em e oposigáo á da tradigáoliberal, que critica as novas formas de gestáo e organizagáo dotrabalho como reprodugáo do inumano e que busca superar aontologia ingenua do real-irreal, típica do naturalismo positivista, epara recolocar o papel fundamental do homem como agente decriagao. Perspectivas essas que, ao mesmo tempo, ao mostraremdiferentes e proficuos caminhos para urna renovagáo do campopsicológico ou ainda mais precisamente, para um repensar o campodas ciencias do homem em seu conjunto, mostram também urnaunidade no que diz respeito a um ponto fundamental: a liberdadecomo fundamento inalienável dos valores, da vida em comum e dacriagao histórica.

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Enderezo para correspondenciaAmana Rocha MattosInstituto de Psicología - UERJRúa Sao Francisco Xavier, 524 - 10° andar.Rio de Janeiro - RJEnderego eletrónico: [email protected] Patricia EwaldInstituto de Psicología - UERJRúa Sao Francisco Xavier, 524 - 10° andar.Rio de Janeiro - RJEnderego eletrónico: [email protected] Gastal de CastroAv. Pasteur, 250, Pavilhao Nilton Campus, Praia Vermelha , RJ.

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CEP: 22290-140Enderego eletrónico: [email protected]

Recebido em: 09/12/2012Reformulado em: 16/06/2012Aceito para publicagao em: 21/06/2012Acó m pan ha mentó do processo editorial: Ana Maria López Calvo de Feijoo

Notas*Professora Adjunta do Instituto de Psicología da Universidade do Estado do Rio deJaneiro, Brasil; doutora em Psicología.**Professora Adjunta do Instituto de Psicología e do Programa de Pós-Graduagaoem Psicología Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil; doutoraem Comunicagao e Cultura.***Professor Adjunto do Instituto de Psicología da Universidade Federal do Rio deJaneiro, Brasil; doutorado em Psicología.^efinigao proposta por V. De Gaulejac, & I. Leonetti no livro "La lutte des places"e que defini o tecido social da sociedade contemporánea por urna luta individualizae competitiva por postos de trabalho e contra a exclusao em substituigao á lutasocial entre classes ocorrida até meados da década de setenta na Europa ocidental.2História relatada no livro de Paul Moreira e Hubert Prolongeau "Travailler a enmourrir: quand le monde de la entrepñse méne au suicide" op, cit.3Utilizo aqui a nogao, já consagrada, do sociólogo Charles Writgh Mills em seu livroSobre o Artesanato Intelectual e outros ensaios (2009).4Ver, especialmente, o trabalho de Lucian Boia, Pour une histoire de l'imaginaire,que fornece um ampio panorama crítico das perspectivas relacionadas aoimaginario. Confrontar também com o capítulo de Evelyne Patlagean (1993), comotambém com os trabalhos de Sandra Jatahy Pesavento (1992 e 1999).5"Resposta á pergunta: 'Que é Esclarecimento?"', de Immanuel Kant, é um texto de1783 no qual ele responde a pergunta: "que é esclarecimento?", desafio langadopor um jornal. Neste texto ele aponta para dois conceitos caros ao existencialismosartriano: autonomía e liberdade. E importante lembrar que o sentido de"esclarecimento" vem do verbo esclarecer, de uso cotidiano, como quando vocéesclarece a alguém, por exemplo, como chegar a um lugar específico; apontarcaminhos, diregoes e sentidos. Logo no inicio do texto, Kant sitúa o"esclarecimento" como maioridade, isto é, como busca, por parte do individuo, detirar suas dúvidas e tomar decisoes a partir do esclarecimento délas; isto é,esclarecer para poder melhor escolher. Em contraposigao á maioridade, ele usa otermo menoridade, para designar o conformismo, aquele individuo que por preguigaou covardia no uso da reflexao, deixa que os outros decidam sua vida e até seuspensamentos.6Este poema de Drumond foi originalmente publicado no livro Corpo (1984, p.41).Mas Drummond deu nova versao á ele, fazendo algumas mudangas no poema e notítulo, que se chamou "A verdade dividida", publicado em Contos Plausíveis.Informagao retirada do site Memoria Viva, disponível em:<http://memoriaviva.digi.com.br/drummond/poema072.htm>. Acesso em: 20 nov.2005.

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ARTIGOS

Um olhar Sartriano para o especialismo "psicontemporáneo

A Sartrean look at the special "psi" contemporary

Michelle Thieme de Carvalho Moura*Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,Brasil

RESUMOEste artigo busca discutir como as ideias, as quais fundamentam oespecialismo "psi" de redugoes cientificistas, tais como: a busca porverdades generalizantes e a consequente substancializagao dos objetos dasciencias humanas, acabam sendo hegemónicos ñas formas com que lidamoscom as contingencias da vida na contemporaneidade. Para isso, a autorapretende buscar no pensamento de Jean-Paul Sartre elementos paracompreender tal fenómeno, e também para pensar urna proposta de saberpsicológico, que fuja da formatagao dos sentidos feita pela cultura dosespecialismos. Se o homem nao pode ser reduzido a urna aparigaoindividual, nem a um mero universalismo, seria um grande equívoco ospsicólogos reduzirem a vida e as emogoes humanas a explicagoesgeneralizantes ou a teorías subjetivistas. Tal dialética universal-singularpode ser vista, portanto, como urna rica ferramenta que Sartre pode nos darno sentido de repensar a questao do saber psicológico na atualidade.Palavras-chave: Saber psicológico, Especialismo, Jean-Paul Sartre.

ABSTRACTThis article discusses how the ideas underlying the expertism "psi" ofscientistic reductions, such as the search for generalizing truth andsubsequent objetivation of the human knowledge, wind up being hegemonicin the ways that we deal with the contingencies of contemporary life. Forthis, the author intends to search in the thought of Jean-Paul Sartreelements to understand this phenomenon and also to think about a proposalof psychological knowledge that escape from the formatting of meaningdeveloped by the culture of the expertism. If man can't be reduced to asingle appearance, ñor a mere universalism, it would be a mistakepsychologist to reduce life and human emotions into generalizedexplanations or subjectivist theories. This "universal-unique" dialetic theorywould be seen, therefore, as a rich tool which Sartre can give us in order toreview the question of psychological knowledge at the present time.Keywords: Psychological knowledge, Expertism, Jean-Paul Sartre.

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicología Rio de Janeiro v. 12 n. 3 p. 767-791 2012

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Michelle Thieme de Carvalho MouraUm olhar Sartriano para o especialismo "psi" contemporáneo

1 Introdugao

Em uma verdadeira revolugáo educacional, oCentro de Psicología Positiva da Universidade da

Pensilvánia(EUA), sustenta gue os principios para abusca de uma vida melhor podem e devem ser

ensinados ñas escolas. [...] Para o criador dapsicología positiva, citado na reportagem de capa

de ÉPOCA na semana passada, nunca houve tantarigueza material e táo pouca satisfagáo emocional:

"Sou inteiramente a favor do bom desempenho, dosucesso, da disciplina e da alfabetizagáo literaria e

numérica. Mas imagine se as escolas pudessem,além disso, oferecer a seus alunos os principios e

as limitagóes para a busca do bem-estar. Teríamosindividuos e familias mais felizes, melhores

instituigóes e um mundo melhor", prescreveSeligman. (REVISTA ÉPOCA, 2011)

Eis o gue pensei: para gue o mais banal dosacontecimentos se torne uma aventura, é preciso e

basta gue nos ponhamos a narrá-lo. É isso gueilude as pessoas: um homem é sempre um

narrador de historias, vive rodeado por suashistorias e pelas historias dos outros, vé tudo ogue Ihe acontece através délas; e procura viver

sua vida como se a narrasse. Mas é precisoescolher: viver ou narrar. (SARTRE, p. 56, 2006)

Os dois trechos ácima representam duas formas bem distintas deentender a existencia humana, e foram escolhidos como ponto departida para este trabalho. Na primeira citagáo temos um trecho deuma reportagem pautada na teoría da Psicología Positiva, assuntobastante recurrente ñas reportagens gue envolvem o saber "psi"veiculadas nos meios de comunicagáo de massa. Na segunda citagáo,temos um trecho do romance A náusea (2006), no gual Sartre, aocolocar em cena o dilema metafórico do "viver ou narrar", conseguetrazer elementos fundamentáis para repensarmos o saber dosespecialistas gue, por vezes, acreditam possuir o dominio absolutodas narrativas sobre o homem. Nessa passagem específica Sartredefende a ideia de gue, guando narramos uma historia, acabamospor nos afastar da existencia tal como ela se dá. Assim, narrar umavida, ou um simples fato, se tornaría algo muito mais confortável dogue vivé-lo, porgue guando narramos há a atribuigao do sentido guegueremos, nao deixamos margens para as ambiguidades e angustiaspróprias das contingencias da vida.

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Tal fenómeno do narrar, assim como do consequente afastamentoda vida concreta, nao seria um "sintoma" bem típico dos dias dehoje? Sao oferecidas urna multiplicidade de produtos no sentido dohomem negar sua "náusea", sua condigáo de abertura, de incerteza.O que a reportagem da primeira citagáo pretende é justamenteoferecer mais urna dessas sedugoes modernas ao prometer ensinarna sala de aula, a partir de teorías e fórmulas, como ter urna vidafeliz. Será isso possível? Existirá urna ciencia psicológica que nosensine entáo a lidar cotidianamente com dilemas do ámbito daimprecisáo e da indefinigáo? Como definir de forma universal os tais"principios e as limitagóes para a busca do bem-estar" que areportagem fala? Nesse sentido, o discurso da ciencia psicológica,que insiste desde os tempos modernos em oferecer sentidos objetivospara a condigáo nauseante do homem, poderia ser encarado comoum desses produtos, os quais "narram" abstratamente as existenciashumanas ao mesmo tempo em que perdem a particularidade dovivido.O desenvolvimento de urna Psicología Experimental, como apontaHusserl (1911/ 1952), abriu espago para que os fenómenos psíquicosfossem considerados como substancias naturais passíveis demensuragáo, localizados no tempo e no espago. A valorizagáo doestudo "científico" da consciéncia, tanto pela psicología quanto pelafilosofía, faz com que a psicología científica, neste caso positivista,seja entáo elevada á ciencia básica da filosofía e de todos os outroscampos de conhecimento, identificando assim o sujeito doconhecimento ao sujeito psicológico.Portanto, desde o surgimento da Psicología científica até os dias dehoje, vemos o fortalecimento continuo de um determinado tipo desaber "psi", responsável por multiplicar as tentativas de transformara imprevisibilidade e o estranhamento, caracterizadores do modo deser humano. Saberes voltados para objetos de pesquisa,dicotomizados do resto do mundo e fechados em si mesmos; atravésde medicamentos normatizadores, de comercializagáo dediagnósticos, de mapeamentos cerebrais desenvolvido pelos avangosda neurociéncia, da literatura de autoajuda etc. Com o passar dotempo mudou-se as nomenclaturas e os meios, mas o homemmoderno parece continuar aprimorando sua variedade grande de"antídotos", buscando lidar, de forma mais objetiva, com aquilo quemuitas vezes Ihe assusta por fugir dos parámetros técnicos deprecisáo, nos quais está culturalmente enredado.Assim, esse trabalho busca discutir como as ideias que fundamentamo especialismo "psi" de redugóes cientificistas, tais como: a busca porverdades únicas e objetivas, o culto á previsáo e a consequentesubstancializagáo dos objetos das ciencias humanas, acabam sendohegemónicos na constituigáo das formas com que lidamos com ascontingencias da vida na contemporaneidade.

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Para reafirmar a possibilidade de lidar com o conhecimentopsicológico, a partir da abertura de sentidos e nao a partir de umarestrigáo, pretendo buscar na ontologia fenomenológica de Jean-PaulSartre elementos para repensar uma proposta de saber que inclua apossibilidade da abertura, e que fuja dos ideáis cientificistas, os quaistanto justificam e legitimam a necessidade dos especialistas "psi" nomundo contemporáneo.

2 A constituigao da Psicologia enquanto saber científico epossíveis desdobramentos na atualidade

O poeta e pensador do Romantismo alemáo Wolfgang Goethechamava de o "espirito do tempo" (Zeitgeist) um conjunto deopinióes que dominam um momento específico da historia e que,independentemente da percepgáo humana, atravessam opensamento de todos os que vivem num dado contexto. VillegasMontiel (1996) também aponta para a importancia dessa ideia deZeitgeist, referindo-se a ela como "manifestagóes compartilhadasquanto ao estilo, forma de vida, ideias e posigáo espiritual de umaépoca determinada". (MONTIEL, 1996, p. 94 apud EWALD, 2012).Isto significa dizer, completa Ewald (2012), que há um tecidocultural, uma trama de conceitos que circulam entre nos de variasmaneiras e que é compartilhado pela sociedade e época da qualfalamos. Tal "tecido cultural" parece ser fundamental paraentendermos melhor a constituigao da Psicologia, seus saberes esistemas e sua busca por parámetros cientificistas que se perpetuamaté os dias de hoje. Pensando nisso, talvez seria interessante lembrarcomo o Zeitgeist dos séculos XVII a XIX pode estar relacionado com aconstituigao de certas características de um tipo de Psicologia que ogrande público demanda e consomé nos dias de hoje.Sartre(1978c), em seu texto "A imaginagáo", publicado na década de1930, coloca em cena a discussáo sobre o que é a "imagem" e a"imaginagáo", e ao mesmo tempo mostra como as concepgóes doséculo XVII, incluindo ai a concepgáo cartesiana, permanecem nosprincipios da Psicologia até o século XX, período em que escreveu otexto. Através do que chama de metafísica ingenua da imagem,Sartre (1978c, p.36) aponta para a tendencia dos psicólogos de fazerda imagem uma copia da coisa, onde a folha de papel "em imagem" éencarada como provida das mesmas qualidades que a folha "empessoa". Nesse caso, a imagem existiría em si, aparecería edesaparecería a seu criterio, e nao ao criterio da consciéncia.No entanto, na concepgáo sartriana, a imagem nao poderia serencarada como uma coisa que existiría por si mesma. A imagem,para ele, dependería da relagáo de sentido que estabelecemos comela, e essa diferenga para Sartre é fundamental.

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Apesar da diversidade de teorías e pontos de vista, Sartre (1978c),aponta que tal ontologia ingenua da imagem, pensada pelosmetafísicos dos séculos XVII e XVIII, permanece como fio condutorda constituigáo de grande parte da Psicología:

[...] É, no entanto, essa ontologia ingenua da imagem quevamos encontrar, no estado de postulado mais ou menosimplícito, em todos os psicólogos que estudaram a questao.Todos ou quase todos fizeram a confusao assinalada maisácima entre identidade de esséncia e identidade deexistencia. Todos construíram a teoria da imagem a priori.Sem dúvida, urna leitura superficial dos inumeráveisescritos que foram consagrados, de sessenta anos paracá, ao problema da imagem parece revelar urnaextraordinaria diversidade de pontos de vista.Desejaríamos mostrar que se pode encontrar, sob essadiversidade, urna teoria única. Essa teoria, que decorreprimeiramente da ontologia ingenua, foi aperfeicoadasob a influencia de diversas preocupacóes estranhas áquestao e legada aos psicólogos contemporáneos pelosgrandes metafísicos dos séculos XVII e XVIII .Descartes, Leibniz, Hume tém urna mesma concepgao daimagem. Só deixam de concordar quando se trata dedeterminar as relagoes entre imagem e pensamento.(SARTRE, 1978c, p. 37, grifo nosso)

Howard Becker (2009), um conhecido cientista social contemporáneo,aponta para a importancia de se entender as consequéncias dopredominio de determinadas visóes de homem e de realidade. Emseu livro Falando da sociedade, ele mostra que todas as formas derepresentagáo da realidade emergem em contextos específicos quelimitam, por exemplo, o que pode e o que nao pode ser pesquisado.Ele atenta entáo para alguns problemas interessantes que daídecorrem:

Como as necessidades e práticas de organizagoes moldamnossas descrigoes e análises (vamos chamá-las derepresentagoes) da realidade social? Como as pessoas queusam essas representagoes chegam a defini-las comoadequadas? Essas questoes tém urna relagao com questoestradicionais sobre saber e contar em ciencia. (BECKER, 2009,p. 15-16)

Como nao é possível urna determinada visáo de homem esgotar oconhecimento sobre a realidade, o autor levanta algunsquestionamentos: "Quem faz a selegáo das formas aceitáveis de seanalisar urna realidade social? Quem considera essa selegáo razoávele aceitavel? Quem se queixa déla? Que criterios as pessoas aplicamquando fazem esses julgamentos?" (BECKER, 2009, p.32) Atravésdesse raciocinio, a visáo de homem passivel de ser estudada apenas

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por parámetros físicos, quantitativos e objetivos, visáo essa quepautará o surgimento da Psicología, passa a nao ser mais um fatoneutro que guarda urna verdade em si. Como na ciencia nao há fatospuros sem a existencia de teorías pré-existentes (KHUN, 1992), seriaum erro acreditar ñas existencia de urna única verdade que dé contade toda realidade. Qualquer meio de análise, ressalta Becker (2009),excluí grande parte do fenómeno. "Mesmo os meios que parecemmais abrangentes que as palavras e os números abstratos de que oscientistas sociais costumam langar máo, deixam praticamente tudode fora." (BECKER, 2009, p.32)No entanto, os métodos da física clássica parecem ter sido aceitoscomo fatos que abarcam toda a realidade, contribuindo fortementepara a ideia de urna Psicología enunciadora de leis causáis equantitativas. Sartre (1978c), ainda em seu texto A imaginagáo,ressalta essa ideia apontando que é essa ciencia deterministamecanicista que conquista a geragáo de 1850, época do surgimentodas bases da Psicología. Ele usa a expressáo espirito de análise paracaracterizar o mecanicismo que tendería a reduzir um sistema a seuselementos e aceitaría implícitamente o postulado de que estespermanecem rigorosamente idénticos, quer estejam em estado¡solado ou em combinagáo. Assim, Sartre prossegue alertando quepara tal espirito de análise, "tomar urna atitude científica em face deum objeto qualquer é postular, antes de qualquer investigagáo, queesse objeto é urna combinagáo de invariáveis inertes que mantémentre si relagóes externas". (SARTRE, 1978c, p.45). Comoconsequéncia, concluí Sartre, todo esforgo para constituir urnaPsicología científica implicaría em urna tentativa de converter acomplexidade psíquica em um mecanismo:

Por esse motivo, a psicología torna-se urna ciencia dos fatos.Pode-se falar com precisao e com pormenores de urnasensagao, de urna ideia, de urna lembranga, de urnaprevisao, assim como de urna vibragao, de um movimentofísico. [...] Nosso grande problema é saber quais sao esseselementos, como nascem, de que maneiras e em quecondigoes se combinam e quais os efeitos constantes dascombinagoes assim formadas. [...] É assim que Taineconsidera a constituigao de urna psicología científica noprefacio de seu livro l'intelligence, publicado em 1871.(SARTRE, 1978c, p. 46)

Dessa forma, um dos principáis desafios e problemas da Psicologíaem face da sua condigáo científica seria a tentativa de conciliar aobjetividade com a subjetividade. Estaría hoje a dimensáoimprevisível caracterizadora da vida humana sendo silenciada ereduzida a parámetros objetivos de mensuragáo e controle? Talpreocupagáo também é recurrente ñas reflexóes da epistemología

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crítica de Japiassu, que em sua Introdugáo a Epistemología daPsicología (1975) questiona qual o lugar ocupado pela Psicología nomundo atual. Japiassu nao acredita que a ciencia psicológica possaconstituir-se excluindo de seu campo de investigagao a dimensáo naomensurável do homem, a nao ser que se construa como urna cienciaque nada pode dizer sobre a realidade humana.Para ele, se a ciencia psicológica, para se afirmar, vé-se obrigada arecorrer a um saber científico que se desenrola num dominio onde averdade só pode falar do lado das coisas, nao é de estranhar que,para obter a verdade do sujeito que interroga as coisas, sejanecessário, antes, transformá-lo numa coisa que responde. Assim,nao teria a Psicología, em sua busca pela objetividade desmedida,embarcado nessa "grande torrente técnico-científica que sempre maisconquista e domina o mundo e o homem, mas também sempre maisse esquecendo do fenómeno humano?" (JAPIASSU, 1975, p. 139).De acordó com alguns pensadores, que refletem o cenário atual,entre eles Gilíes Lipovetsky (2004) e Nicole Aubert (2004), aatualidade seria melhor caracterizada por um excesso demodernidade, alicergado em máximas que giram em torno domercado, da eficiencia técnica e do individuo. Tal período para essesautores é conhecido como hipermodernidade: Um contexto queestaría favorecendo urna sociedade liberal, fanática pelo desempenhoindividual, excesso, urgencia, hiperfuncionalidade, movimento, fluideze flexibilidade.Dessa forma, um paradoxo chama a atengáo nesse cenário, visto queao mesmo tempo que se tem a pretensáo de que o homem tudopossa alcangar através de seu esforgo individual e recursos internos aserem explorados, cria-se a necessidade dos especialistas e seusprocedimentos técnicos. Ñas mais variadas esferas sociais ouvimosincessantemente expressóes como qualidade total, superagáo doslimites e dos obstáculos, auto realizagáo, mas o que se tem produzidosao sujeitos cada vez mais necessitados de cursos, manuais deautoajuda, métodos, dicas, técnicas contra o estresse, medicagóes,diagnósticos, etc. Deparamo-nos assim com o paradoxo do sujeitocontemporáneo, cuja soberanía passa a variar de acordó com oconsumo ou nao de urna técnica.Em seu texto A questao da técnica (2002), Heidegger tematiza aimportancia da abertura de horizontes ao questionar a técnicaenquanto o modo de desvelamento preponderante na épocamoderna. Para o filósofo, a técnica, tal como se apresenta para nos, éapenas um dos modos históricos possíveis de desvelamento desentido e nao o único, como muito se propaga na cultura moderna.Tal desejo por controle traz também o culto á fragmentagáo. Osespecialistas passam entáo a assumir cada vez mais um olharfragmentado sobre a vida. Sobre essa busca pela fragmentagáo naPsicología contemporánea, Schultz e Schultz (1975) ressaltam que as

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tentativas mais recentes de teorizagáo da psicología americana saoconsideravelmente mais circunscritas e restritas, em que o termo"teoría miniatural" ter passado a descrever as teorías de hoje.Algumas dessas teorías tratam de urna única área, comoaprendizagem, motivagáo ou personalidade. Contudo, a maioria délasocupa-se de fungóes ou processos ainda mais restritos e tentamexplicar urna porgáo muito pequeña do comportamento, reiterandoassim o caráter de fragmentagáo do homem e do saber quefundamenta a nogáo de especialismo da Psicología atual.Assim, a ideia de "Eu" substancializado, que a Psicología moderna

defende para se adequar aos parámetros da ciencia, possibilita adicotomía eu-mundo e pauta a ideia dos especialistas, os quaisacreditam possuir a verdade sobre a consciéncia.No meio desse cenário contemporáneo, nao é difícil compreendercomo o saber do especialista "psi", que oferece respostas objetivas eindividuáis, além de explicagóes preditivas e universais, passa a sercada vez mais demandado.No entanto, considero fundamental entender tal cenário r comourna influencia, porque a palavra influencia acaba causando urnadicotomía sujeito-objeto. Compartilho, portanto, da ideia de Sartre(1978a), quando aponta que o universal e singular estáointrínsecamente ligados e se afetam mutuamente, de formaindistinta e inseparável. Assim, poderíamos dizer que tal atmosferada técnica estaría propiciando o surgimento da demanda por este tipode saber cientificista; e ao mesmo tempo os sujeitos singularesconcretos que escolhem tal tipo de saber, estariam ajudando aconstruir e perpetuar tal cenário, perpetuando assim urna constantetensáo dialética, onde nao há espagos para dicotomías.

3 O especialismo "psi" de reducóes cientificistas e suasmanifestacóes contemporáneas.

"Será que compete somente á ciencia nos explicar e nos dizer o quedevemos fazer, o que devemos crer, aquilo que é relevante ou semimportancia, o que é bom ou mau, justo ou injusto, verdadeiro oufalso?", nos pergunta Japiassu (1991, p.8). "Claro que nao. Mas emtodos esses dominios ela intervertí.", responde ele mesmo a suapergunta. Essa intervengáo nem sempre acontecería enquanto saberoficial, mas enquanto instancia cultural, espontáneamentereconhecida por todos nos. É justamente tal reconhecimento quepossivelmente ajuda a garantir o sucesso desse tipo de saber nomodo de vida contemporáneo.Japiassu (1991) ainda lembra que devido ao prestigio cultural quegoza a ciencia, nao sao poucas as ideias que sao fácilmente acolhidaspelo simples fato de serem produzidas por um "dentista" ou

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"especialista". "Ideias semelhantes, vindas de um filósofo ou de umliterato, nao teriam o mesmo peso, mas quando sao acompanhadasde alguma exposigáo científica, ganham logo urna dignidadeespecial." (1991, p. 12)Tal realidade fica ainda mais evidente quando analisamos a Psicologíaque chega á sociedade a partir dos meios de comunicagáo de massa.Algumas constatagoes de urna pesquisa realizada por mim, no cursode Mestrado, ajudam a exemplificar perfeitamente esta situagáo.Nessa pesquisa, realizei urna análise das reportagens que retratamquestóes "psi", publicadas nos anos 2009 e 2010, ñas revistas Épocae Veja. A escolha por essas duas revistas se deu por serem as demaior circulagáo no Rio de Janeiro segundo dados divulgados peloIVC1. Optei por restringir a pesquisa aos anos de 2009 e 2010 porqueeles refletem bem o cenário contemporáneo, o qual me proponho ainvestigar. Como as revistas possuem publicagáo semanal, observeique o volume de reportagens era grande e a repetigáo do queaparecía era constante, por isso restringí em dois anos o período dasreportagens analisadas. Na revista Época as reportagens referentes aquestóes "psi" se concentraram ñas segóes "Saúde & bem estar","Sociedade" ou "Ciencia e tecnología". Já na revista Veja asreportagens analisadas estáo mais vinculadas á segáo de "Saúde" e ade "comportamento". Importante ressaltar que, tanto na Veja quantona Época, essas sessóes sao aleatorias, nao apresentando assimregularidade nem urna periodicidade fixa.Durante os dois anos de publicagáo analisados, tanto a Época quantoa Veja publicaram 101 edigóes cada. Do total das 202 edigóes, 86reportagens se referiam a questóes "psi". Dentro dessas 86reportagens analisadas, 49 apresentaram em seus conteúdos opredominio de urna visáo cientificista, pautada principalmente emparámetros de verdades generalizantes. Já as outras 37 reportagensapresentaram análises mais plurais, porém na maioria das vezesessas reportagens apareceram sem o aprofundamento que as maiscientificistas tinham. Assim, há reportagens que até levam em contaanálises mais plurais, envolvendo, por exemplo, a articulagáo detemas da Psicología com estudiosos da Filosofía, Sociología eAntropología, mas quando se escolhe abordar mais detalhadamenteurna perspectiva, parece ser o ponto de vista mais cientificista oescolhido. A impressáo que fica, portanto, é que ciencias menosobjetivas nao sao vistas como passíveis de serem aprofundadasnesse tipo de publicagáo em massa.Das 49 reportagens com o enfoque mais cientificista, duas tendenciaschamaram a atengáo e foram predominantes: a frequéncia com queaparecem estudos derivados de pesquisas experimentáis (20reportagens), e também a substancializagáo da existencia advindados avangos da neurociéncia e seus saberes derivados (27reportagens), sendo que em urna mesma reportagem muitas vezes

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há a combinagáo de estudos da neurociéncia e o uso de pesquisasexperimentáis dos mais variados temas. Outro elemento importanteque pode ser observado é o de testes para medir e avahar algumaspecto emocional (5 reportagens) e a publicagáo de "guias" oumanuais com orientagoes dadas por especialistas (10 reportagens).A tónica comum das pesquisas pautadas em métodos experimentáisque aparecem com frequéncia ñas reportagens é o estabelecimentode grupos de controle e tentativas de criagáo de previsóes e relagóescausáis entre variáveis. Mesmo dentro de pesquisas que envolvemtemáticas sociais, tais métodos experimentáis aparecem com grandeforga e geralmente sao descritos de forma detalhada através degráficos ou tabelas. O que fica bastante claro nessas reportagens queusam tais métodos experimentáis é, portanto, o desprezo pelosingular e pelo concreto, a tentativa de dar respostas generalistas e ouso do "discurso competente" (CHAUÍ, 2006) da ciencia paralegitimar a informagáo veiculada.A outra tendencia que chama atengáo ñas análises feitas é opredominio de reportagens que se utilizam de mapeamentoscerebrais para explicar os estados emocionáis e comportamentos.Assim, esquemas detalhados explicando o funcionamento do cerebroñas mais diversas situagóes da vida também permeiam os conteudos,indicando urna maciga substancializagáo da existencia, o que reitera econfirma o que já descrevi anteriormente como sendo um grandefenómeno contemporáneo.Benilton Bezerra e Francisco Ortega (2006) sao autores que tém

desenvolvido urna serie de pesquisas sobre a importancia dada aocerebro em nossa sociedade. Eles mostram que o crescimento dasneurociéncias, a difusáo das neuro-imagens por diversas áreas doconhecimento e sua crescente popularizagáo pela mídia tém reforgadocada vez urna nova figura antropológica, que eles chamam desujeito-cerebral. Para eles, a emergencia do sujeito cerebral nao éurna consequéncia necessária do progresso neurocientífico, mas sim aconjugagáo deste com transformagóes antropológicas e socioculturaisde maior amplitude.Esses autores chegam á conclusáo, portanto, que certascaracterísticas estruturais da sociedade atual estariam produzindo noimaginario social urna crescente percepgáo do cerebro como detentordas propriedades e autor das agóes que definem o que é o serhumano. Conforme afirmam Ortega e Vidal (2007, p. 258), desde oséculo XIX, o cerebro tem funcionado como um mediador, mas apartir das últimas décadas ele se tornou um verdadeiro ator social. Épor isso que tais autores encaram as neurociéncias como "incrustadasno tecido social, mais do que meramente como tendo 'implicagóessociais' ou um 'impacto' na sociedade".Tais mudangas no tecido social foram decisivas dentro da própriaPsicología. Assim, movimentos como Positivismo, empirismo e

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materialismo converteram-se, com o tempo, nos alicerces filosóficosda Psicología tida como científica. O sucesso atual de vertentes comoo da neuropsicologia, portanto, estaría ainda fortemente pautado navisáo de homem do empirismo. O Cerebro e a consciéncia sao cadavez mais empíricos e passíveis de serem analisados, manipuladospela experiencia e por estímulos externos. Sao, portanto, objetoscompreendidos com urna materialidade dada no tempo e no espago,como qualquer outro objeto das ciencias exatas.Um dado interessante apareceu na Revista Veja e ajuda a reiterarainda mais os questionamentos aqui levantados: De todas as edigoesanalisadas da Revista Veja, urna segáo intitulada específicamente"Psicología" apareceu duas vezes, urna em 2009 e outra em 2010.Urna dessas reportagens (SALVADOR, 2009) pretende explicar o queleva as pessoas a perderem o controle mais fácilmente quando estáono meio da multidáo, e apesar da sessáo ser de Psicología, o únicoentrevistado é o Psiquiatra Marcio Bernik, da USP, que explica asituagáo a partir de fundamentos neurocientíficos: "Quando hápercepgáo de risco ¡mínente, ocorre urna fuga caótica. A atividadecerebral nessa situagáo ocorre longe do córtex, ou seja, nao hápensamento. É urna fuga desorganizada, primitiva." (SALVADOR,2009, p.156) Já a outra reportagem é baseada em urna entrevistacom o psicólogo inglés Jonh Leach, especialista em neurociéncia, quea partir de experimentos e de análises de ressonáncia magnética docerebro, busca entender como as pessoas reagem de formas táodiferentes quando correm risco de vida (PEREIRA, 2009). A maneiracomo a reportagem aborda o assunto é bastante reducionista,parecendo se utilizar da entrevista com o psicólogo para explicar ereduzir o que acontece com o homem diante de situagóes de risco devida a urna serie de alteragóes cerebrais que levam a perda dacapacidade cognitiva, colocada como inexorável em cerca de 80 %das pessoas.

É possível dizer que grande parte dos dados retirados das análisesfeitas aponta mais urna vez para a tendencia em se reduzir acomplexidade humana a teorías objetivas, universais, ¡mediatas efácilmente assimiláveis, o que nos remete justamente a algunsautores e pensadores do cenário sócio-histórico discutidos jáapontados. Assim, acredito ser de fundamental importancia pensartal Psicología que chega ao grande público através dessas revistassempre relacionada ao horizonte calculante atual, onde a técnicamoderna e seu sentido de funcionalidade, controle, imediatismo einstantaneidade vem impregnando a forma como nos relacionamoscom o mundo e encobrindo ¡numeras outras possibilidades dedesvelamento do homem.Em seu texto Questao de Método2 (1978a), Sartre nos ofereceferramentas para tal compreensáo ao apontar para a importancia daciencia "situar" os fenómenos que investiga, fazendo com que o

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contexto que envolva o fenómeno seja objeto primordial de análise.Se o homem nao pode ser reduzido a uma aparigáo individual, nem aum mero universalismo, seria um grande equívoco os psicólogosreduzirem as contingencias da vida e as emogóes humanas aexplicagóes generalizantes.Dessa forma, a vivencia do cenário atual traz com ela uma atmosfera

de busca por controle, técnica e fragmentagáo da vida, quecaracterizaría alguns dos determinantes universais que de algumaforma perpassam a forma como cada sujeito concreto se escolhe nomundo. E quando levamos em consideragáo, por exemplo, a buscaobservada no cenário atual por um saber "psi" cientificista, que semanifesta nao só ñas ciencias, mas também no modo como cadahomem articula seu mundo, fica mais fácil compreendermos como opúblico que consomé e demanda tal tipo de saber acaba ajudando aconstruir e perpetuar tal cenário.Assim, os sujeitos singulares concretos que escolhem se restringir atal busca por referenciais científicos de verdade estáo de algumaforma ajudando a escolher também a atmosfera maior em que estáoinseridos, mostrando assim a eterna tensáo que o movimentoprogressivo-regressivo implica. Dessa maneira, Sartre desconstróitodas as compreensóes psicológicas em evidencia até entáo,colocando em dúvida tanto a perspectiva subjetivista, que acreditaem um "mundo interno" portador de uma dinámica própria, tanto aconcepgáo empírica, que acredita na influencia unilateral do contextosócio-histórico. Por isso Sartre ressalta o tempo inteiro em sua obra anecessidade de trabalharmos com o homem "concreto" e em"situagáo" impossível de ser abarcado totalmente pela objetividadeproposta pelo saber psicológico pautado em verdades únicas, e é issoque pretendo mostrar de forma mais detalhada a seguir.

4 A fuga do "Nada" e a busca pelo "Ser": Os saberes "psi" embusca de uma objetividade (des)nauseante?

Pensando em uma possivel restrigao de sentido proporcionada por talmodo "técnico-científico" de lidar com o homem, filósofos daperspectiva fenomenológico-existencial apropriam-se dosfundamentos da fenomenología, proposta por Husserl, e passam atentar olhar para o existir humano de uma forma diferente dahabitual. Jean-Paul Sartre é o autor aqui escolhido como base parapensar a possibilidade de um saber psicológico que nao pretendaesgotar o homem em um arcabougo teórico técnico objetivante euniversalizante.Sartre problematizou a disciplina psicológica desde seusfundamentos. No entanto, entre os próprios psicólogos, ascontribuigóes de Sartre á Psicología parecem ser menos conhecidas.

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Em geral estudam nele certas temáticas, entendidas mais comocontribuigoes filosóficas de Sartre á área, como ressalta Schneider(2002). Poucos, porém, valorizam sua relevancia na problematizagáoda disciplina psicológica, e este é um dos objetivos deste artigo.Para tornar mais clara a importancia da abertura de sentidosproporcionada pela fenomenología, Ricardo Jardim (1994) cita umexemplo interessante, que ajuda a mostrar a importancia delevarmos em conta a pluralidade de sentidos nos saberes sobre ohomem. No exemplo ele pede que imaginemos urna raiz grossa decastanheiro e urna crianga pequeña que nunca tenha visto nadaparecido. A experiencia dessa crianga com a raiz seduz e horroriza, echeia de espanto a crianga interrogará "O que é isto?". Em seuempenho de introduzir seu filho em nosso mundo impregnado dediscursos técnicos e científicos sobre a realidade e a vida, é provávelque o pai responda alguma coisa do tipo: "Trata-se de urna bombaaspirante que serve para alimentar a planta e deixá-la presa ao solo."(JARDIM,1994, p.34)Jardim (1994) aponta que a "bomba aspirante" em sua objetividade efuncionalidade, passa a ser encarada por nos como únicapossibilidade de aparigáo daquele fenómeno, fazendo-nos esquecerque para um poeta, um escultor ou um lenhador aquela raizpossivelmente seria vista e analisada de outra forma. Para afenomenología, isso que é válido para o exemplo dado da raiz, éválido para toda a realidade, inclusive para a Psicología. Quandoperguntamos ao grande público "O que é a Psicología?" vemos que adefinigáo cientificista e objetivista nao tem sido interpretada comoapenas urna visada possível de desvelamento do fenómeno humano,mas sim como a única interpretagáo legítima, na grande maioria dasvezes.Outra questáo fundamental da fenomenología é o resgate do singular,do vivido, sem ao mesmo tempo abandonar o universal, articulagáoessa que Sartre também compartilha. Descartes em suas Meditagóes(1641/1991b) propóe urna especie de abandono dos afetos eemogóes com o intuito de manter a ideia de urna suposta "razáopura" na obtengáo do conhecimento. Dessa maneira, podemos dizerque Descartes abandona o singular para defender o universal e omensurável, que se manifesta, por exemplo, em leis gerais dopsiquismo que nos ajudam a entender sucessos atuais como osobservados na neurociéncia, nos especialistas do detalhe, nosdiagnósticos, por fim, em toda urna ciencia que busca na biologíaelementos objetivos e práticos para estudar o aparelho psíquico.Husserl em suas Meditagóes cartesianas (2001) compreende que oabandono do conhecimento sensível feito por Descartes e oconsequente abandono da dimensáo irregular e singular, gera umabandono da própria existencia. Por outro lado, o abandono douniversal possivelmente faria com que caíssemos em um

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subjetivismo. Husserl retoma entáo o singular através da ideia deconsciéncia como fluxo, como ato, que jamáis se materializa. Dessamaneira, articular o singular com o universal é o grande desafio daideia de intencionalidade que funda a fenomenología.Assim, é possível afirmarmos que Sartre se apropria de dois pontos

fundamentáis da fenomenología de Husserl: a necessidade de rompercom verdades pré-estabelecidas indo "as coisas mesmas", tal comoelas se apresentam e se desvelam á consciéncia, e o consequenterompimento com as dicotomías até entáo presentes na Psicologíacomo interior/exterior, poténcia/ato, aparéncia/esséncia, rompimentoesse pautado na nogáo de consciéncia intencional, como é possívelobservar no seguinte trecho:

[...] Eis-nos libertados [...]. Libertados da "vida interior" [...]afinal de contas tudo está fora, tudo, até nos mesmos: fora,no mundo, entre os outros. Nao é em sabe-se lá qualretraimento que nos descubriremos: é na estrada, na cidade,no meio da multidao, coisas entre as coisas, homem entre oshomens (2005b, p. 57).

A ideia que abre a Transcendencia do ego, em 1934, de que "Todaconsciéncia é consciéncia de alguma coisa" é um ponto da obra deHusserl que Sartre se apropria. Sartre, porém, dará a essa ideia umoutro alcance, criticando Husserl por esse colocar o eu dentro daconsciéncia, maniendo assim a ideia de interioridade. Para Sartre osujeito é o próprio visar da coisa(?), o fato de se projetar para ela,acreditando em um eu fora da consciéncia.Dessa forma, na introdugáo do O Ser e o nada (1943/ 2005a), Sartrecontinua a aprimorar sua crítica a Husserl, e diz que Husserl deu umgrande passo colocando a consciéncia voltada para o objeto com suaproposta de redugáo fenomenológica.Porém, posteriormente com a tentativa de urna redugáotranscendental, Husserl teria caído na ideia que sua própria nogáo deintencionalidade criticava no inicio. Para tentar resolver estaquestáo,Sartre admite que nao temos como ter acesso ao ser,apenas ao seu fenómeno. Para Sartre, o Ser nao se esgota em umdeterminado aparecer. É preciso entáo que haja aquele que aparece(Em-si) e aquele para qual o objeto aparece (Para-si).O cogito pré-reflexivo seria outra nogáo que Sartre (2005a) cria, urnaespecie de unidade psicofísica que nao pode ser confundido com aideia de "Eu". O cogito é entáo urna condigáo, um fundamento quepermite tanto a consciéncia irreflexiva (que tem o mundo exteriorcomo objeto), quanto a reflexiva (que tem a consciéncia irreflexivacomo próprio objeto, fazendo surgir a ideia de "Eu"). Dessa forma,Sartre (1994a) compreende que estabelecemos com o "Eu" a mesmarelagáo que estabelecemos com os outros objetos, sendo esse "Eu"apenas urna possibilidade. Por outro lado será esse "Eu" o recurso

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último da consciéncia se fechar, pois é ele que traz a ilusáo deinterioridade e de coeréncia que o homem tanto busca na tentativasempre frustrante de completar o vazio constituinte do Para-si.Referindo-se á ideia de ilusáo de interioridade, Lévy (2001, p.215)diz: "Pode-se, para ter paz, estabelecer urna continuidade entre assubjetivagoes e chamá-la de caráter ou temperamento. Urna coisa,porém, é fazer como se essa continuidade existisse, outra é acreditare emprestar-1 he urna densidade." (LÉVY, 2001, p. 215). Tal nogáonos sugere entáo que, em busca de certezas confortantes, esta buscaexcessiva e indiscriminada da Psicología por referenciais atestadoscomo "científicos" poderia também refletir urna desesperadora efrustrante tentativa de fuga da condigáo de abertura proporcionadapelo para-si. Os criterios científicos de verdade parecem de fatoacreditar e emprestar urna densidade a essa continuidade entre assubjetivagóes e é partindo da crenga nessa certeza que o saberpsicológico de redugóes cientificistas acredita se bastar em si mesmo.Sartre na Transcendencia do ego (1994a) ressalta que o "eu" do "eupensó" nao é necessariamente aquele que pensa, visto que o "eu"para ele está fora da consciéncia reflexiva, o "eu", portanto, viraobjeto, sendo pura relagáo. Assim, Sartre critica tanto o Eu material(Moi) formulado pelos psicólogos como polo emanador de desejos,quanto o Eu formal (Je) da filosofía de Kant que Husserl teriaresgatado em Ideias relativas a urna fenomenología pura e urnafilosofía fenomenológica (1913). Sartre aponta que Husserl, em suatentativa de redugáo transcendental, teria repetido Kant ao sugerirum Eu unificador e individualizante que deveria acompanhar todos ospensamentos. De acordó com Sartre (1994a), esse seria um dosgrandes erros de Husserl, o erro de resgatar um eu "transcendental",o eu do "eu pensó".

Dessa maneira, Sartre (1994a) defende a ideia de que Husserl, comsua nogáo de um eu unificador, acaba esquecendo de ir até ofenómeno. Para Sartre, o objeto é transcendente as consciéncias queo apreendem e é no próprio objeto que se encontra a unidade. Assim,nao poderíamos deixar que a realidade dependa apenas dotestemunho do sujeito, temos que voltar sempre ao objeto, "ascoisas mesmas" que Husserl tanto defendeu inicialmente com suanogáo de intencionalidade e epoché. Para isso, Sartre utiliza dométodo progressivo-regressivo, defendendo ao mesmo tempo aimportancia da epoché, da singularidade da aparigáo dos fenómenos,mas ao mesmo tempo levando em conta o contexto histórico-socialem que tal fenómeno se dá.Entretanto, Sartre acreditava que o marxismo dicotomizava ouniversal do singular ao priorizar os determinantes histórico-político-sociais. Para Sartre, apenas a historia humana é dialética, fazendocríticas a perspectiva de Engels — que concebía a existencia de urnadialética da Natureza — e a de Marx — que, segundo Sartre, limitava-

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se a verificar o processo dialético na Historia. Assim, urna importantecrítica que Sartre langa contra o marxismo é de ter invertido arelagáo dialética do homem e sua historia porque para ele semhomens vivos, nao há historia. (QUINTILIANO, 2008). E é por issoque Sartre tanto defendeu, principalmente na fase final de seupensamento, que

O essencial nao é o que foi feito do homem, mas o que elefaz daquilo que fizeram dele. O que foi feito dele sao asestruturas, os conjuntos significantes estudados pelasciencias humanas. O que ele faz é a própria historia, asuperagao real dessas estruturas numa praxis totalizadora.(Entrevista de Sartre organizada por PINGAUD, 1968, p.117)

Conforme afirma Quintiliano (2008), a nogáo de praxis, isto é, oconjunto de atividades no qual cada homem langa-se visandoproduzir a sua vida, seria, portanto, fator básico capaz de constituiras agóes dos grupos humanos. Assim, prossegue ainda a autora, paraa constituigáo da praxis humana, o investigador deve buscar acompreensáo dialética na aventura humana, partindo do particularpara o geral, do singular para o universal, da vida individual para aHistoria. Por isso, para Sartre, ao partir do individuo conseguiríamoschegar ao todo, e vice-versa.Dentro deste cenário, em que os especialistas sao os detentores daverdade, muitas vezes agimos nos fechando no olhar do "outrocompetente". Este "outro" passa a aprisionar as liberdades quepassam a agir como um Em-Si. Sartre (2005a) nos mostra quequando se olha para alguém, este outro é em um primeiro momentourna coisa, um objeto da consciéncia. Quando o outro aparece agindono mundo ele desloca o observador e o toma como objeto. Isso causaum confuto que é inerente á própria nogáo de subjetividade, que é otransitar entre a dialética sujeito-objeto. Um dos possíveis perigos,porém, é quando o sujeito se vé como apenas objeto. Nao será issoque de fato acontece quando o homem se restringe e se formata apartir de um saber supostamente tido como verdade incondicional?Podemos pensar tal questáo junto com Chauí (1989), quando elalembra que para um discurso do conhecimento se tornar "discursocompetente" e poder ser mantido, é fundamental que nao existamsujeitos humanos portadores de vontades próprias, mas apenashomens reduzidos á condigáo de objetos passivos. Chauí (1989)entáo aponta que urna das maneiras mais eficazes de fomentar nosindividuos que se tomam como objetos a crenga de que sao sujeitos,consiste em criar urna serie de discursos que ensinam a cada umcomo se relacionar com o mundo, caracterizando assim isso quechamamos hoje de "saberes especializados".

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Sartre (2005a) aponta que essa tendencia das doutrinas psicológicasclássicas suprime da consciéncia qualquer sinal de espontaneidade,autonomía ou responsabilidade, refletindo bem a tentativa deconstituir o Para-si como ser plenamente acabado, como um Em-si-Para-Si, que se assemelharia muito ao ideal de Deus. Sartre chamaisso de "reflexáo impura" e aponta que para os psicólogos modernos,todas as manifestagoes da consciéncia se integram em urna unidade,a psique, que possui a mesma condigáo ontológica de um Em-si. Talpsique seria urna especie de receptáculo que "contém coisas"(imagens, percepgóes, emogóes, etc.), os chamados "objetospsíquicos".Assim, para Sartre (2005a), essa totalidade que a psique representa,que é o objeto de estudo da Psicología clássica, até existe, mas existesob a forma de má-fé, que é urna maneira que a consciéncia humanatem de lidar com sua condigáo originaria de ser um Nada, com suainexorável condigáo de liberdade. Como a consciéncia por ser Nadaexiste projetando-se, a busca por urna constancia, por urna solidez e,consequentemente, por urna objetividade, seria urna tentativa defuga da experiencia da angustia que vem atrelada á constatagáo dainexistencia de determinagóes, o que nos ajuda a compreender aenorme demanda por verdades universais e por "saberesespecializados", portadores de verdades e relagóes de causa e efeitoñas suas mais variadas formas.Sartre (2005a), portanto, admite que o homem sendo "Nada" acabasendo desejo de "ser", desejo de "completude", mas a diferenga éque a psicología clássica nomeia esses "desejos" e oferece solugóesprontas para tais desejos, como podemos ver em muitasmanifestagóes do especialismo. A Psicología clássica se satisfaz emnomear os desejos e os justifica através da suposigáo de tendencias ede esséncias. Sartre, por sua vez, nao dá nome a nada, pois para elenada pode ser definido originalmente e de maneira puramenteabstraía. Urna vez satisfeito um desejo, urna decepgáo e urnainsatisfagáo se sucedem, visto que a realidade humana está semprese sacrificando por urna totalidade inatingível.Ao contrario das concepgóes da psicología clássica, a consciéncia paraSartre (2006b) nao é urna colegáo de elementos ¡solados oudesconexos de temperamentos, desejos, emogóes, etc., mas deve serencarada como urna unidade sintética que, embora distinta na somade suas partes, se reencontra integralmente em cada urna délas. Emseu Esbogo para urna teoría das emogóes (2006b), Sartre mostra quepara o psicólogo, pautado na ideia de interioridade, a emogáo é umfato acidental, que "nos acontece", enquanto que para ele, o homememocionado investiría na emogáo todo o seu Ser. A emogáo, emúltima instancia, seria a realidade humana que se dirige emocionadapara o mundo, é o Para-Si fazendo-se emocionado.

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Exclui-se assim, portanto, a hipótese de que o homem possa terpotencias ocultas. Na psicanálise existencial, apesar de Sartre naodar indicagoes precisas para urna prática psicoterapéutica, é possívelpensarmos, inspirados em seu método, que um psicólogo clínico naopode encarar o paciente como um conjunto de categoríasdiagnósticas, mas sim como urna totalidade inacabada. A realidadede cada homem apresenta-se como sendo, em cada ato, tudo o quemanifesta ser, sempre como projeto, como totalizagáo-em-curso porse fazer na agáo.Neste processo de totalizagáo, Sartre (2005a) denomina de circuitode ipseidade a forma como nos relacionamos com o mundo eestabelecemos sentidos a partir do futuro. Nesse "circuito", o futurosurge o tempo inteiro dando sentido as agóes presentes como urnapromessa de totalizagáo e unificagáo. É através da projegáo e do"por-vir" que o homem lida com seu passado. E é justamente talpromessa de totalizagáo, por meio do futuro, que oferece ao homema ilusáo de determinagáo e previsibilidade. O homem é entáo projetode ser tal como um Em-si-Para-si, urna consciéncia completa edeterminada.É possível ver na ansia contemporánea por explicagóes biológicas eobjetivas e por urna serie de outros discursos tidos como "científicos",um exemplo claro da busca por certezas e previsibilidades. Ao sereconhecer em urna categoría diagnóstica, por exemplo, o individuose fecha em algo previamente dado. Agindo como um objetopropriamente dito, o individuo tenta entáo fugir da angustia de sertomado como urna consciéncia livre e sem determinagóes. Urnaprovocagáo que Sartre nos permite fazer é, enquanto profissionais"psi", como estaríamos contribuindo para reduzir o homem a essabusca por constancias, e como consequentemente estaríamosesquecendo de considerar a dimensáo de incompletude do para-sique nos diferenciaría dos objetos das ciencias exatas.Assim, Sartre nos ajuda a pensar que o particular em si mesmo naoexplica tudo, da mesma forma que o universal também nao, e aPsicología que tenta se fechar no saber único sobre o homem pareceentáo nao ser suficiente para compreender esse homem. Sartrediscute um pouco mais sobre isso quando fala, na apresentagáo daRevista Le temps modernes(1960), sobre um "atomismo psicológico".Sartre (1960) lembra que ao longo do desenvolvimento dassociedades modernas, e com a consequente divisáo do trabalho,produziu-se, por conta do aparecimento e expansáo da burguesía, anecessidade de especialistas imbuidos de um "espirito analítico, ondeo individuo reside como urna ervilha numa lata de ervilhas:redondinho, fechado em si mesmo, incomunicável" (1960, p.17). Taltipo de espirito analítico teria como principio o atomismo social, quereduz a sociedade a um mero conjunto de individuos, causando assimurna cisáo objetiva entre individual e social.

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Tal atomismo social, para Sartre, acarretaria um atomismopsicológico, o qual estaría decompondo experiencias humanas emunidades universais, isentas de qualquer dialética com aparticularidade do tempo e contexto vivido. Os fenómenos, apontaSartre (1978a), nao podem jamáis ser vistos como aparigoes¡soladas. Dessa forma, a ciencia deveria estudar a situagáo emparticular sempre inserida em um quadro geral, tendo como fungáoprimordial, portanto, fornecer a cada fenómeno, além de urnasignificagáo particular, um papel de revelagáo de algo mais ampio.Tal postura ressalta a importancia do método singular-universal queSartre tanto defendía.Assim, Sartre acreditava que a psicología empírica lidava com ohomem como se ele fosse algo dado, sem levar em conta, portanto, osentido e a relagáo particular da experiencia desse homem com omundo, fazendo, dessa maneira, com que o abstrato se sobreponhaao particular. Tal ideia pode ser observada claramente nesse trechoem conferencia publicada no livro Em defesa dos intelectuais(1994b):

A verdadeira pesquisa intelectual, se pretende livrar daverdade dos mitos que a obscurecem, implica urna passagempela singularidade do pesquisados Este precisa se situar nouniverso social para capturar e destruir nele e fora dele oslimites que a ideología impoe ao saber. É no nivel da situagáoque pode agir a dialética da interiorizagáo e daexteriorizagao; o pensamento do intelectual deve se voltartodo o tempo para si mesmo, para se apoderar sempre comouniversalidade singular [...] é um trabalho dialético de umuniversal singular sobre universais singulares, e deve sefazer primeiro no concreto, depois no abstrato. (SARTRE,1994b, p. 34-35).

Na apresentagáo do mesmo livro, Francisco Weffort para melhordefinir a ideia que Sartre tem sobre o papel do intelectual, dá umexemplo dizendo que um físico que se dedica a construir urna bombaatómica é um cientista, um "especialista do saber prático", enquantoum físico que coloca em questáo e discute a construgáo da bomba éum intelectual. Complementa tal pensamento apontando:

O 'especialista do saber prático' é um ser dividido: é umpesquisador e um servidor da hegemonía. É alguém,portanto, dilacerado entre as exigencias da universalidadepresentes na prática da pesquisa e os particularismos sociais,económicos e culturáis que condicionam a sua atividade e asua própria vida. Em outras palavras: é um universalista natécnica e um particularista na submissáo á ideologíadominante. Só quando se rebela, o 'especialista' se torna umintelectual. (1994, p. 7)

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Para Sartre (1994b), a classe dominante decide o número dos"especialistas do saber prático" em fungáo do lucro, que é seu fimsupremo. Sartre chega a afirmar que, com o advento do capitalismo,a industria quer se apropriar da universidade para "obrigá-la aabandonar o velho humanismo ultrapassado e substituí-lo pordisciplinas especializadas, destinadas a dar as empresas técnicos emtestes e estatísticas." (SARTRE, 1994b, p.22). Prossegue discutindoentáo que os progressos da ciencia estavam fazendo diminuir ospensadores e profissionais conhecidos como universalistas, quetentam levar em conta a multiplicidade de saberes e olhares queperpassam seu objeto, e por outro lado ele constatava o aumento deequipes de pesquisadores rigorosamente especializados.Acreditando que o massacre do pensar tecnocientífico emudece ohomem na medida em que retira da experiencia singular apossibilidade de criagao de um sentido próprio para o existir, aproposta de Sartre pode ser vista, portanto, como urna tentativa deabertura para um paradigma que nao apreenda a realidade humanalevando em conta apenas modelos mecanicistas, mas que tambémpossa permitir reflexóes que contemplem a possibilidade de tornarviva a dialética continua entre existencia e mundo, onde um seentrelaga ao outro de forma indistinta e fugidia na grande maioria dasvezes.

5 Consideragóes fináis

Pretendí mostrar, ao longo deste trabalho, que tendo se passadomais de um século, as questóes sobre a verdade, ditada por certostipos de saberes, nao só permanecem na contemporaneidade, mas seaprimoram e se desenvolvem de acordó com o cenário sócio-históricovigente. Assim, a Psicología parece possuir hoje urna incontestávelpluralidade de vertentes e perspectivas, se pensarmos na suacomplexidade epistemológica dentro do campo académico, mas osmeios de comunicagáo de massa que transmitem esse saber aogrande público parecem nao refletir essa diversidade.Através da análise feita de flashes do contemporáneo, que incluem asrevistas de grande circulagáo pesquisadas, tal restrigáo cientificistano campo "psi" ficou bem demarcada a partir de tendencias como ado uso do método experimental e sua consequente tentativa decriagao de relagoes causáis, além da busca pela substancializagao dasmais diversas contingencias da vida, usando para isso conhecimentosda neurociéncia e fenómenos como o da matematizagáo daexistencia.Pensando na dialética singular-universal proposta por Sartre, o quechama a atengáo nessa análise feita da Psicología que chega aopúblico através das reportagens é justamente um rompimento dessa

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dialetica na medida em que parece haver um predominio do desprezopelo singular, e urna busca por universalidades abstraías através douso constante de esquemas generalizantes. A resposta considerada"verdadeira" sobre os mais variados aspectos da vida humana parecevir associada aos discursos dos especialistas, e o "consumidor" detais teorías e reportagens é submetido a esse esquema colocadoquase sempre como universalmente válido, revelando de certo modoa desconsideragáo por qualquer sentido singular. O que o Sartre quermostrar, no entanto, é a importancia de nao nos perdermos em urnaanálise puramente singular, mas também por outro lado mostrar operigo que é submeter o homem a regras e classificagóes puramenteabstraías válidas para todos e para qualquer época.O que pude perceber é que grande paríe das discussóes feiías acercado saber "psi", propagado na grande mídia, refleíe a íendéncia emexplicar a vida humana a paríir de conhecimeníos objeíivos,universais e facilmeníe assimiláveis, o que nos remeíe jusíameníe aohorizoníe calculaníe do mundo aíual. Parece ser mais fácil consíiíuir asi próprio aíravés de discursos e saberes já proníos para seremconsumidos na lógica da insíaníaneidade íécnica do que íeníar criaralgo que inclua íambém a "lógica do seníido", íáo bem íecida porCarneiro Leáo (1975), lógica essa que demanda um deíerminadoíempo e íraz consigo íoda urna responsabilizagáo pela escolhaíomada. Pensar ouíras maneiras possiveis de consíiíuir si próprio íemsido, poríanío, aíiíude cada vez mais difícil para o homem inseridonessa sociedade "sob encomenda" que cada vez mais se deixa levarpelos discursos "compeíeníes" na consíiíuigáo de suas experienciasexisíenciais coíidianas.

Preíendi íambém mosírar que, para o exisíencialismo saríriano, abusca excessiva e indiscriminada por especialisías e seus saberesobjeíivos nos dia de hoje refleíe urna desesperadora íeníaíiva defuga da incompleíude que nos consíiíui, delineando aquilo que Sarírechama de "má-fé". Meníindo para si mesmo, eviíando reconhecer-secomo um devir, eviíando reconhecer a angúsíia como consíiíuiníe desua liberdade, o homem prefere negar sua condigáo de aberíura eacrediíar que aquele esíado momeníáneo, objeíivo e conforíávelconseguido aíravés de urna verdade vinda de um "especialisía", porexemplo, correspondería aquilo que ele é de faío, ou seja, alguémsuposíameníe livre de frusíragóes, incertezas e fragilidades.Assim, levando em conía a exisíéncia de íal horizoníe íécnico-cieníífico aqui descriío, Saríre íenía dar ao homem a possibilidade deescolher deníro das coníingéncias em que é langado, oferecendosempre um espago para a reflexáo e responsabilidade dianíe de simesmo. Sobre a ineviíável responsabilidade de cada um sobre osmodos de esíar no mundo hegemónicos, Saríre (1978b, p. 6) jáaponíava:

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Michelle Thieme de Carvalho MouraUm olhar Sartriano para o especialismo "psi" contemporáneo

Nao há dos nossos atos um sequer que, ao criar o homemque desejamos ser, nao crie ao mesmo tempo urna imagemdo homem como julgamos que deve ser.(...) Assim souresponsável por mim e por todos, e crio urna certa imagemdo homem por mim escolhida; escolhendo-me, escolho ohomem.

Esse clássico trecho retirado da conferencia Existencialismo é umhumanismo já evidencia urna consequéncia clara do entrelagamentodaquilo que ele chama de singular e universal. Se nao há dicotomíaentre a agáo singular e a agáo universal, cada movimento singularajuda a construir um todo sócio-político-económico, e esse, por suavez, em um movimento regressivo, inevitavelmente perpassa o modocomo cada singular concreto se escolhe no mundo.Conforme afirmam Maheirie e Pretto (2007), neste processo deelaboragao de seu projeto ou de constituigao de sua singularidade emmeio á coletividade, o sujeito precisa relacionar-se com o outro, ouseja, ser atravessado pelas condigóes históricas, e ao fazé-lo, iniciaurna relagáo dialética entre o objetivo e o subjetivo.Assim, é importante lembrar que urna das preocupagóes de Sartrequando escreve Questao de Método (1978a) era acusar o marxismode se tornar cientificista ao colocar urna fatalidade na historia de talmodo que o próprio individuo nao era mais considerado comoimportante. E a proposta de Sartre era fazer reviver o marxismo pormeio da psicología e psicanálise ao trazer a nogáo da vivencia pessoalde volta, e da antropología, ao resgatar os pequeños grupos comoessenciais para a descoberta do sujeito. Dessa forma, o que Sartrepretendía criticar no marxismo de sua época - a consideragáo pelouniversal e nunca pelo particular e o cientificismo que atingía aanálise histórica - aproxima-se muito do que pensó ser necessárioquestionar na psicología de hoje. O que pretendí mostrar é que esseprocesso de objetividade e cientificidade atinge até mesmo apsicología, e para tal questionamento o pensamento de Sartre é urnapreciosa fonte de reflexáo.

Mas como mostrei ao longo do trabalho, de fato nao precisamos viverem permanente luta com a ciencia e a técnica para conseguirmoslidar com a singularidade imprevisível de nossas vidas. Nao pretendí,portanto, com esse trabalho, exaltar a defesa cega de umconhecimento considerado melhor, visto que eu acabaría caindo nomesmo delirio hodierno de pré-determinar urna verdade comosuprema. O que procurei argumentar aqui foi que, diferentemente domassacre tecnicista no qual estamos submersos, as práticas queprezam pela valorizagáo da dimensáo humana, demasiadamentehumana do objeto da psicología, devem saber que a unilateralidadede um pensamento é sempre bastante perigosa na medida em que,sem se dar conta, vai sorrateiramente restringindo ¡numeraspossibilidades de ser.

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Enderezo para correspondenciaMichelle Thieme de Carvalho MouraRúa Sao Francisco Xavier, 524/10° andar, sala 10.009, bloco FMaracaná, Rio de Janeiro, CEP 20550-900Endereco eletrónico: [email protected]

Recebido em: 14/10/2011Reformulado em: 21/06/2012Aceito para publicagao em: 30/11/2012Acó m pan ha mentó do processo editorial: Ana Maria López Calvo de Feijoo

Notas*Doutoranda em Psicología Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro(UERJ), mestre em Psicología social pela mesma Universidade e especialista emPsicología Clínica Fenomenológico-Existencial pelo IFEN.instituto de verificagao de circulagao.2Sartre originalmente publicou esse título no plural como Questions de méthode.

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Na versao em portugués consultada, o tradutor optou por passar o título para osingular.

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ARTIGOS

O debate entre Paganismo e Cristianismo em duasobras de Kierkegaard: contribuyes para urna reflexáosobre os processos de subjetivacáo

The debate between Paganism and Christianism in two works byKierkegaard: contributions to a reflection about the processes ofsubjectivation

Cristine Monteiro Mattar*Universidade Federal Fluminense - UFF, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil

RESUMOO artigo apresenta o debate entre paganismo e cristianismo a partir de duasobras kierkegaard ¡anas: Migalhas Filosóficas ou um bocadinho de filosofíaassinada por Johannes Climacus e Doenga Mortal, assinada por Johannes Anti-Climacus. A primeira mostra a diferenga entre a mestria socrática e a mestriacrista, defendendo a superioridade da última. Refere-se "ao deus" que sesubentende ser o próprio Cristo, um mestre diferente que nao apenas pretendelevar o discípulo á reflexáo, mas, também, á transformagao decisiva de simesmo. Na segunda, Anti-Climacus descreve o paganismo como desespero.Embora admitindo a superioridade do paganismo em relagao á cristandade eainda que Doenga Mortal postule que seria muito útil retomar o espirito grego ecomegar por ele em meio á farsa do cristianismo paganizado, em ambas asuperioridade do ideal cristao se destaca. Tais temáticas sao trazidas para urnareflexáo sobre os modos de subjetivagao valorizados em tempos depreocupagoes pagas.Palavras-chave: Paganismo, Cristianismo, Kierkegaard, Processos desubjetivagao.

ABSTRACTThe article presentes the debate between Paganismo and Christianismdeparting from two kierkegaardian works: Philosophical Fragments, signed byJohannes Climacus and Sickness Unto Death, signed by Johannes Anti-Climacus. The first one shows the difference between the socratic and theChristian mastership, defending the superiority of the latter. It refers "to thegod" that is understood as Christ himself, a diferente máster who does not onlyintend to take the disciple to reflection, but also the decisive transformation ofhis own self; in the second, Anti-Climacus describes paganismo as desperation.Even though he admits the superiority of paganism in relation to Christianityand even though Sickness Unto Death preaches that it would be very useful toreturn to the Greek spirit and start from it in the middle of the farce ofpaganized Christianism, in both the superiority of the Christian ideal stands out.Such themes are brought to reflection about the modes of subjectivation valued

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicología Rio de Janeiro v. 12 n. 3 p. 792-816 2012

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Cristine Monteiro MattarO debate entre Paganismo e Cristianismo em duas obras de Kierkegaard

in times of pagan worries.Keywords: Paganism, Christianism, Kierkegaard, Processes of subjetivation.

1 Introdugao

Embora a presenga da filosofía antiga seja constante no pensamento eñas obras do filósofo dinamarqués Sóren Kierkegaard, um de seusaspectos é o de servir como contraponto entre socratismo1 ecristianismo e entre paganismo e cristianismo, destacando-se esteúltimo como o ideal mais alto.A negatividade infinita da ironía inspirada em Sócrates atuará, na obrakierkegaardiana, no sentido de promover a ignorancia socrática no seioda cristandade, mas nao para permanecer nela, e sim para que sepossa, e principalmente se queira, assumir em seguida urna posigáocrista. A ironía desconstruiria as falsas profissóes de fé da cristandade, afim de abrir espago para a decisáo efetiva de agir como cristáo, ou aomenos para o reconhecimento de que nao se é cristáo. Se Sócratesafirmou saber somente que nada sabia, pode-se dizer que Kierkegaardinicia afirmando: só sei que nao sou cristáo.Em Migalhas Filosóficas (1844/2008), Johannes Climacus diferencia omestre socrático do mestre cristáo. Já em O Desespero Humano(1849/2002), Anti-Climacus define duas éticas, paga e crista, erelaciona o paganismo ao desespero. As duas obras sao analisadas aseguir. Embora distanciadas no tempo, ambas nos parecem bastanteatuais para urna reflexáo sobre um tema de interesse contemporáneo,os chamados processos ou modos de subjetivagáo, expressáo quetomamos emprestada da obra do filósofo francés Michel Foucault (1926-1984). Tal expressáo pode ser entendida como "as formas e asmodalidades da relagáo consigo através das quais o individuo seconstituí e se reconhece como sujeito" (FOUCAULT, 1984, p. 11).Embora as diferengas importantes entre os dois filósofos, Kierkegaard eFoucault, pode-se afirmar que ambos colocam em questáo a nogáo desubjetividade definida a priori como fundamento universal e essencial atodos os homens (MATTAR, 2011). Nesta diregáo, pode-se estabelecerum diálogo entre a definigáo dos modos de subjetivagáo foucaultiana e adescrigáo do eu e das personificagóes do desespero empreendida porAnti-Climacus na obra O Desespero Humano, bem como vislumbrar nosmodos de ser descritos como pagáo ou cristáo modos de constituir-se ereconhecer-se. O eu, na perspectiva kierkegaardiana, é urna relagáo quenao se estabelece com nada de alheio a si, apenas consigo, ou melhor, éa consciéncia que se tem dessa relagáo; o eu é o reconhecimento de si

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mesmo, de sua existencia concreta e singular, um si mesmo que é urnasíntese dos paradoxos da existencia, necessários e possíveis, temporal eeterno, finito e infinito, bem diferente das concepgoes psicológicas deum psiquismo encapsulado que possuiria um funcionamento analisavel.Langado por um Autor e ao mesmo tempo fadado a escolher-se, o eu seconstituí na tensáo constituído-constituinte em todos os instantes de suaexistencia. Nao podendo livrar-se de quem é, pois nao se constituí deforma autónoma, pode, no entanto, "dar resistencia aos seus ángulos aoinvés de limá-los" (KIERKEGAARD, 1849/2002, p. 37), agindo de formamais própria ao invés de querer simplesmente assemelhar-se aos outrosou ser um eu de sua exclusiva invengáo, que sao formas do desespero.Ora, a genealogía foucaultiana visa, sobretudo, alertar para o fato deque, embora possa estar fortemente constituido pelos esquemas prontosque encontra no mundo, é sempre possível ao sujeito participar deforma mais ativa da própria constituigáo, agindo com maior liberdade.Isto indica que, na visáo foucaultiana, ao contrario do modo como secostuma interpretar o pensamento do filósofo francés, nao estamosirremediavelmente constituidos pela cultura, urna vez que participamosde tal constituigáo, seja aceitando passivamente modos de serconsiderados normáis e adequados em cada época, seja recusando ouresistindo aos mesmos. A tarefa filosófica de langar um grito de alerta etornar os sujeitos atentos ao próprio existir nos parece ter sidoassumida pelos dois pensadores, sendo a énfase do presente artigo opensamento kierkegaardiano.

2 Migalhas Filosóficas

Em Migalhas filosóficas ou um bocadinho de filosofía de JohannesClimacus (1844/2008), a ironía em relagáo aos grandes sistemasfilosóficos e á filosofía especulativa principia na escolha do título.Pretende ultrapassar o mestre socrático, aquele que interroga, propondoem seu lugar um mestre diferente, aquele que é capaz de oferecer avida pelo discípulo; vai além da interrogagáo filosófica mediante oposicionamento cristáo; propóe que a dúvida inicial dé lugar á fé esubstituí a ignorancia pela vontade como fator decisivo para a agáo.Portanto, a diferenga entre a mestria socrática e a mestria crista,embora nao definida diretamente nestes termos, é apresentada nestaobra.O texto, segundo Valls (2000), procura

[...] traduzir em linguagem filosófica de cunho grego o

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escándalo e a loucura da novidade paradoxal de um Deus-Homem, que daria um valor absoluto para o instante, supondoque a idéia de um 'kairós', instante da graga, desenvolvida demodo hipotético e por contraste com o chamado projetosocrático, exige urna atitude mental e existencial radicalmentenova [...]. (VALLS, 2000, p. 5).

De acordó com Vergote, a obra estava "destinada a estabelecer asdeterminagoes da cristicidade referida a Cristo, como conceito simétricoe inverso do conceito de ironía referido a Sócrates [...]" (VERGOTE,2001, p. 62).

O autor das Migalhas Filosóficas, com efeito, opoe precisamenteao mestre socrático, que é para os seus discípulos apenas aocasiáo de relembrar urna verdade desde sempre possuída, odeus 'como mestre e salvador', que é o único que podeintroduzir no tempo, pelo evento histórico de sua encarnagáoparadoxal, da qual todo discípulo precisa tornar-secontemporáneo, urna verdade 'que nao poderia ter brotado porsi mesma do coragáo do homem' (VERGOTE, 2001, p. 56).

Johannes Climacus assina a obra. Climacus teve existencia real, viveuno ano 600 d.C, foi monge do Mosteiro do Monte Sinai e autor místico.Escreveu Scala Paradisi, texto de ascetismo místico que significa "subidaao paraíso". Em Doenga mortal, de 1849, e Exercício do Cristianismo, de1850, Kierkegaard usará o pseudónimo Johannes Anti-Climacus, queseria cristáo, ao contrario de Johannes Climacus2, que reconhece nao oser (PAULA, 2009). Vale também lembrar que Climacus declara-se náo-cristáo no interior da cristandade ocidental e do que identifica como asíntese de cristianismo e filosofía operada por Hegel.

Para Climacus, a filosofía antiga é melhor do que a filosofíasistemática moderna. Afinal, no seu nascedouro, tal filosofíaparece ainda nao estar contaminada com tantas impurezas.Além disso, nos seus primordios, a filosofía era mais abrangentee com menor carga intelectiva ou meramente especulativa. Emoutros termos, a filosofía tinha maior ligagáo com a existenciahumana (PAULA, 2009, p. 87).

Segundo Valls (1844/2008), o problema das Migalhas é formulado apartir de um texto de Lessing, autor alemáo que faz a distingáo entredois tipos de verdades: as contingentes ou de fato, que sao históricas, eas verdades necessárias ou lógicas, baseadas no principio da náo-contradigáo. A dúvida de Climacus refere-se a como basear suafelicidade eterna em verdades históricas, que nao possuem necessidadelógica.As verdades do Cristianismo, que Climacus apresenta como se fossem

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um paradigma inventado por ele, pertencem as verdades históricas, oque coloca, para os pensadores formados no modo racionalista, umabismo que só poderia ser transposto por um "salto".Propondo um experimento teórico que vá além do socrático, Climacusformula a pergunta: "Em que medida pode-se aprender a verdade?"(KIERKEGAARD, 1844/2008, p. 27) - decorrente da interrogagáosocrática acerca da virtude. Se a verdade deve ser aprendida,pressupóe-se que nao estava presente e deve ser procurada, dificuldadepara a qual Sócrates chamou a atengáo, denominando-a "proposigáopolémica": "[...] é impossível a um homem procurar o que sabe eigualmente impossível procurar o que nao sabe, pois o que sabe, naopode procurar porque sabe, e aquilo que nao sabe nao pode procurarporque nao sabe nem ao menos o que deve procurar." (idem, p. 27-28).De acordó com Climacus, Sócrates teria resolvido essa dificuldadealegando que todo aprender e procurar é sempre um recordar - oignorante necessita apenas lembrar-se para tomar consciéncia daquiloque sabe. Tal ideia se torna o pathos grego, urna prova da imortalidadeda alma, da sua preexistencia. É preciso ressaltar aqui que a referenciaa Sócrates o sitúa em contornos diferentes, dependendo da obra na qualsua figura é trazida por Kierkegaard. Em Migalhas ele aparece como omestre reflexivo de ocasiáo, em contraste com o deus cujo encontró édecisivo e transformador. Já em O Desespero Humano, Sócrates surgecomo o mais alto expoente da ética grega, superior á cristandade. Emambas é o homem pagáo, diferente do irónico da tese kierkegaardianasobre o conceito de ironía. (KIERKEGAARD, 1841/2006). Na obra aquiem aprego, Climacus discorda da tese socrática da reminiscencia3, epropóe que as coisas sejam colocadas de outra maneira, voltando-seantes para os tres aspectos da concepgáo socrática: o estado anterior, omestre e o discípulo. No argumento socrático, o discípulo se encontra deposse da verdade desde sempre, embora déla nao se recordé. Serápreciso despertar nele a reminiscencia, através da interrogagáo -bastará urna ocasiáo favorável, alguém que o interrogue corretamente,e a recordagáo vira. O instante perde, com isso, sua significagáodecisiva como divisor de aguas na vida do sujeito: ele permaneceráonde já estava, só que agora consciente da verdade que trazia em si.Portanto, segundo Climacus, na perspectiva socrática, o estado anteriordo discípulo é o da posse da verdade, o mestre é apenas a ocasiáo e odiscípulo nao se modifica essencialmente, porque apenas assume o quejá era seu.

Na perspectiva diferente apresentada por Climacus, o estado anteriorem que se encontra o discípulo é o da náo-verdade, porque a verdadenao está no homem e sim em Deus, sendo ademáis necessário que o

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homem tome consciéncia de que está na náo-verdade.O discípulo precisa ter contato com a verdade que está fora dele, e oinstante em que isto ocorre é decisivo para toda a sua vida ulterior. Oinstante nunca volta igual, daí a significagáo de cada um deles serdecisiva. Em acréscimo, Climacus define o mestre nao mais como aqueleque apenas interroga, mas como o deus4 encarnado - a própria verdadeeterna na figura de um homem temporal que é, ao mesmo tempo, averdade e a condigáo para atingir a verdade. É o contato com esse deusencarnado que propicia ao discípulo a possibilidade de sair do erro noqual vivera até entáo - nao por ignorancia ou esquecimento, mas porurna decisáo da vontade.Apesar de breve e temporal, o instante é decisivo, pleno de eternidade,"plenitude dos tempos" (ibidem, p. 38), visto que o discípulo se torna, apartir do contato com o deus, um homem novo. No instante, o homemtorna-se consciente de que nasceu, pois seu estado anterior era o denao-ser. A partir daí nao apenas vive, como se fosse urna especie amais: passa a existir.Em um ensaio poético, parte de Migalhas Filosóficas, Climacus refere-seao deus como mestre e salvador. No caso de Sócrates, a relagáo era dehomem a homem: o discípulo era a ocasiáo para que o mestrecompreendesse a si mesmo, e o mestre para que o discípulocompreendesse a si mesmo. Porém, o deus nao precisa de discípulopara compreender a si mesmo: apresenta-se nao por necessidade, maspor amor. Dispóe-se a ir até onde está o discípulo, torna-se próximo aele e chega a colocar-se como seu servo. Procura passar despercebido,estar próximo sem ser visto. O mestre, portanto nao será o que apenasensina ou interroga sobre a verdade, mas o que a vive.Dentro da "ficgáo poética" proposta por Climacus, o deus se apresentacomo mestre em forma de servo. Se a relagáo fosse apenas de homema homem, o que teríamos de mais alto e verdadeiro seria a relagáosocrática; mas depois que o deus veio pessoalmente, obtivemos oinstante e o paradoxo, que é o fato de que um instante histórico, oencontró com ele, condicione urna felicidade eterna.O conteúdo das Migalhas pode parecer estranho aquele que busca aespeculagáo filosófica: a linguagem nao atende á exigencia deobjetividade e a escrita promove mais um meditar sobre o tema do quesua compreensáo direta. Somente com a leitura de todo o livro, e maisainda de seu Post-Scriptum, fica clara a proposta de Climacus. Este seassume como incapaz de escrever um sistema filosófico. Opóe, á dúvidaespeculativa, a fé, que nao é um conhecimento, mas um ato deliberdade e urna expressáo da vontade. O nada poder afirmar ouconcluir nao é, para Climacus, urna necessidade filosófica, e sim urna

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decisáo da vontade; portanto, nao é obrigatório nela permanecer.

A fé é o oposto da dúvida. Fé e dúvida nao sao duas especies deconhecimento que se deixam determinar no prolongamento urnada outra; pois nenhuma das duas é um ato de conhecimento eelas sao paixoes opostas. A fé é o sentido que capta o devir, e adúvida o protesto contra toda conclusao que quer ir além dapercepgao ¡mediata e do conhecimento ¡mediato. O duvidadornao nega, por exemplo, sua própria existencia, mas nao concluínada; pois nao quer ser iludido (ibidem, p. 123).

Em suma, Climacus propóe ir além do socrático ao defender: ao invésda consciéncia de estar na verdade eternamente, a consciéncia de estarna náo-verdade; ao invés da ocasiáo, o instante decisivo; em lugar domestre ocasional que interroga e passa adiante, o mestre como o deusno tempo, comprometido com o estado ulterior do discípulo epessoalmente envolvido com ele. Contudo, Climacus jamáis diz que seuprojeto seria mais verdadeiro que o de Sócrates, e assim concluí:

Este projeto ultrapassa, indiscutivelmente, o socrático, coisa quese mostra em cada ponto. Que seja ou nao, por isso, maisverdadeiro do que o socrático, é urna questao completamentediferente, que nao se deixa decidir no mesmo alentó, dado queaqui admitiu-se um novo órgao: a fé, e urna novapressuposigao: a consciéncia do pecado, urna nova decisao: oinstante, e um novo mestre: o deus no tempo, sem os quaisverdadeiramente eu nao teria ousado apresentar-me ante ainspegao do grande mestre da ironia, admirado através dosmilenios, de quem me aproximo com o coragao saltando deentusiasmo como diante de mais ninguém. Mas ultrapassarSócrates, quando se diz essencialmente o mesmo que ele, sóque apenas nao tao bem, isso pelo menos nao é socrático(ibidem, p. 157).

Climacus nao é cristáo, mas faz a passagem do ético ao religioso dentroda estrategia kierkegaardiana, escrevendo de acordó com as categoríase o modo grego de raciocinar.

3 Doenga mortal é o desespero

Na obra A Doenga Mortal, traduzida no Brasil como O DesesperoHumano5 (KIERKEGAARD, 1849/2002), a polémica entre paganismo ecristianismo é apresentada pelo autor pseudonímico Johannes Anti-Climacus6. Este personagem assina também Exercício do Cristianismo,publicado em 1850, e é "um cristáo em seu mais alto nivel": assume a

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defesa do cristianismo de forma clara e direta, ressaltando suasdiferengas e avangos em relagao ao paganismo. (PAULA, 2009, p. 90).Segundo a concepgáo de Anti-Climacus, o paganismo é urna forma dedesespero, a doenga que ele descreve, um desespero de ser si própriona tentativa de constituir-se a si mesmo de forma totalmente autónomae independente, sem levar em conta que se tem um 'Autor' e se está empresenga dele.Ao assumir a defesa do cristianismo e contrapó-lo ao paganismo, Anti-Climacus nao deixa de reconhecer a importancia deste último: aretomada da ignorancia socrática parece-lhe ponto de partida muito útilem meio á farsa da cristandade e á especulagáo da moderna filosofía.Crítico da especulagáo imparcial e indiferente da ciencia e da filosofía,que assim evitam se posicionar, Anti-Climacus propóe urna forma deexposigáo que, conquanto rigorosa, seja também edificante.7 Aespeculagáo crista, ao contrario da científica, "desumana curiosidade",deve preservar a intimidade do pensamento com a vida, o que constituíseu aspecto ético (KIERKEGAARD, 1849/2002, p. 13); toda especulagáofilosófica deve igualmente fazé-lo, mas isso ordinariamente nao ocorre.As ciencias imparciais, por sua vez, se tomam como serias, mas sobessa capa o que se encontra é farsa ou vaidade.

4 O desespero, doenga universal

Na primeira parte da obra, Anti-Climacus apresenta a definigáo dodesespero, estabelece sua universalidade e as suas personificagóes.Define o homem como espirito e o espirito como "eu" - relagao que seestabelece apenas consigo mesma; o orientar-se dessa relagao para aprópria interioridade; conhecimento que a relagao tem de si mesmaapós estabelecida. O homem nao é, pois, mera ligagáo entre alma ecorpo. Havendo urna relagao que conhece a si própria, tem-se umterceiro termo positivo, que difere dos outros dois. O eu nao colocou a simesmo: foi posto por um autor, com o qual se relaciona. É liberdade, aose relacionar consigo mesmo, e ao mesmo tempo derivado.Justamente por se constituir como essa relagao consigo mesmo e comDeus, o "eu" desespera: des-espera de si, querendo ser outro; as vezes,querendo ser Deus. Des-espera de Deus, querendo ser si mesmo demaneira auto-suficiente. Ñas duas formas há urna recusa de Deus e doeu.Anti-Climacus define o homem como "urna síntese de infinito e de finito,de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade [...]."(KIERKEGAARD, 1849/2002, p. 19). O eu surge como consciéncia dessasíntese: "[...] se a relagao se conhece a si mesma, esta última relagao

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que se estabelece é um terceiro termo positivo, e temos entáo o eu"(idem, p. 19-20). A relagáo se orienta para si própria e se relacionatambém com quem estabeleceu toda a relagáo - o autor, como diz Anti-Climacus, que é Deus. O fato de ser orientada para si própria e aomesmo tempo estabelecida por outrem provoca urna discordancia, quese manifesta quando o eu quer, ou nao quer, ser si próprio. Nao hácomo conseguir o equilibrio e o repouso apenas relacionando-seconsigo, negando sua dependencia do conjunto da relagáo. Só é possívelsuperar o desespero quando o eu se relaciona com o que o pos noconjunto da relagáo, quando, "existindo em si, se reflete além disso atéo infinito na sua relagáo com o seu autor." (ibidem, p. 20). "Essa é afórmula que descreve o estado do eu, quando deste se extirpacompletamente o desespero: orientando-se para si mesmo, querendoser ele mesmo, o eu mergulha, através da sua própria transparencia,até o poder que o criou." (ibidem, p. 20).O desespero é urna doenga da alma, do "eu", e seu antídoto é a fé. Émortal como urna doenga mortal, da qual só se pode falar enquanto seestá vivo. Pode ser comparado a um tipo de fogo que queima semconsumir. Constitutivo do modo próprio de existir do ser humano, eapenas dele, acompanha-o enquanto ele viver, sem matá-lo no sentidofísico. É o pior dos males, pois dele sequer se pode morrer. "Quemdesespera nao pode morrer. Dessa maneira, como um punhal nao servepara matar pensamentos, também o desespero, verme ¡mortal, fogoinextinguível, nao devora a eternidade do eu, que é o seu própriosustentáculo" (ibidem, p. 24).Querer libertar-se de si mesmo é a fórmula de todo o desespero. Asegunda fórmula é querer desesperadamente ser si mesmo, o queimplica separar-se de seu autor. O esforgo é inútil: "[...] este Autorpermanece o mais forte e constrange-o a ser o eu que ele nao querser." (ibidem, p. 25). Esse constrangimento é o seu suplicio, pois naopode libertar-se de si mesmo para tornar-se um eu de sua própriainvengáo.O desespero é universal, é o prego pago pelo fato de se ter um eu, istoé, consciéncia de si mesmo, e de ter recebido a tarefa de nao somenteviver, porque isso as outras especies também fazem, mas de existircomo espirito, ou seja, mais do que síntese de corpo e alma. Odesespero é a "inconsciencia em que os homens estáo de seu destinoespiritual" (ibidem, p. 29). É simultáneamente urna vantagem e urnaimperfeigáo. Vantagem por diferenciar o homem das outras especies;imperfeigáo, por ser urna enfermidade espiritual que o acompanha. Anti-Climacus diz que o "psicólogo" conhece o desespero, enfermidadeespiritual, assim como o médico reconhece um mal físico ainda que o

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paciente diga que vai muito bem (ibidem, p. 28).Mesmo no ámago da mais profunda felicidade há desespero. Alias,segundo Anti-Climacus, trata-se do seu lugar predileto. O desespero éconsiderado pelo senso comum uma excegáo, quando é, de fato, aregra. A maior parte vive em uma falsa despreocupagáo, uma falsasatisfagáo em viver, "que é o próprio desespero" (ibidem, p. 30-31). Aexistencia é desperdigada quando se é iludido pelas tristezas e alegríasda vida, o que faz com nao se atinja a consciéncia de ser um espirito,um eu, o que constituiría "um ganho decisivo para a eternidade."(ibidem, p. 31). Também nao consegue, este iludido, "constatar ousentir profundamente a existencia de um Deus", nem de que ele existepara esse Deus. (ibidem, p. 31). Adquirir essa consciéncia, que leva áconquista da eternidade, é o que menos interessa ao individuo, que seentretém com o que menos importa. Uma vida sem essa aquisigáo édesespero, e o pior indicio desta doenga é justamente o seu segredo, éo fato de estar táo dissimulada, ou mesmo ser táo natural, aceita e atéestimulada, que o homem déla nao se dá conta. Os ideáiscontemporáneos de felicidade, relacionados á posse material, juventude,beleza, forga, Vitoria, fama, enfim, a incitagáo á euforia perpetua(BRUCKNER, 2002), consistem, nesta perspectiva, em desespero.O desespero se personifica em algumas formas. O autor as classifica deacordó com os fatores de síntese do eu e com a consciéncia ouinconsciencia de se ter um eu. No primeiro caso, está o desespero dofinito e do infinito, dos possíveis e necessários. O finito delimita e oinfinito ¡limita. Perder-se no infinito é tornar-se abstrato, imaginario eafastar-se de si mesmo. Passa-se a fazer parte de idéias gerais, como ade humanidade, por exemplo.

Já o desespero do finito por carencia do infinito traz estreiteza. Destavez o eu se perde nao porque evapora no imaginario, mas porque sefecha no finito, "e porque em vez dum eu se torna um número, mais umser humano, mais uma repetigáo dum eterno zero" (ibidem, p. 36). Issonao significa que deva renunciar a si mesmo, querendo ser outro, mas afalta do infinito pode fazer com que este eu passe a "contemplar asmultidóes á sua volta, a encher-se com ocupagóes humanas",esquecendo-se de si mesmo e acreditando ser muito mais simples eseguro "assemelhar-se aos outros, ser uma imitagáo servil, um número,confundido no rebanho" (ibidem, p. 37).Este desespero facilita a vida: vida inclusive considerada sabia, porquesem riscos, bem ajustada.Na outra personificagáo quanto aos fatores de síntese do eu, há odesespero do possível, que carece de necessidade, e o de necessidade,que carece do possível. No primeiro, a necessidade exerce no campo do

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possível a fungáo de reter. "O eu é necessidade por ser ele mesmo, e épossível, porque deve realizar-se" (ibidem, p. 38). Ou seja, é limite epossibilidade ao mesmo tempo. O eu, nesta forma de desespero, sedebate na abstragáo do possível, sem sair do lugar. Nenhuma realidadese forma, nao há passagem do possível ao real. Tudo parece possível.Já carecer de possível equivale a ser mudo. De acordó com Anti-Climacus, quando todas as possibilidades se esgotam e nao há maisnenhum possível humano, é preciso decidir se se quer acreditar que a"Deus tudo é possível" (ibidem, p. 40). Significa perder a razáo paraganhar Deus, o que é o ato de crer, a fé. A fé, portanto, é um ato, naosimplesmente urna crenga. O possível faz respirar e reviver, é o antídotodo desespero e o "combustível da fé"; a falta do possível sufoca (ibidem,p. 42). O fatalista e o determinista só véem a necessidade. "Nao respirao eu do determinista, porque a necessidade pura é irrespirável e asfixiainteiramente o eu. Consiste o desespero do fatalista em ter perdido o euao perder Deus" (ibidem, p. 42). Já os fílisteus8 se entregam ábanalidade, da qual o espirito está ausente. Sem imaginagáo, vivem aocorrer dos acontecimentos, no curso habitual das coisas.Quanto á categoría da consciéncia, o desespero pode ser: o que seignora e o consciente. Este último se divide em nao querer ser si mesmo- ñas categorías do temporal e do eterno - e querer ser si mesmo.Aquele que ignora ser desesperado ignora ter um eu. Está mais distanteda verdade do que o desesperado consciente que se obstina em sé-lo,embora, em outro sentido, este último desespero seja pior por ser maisintenso. Nesta ignorancia, o homem tem menor consciéncia de serespirito, leva urna vida vegetativa ou urna vida múltipla, agitada. "Equando se suspende o encantamento das ilusóes dos sentidos, já que aexistencia vacila, o desespero, que se ocultava, surge" (ibidem, p. 45).Esta forma de desespero é a mais freqüente no mundo. Anti-Climacusdiz que tanto o paganismo antigo quanto a cristandade, que ele chamade "paganismo do nosso tempo", constituem esta especie de desespero.O pagáo e o homem da cristandade nao se dáo conta de que saodesesperados. Ambos carecem de espirito, nao no sentido estético dearte e ciencia, enobrecimento e prazer, e sim no ético-religioso.

Todo homem que nao se conhece como espirito ou cujo euinterior nao tomou em Deus consciéncia de si mesmo, todaexistencia humana que nao mergulha desse modo limpidamenteem Deus, mas se funda nebulosamente sobre qualquerabstragáo ou a ela se reduz - Estado, Nagao etc. -, ou que, cegapara consigo mesma, nao vé ñas suas faculdades mais do queenergías de origem pouco explícita, e aceita o seu eu como umenigma rebelde a qualquer introspecgao - toda existencia destegénero, realize o que realizar de extraordinario, explique o que

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explicar, até o próprio universo, por muito interessante que,como esteta, goze a vida, com tudo isso, ela será desespero(ibidem, p. 47).

As virtudes pagas seriam vicios brilhantes, já que, por nao se conhecercomo espirito frente a Deus, o íntimo do pagáo é desespero. Anti-Climacus aponta, entretanto, urna diferenga entre o paganismo deoutrora e o moderno. Ainda que o paganismo nao conhecesse o espiritono sentido cristáo, estava orientado para ele, o que Ihe dava vantagemsobre os pagaos modernos, que "carecem dele por afastamento outraigáo, e isso é que é a verdadeira nulidade do espirito" (ibidem, p. 47-48).No desespero consciente, há urna grande variabilidade de matizes,estendendo-se da inconsciencia total á consciéncia completa.O desesperado pode quase perceber seu desespero, mas no dia seguinteatribuí o mal-estar a outra origem, como se fosse algo exterior.A intensidade do desespero aumenta com a consciéncia;correlativamente, conhecer o próprio estado de desespero faz com quecresga a consciéncia do eu e, com isso, a possibilidade de superagáo dodesespero. Anti-Climacus diz que o contrario de desesperar é crer. Afórmula do estado no qual o desespero foi eliminado é a fórmula da fé,que ele assim define: "descendo em si próprio, querendo ser si mesmo,o eu mergulha através da sua própria transparencia no poder que Ihedeu existencia" (ibidem, p. 49).O desespero consciente se apresenta sob duas formas: a) o desesperoem que nao se quer ser si mesmo, ou desespero-fraqueza, que pode serdesespero do temporal ou de urna coisa temporal, e desespero quantoao eterno ou de si mesmo; b) o desespero no qual queremos ser nosmesmos, ou desespero-desafio. As duas formas estáo relacionadas, poisquerer ser si mesmo é também urna forma de desespero na qual,efetivamente, o que se quer é ser um eu de própria invengáo, é serautor de si próprio. Ao mesmo tempo, ñas duas formas há desafio, poiso que nao quer ser si mesmo também gostaria de inventar-se sozinho,nao aceitando ter sido langado pelo seu Autor. A diferenga entre as duasformas é, pois, relativa.No desespero do temporal ou de urna coisa temporal, o individuo seencontra frente ao puro ¡mediato, ao ¡mediato como reflexáoquantitativa. Trata-se do homem do espontáneo, desprovido dereflexáo, que reage ao que Ihe vem de fora. E apenas urna coisa a mais,um detalhe na imensidade do temporal, parte integrante do mundomaterial, em face do qual é passivo. Nao se vé como eterno. Nao possuioutra dialética "que nao seja a do agradável e do desagradável, nemoutros conceitos além do de felicidade, infelicidade e fatalidade"

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(ibidem, p. 51). Se um golpe o atinge de fora naquilo que Ihe é maiscaro - posses, status, relacionamentos, juventude, beleza e saúde -,torna-se infeliz e é aniquilado de imediato, nao conseguindo regressar.Este desesperado eré que sua infelicidade vem da perda de algotemporal, mas, para Anti-Climacus, seu desespero está em perder aeternidade, em carecer do eterno e em apostar tudo no temporal. Desteponto de vista, quando ele recebe um golpe do destino e se desesperaaos olhos do mundo, isso significa que sua vida pregressa já eradesespero, embora passasse por um "excesso de felicidade" (ibidem, p.52). Para este homem do temporal, se o exterior volta a ser comoantes, ele se senté renascer. Mas nao se dá conta de ser um eu.

Ora, esse é o desespero do imediato: nao se querer ser sipróprio, ou, menos ainda: nao se querer ser um eu, ou formainferior a todas: desejar ser outrem, aspirar a um novo eu. [...]O homem do imediato, ao desesperar, nem sequer tem eusuficiente para ao menos desejar ou sonhar ter sido aquilo quenao foi. Entao, defende-se de outra maneira, desejando seroutrem. Observe quem se quiser certificar os homens doespontáneo: no momento do desespero, o primeiro desejo queIhes vem, é terem sido ou tornarem-se outros (ibidem, p. 53).

Anti-Climacus considera cómico este homem apaixonado pela ilusáo deque pode transformar-se em outro assim como troca de roupa. Comonao se conhece a si mesmo, só se reconhece na vida exterior, pelavestimenta. E se pudesse tornar-se outro, se arranjasse um novo eu,poderia depois reconhecer-se?Quando um pouco de reflexao sobre si mesmo se mistura ao imediato, odesespero se modifica. Com alguma consciéncia do seu eu, o homem setorna igualmente um pouco mais consciente do que é o desespero e dopróprio estado. Embora ainda seja um desespero passivo, em que naose quer ser si mesmo, o progresso está em que o desespero nao vem deum choque, mas da reflexao. Nao há mais urna simples submissáopassiva a coisas exteriores, mas um esforgo pessoal, um ato - umcomego de diferenciagáo entre o eu e o mundo exterior. Porém, talconsciéncia do eu o incomoda: é um vago mal-estar, que o desesperadoespera passar.O desespero quanto ao eterno ou de si mesmo vem a ser o mesmo queo desespero do temporal ou de urna coisa temporal. É por dar tantovalor ao temporal ou a urna coisa temporal que o individuo desesperaquanto á eternidade; ou seja, nao se vé como um eu que é, ao mesmotempo, temporal e eterno. Esta forma é um progresso, na visáo de Anti-Climacus. O desesperado, neste caso, já percebe como fraqueza o fatode dar tanto valor ao temporal. Entretanto, ainda nao chega á fé. Ao

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invés de humilhar-se "perante Deus" em fungáo de sua fraqueza,mergulha no desespero por causa déla (ibidem, p. 60). Já naodesespera entáo de algo temporal, mas de si mesmo. Com ocrescimento da consciéncia, aumenta a intensidade do desespero,porém igualmente a possibilidade de "salvagáo", pois "a sua própriaprofundidade o salva do esquecimento" (ibidem, p. 60). Essa forma éredutível á do desespero no qual queremos ser nos mesmos. O eu naoquer se reconhecer após tanta fraqueza, mas nao a pode esquecer.Abomina-se, todavía nao quer, "como o crente, humilhar-se sob ela paraassim se encontrar" (ibidem, p. 60). Nao quer saber de si, mastampouco consegue esquecer-se - como um pai que deserda o filho,sem conseguir afastá-lo do pensamento. Este desesperado, poucofreqüente, procura manter os aspectos de urna vida normal a fim deconservar os importunos á distancia (ibidem, p. 61).Ao mesmo tempo, ele necessita de solidáo, o que é indicio de urna"natureza mais profunda", que já nao necessita do "murmurejartranquilizador da sociabilidade" (ibidem, p. 62).Anti-Climacus lembra que a solidáo era valorizada na Antiguidade e naIdade Media, ao passo que nossa época treme diante déla, e só a utilizacontra os criminosos. Os que amam a solidáo sao também vistos comocriminosos, pois "é um crime dedicar-se ao espirito" em urna época deperpetua sociabilidade. (ibidem, p. 62).O autor pseudonímico fala, em seguida, sobre o desespero-desafio:aquele em que se quer ser si próprio. O eu recusa-se a se perder, o queseria o caminho para novamente se encontrar. Tal perspectiva interessaparticularmente á psicología: Anti-Climacus propóe justamente umdespedagar-se e perder-se de si mesmo, em oposigáo á buscadesesperada por ser si mesmo do mundo psico-lógico. O projeto deAnti-Climacus pode ser encarado como desconstrugáo do si mesmo, doeu íntegro e coerente, suposto fundamento transcendental imutável decada um, na diregáo do eu como síntese dos paradoxos da existencia,que nao é passível de definigáo ou teoría, pois só pode ser apreendido acada instante na agáo: sendo sempre um tornar-se, nunca é um.Encontrar a si mesmo seria, neste sentido, deparar-se com o fato deque nao há um si mesmo como esséncia, apenas no diálogo-relagáoconsigo mesmo. O termo perder-se pode ser compreendido como sairdo subjetivismo, como abandono do eu psicológico em favor doexistencial, somente apreensível em relagáo com o mundo, com osoutros homens e com Deus.No desafio, o desesperado quer se ¡solar de qualquer relagáo com um"poder que Ihe deu resistencia" (ibidem, p. 65). Nao admite qualquerpoder ácima dele.

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Este desespero é chamado por Anti-Climacus de "estoico" (ibidem, p.65), dado que o sujeito constituí a si mesmo através de exercícios. Aoinvés de admitir que Deus o contempla, o desesperado se contempla,conferindo aos seus empreendimentos um interesse e um sentidoinfinitos. Neste caso, "rouba-se a Deus a idéia de que ele noscontempla." (ibidem, p. 66).O desespero reside no fato de que um eu derivado se tome por mais doque é. Diz Anti-Climacus que, ao tentar ser si mesmo, isto é, criar urnaesséncia fixa, o eu acaba dissolvido no seu contrario até deixar de serum eu, ou seja, deixar de ser urna abertura. "Em toda dialética queenquadra sua agáo, nem um ponto fixo. O que o eu é, em nenhummomento adquire constancia, urna eterna constancia." (ibidem, p. 66).Dizer que o eu é senhor em sua casa representa desespero, embora issoseja tomado, habitualmente, como satisfagáo e prazer. Para Anti-Climacus, este príncipe é um rei sem reino, que governa sobre nada. "Ohomem desesperado, entáo, se perde construindo castelos no ar e báte-se sempre contra moinhos de vento." (ibidem, p. 66). O eu desesperadoquer existir por si mesmo e receber as honras por sua autoconstrugáo,mas, quando eré terminar o edificio, "tudo pode, arbitrariamente,desvanecer-se no nada." (ibidem, p. 66).O desesperado do temporal nao vé consolagáo no eterno; já odesesperado que desafia nao admite que urna miseria temporal Ihepossa ser tirada: prefere manter-se no próprio tormento do que gritarpor socorro. Ou, ao contrario, aceita ser auxiliado, desde que a ajudaIhe seja dada ao seu modo e no momento por ele definido. Se assim naofor, prefere permanecer como "a injustigada vítima dos homens e davida, permanecer aquele que vela por guardar á vista o seu tormentopara que nao Iho tirem - caso nao, como comprovar o seu direito econvencer-se a si mesmo?" (ibidem, p. 68).O desespero no qual nao se quer ser si mesmo constituí, ao ver de Anti-Climacus, a forma mais baixa de todas; porém aquele em que se querser si mesmo é a forma mais condensada do desespero. Pois nao é paraprosseguir no próprio aperfeigoamento que o eu quer ser ele mesmo,como no caso do estoicismo, mas "por odio á existencia e segundo a suamiseria." (ibidem, p. 69-70). Mantendo-se com o seu tormento, odesesperado quer protestar contra a vida, ser a própria objegáo contra aexistencia; por isso nao pode aceitar qualquer consolagáo. Assim age odesesperado que quer ser si próprio, orgulha-se do próprio tormento enao acata o auxilio do "'Socorredor', a quem tudo é possível." (ibidem,p. 68). Acredita-se especial por ter um espinho na carne como sinal deurna missáo extraordinaria, e nao vé que deveria retomar o seu lugarentre o comum dos homens.

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5 Desespero e pecado - entre paganismo e cristianismo

Na segunda parte da obra, Anti-Climacus explora os nexos entredesespero e pecado. Procede a urna confrontagáo entre paganismo ecristianismo, distinguindo a concepgáo socrática do pecado daconcepgáo crista, por ele defendida.Define "pecado" como a agáo de querer, ou nao, ser si próprio frente aDeus ou á idéia de Deus. O pecado é fraqueza ou desafio "elevados ásuprema potencia." (ibidem, p. 73). O que faz com que haja talintensidade e gravidade no desespero é o fato de estar frente a Deus. Avida estética, definida pelo personagem Anti-Climacus como aquelaonde apenas se sonha ao invés de ser, onde a relagáo com o bem e coma verdade é mantida apenas na imaginagáo, ou seja, urna vidaespeculativa, é pecado aos olhos do cristáo, que defende, como faz essepersonagem kierkegaardiano, a necessidade de a existencia serassumida como urna tarefa seria, com a qual é preciso implicar-se doinicio ao fim. Em Ponto de vista explicativo da minha obra de escritor(1849/1986) o próprio Kierkegaard descreve o modo como assumiu suatarefa como autor, dedicando-se a langar, através de seus livros, umgrito de alerta ao leitor, tornando-o atento.Na primeira parte de O Desespero Humano, Anti-Climacus apreciara oeu cuja medida era o homem; agora quer falar sobre a gradagáo daconsciéncia do eu frente a Deus, o que Ihe dá urna nova qualidade: o euhumano se torna meu teológico', o eu em face de Deus" (ibidem, p. 75)e, pela consciéncia de estar frente a Deus, ganha urna realidade infinita.Nesta linha, Anti-Climacus diferencia o homem natural, que relaciona aopaganismo, do homem como espirito, vinculando-o ao cristianismo: adiferenga entre ambos está em se reconhecer, ou nao, na presenga deDeus. O fato de o pecado ser nao apenas contra os homens, mas contraDeus, o torna mais grave, eleva-o á infinita potencia. O eu do pagáo naoestava frente a Deus, sua única medida era o homem, porque até osdeuses eram antropomórficos. O pecado do paganismo era, pois, aignorancia desesperada de Deus, embora os pagaos reconhecessem odivino. No sentido estrito, nao havia pecado, porque nao se agia peranteDeus. Já com o cristáo, qualquer pecado "o é perante Deus. [...] Peca-se quando, frente a Deus, desesperados, nao queremos ou queremosser nos mesmos." (ibidem, p. 76 e 77).Ao invés de em desespero, nao se deveria antes falar de homicidio,roubo? Para Anti-Climacus, é evidente que também nestes casos háobstinagáo contra Deus, e que sao igualmente formas de desespero.

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Mas falar apenas de tais faltas "é esquecer fácilmente que, até certoponto, se pode estar em tudo isso em regra com os homens", sem quepor isso a vida deixe de ser pecado, (ibidem, p. 77).Os chamados "pecados da carne" representam, para Anti-Climacus, urnaobstinagáo; logo, desespero de ser si próprio, categoría do espirito,(ibidem, p. 77). O pecado, adverte o autor pseudonímico, "nao é odesregramento da carne e do sangue" em si mesmo, "mas oconsentimento dado pelo espirito a esse desregramento", estando eleperante Deus. (ibidem, p. 77). Conseqüentemente, nao cabe dizer que acarne é fraca.O contrario do pecado nao é a virtude, como se costuma pensar, mas afé. Há entáo um face-a-face entre cada homem ¡solado e Deus. Anti-Climacus critica os filósofos que procuram "unlversalizarimaginariamente os individuos na especie." (ibidem, p. 78).O escándalo está em que Deus veio ao mundo, se deixou encarnar,sofreu e morreu, e ainda pede ao homem que aceite o socorro que Ihe éoferecido. Por nao compreender este oferecimento, o homem seescandaliza. "Em sua estreiteza de coragáo, o homem natural é incapazde se conceber o extraordinario que Deus Ihe destinava." (ibidem, p.80). Anti-Climacus nega que seja necessário defender o cristianismo.Defendé-lo seria fazer dele algo lamentável a ponto de precisar que oadvogassem. Defender o cristianismo é algo próprio da cristandade, queassim o trai. "Advogar desacredita sempre." (ibidem, p. 81). É incréduloaquele que defende o cristianismo, visto que o entusiasmo da fé nunca éurna defesa, sempre "um ataque, urna Vitoria." (ibidem, p. 82).Na definigáo socrática - aqui no sentido de homem pagáo -, pecar éignorar. Anti-Climacus pretende servir-se de tal definigáo "táoprofundamente grega." (ibidem, p. 82) para salientar ángulos docristianismo. Aponta como defeito na definigáo socrática o fato de deixarvago o sentido preciso da ignorancia e sua origem. Seria ela original ouadquirida? Se adquirida, é fruto de urna atividade íntima do homem queobscurece a consciéncia; no caso, porém, nao se trata de ignorancia,mas da vontade. Para o cristianismo, nem o pagáo nem o homemnatural sabem o que é o pecado. Ao ver de Anti-Climacus, o que falta ádefinigáo socrática é a vontade, o desejo.

A intelectualidade grega era demasiado feliz, demasiadoingenua, demasiado estética, demasiado irónica, demasiadomaliciosa... demasiado pecadora para chegar a compreenderque alguém tendo o seu saber, conhecendo o justo, pudessecometer o injusto. O helenismo dita um imperativo categórico dainteligencia, (ibidem, p. 84).

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A vontade também interfere no nao querer saber o que é o justo. Anti-Climacus distingue, assim, o pecado por ignorancia e o pecado peladecisáo. Saber e compreensáo "permanecem sem agáo na vida doshomens, na qual nada se manifesta do que compreenderam, antes pelocontrario!" (ibidem, p. 84). Há, pois, em geral, urna discordancia entre oque se sabe e o modo como se age, o que demanda levar em conta avontade. Se a nao compreensáo do que é o justo fosse a responsávelpela injustiga, Sócrates teria razáo: aquele que se finge de justo naopeca, apenas nao compreendeu o que é o justo. Mais urna vez, Anti-Climacus discorda: o pecado, que significa agáo, decisáo, nao é urnanegagáo, um vazio; é urna posigáo: a vontade, a decisáo, é que levam áagáo.No paganismo, ao exercitar novos modos de pensar, a agáo emsituagóes concretas se daria adequadamente, pois se estaría para elaspreparado. No cristianismo, pondera Anti-Climacus, o instante é decisivoe, nele, decide-se a partir da vontade, nao do pensamento previamenteexercitado. Neste sentido, afirma o autor: "A filosofía moderna nao é,como se vé, senáo paganismo", (ibidem, p. 87). Essa filosofía relacionadiretamente pensamento e ser, pensamento e agáo, sem aintermediagáo da vontade - situagáo concebível, mas jamáisefetivamente vivenciada. Na vida real, quando se trata do individuoexistente - aquele que interessa a Anti-Climacus -, nao há como evitara passagem do compreender ao agir; embora minúscula, ela nao podeser percorrida com pressa.Para o cristianismo, o pecado nao está em nao compreender o justo,"mas em nao querer compreendé-lo, em nao querer o justo." (ibidem,p. 88). Anti-Climacus póe em destaque a diferenga entre nao poder enao querer compreender, enquanto Sócrates distinguía compreenderefetivamente e compreender mal, ou nao compreender, o que era ojusto. Ao passo que, para Sócrates, só a incompreensáo poderia levar anao praticar o justo, para Anti-Climacus o cristianismo vai mais longe,ao dizer que é por nao querer o justo que o individuo se recusa acompreendé-lo. Nesta perspectiva, é possível abster-se do que é justoou praticar o injusto, embora se compreenda o que é justo. "Dessaforma, para o cristáo o pecado está na vontade e nao no conhecimento."(ibidem, p. 89). O pecado é urna posigáo, nao urna negagáo sob a formade ignorancia ou ausencia de compreensáo.Mesmo discordando da perspectiva socrático-pagá, Anti-Climacusadmite que essa ignorancia socrática seria muito útil aos cristáos dacristandade, caso aplicada ao cristianismo, pois os desencorajaria detentar compreendé-lo de forma especulativa, como um saber conceitual.O autor considera que a admissáo de que nao temos o poder nem o

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dever de compreender é um dever ético. Ressalta que a ignoranciasocrática constituía urna "especie de receio e de culto a Deus" (ibidem,p. 91) - receio e culto que os pretensos cristáos nao possuem. Ainda deacordó com Anti-Climacus, a ignorancia socrática

[...] transpunha para grego a idéia judaica do terror de Deus,comego da sabedoria. Era por respeito da divindade que ele eraignorante, e, tanto quanto o podia um pagao, que guardavacomo juiz a fronteira entre Deus e o homem, tratando dereforgar a diferenga de qualidade entre eles por um fossoprofundo, a fim de que Deus e o homem nao se confundissem[...]. Essa é a causa da ignorancia de Sócrates. Eis porque adivindade reconheceu nele o mais alto saber, (ibidem, p. 91).

O estado continuo de pecado seria, conforme Anti-Climacus, um pecadoa mais. "Estacionar no pecado é pior do que cada pecado ¡solado, é opecado por excelencia." (ibidem, p. 98). Raros sao os homens cujaconsciéncia interior tem continuidade, no sentido de atengáo as própriasagóes cotidianas. Sua consciéncia é, habitualmente, urna simplesintermitencia, que só se manifesta ñas decisóes graves. "Como espirito,o homem nao existe durante mais de urna hora por semana... formabem animal, evidentemente, da existencia espiritual." (ibidem, p. 97).Pecar é afastar-se do bem, e nao se arrepender é pecar ainda maisintensamente. Ao invés da humilde contrigao que pede perdao a Deus eque espera em Deus a remissao do pecado, o desesperado afirma que,no seu caso, nao há salvagáo possível. Ele decide isto, e no seu orgulho,quando diz "jamáis perdoarei", há desespero, (ibidem, p. 103). Naoousa crer na remissao dos pecados ou se recusa a nela crer.A medida da espiritualidade a ser alcangada pelo eu é o Cristo. Atravésda figura do Cristo, Deus é a medida do homem e o seu fim. É aoreconhecer a diferenga entre si mesmo e Deus que o homem está maispróximo Dele. Ao se confundir com Deus e se tomar por um homem-deus é que se afasta. Segundo Anti-Climacus, reina entáo urnadesordem no terreno religioso porque, ñas relagóes do homem comDeus, o "tu deves" foi suprimido, (ibidem, p. 106). Em seu lugar utiliza-se a idéia de Deus como "um condimento da importancia humana, parase fazer de importante perante Deus." (ibidem, p. 106). Ou seja, ocolocar-se como opositor a Deus faz com que, ao ser contra ele, alguémpossa se sentir importante.

Qual em política, em que se consegue importancia colocando-sena oposigao, a ponto de por fim, se desejar um governo paraencontrar alguma coisa a que se opor, tal como se acabará pornao querer suprimir Deus... apenas para se encher de mais

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importancia do estar na oposigao. (ibidem, p. 106).

Tal obstinagáo - dizer que é impossível crer - passa por "profundeza".Na verdade, argumenta Anti-Climacus, nao se quer fazer o que se deve.Enquanto os pagaos nomeavam Deus, ou 'o divino', com todasolenidade, por medo do misterio, entre os cristáos seu nome é "a maiscorrente das palavras de todos os dias". Ao mesmo tempo, é "a maisvazia de sentido, e a que se usa com menos cautela [...]". (ibidem, p.106).O fato de Cristo querer absolver os pecados escandalizou, em suaépoca. Para a razáo humana, trata-se de algo impossível de serapreendido: acredita-se ou nao. O pagáo nao identificava o pecado nemsua remissáo, porque nao tinha a medida necessária, a idéia de Deus. Ocristáo sabe o que é o pecado, como sabe o que é o desespero, e devecrer na sua remissáo. Porém a cristandade nem mesmo conhece o seuestado. Nao atingiu a consciéncia do pecado no sentido cristáo, sóreconhece o que já era reconhecido pelo paganismo, "vive alegre econtente numa paga seguranga." (ibidem, p. 107).O cristianismo exige urna apropriagáo, que é o contrario da especulagáo;dirige-se ao individuo, em contraste com a multidáo. Abstragóes comopovo, populaga, multidáo, público, nao existem para Deus. Para Ele,frisa Anti-Climacus, só há individuos. "Ele faz de cada homem umindividuo, um pecador particular, e depois junta aquilo que, entre o céue a térra, se encontra de possibilidade de escándalo: eis o cristianismo.A seguir ordena que creia a cada um de nos, ou seja, diz-nos:Escandaliza-te ou eré." (ibidem, p. 111).Há ainda o pecado de negar o cristianismo, a escolha de abandoná-lo.Aqui o eu se eleva ao grau supremo de desespero, ao considerar ocristianismo como mentira e fábula. Na guerra que trava contra Deus, ohomem passa, neste caso, da defensiva á ofensiva. "No paganismo é ohomem que reduz Deus ao homem - deuses antropomórficos. Nocristianismo é Deus quem se torna homem - homem-deus." (ibidem, p.114). Igualar-se a Deus é, para Anti-Climacus, um escándalo, pois saonaturezas, a do homem e a de Deus, infinitamente diferentes. Por isso,só se pode crer no paradoxo de que o divino se fez homem através dafigura do Cristo, e nao compreendé-lo. Trata-se de um ato de amor."Deus faz-se homem por amor e diz-nos: 'Vede o que é ser homem'.Todavía, acrescenta: "Tomai cuidado, porque ao mesmo tempo sou euDeus... e bem-aventurados os que nao se escandalizam de mim. '"(ibidem, p. 116). Deus se reveste, como homem, da aparéncia de umhumilde servo, para que ninguém se julgue excluido de se aproximard'Ele. Ao mesmo tempo é Deus, e nao se deve escandalizar-se dele.

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"Meu Pai e eu somos um só, e contudo eu sou este homem de nada,este humilde, este pobre, este desamparado, entregue á violenciahumana... e bem-aventurados aqueles que nao se escandalizam demim." (ibidem, p. 116). A recomendagáo que Cristo faz é: "Que cadaqual se examine", (ibidem, p. 116). Sao palavras que é preciso,conforme Anti-Climacus, intimar, reiterar sem descanso, redizer a cadaum de nos particularmente. Onde se calem, ou onde a exposigáo docristianismo nao se penetre desse pensamento, o cristianismo naopassará de "blasfemia", (ibidem, p. 117).Por fim, Anti-Climacus esclarece que o contraste entre pecado e féservirá de paño de fundo a todo o seu escrito: desde a primeira parte daobra, apresentara o estado de um eu do qual o desespero estátotalmente ausente. E esse estado é o seguinte: "Em sua relagáo comele mesmo, e querendo ser ele mesmo, o eu merguiha através da suaprópria transparencia no poder que o criou. Por conseguinte, essafórmula é a definigáo da fé, conforme realgamos tantas vezes." (ibidem,p. 119).

6 Consideragóes fináis

A julgar pela opiniáo de Anti-Climacus e pelo combate travado porKierkegaard contra a farsa da cristandade, o Ocidente nunca foi cristáo,embora assim se autodenomine. Primeiro, porque dizer que "o Ocidenteé cristáo" denota uma generalizagao que nada tem a ver com a relagáopessoal com o cristianismo (KIERKEGAARD, 1846/1949). Segundo,porque mesmo no plano individual, no qual se deveria desenvolver aefetiva relagáo com o cristianismo, esta nao acontece. Sao priorizadas,segundo Kierkegaard (1849/1986), as categorías estéticas e éticas.Pode-se, consequentemente, concluir que os modos de subjetivagáomodernos sao pagaos? Antes fossem. Neste caso, através da ignoranciasocrática, a ilusáo da cristandade comegaria, pelo menos, a ser desfeita.Cuidar de si, do mundo e do outro, agir de maneira coerente com averdade enunciada já faria uma grande diferenga. Afinal, como mostrouKierkegaard, Sócrates alcangou o mais alto patamar possível na éticapaga. (PAULA, 2009).Se a ética paga desapareceu e a crista está longe de ser praticada, há,no entanto, algumas preocupagóes típicamente pagas que ainda semantém. Kierkegaard as considera pagas porque decorrem do naoreconhecimento, pelo homem, de sua condigáo de criatura, e dadescrenga em uma providencia divina.O discurso kierkegaardiano As preocupagóes dos pagaos, de 1848,

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impressiona pela atualidade e é um dos quatro Discursos cristaos dopensador dinamarqués. Nele, Kierkegaard fala sobre sete preocupagoes:a da pobreza; a da abundancia; a da humildade; a do orgulho; a dapresungáo; a do auto-suplicio; a da dúvida, da inconstancia, dadesconsolagáo.O que caracteriza o modo de ser pagáo é a preocupagáo com o que háde acontecer. Referindo-se a um texto do Novo Testamento,Kierkegaard compara essa preocupagáo com a despreocupagáo dospássaros do céu e os lirios do campo.9 Por nao terem o mesmo tipo depreocupagáo, os pássaros e os lirios servem como professores para oshomens. Nao sao pagaos nem cristaos, mas auxiliam o cristianismo emurna época de "paganismo cristianizado". (PAULA, 2007, p. 69).O pagáo é caracterizado no texto como aquele que se preocupa comeventos futuros e com a seguranga. Neste sentido, Paula (2007) afirmaque muitos cristaos podem ser considerados pagaos. Ao usar a imagemdos pássaros e dos lirios, a intengáo nao é ensinar nem condenar, masapenas mostrar o que é o paganismo e o que se exige dos cristaos.(PAULA, 2007). Kierkegaard apresenta o pássaro como professordespretensioso, que nao se preocupa em ensinar nem se dá conta deque o faz; apenas vive, e seu modo de viver é urna ligáo silenciosa. Aoobservá-lo, vé-se que nao se inquieta com a vida material, tampoucocom o que acontecerá no dia seguinte. Age no presente. Sócrates,embora nada desejasse ensinar, dirigia-se aos pagaos do seu tempopara interrogá-los e incitá-los a cuidarem de si, ao invés de sepreocuparem com a pobreza e a abundancia, a humildade e o orgulho, apresungáo e a dúvida. Atinge ele a mais alta expressáo da ética pagajustamente porque coloca em questáo as preocupagoes do paganismo,deixando para tras o velho helenismo e apenas preparando a aparigáodo novo principio. (KIERKEGAARD, 1841/2006). Também Kierkegaardpretende alcangar o leitor através de seus textos, a fim de retirá-lo dailusáo de ser o que nao é, e o fazer voltar-se para o que interessa defato á sua existencia como espirito.

Os modos de subjetivagao modernos, com suas preocupagoes, em muitose aproximam do paganismo descrito por Kierkegaard e das formasassumidas pelo desespero. A busca ¡mediata e desenfreada da felicidadee do prazer, da vitória e do sucesso, traz inquietagáo. Quando algo falhaneste projeto, surge o desespero (no caso, o desespero conforme é vistopelo senso comum), revelando que tal forma de viver já era desespero.Aquilo que vem sendo, exclusivamente, considerado como felicidade,leia-se desfrutar a vida através do status, da ostentagáo e do consumoincessante de objetos, lugares, pessoas, drogas (lícitas e ilícitas), poderetc., para Anti-Climacus, no entanto, nao passa de profunda miseria

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espiritual, habitando o ámago da mais tranquila felicidade. Na visáo doautor, seria muito menos arriscado perder o mundo, com todos os seusatrativos, distragoes e preocupagoes, do que perder a si mesmo.Ser desesperado, pagáo, especulativo, cristao, ou constituir-se a partirde discursos e práticas tomados como verdades eternas e a-históricassao possibilidades de nosso horizonte como existentes, perante as quaisescolhemos e agimos.Podemos afirmar que a oposigáo entre a especulagáo, científica oufilosófica, representada em Migalhas pelo mestre socrático, e aimplicagáo para com a existencia, demonstrada na figura do mestrecristao, aponta para modos possíveis de ser e de viver, de se reconhecere se constituir, modos de subjetivagáo que estáo presentes comopossibilidades para cada um de nos. Da mesma forma, os modos de serpagáo e cristao debatidos por Anti-Climacus, personagem que defende oser cristao como antídoto para a doenga mortal, referem-se ao tipo depreocupagáo que move o homem em sua existencia. O pagáocontemporáneo, como o da época de Kierkegaard, é aquele que se voltapara os eventos e situagóes temporarios e transitorios, que possuiapreensóes quase ou exclusivamente materiais e passa a vida a correratrás de garantías e seguranga, sucesso e vitória, status e satisfagóes¡mediatas, sempre temendo perder o que conquistou e que acredita sera sua vida, ao mesmo tempo sempre insatisfeito com o que possui. Já ocristao nada teme no que se refere a perdas materiais, pois seu olharvolta-se para o que nao pode perecer, a sua consciéncia e os interessesespirituais: prefere perder o mundo a ganhá-lo sob o prego de perder asi mesmo. O que mais teme é o desespero. As duas posigóes nao saodestinos, exigindo-se, portanto, do sujeito, sua decisáo eposicionamento perante a própria existencia.O psicólogo, em sua prática, defrontar-se-á com essas possibilidades deser, a partir dos relatos dos clientes e em sua própria experiencia.Atuando no modo pagáo-desesperado, buscará oferecer solugóes¡mediatas, conselhos produtivos, técnicas para o sucesso, respostasprontas sobre como nao ser tímido, vencer a inseguranga, eliminar aangustia e a culpa, conquistar um amor, ser bem-sucedido. Docontrario, irá aguardar pacientemente que o outro se revele, escutaráaquilo que ele tiver mais prazer em contar sem assombro, a fim deajudá-lo a desfazer os lagos da ilusáo nos quais se enredou(KIERKEGAARD, 1849/1986), afastando-se de si mesmo e chegando aesquecer que tem um eu. A comunicagáo indireta, nesse segundo caso,favorecerá urna aproximagáo cuidadosa e sutil daquele a quem sepretende ajudar a reconhecer-se e assumir-se em sua singularidade.Anti-Climacus é um personagem ético e como tal, prescreve o ousar ser

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si mesmo e mergulhar até o poder que nos pos em relagáo,reconhecendo o Autor; recomenda, ainda, como fórmula para asuperagáo do desespero, a fé. Kierkegaard, por sua vez, nao nos pareceoferecer urna síntese como solugáo que resolva e ponha fim á polémicaentre paganismo e cristianismo. Em seu pensamento e em suaexistencia se mantém, a nosso ver, a dialética entre a estrategiasocrática e o ideal cristáo, publicando textos estéticos e religiosos aomesmo tempo, do inicio ao fim de sua produgáo, definindo-se como umautor religioso, sem se afirmar, ele mesmo, como cristáo.

Referencias

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. Post-scriptum final non-scientifique aux MiettesPhilosophiques. Paris: Edigóes Gallimard, 1846/1949.

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ou um bocadinho de filosofía de Joáo Clímacus. Petrópolis: Vozes,1844/2008, p. 9-18.VERGOTE, H. B. Sócrates e o chapéu que o torna invisível (a partir deKierkegaard). In: . Ler Kierkegaard, filósofo da cristicidade.Tradugáo de Alvaro Valls e Lucia Sarmentó da Silva, 2001 (textodigitado).

Enderezo para correspondenciaCristine Monteiro MattarRúa Mariz e Barros, 128/404 B, Icaraí, Niterói, RJ, BrasilEnderego eletrónico: [email protected]

Recebido em: 20/11/2011Reformulado em: 02/08/2012Aceito para publicagao em: 20/10/2012Acó m pan ha mentó do processo editorial: Ana Maria López Calvo de Feijoo

Notas*Professora Adjunta do Departamento de Psicología da Universidade FederalFluminense - Rio de Janeiro - Niterói/Brasil; doutora em Psicología Social pela UERJ.^á o Sócrates irónico de O Conceito de Ironía (1841); e o Sócrates pagao de MigalhasFilosóficas (1844) e de O Desespero Humano (1849).2.Joao Clímacus, na tradugáo para o portugués empreendida por Ernani Reichmann eAlvaro Valls. Optou-se por citá-lo conforme o original.3Apresentada nos diálogos platónicos: Menon, Fédon e Fedro.4O deus era a expressao grega que queria dizer "o divino", "a divindade". Climacusretoma a expressao, dando a entender, sem dizé-lo diretamente, que é do Cristo quefala. No Post-Scriptum (1846/1949), a referencia será direta.5As tradugóes francesa e brasileira nao mantiveram o título original da obra,intitulando-a respectivamente Tratado do Desespero (1949) e O Desespero Humano(2002).6Quase ao final da obra, na página 95, aparece a expressao anticlímax, com a qual oautor Anti-Climacus define a situagao daquele que pretende provar a eficacia da oragaoatravés de razóes objetivas; mas tais razóes sao vazias diante de algo que supera oentendimento. Pode-se pensar que o desespero é o anticlímax, e o pseudónimoescolhido realga tal situagao.7Edificante, na concepgao kierkegaardiana, "é tudo aquilo que pode ajudar umindividuo, dentro da sua interiorizagao, a apropriar-se de valores éticos ou religiosos"(PAULA, 2007, p. 63).8Filisteu - no sentido nao-histórico, refere-se á pessoa deficiente na cultura das ArtesLiberáis, um oponente intolerante do boémio que exibe um código moral restritivo,desaprecia as idéias artísticas. A partir do século XIX, na Europa, a palavra filisteupassou a designar pessoas de comportamento acovardado, que tém ojeriza a questóespolíticas maiores, nao valorizam a arte, a beleza ou o conteúdo intelectual esatisfazem-se com o cotidiano da vida privada pacata e confortável. O filisteu nao seriaadepto de ideáis, mas apenas de propostas práticas passíveis de serem contabilizadasem melhorias para sua vida privada ¡mediata.9Mateus 06: 24-34. (PAULA, 2007, p. 65).

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ARTIGOS

Reflexóes sobre as bases para a edificado de urnapsicología Kierkegaardiana

Reflections on the basis for a building of a Kierkegaardianpsychology

Myriam Moreira Protasio*Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,Brasil

RESUMOA obra kierkegaardiana vem sendo objeto de ampios estudos a partir dediferentes áreas de investigagao: filosofía, teología, política e estética.Ocorre-nos perguntar: qual o espago possível para se pensar urna psicologíaem Kierkegaard? Este trabalho quer buscar, a partir da pesquisa acerca dosentido da escolha efetuada por Kierkegaard em dialogar com Sócrates eCristo, as bases iniciáis ñas quais podemos pensar o projeto de urnapsicología existencial em Kierkegaard. Para tanto, pretende responder asseguintes questoes: o que levou Kierkegaard a construir suas investigagoesiniciando-as pela figura de Sócrates e do "Conceito de ironia" para, emseguida, assumir como contraponto de todo o seu pensamento a figura deCristo? Qual o sentido da sua investigagao, na voz do pseudónimo JohannesClimacus, sobre a diferenga entre o mestre Sócrates e o mestre Cristo? Qualo espago possível para urna psicología surgida a partir dessa investigagao?Palavras-chave: Kierkegaard, Sócrates, ironia, Cristo, paradoxo, psicologíaexistencial.

ABSTRACTThe Kierkegaard's work has been the subject of extensive studies fromdifferent research áreas: philosophy, theology, politics and aesthetics. Itoccurs to ask ourselves: in what space is possible to think a psychology inKierkegaard? This work intends to seek, from the research about themeaning of the choice made by Kierkegaard in dialogue with Sócrates andChrist, the foundation on which we can start thinking about the design of anexistential psychology in Kierkegaard. To do so, intends to answer thefollowing questions: what led Kierkegaard to build their investigations bystarting the figure of Sócrates and the "Concept of Irony" to then take as acounterpoint of all his thought and the figure of Christ? What is the meaningof its investigation, the voice of the pseudonym Johannes Climacus, aboutthe difference between the master and the master Sócrates Christ? Whatspace is possible for a psychology that emerged from this research?Keywords: Kierkegaard, Sócrates, irony, Christ, paradox, existentialpsychology.

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicología Rio de Janeiro v. 12 n. 3 p. 817-832 2012

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1 Introdugao

A obra kierkegaardiana vem sendo objeto de ampios estudos a partirde diferentes áreas de investigagáo: filosofía, teología, política eestética. O que se pode dizer de sua psicología? Este trabalhopretende buscar, a partir da pesquisa acerca do sentido da escolhaefetuada por Kierkegaard em dialogar com Sócrates e Cristo, asbases iniciáis ñas quais podemos pensar o projeto de urna psicologíaexistencial em Kierkegaard.Kierkegaard desenvolve suas investigagoes na primeira metade doséculo XIX, período marcado pelos movimentos humanista eromántico. O idealismo hegeliano era, nesse momento, a correntemais influente do pensamento filosófico. Ocorre-nos perguntar: o quelevou Kierkegaard a construir suas investigagóes iniciando-as pelafigura de Sócrates e do "conceito de ironía" para, em seguida,assumir como contraponto de todo o seu pensamento a figura deCristo e o próprio cristianismo? Qual o sentido da sua investigagáo,na voz do pseudónimo Johannes Climacus, sobre a diferenga entre omestre Sócrates e o mestre Cristo?Para respondermos a estas questóes, vamos iniciar tentandocompreender o modo como Kierkegaard toma a figura de Sócrates,na qual ressaltamos o projeto de apontar para a negatividade daironía naquilo que caracteriza propriamente a existencia de Sócrates,mas também de todos os homens. Outro elemento colocado emquestáo por Kierkegaard, com respeito ao Mestre Sócrates, é apossibilidade de que este, na relagáo com seus contemporáneos,venha a provocar mudangas no modo como estes pensam a simesmos.Em seguida, traremos Cristo e o cristianismo, buscando compreenderde que forma Kierkegaard, por meio do pseudónimo JohannesClimacus, entende a posigáo assumida pelo Mestre Sócrates e suaironía como oposta ao posicionamento tomado pelo Mestre Cristo, aoapontar para a diferenga entre conhecer a si mesmo e transformar asi mesmo. Mas também queremos acompanhar o pensamento dofilósofo dinamarqués em suas consideragóes acerca da diferengaentre Cristo e o cristianismo, ao entender o primeiro como modeloexistencial possível de ser repetido por qualquer homem e o segundocomo matriz ética á qual devem estar submetidos todos os homenscristáos.Tragando essa trajetória estamos indo ao encontró da proposta depsicología que enxergamos na obra de Kierkegaard. Tal proposta estáse afastando da tradigáo metafísica ou científica e propondo urnapsicología pela perspectiva da retomada de outra tradigáo, cujofundamento nao é mais a apreensáo da alma {psique) em suasfaculdades ou mesmo como objeto de conhecimento e deexperimentagáo científica e totalizadora, mas urna decisáo singular,

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um salto, um vir-a-ser, o si mesmo se constituindo nesse espago emque se articulam o particular e o universal, o individuo e a multidáo, otemporal e a eternidade.

2 Sócrates e o conceito de ironía

Sócrates e sua ironía sao o tema da tese de mestrado deKierkegaard, onde ele afirma que a ironía "fez sua entrada no mundocom Sócrates" (KIERKEGAARD, 1991, p. 23). Desde esse momento,pode-se perceber o co-pertencimento intrínseco ao conceito ironía,que só aparece e pode ser compreendido em meio á situagáo de seusurgimento, com Sócrates. Kierkegaard está dialogando com atradigáo que toma o conceito como um elemento abstrato, lógico,dedutivo ou indutivo ou mesmo eterno, no sentido de seu absolutoacontecimento para além da situagáo mesma e aponta para anecessidade de que se esclarega a situagáo originaria da qualSócrates e a ironía podem surgir em sua facticidade. Sócrates naopode ser conhecido fora da ironía, assim como a ironía só podeaparecer por meio de Sócrates. Conhecer a um e a outro exige,entáo, seguir os indicativos que nos levam até a situagáo.Heidegger (1993) esclarece que a palavra situagáo remete a urnaespacialidade e refere-se á posigáo ou á condigáo de ser-aí, que sesitúa na medida em que existe de fato. Por facticidade ele entende o"caráter de ser de nosso existir próprio. Mais exatamente a expressáosignifica esse existir em cada ocasiáo" (HEIDEGGER, 1999, p. 25). Ofilósofo alemáo esclarece, em seguida: a facticidade, ou a situagáo, éeste estar aqui pelo que toca a seu ser, nao em termos intuitivos, oupor meio de urna aquisigáo ou possessáo via conhecimento, mas oexistir que "está aqui para si mesmo no como de seu ser maispróprio". Nestes termos o que a situagáo revela é o caráter fático doser que é sempre e a cada vez ele mesmo. Aqui nos interessa asituagáo em que surge Sócrates, a qual aponta para a reciprocidadeentre Sócrates e a ironía.

A situagáo de surgimento de Sócrates se mostra em suacomplexidade, a qual denuncia a dificuldade de se conhecerpropriamente Sócrates, ou mesmo a ironía, urna vez que o gregovem ao mundo por meio do relato de seus contemporáneos.Kierkegaard recorre aos "ditos de Sócrates conservados" por "seuscontemporáneos mais próximos", Platáo, Xenofonte e Aristófanes. E éa partir da investigagáo sobre as diversas possibilidades deaparecimento da figura de Sócrates, que surgem em meio asdescrigóes do cada um destes relatos, que váo se esclarecendo aspossibilidades de efetivagáo do que vem a ser a ironía.Deste modo ele vai afirmando, indiretamente, que um conceito nao

pode ser conhecido fora do espago em que se articula e ganha vida.

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No caso da ironía socrática, esse espago é o da reprodugáo dosdiálogos socráticos, urna vez que Sócrates nao deixou registrosescritos. Mas este percurso indireto traz consigo problemas, pois aoreproduzir os diálogos, Platáo, Xenofonte e Aristófanes estáomostrando Sócrates, mas também a si mesmos, urna vez que oSócrates trazido por cada um tem um estilo diferente, urna entonagáoque faz perguntar pelo que, naquele diálogo, pertence a Sócrates, e oque pertence ao relator. Sócrates, os relatores e a ironía se mostramfaticamente nesse enredamento, de forma que "Sócrates só pode serconcebido através de um cálculo combinatorio" (KIERKEGAARD,1991, p. 25).Para que se esclarega "cada" Sócrates é imprescindível que seconhega a situagáo. A situagáo se desenha em sua complexidade: deum lado, muito é dito, de outro, o silencio, pois o dito se mostrainsuficiente para abarcar a totalidade, guardando sempre consigo onao dito, o misterio. Kierkegaard considera, entáo, que "O misteriosonada, que propriamente constituí a 'pointe' na vida de Sócrates,Platáo procurou preenché-lo dando-lhe a idéia e Xenofonte com asprolixidades do útil. Aristófanes, porém, conseguiu captar este nada,nao como a liberdade irónica, na qual Sócrates a gozava, mas sim detal modo que ele constantemente mostra a vacuidade que há ai"(KIERKEGAARD, 1991, p.124). Sócrates e a ironía váo aparecendonesse enredamento negativo, vazio de conteúdo, porque impossívelde ser conhecido de urna vez por todas, mas cheio de possibilidades.Nessa trama a ironía vai se mostrando como esse espago que dávisibilidade tanto ao dito como ao nao dito, ao exterior, mas tambémao interior, ao particular e ao universal, espago no qual algo pode sercompreendido.Conforme Paula (2001, p. 52), Sócrates foi urna figura revolucionariaem seu tempo, pois em meio as imposigóes determinísticas dosdeuses e dos costumes em relagáo á vida dos homens, materializadapela figura do oráculo, ele propóe um retorno á interioridade por meioda escuta ao demonio interior, compreendido como o elemento querecoloca a liberdade frente as determinagoes impostas. Esse espagointerior nao é um vazio abstrato, mas um esvaziar-se em relagáo asdeterminagoes previas. Já se anuncia o acento dado por Kierkegaardá existencia singular, aqui apresentada tipológicamente pela figura deSócrates. A existencia de Sócrates constitui-se no espago em que searticulam as determinagoes sócio-políticas de seu tempo (dimensaoética), as suas determinagoes particulares (dimensao estética), quese perpetuam (dimensao eterna) por meio do relato de seuscontemporáneos, os quais chegam até os nossos dias. Essaarticulagáo acontece na temporalidade histórica da existenciamaterial de Sócrates, mas também se universaliza enquanto tipo,modelo, forma. Como tipo, Sócrates pode sempre ser repetido notempo.

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Kierkegaard chama a atengáo para os tipos enquanto exemplos, cujosentido aparece na forga vital que eles expressam, definindo umexemplo como aquilo que "vale por todos, típico" (1991, p. 32).Cristo, tal qual Sócrates, surgirá como figura exemplar, que remete ásua possibilidade enquanto tipo universal que, no entanto, só pode sematerializar de forma singular na existencia histórica que, noentanto, transcende a si mesma ao perpetuar-se no tempo por meiodo cristianismo. Tentemos compreender a presenga de Cristo e docristianismo na filosofia kierkegaardiana, buscando apreender de quemodo isto pode nos remeter aos fundamentos para uma psicologia.

3 Cristo e o cristianismo

A situagáo do surgimento de Cristo e do cristianismo abre-se em suacomplexidade, a partir da qual Kierkegaard coloca em cena, maisuma vez, o problema da historicidade. Sabemos que, tal qualSócrates, também Cristo nos chega pela voz de outras pessoas, seusdiscípulos, contemporáneos ou nao a ele, uma vez que Cristo naocessa de habitar entre nos, atualizado pelo cristianismo e pela fécrista. Considerada pela perspectiva da historiografía, a investigagáopela vida de Cristo torna-se objeto da ciencia natural, que querprovar seus argumentos, saindo á cata de provas (ou ausenciadestas) que confirmem a impossibilidade ou a veracidade daexistencia de Cristo. Há, ainda, a investigagáo que busca nos textosbíblicos as suas cifras, tentando traduzi-las e decifrá-las, num esforgode provar, mais uma vez, a sua veracidade, ou mesmo de retirar dostextos as orientagóes para o cristáo, as quais se eternizam pelocristianismo. Neste caso, abre-se uma possibilidade de interpretagáodo texto bíblico, que toma o Cristo como se ele fosse uma lei eestivesse dizendo o que se deve e o que nao se deve fazer,apontando para um tipo específico de relagáo, na qual nos abstemosde uma relagáo propriamente dita com o Cristo, em nome de umarelagáo com a lei ditada pelo Cristo.Considerando que nao somos contemporáneos do Cristo e que,portanto, só temos noticias dele por intermedio dos registros escritos,mais se complica a possibilidade de compreendermos a situagáo e osentido da vida e da vinda do Cristo. O projeto kierkegaardiano nosparece, neste momento, articulado com o projeto hermenéutico deSchleiermacher, no qual o que importa é alcangar o sentido a partirdo qual as palavras estáo sendo ditas. Nesse caso a hermenéuticaexige um posicionamento diferente daquele exigido pela gramática oupela retórica, onde importa compreender os elementos do texto ouos elementos do apelo argumentativo em jogo no texto. Ahermenéutica, segundo Schleiermacher (2010), exige que se saia daordem direta da construgáo do texto e, por um movimento contrario,

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por um salto, alcancemos o sentido a partir do qual as palavras saoditas. Nessa forma de interpretagáo está em questáo a possibilidadehermenéutica na qual, a partir do texto lido, nos estabelecemos urnarelagáo efetiva com a existencia propriamente dita do Cristo, a qualtorna possível a transformagáo da nossa existencia. Kierkegaard, noentanto, está colocando em cena mais do que um projetohermenéutico de interpretagáo dos textos bíblicos. Seu projeto éexistencial e se refere ao caráter da possibilidade de transformagáode si mesmo que se abre por meio da contemporaneidade entre oleitor e o texto lido, entre a vida do leitor e as possibilidades abertaspelo texto. O que realmente importa é a possibilidade detransformagáo, ou seja, o caráter de abertura as possibilidades, quecaracteriza a existencia mesma.Kierkegaard tratará como decisáo cada determinagáo existencialassumida pelo si-mesmo, a qual se desenha na tensáo entre aindeterminagáo originaria e o caráter inevitável de ser, ou seja, de sedeterminar. Ele dirá, no livro As obras do amor (2005), que o ser dohomem só aparece por meio de seus frutos, ou seja, na facticidadedo existir que é sempre e a cada vez dele mesmo. A facticidade doexistir singular é voz da totalidade dos sentidos de seu tempo, ouseja, é particular e universal a um só tempo. Nesses termos,Kierkegaard nao está falando em conceitos, ou no conteúdo dostextos, mas no modo como o conceito aparece na particularidade decada singularidade que é, ao mesmo tempo, urna singularidade e umtipo, ou seja, o que vale para ela vale para todos. O Cristo é, entáo,ele mesmo e a humanidade, enquanto possibilidade de se concretizarna existencia de cada um, podendo ser repetido no tempo.

4 O Mestre Sócrates e o Mestre Cristo1

Sócrates e Cristo foram mestres para seus contemporáneos, e opseudónimo kierkegaardiano Johannes Climacus, no texto de 1844,Migalhas filosóficas ou um bocadinho de filosofía, se pergunta sobrecomo é possível que um mestre possa transformar alguém. Estepseudónimo problematiza a diferenga entre ocasiao e instante, entreconhecer-se a si mesmo e transformar-se a si mesmo. Ele desenvolveque a ocasiao é categoría do temporal, a partir da qual ascontingencias sao compreendidas como oportunidade para que averdade se faga conhecida. Sócrates seria o protagonista da ocasiaopara que o discípulo viesse a conhecer a si mesmo, pois conhecer a simesmo é o limite de operagáo na ordem do temporal. O instante, porseu turno, é categoría do eterno e, nestes termos, funda apossibilidade de urna transformagáo, pelo que o mestre dá a condigáopara que o discípulo transforme a si mesmo. O que Kierkegaard temem mente é a experiencia vivida no interior da fé crista, em que o

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instante, ao cortar o movimento do suceder do tempo, abre o espagopara a transubstanciagao da carne em espirito e do espirito em carne,ou seja, para a transformagáo existencial que se transcende a simesma, operando na dimensáo eterna.Climacus opondo, neste livro, o mundo grego (estético), na figura domestre Sócrates, que representa para o discípulo a oportunidade deconhecer a si mesmo; e o mundo cristao (em sua possibilidade éticae religiosa), que representa a possibilidade do discípulo transformar asi mesmo, apresenta o eterno como categoría apenas possível apartir do cristianismo: o deus sendo o mestre que pode dar acondigáo ao discípulo para que ele encontré a verdade, o que ocorreno "instante", categoría que une de forma necessária o temporal e oeterno, o particular e o universal.Afirma Climacus (KIERKEGAARD, 1995, p. 34): "Na medida em que oinstante deva ter urna importancia decisiva", a partir do instante odiscípulo se transforma em outra pessoa, urna nova pessoa, nao maissubmetido á categoría do contingente, mas á categoría do paradoxo.O fundamento dessa transformagáo é escándalo para a razáo. O quevem á tona, na diferenciagáo entre os dois mestres, é o fato de queconhecer-se a si mesmo é agáo temporal, finita, atividade racionalque se dá em um momento, enquanto transformar-se a si mesmo écategoría eterna, espago do clássico, do instante, que "deve ser"aquilo que importa", pois, urna vez convertida em absurdo peloparadoxo, "o que a inteligencia considera importante já nao é criterioalgum" (KIERKEGAARD, 1995, p. 79). O que está em questáo é aexistencia enquanto espago onde é possível que se experimente urnatransformagáo impensada, a principio.Com Sócrates, que é o mestre mundano, a possibilidade detransformagáo está submetida á lógica e se desenha no ámbito doconhecimento pautado na sabedoria na vida, ou seja, da existenciaenquanto regida pela cultura, pela vida em comum, etc. Seu métodoé o do esvaziamento da experiencia ao confrontá-la com suapossibilidade oposta, de forma a que esta tensáo converta-se emocasiáo para que algo acontega na vida do discípulo, algo da ordemdo finito e do contingente. Com seus argumentos, Sócrates vaidesdobrando as crengas de seu interlocutor, inicialmente infundadas,em crengas justificadas, estabelecendo urna nova ordem causal. EmSócrates, crenga e conhecimento se confundem, e o que eleproporciona é a condigáo para que, eventualmente os homens, queacreditam que sabem acerca de si mesmos possam, efetivamente,conhecer sobre si mesmos. Nessa nova articulagáo nao acontece,realmente, urna transformagáo existencial, mas o que se dá é aaquisigáo de um novo saber, de urna nova crenga.O que acontece com o mestre divino é diferente, porque este aceñapara urna possibilidade de justificativa existencial nao pautada emcrengas e nem na finitude. O que esse mestre revela nao está

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circunscrito no ámbito da razáo, mas no ámbito da possibilidade datransubstanciagáo, ao se desenliar como possibilidade detransformagao radical da crenga em fé. O que está em questáo paraKierkegaard é a possibilidade de urna justificativa eterna para aexistencia, entendendo o ámbito da eternidade como o ámbito emque a existencia encontra a sua seriedade para além do contingente,do temporal e do efémero. Neste caso nao cabe falar em ocasiáo ouoportunidade, mas em instante. A partir do instante o que se tem éum novo homem, em sua materialidade particular, porque é estehomem, mas também universal, porque ele encontrou a sua medidapara além dessa materialidade contingente.O fundamento dessa transformagao, a situagao mesma em que ela sedá, nao pode ser descrita por meio de um encadeamento causal, oumesmo formal, no ámbito das crengas justificadas. Transformar a simesmo exige um salto, urna vez que a condigáo para tal nuncaadvém de situagóes contingentes, mas dependem do mestre divino,que é quem pode dar a condigáo. Ñas palavras de Climacus: "Noinstante ele recebe a condigáo, e a recebe daquele mestre mesmo".(KIERKEGAARD, 1995, p. 94). Ou seja, transformar a si-mesmo naopode acontecer a partir dos elementos finitos e contingentes, e nem apartir de um encadeamento causal, mas só pode acontecer noinstante, que corta o tempo e une, de forma necessária, oselementos da existencia, uniáo que nao é urna mera jungáo, mas queconfere um sentido que justifica toda a existencia.O cristianismo da primeira metade do século XIX, assim como afilosofía, aparece para Kierkegaard marcado por urna relagáo deindiferenga com a vida mesma, ao considerar a vida pela perspectivaabstraía do sistema de conhecimento ou pela via, também abstraía,do sistema éíico. Considerada pela perspecíiva da íransformagáo daexisíéncia, o que aparece é que a vida só pode ser vivida de formasingular, ainda que o singular nao possa exisíir fora dauniversalidade, que é a própria exisíéncia. Ao colocar em quesíáo omodo crisíáo de ser enquanío possibilidade para o singular, o si-mesmo, Kierkegaard esíá pensando o homem a paríir da perspecíivada maíerialidade fáíica de sua exisíéncia, ou seja, de seus fruíos(2005), compreendidos como sendo a forma efeíiva e maíerial emque a exisíéncia se dá, o que, para ele, é sempre decisáo, urna vezque se dá em liberdade e nunca a paríir de urna adequagáo acaíegorias ou a paríir da jungáo foríuiía ou pragmáíica eníre oselemeníos que a compóem.

5 As bases da psicología kierkegaardiana

Kierkegaard, no íraíamenío conferido á figura de Sócraíes, em suaíese Conceito de ironía, e sob o pseudónimo Climacus, no íraíamenío

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conferido ao mestre divino, no texto Miga/has filosóficas, estábuscando acentuar o caráter de negatividade, ou seja, deindeterminagáo da existencia. As personagens apresentam modosespecíficos de lidar com a existencia, a qual se constituí como umaabertura indeterminada e precaria, que nao se deixa apreender deforma direta e exige ser abordada de forma indireta. Conformevimos, logo no inicio de nosso texto, o que está em questáo, nacomunicagáo indireta, é a relagáo entre o texto e o leitor. O queimporta sao as possibilidades de transformagao da existencia, abertaspor essa relagáo. Para nos a constituigáo de um espago em que sejapossível tal transformagao é a tarefa e o desafio primordiais dapsicologia. Desta forma, acompanhar a estrategia kierkegaardianaconverte-se em exercício para a concretizagáo de tal tarefa. O queimporta, agora, é pensarmos de que forma o diálogo construido porKierkegaard com essas duas figuras, Sócrates e Cristo, nos remete asbases iniciáis de uma Psicologia kierkegaardiana.Kierkegaard, ao tomar as figuras de Sócrates e de Cristo, está pondoem cena o seu método de comunicagáo indireta, cujo propósito éabrir um espago no qual uma pessoa, o "seu leitor", possa ver a simesma no texto e julgar sua própria existencia, averiguando se estase encontra fundada em crengas justificadas - prazeres, deverescotidianos, etc, ou se ela encontrou sua seriedade, ou seja, encontrousua justificativa eterna a partir do esvaziamento de toda justificativatemporal. Em lugar de uma comunicagáo direta, que tem algo amostrar ou a exigir, a comunicagáo indireta constitui-se na estrategiade dizer como quem nao diz, retirando-se para que o leitor possa vera si mesmo no comunicado.

Com relagáo a Sócrates, o elemento a ser ressaltado nao é ahabilidade argumentativa ou dialética, mas o elemento negativo daironía que, retirando-se, deixa o outro entregue a si mesmo. Estevazio, aberto pela negatividade irónica, constitui-se no espago emque tudo é possível, ou seja, nenhuma determinagáo previa oupostuma é determinante, ao mesmo tempo em que sempre sedeterminará de algum modo. No entanto, este vazio dedeterminagóes nao é carente de referencias, de onde surge outranecessidade, a de se ter a ironía sob dominio, pois apenas ao serdominada a ironía surge em sua máxima possibilidade, conformeafirma Kierkegaard (1991, p. 279):

A ironia, como um momento dominado, mostra-se em suaverdade justamente nisso: que ela ensina a realizar arealidade, a colocar a énfase adequada na realidade. (...)Com isso, a realidade adquire o seu valor, nao comopurgatorio - pois a alma nao deverá ser purificada de modoa, digamos, sair desta vida totalmente nua, branca edespojada - mas sim como historia, na qual a consciéncia seentrega sucessivamente - porém de tal modo que a

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felicidade nao consiste em esquecer tudo isso, mas empermanecer presente ai.

Recorremos á obra postuma Ponto de vista explicativo da minha obracomo escritor, onde Kierkegaard desenvolve, detidamente, o tema daironía, ao apresentar o contexto total de seu projeto, ao qual ele serefere como sendo o tornar-se cristáo, "ou tornar-se homem' (...),pois homem a gente nao é, a gente se torna" (VALLS, 2000, p. 189).O que está em questáo para ele, neste trabalho, é evidenciar quehavia um propósito total em sua obra, e que este nao se resume aeste ou aquele trabalho, mas ao conjunto total da obra, que tevesempre em vista a possibilidade da transformagao existencial do seuleitor. Ele explica que, para tanto, fazia-se necessário construir umcaminho que tornasse possível ao leitor considerar a sua própriaexistencia, julgando a si mesmo e, quem sabe, transformando a simesmo. A ironía dominada se configura, entáo, como esse caminho,em que aparece a possibilidade de que o leitor, ao julgar a si mesmo,encontré a "énfase adequada" a ser imposta á sua existencia, na quala vida pode alcangar a sua sacralidade, ou seja, a sua justificativaeterna.Considerado nesses termos, o tempo da existencia nao se configuracomo um purgatorio, ou seja, um espago de sofrimento ou de umesvaziamento que "limpa" o existente de seus pecados e o encaminhapara urna felicidade além do tempo, mas como um espago em quealgo "pode" acontecer, algo que pode encher a existencia de umsentido, o qual nao recusa a realidade, mas aprende a amá-la,abrindo a possibilidade da experiencia histórica, ou seja, da repetigáono tempo. A ironía relaciona-se, entáo, com o tempo da existencia,enquanto espago de aprendizado acerca de si mesmo.O caráter histórico da existencia implica o estar presente para si

mesmo na co-pertinencia do passado, do presente e do futuro. Aoreferir-se á figura de Cristo, Kierkegaard está usando a linguagemindireta para apontar para a contemporaneidade (o hoje) de umCristo histórico (o ontem) que está remetido ao eterno (o amanhá).Cristo, como filho de Deus, é aquele que foi que é e que será. Nestestermos, a figura de Cristo aponta para nos mesmos em nossasituagáo de termos-sido, de sermos e de virmos-a-ser. Essacoetaneidade com o sentido articulado pelo texto, para qual o textobíblico nos remete, instala urna atmosfera de seriedade, conforme apalavra usada por Vigilius Haufniensis. Isto é um completo escándalopara a razáo. A relagáo com o Cristo e com o Deus (o eterno),presente nos textos bíblicos, pode, entáo, "ensinar" sobre o caráterde urgencia da existencia. A temporalidade do eterno nos exige urnajustificativa para nossa existencia para além do contingente e dofinito, ou seja, das razóes pragmáticas da vida cotidiana. Talaprendizagem pode acontecer quando o existente se deixa educar

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pela angustia e pela adversidade (KIERKEGAARD, 2010, p. 171 e2007, p. 180).Em um texto de 1851, sob o título Para um exame de si mesmorecomendado a este tempo, Kierkegaard (2011) trata deste tema,qual seja, de urna relagáo de coetaneidade com o texto bíblico pormeio da qual o cristo bíblico aparece como um tipo possível, e o quevale para ele pode valer como referencia para que o leitor julgue a simesmo. Kierkegaard está colocando em cena, de forma negativa,porque nao expressa de forma direta, relagoes possiveis com ostextos: urna, na qual está em questáo o ler as escrituras ao modo deurna tradugáo das palavras, o que exige que se tenha urna certaerudigáo, considerando que "a escritura foi escrita em um idiomaestranho" (KIERKEGAARD, 2011, p. 44). Seguindo as reflexoes deSchleiermacher, Kierkegaard está considerando algumaspossibilidades hermenéuticas de consideragáo do texto bíblico. Aprimeira, urna pura tradugáo das palavras, contrasta com outra, a dese tomar o cristo como um provedor de criterio ético, que deve serseguido á risca por seus discípulos. Mas há, ainda, a possibilidade deurna relagáo na qual o texto surja como um espelho, onde o queimporta é poder ver-se a si mesmo no texto lido. Diz Kierkegaard:"Antes de tudo se requer que nao vejas o espelho, que nao olhes oespelho, mas sim que vejas a si mesmo no espelho" (KIERKEGAARD,2011, p. 43), de forma a que possamos dizer a nos mesmos,enquanto olhamos o espelho: "é a mim que ele fala, é de mim queele fala" (KIERKEGAARD, 2011, p. 59).O texto ganha, entáo, urna dimensáo de contemporaneidade entre asituagáo descrita e a vida fática do leitor, colocando em cena urnarelagáo em que o texto e o leitor se encontram no mesmo pathos, namesma atmosfera, ou seja, se contemporizam. Desta formaKierkegaard está apontando para o caráter singular de todacompreensáo que, ao mesmo tempo, nao pode prescindir dauniversalidade característica dos tipos possiveis.Ao colocar em questáo o tema da compreensáo do Cristo por meiodos textos bíblicos, Kierkegaard está, ao mesmo tempo, apontandopara o si mesmo como aquele que, necessariamente, nos pertence enos é devolvido, em toda e em qualquer situagáo. Este que nos édevolvido nao é, também, nada mais que um tipo, urna possibilidade,e um problema, urna vez que sua determinagáo nao elimina outrasdeterminagóes possiveis. Sendo assim, o ser nao é, sequer, confiável,no sentido de urna determinagáo em que possa descansar, mascontinua sendo um constante problema, que só pode ser resolvido nocurso do próprio existir, da própria relagáo que nos constituí. Mastransformar a si mesmo implica poder ver para além do objetivo, docontingente, do lógico, característico de urna relagáo abstraía com otexto e com a vida. Transformar a si mesmo é um acontecimentoconcreto, urna decisáo que se configura como modo de ser. Sugere

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Kierkegaard, falando a partir da relagáo estabelecida entre o leitor e otexto bíblico (2011, p. 62):

Se a palavra de Deus é para ti somente urna doutrina, algoimpessoal, objetivo, entao nao há nenhum espelho - urnadoutrina objetiva nao pode chamar-se um espelho;contemplar-se no espelho de urna doutrina objetiva é taoimpossível quanto fazé-lo em um muro. (...) Nao, durante aleitura da Palavra de Deus, deves dizer-se continuamente: éa mim, é de mim que se fala

Mais urna vez aparece o caráter circular, o caráter de um "saltocombinatorio" próprio do projeto hermeneutico kierkegaardiano. Naose trata de Sócrates, nem de Cristo, nem da palavra de Deus, mas dosi mesmo, colocado em questáo por Sócrates, no mundo grego, e porCristo e pela Biblia, no cristianismo. O que ambos tém em comum é oposicionamento negativo, assumido pela ironía, com Sócrates e peloparadoxo, com Cristo. Kierkegaard afirma, em sua tese, que a ironíaconstitui-se em espago de liberdade. Sendo negativa, a ironíamantém o sujeito "negativamente livre e, como tal, flutuante,suspenso, pois nao há nada que o segure" (KIERKEGAARD, 1991, p.227), do ponto de vista da razáo. Sócrates, com sua ironía, diz quenada pode ser ensinado, mas que o discípulo pode aprender, namedida em que conhece a si mesmo. O mestre, neste caso, podelevar o discípulo a um lugar que ele poderia chegar por si mesmo. Oparadoxo é diferente, porque o mestre Cristo nao ensina nada e odiscípulo nao pode aprender nada por vontade ou por meio doconhecimento de si mesmo. O mestre divino pode, apenas, dar acondigáo, o que exige do discípulo urna entrega, sem qualquergarantía de que algo será alcangado. Mas, ao mesmo tempo, ele podereceber tudo. O paradoxo aponta, entáo, para o caráter precario,transcendente e ilógico da existencia, que precisa alcangar a suaprópria justificativa, sem que, no entanto, o existente possa alcangá-la a partir de si mesmo, por meio de urna autoconsciéncia ou documprimento de etapas previamente determinadas.Desta forma podemos pensar que o espago terapéutico deve seconstituir ancorado na fé nos possíveis, de modo a que o processo aliaberto se efetive como condigáo de possibilidade para atransformagáo e nao se restrinja a urna mera jungáo de elementosque apontem para o conhecimento de si. Tragaremos, abaixo,algumas consideragóes no sentido de explicitar melhor essa nossacompreensáo.

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6 Consideragóes fináis

O objetivo deste artigo foi dar os primeiros passos no sentido defundamentar uma psicologia que tome por base o pensamento dofilósofo dinamarqués. Se estivermos certos em pensar que há emKierkegaard um projeto de psicologia, este deve aparecer em meioaos diversos tipos psicológicos ou, melhor dizendo, diversaspossibilidades de existir, construidos pelo filósofo ao longo de toda asua obra, por meio da apresentagáo detalhada de alguns existentestípicos. Mas, fazendo isso, ele nao estaria construindo uma psicologiaclassificatória? Ou seja, nao podemos, a partir de seus tipos,categorizarmos a nos mesmos e aos nossos contemporáneos?Podemos comegar a pensar esta questáo apenas lembrando o textocomentado ácima (KIERKEGAARD, 2011), onde aponíamos que emcada tipo importa nao o tipo, mas nos mesmos. Em qualquer situagáojamáis o que está em questáo é o outro, ou o texto, mas nos mesmosno modo como nos posicionamos. O outro é sempre aquele que nosdevolve a nos, porque com relagáo a ele nao podemos nada, mas emrelagáo a nos podemos tudo, com a ajuda do possível (o eterno, oinfinito), conforme coloca Vigilius Haufniensis, em O Conceito deangustia. Nestes termos, em meio aos tipos apresentados porKierkegaard, o que está em questáo é, sempre, o si-mesmo, nodesafio de transformar a sua existencia numa existencia justificada.O pseudónimo Haufniensis (KIERKEGAARD, 2010) dirá que para Deustudo é possível. O acento aqui nao deve recair no Deus, adverte ele,como entidade que nos infantiliza e que toma de nos o nosso destino.O acento aqui deve ser colocado no possível, espago no qual aexistencia se concretiza e onde ela pode aprender acerca de simesma e onde ela pode encontrar a sua justificativa. Sendoindeterminados, soltos pela negatividade que nos constituí, a únicatarefa que temos, e da qual nao podemos escapulir, é a tarefa desermos o nosso próprio destino (o ter de ser, conforme diráHeidegger em Ser e Tempo).

O si mesmo é o tema central da psicologia, tratado por essa ciencia,em suas diferentes perspectivas, por denominagóes como ego,consciéncia, sujeito ou mesmo como comportamento. Assim nosaproximamos um pouco mais do modo como podemos pensar umapossibilidade de psicologia em Kierkegaard, a qual deve se instalar noespago aberto pela relagáo entre do si mesmo consigo mesmo.Vigilius Haufniensis vai denominar este espago de angustia e mais,dirá que é esse o lugar da psicologia. Outro pseudónimo, Anti-Clímacus, tratará específicamente do si-mesmo e do desafio deconquistar-se a si mesmo no texto A doenga mortal, o si mesmopensado como uma relagáo que consigo mesma se relaciona e que,nessa relagáo, precisa se relacionar consigo mesma. Estes temas,angustia e desespero, sao fundamentáis para que possamos nos

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aprofundar numa proposta de psicología que tome o pensamentokierkegaardiano como seu fundamento, e devem ser amplamentedesenvolvidos, mas tal tarefa deverá esperar outra oportunidade paraser levada a termo.No momento importa explicitar o sentido do que estamosdenominando de bases iniciáis para urna psicología kierkegaardiana,pensadas neste texto por meio da escolha do dinamarqués pordialogar com as figuras de Sócrates e Cristo. Kierkegaard afirma, aofinal de seu Postscriptum (2009), que sua obra pseudonimica teveum fundamento essencial, que era a produgáo poética, que exigíaurna neutralidade "a respeito do bem e do mal, frente a compulsáo ea jovialidade, ao desespero e á presungáo, ao sofrimento e ao gozo"(KIERKEGAARD, 2009, p. 627, tradugáo livre). Tal neutralidade sedetermina pela consistencia psicológica dos tipos criados pelo filósofoe que ele reconhece como Ihe pertencendo, "ainda que só na medidaem os coloquei na boca do personagem poético real e criador"(idem).Tendo esta argumentagáo do dinamarqués em vista, consideramosque tanto Sócrates como Cristo, conforme aparecem descritos ácima,a partir da autoría do próprio Kierkegaard, em Conceito de Ironía, esob o pseudónimo Johannes Climacus, em Migalhas filosóficas,constituem tipos da variedade psicológica apresentada porKierkegaard no conjunto de sua obra. O projeto kierkegaardiano,conforme explicitado em sua obra Ponto de Vista explicativo da minhaobra como escritor, pode ser resumido como a tentativa de tirar ohomem da ilusáo de ser quem ele, efetivamente, nao é. Nesta tarefa,os tipos psicológicos se constituem em espelhos, nos quais o leitorpode ver a si mesmo e julgar a si mesmo. Neste caso concluímos queas figuras de Sócrates e Cristo nos remetem para duaspossibilidades: modificar nossa existencia a partir da mera mudangana articulagáo das circunstancias, no caso de Sócrates, outransformar-nos a nos mesmos, por meio da condigáo aberta pelomestre divino, que pode nos condicionar para o salto experimentadono instante transformador.Kierkegaard desenvolverá, ao longo de sua obra, ¡números outrostipos psicológicos. É nossa interpretagáo que a psicologíakierkegaardiana encontra nestes tipos sua base, urna vez que cadatipo fala de si mesmo enquanto singularidade, mas também apontapara a universalidade de seu tipo, ao ser possibilidade para todos oshomens. Urna psicología kierkegaardiana deve deixar-se educar pelastipologías do dinamarqués, entendendo-as em sua condigáo detensáo entre singularidade e universalidade, finitude e infinitude,possibilidade e necessidade. Tal tensáo, no entanto, aparece semprena figura de cada individuo singular, de cada tipo descrito.Urna psicología que busque seus fundamentos no pensamentokierkegaardiano precisará transitar pelos problemas trazidos á baila

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por seus diferentes pseudónimos e, tal qual tentamos mostrar ácima,deve cuidar para que o espago da relagáo terapéutica nao se restrinjaao autoconhecimento, mas que se constitua em espago negativo noqual urna transformagáo seja possível.

Referencias

HEIDEGGER, M. Ser e tempo I I . Petrópolis: Ed. Vozes, 1993.HEIDEGGER, M. Hermenéutica de la facticidad. Madrid: AlianzaEditorial, 1999.KIERKEGAARD, S. A. Ponto de vista explicativo da minha obracomo escritor. Lisboa: edigóes 70, 1986.KIERKEGAARD, S. A. O conceito de ironia: constantemente referidoa Sócrates. Petrópolis: Editora Vozes, 1991.KIERKEGAARD, S. A. Migalhas filosóficas ou um bocadinho defilosofía de Joao Clímacus. Petrópolis: Vozes, 1995.KIERKEGAARD, S. A. As obras do amor: algumas consideragóescristas em forma de discursos. Braganga Paulista: EditoraUniversitaria Sao Francisco e Petrópolis: Editora Vozes, 2005.KIERKEGAARD, S. A. Tres discursos edificantes de 1843.Teresópolis: Henri Nicolay Levinspuhl, 2007.KIERKEGAARD, S. A. La enfermedad mortal. Madrid: EditorialTrotta, 2008.KIERKEGAARD, S. A. Postscriptum no científico y definitivo aMigajas filosóficas. México: Universidad Iberoamericana, 2009.KIERKEGAARD, S. A. O Conceito de angustia. Petrópolis: Vozes,2010.KIERKEGAARD, S. A. Para un examen de sí mismo recomendadoa este tiempo. Madrid: Editorial Trotta, 2011.PAULA, M. G. de. Socratismo e cristianismo em Kierkegaard: oescándalo e a loucura. Sao Paulo: Annablume: Fapesp, 2001.SCHLEIERMACHER, F. D. E. Hermenéutica: arte e técnica dainterpretagáo. Petrópolis: Vozes e Sao Paulo: Editora UniversitariaSao Francisco, 2010.VALLS, A. L. M. Entre Sócrates e Cristo: ensaios sobre a ironia e oamor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPICURS, 2000.

Enderezo para correspondenciaMyriam Moreira ProtasioEnderezo Rúa Baráo de Pirassinunga, 62 - Tijuca -CEP 20521-170 - Rio de Janeiro - FU, BrasilEnderego eletrónico: [email protected]

Recebidoem: 06/12/2011Reformulado em: 30/09/2012

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Aceito para publicagao em: 11/10/2012Acompan ha mentó do processo editorial: Ana Maria López Calvo de Feijoo

Notas*Doutoranda em Filosofía no Programa de Pos Graduagao em Filosofía da UERJ,Mestre em Filosofía pelo Programa de Pos Graduagao em Filosofía da UERJ.^mbora Climacus nao se refira, em seu Migalhas filosóficas, ao mestre como sendoo Cristo, ele afirma que se passaram "mil oitocentos e quarenta e tres anos entre odiscípulo contemporáneo e essa nossa conversa", do que denotamos que o mestreem questao é o Cristo. (KIERKEGAARD, 1995, p. 128).

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ARTIGOS

O método fenomenológico em psicología: urna leiturade Nilton Campos

The phenomenological method in psychology: a Nilton Camposlecture

Adriano Furtado Holanda*Universidade Federal do Paraná - UFPA, Belém, Para, Brasil

RESUMOEste trabalho de Historia da Psicología é parte de um projeto maior, o qualse propoe a construir a historia da fenomenología no Brasil. Nilton Campos éo responsável pela primeira publicagao que relaciona diretamenteFenomenología ao campo da Psicología em nosso país. O trabalho procuraigualmente langar luzes sobre as possíveis razoes que justificariam odesenvolvimento tardio do pensamento fenomenológico no Brasil. Partindoda leitura de sua tese de concurso, de 1945, intitulada O MétodoFenomenológico na Psicología, o trabalho procura ¡solar as influencias e osautores envolvidos no desenvolvimento de seu trabalho, buscandoesclarecer os primeiros caminhos da psicología fenomenológica no País. Saoapontadas as relagoes com o pensamento de Brentano e da Escola deBerlim, e finaliza por apontar a contemporaneidade do trabalho de NiltonCampos, seu lugar no contexto da historia da psicología brasileira, bemcomo seu legado em autores mais recentes, como Antonio Gomes Penna.Palavras-chave: Fenomenología, Psicología, Historia da psicología.

ABSTRACTThis work in the perspective of the History of Psychology is a part of a largerproject, that aims to build the history of phenomenology in Brazil. NiltonCampos is responsible for the first publication that directly relates to thefield of psychology Phenomenology in our Country. The work also seeks toshed light on the possible reasons that would justify the late development ofphenomenological thought in Brazil. Based on a reading of his thesiscompetition and entitled The Phenomenological Method in Psychology, thework seeks to isolate the influences and authors involved in thedevelopment of their work, seeking to clarify the first ways ofphenomenological psychology in the country. We point out relations with thethought of Brentano and the School of Berlin, and concludes by pointing outthe contemporary work of Nilton Campos, its place in the history ofpsychology in Brazil, as well as his legacy in more recent authors such asAntonio Gomes Penna.Keywords: Phenomenology, Psychology, History of psychology.

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicología Rio de Janeiro v. 12 n. 3 p. 833-851 2012

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Adriano Furtado HolandaO método fenomenológico em psicología

Este trabalho é, antes de tudo, urna homenagem ao Prof. AntonioGomes Penna (1917-2010), Professor Emérito da UFRJ, que ajudou aconstruir a psicología brasileira, a quem devo profunda admiragáo egratidáo por me haver presenteado, no ano de 2000, com umexemplar da obra de Nilton Campos.

1 Introdugao

A proposta deste trabalho, que se enquadra na perspectiva daHistoria da Psicología, é de procurar tragar urna historia dopensamento fenomenológico no Brasil. Trata-se, na verdade, de umdestaque de um projeto maior, que visa construir um quadro daFenomenología no Brasil, de seus primordios á atualidade,destacando os principáis autores que desenvolveram o tema no país,bem como seus precursores e suas obras.A idéia de construir um panorama histórico da Fenomenología noBrasil nao é nova, mas seguramente aínda demanda pesquisas. Naexpectativa de poder contribuir com o debate nesta diregáo, nossaproposta se contextualiza na perspectiva de compreender doisaspectos dessa historia, na igual expectativa de clarear o campo atualda fenomenología brasileira.Os dois aspectos a que nos referimos sao os seguintes:

a) compreender o lugar da fenomenología no pensamento brasileiro -e tentar entender as razóes pelas quais esse pensamento ainda naofoi suficientemente desenvolvido em nosso país; eb) compreender e tentar delimitar igual contexto no campo atual dasPsicologías, e procurar entender os vieses decorrentes das diversasleituras que estas práticas ou teorías fazem da Fenomenología.

Com relagáo á primeira expectativa, podemos dizer que já existemdados suficientes que ajudam a discriminar um viés dito"existencialista" para a fenomenología no Brasil, como bem descreveGuimaráes (1984, 2000), ao tragar o percurso histórico dopensamento fenomenológico no Brasil, e reconhecer o "idearioexistencialista" como sua porta de entrada.Na expectativa de tragar esse quadro, reconhecemos a figura deRaymundo de Farias Brito (1862-1917) como um precursor das idéiasfenomenológicas no Brasil, como bem aponta a já conceituadabibliografía sobre esse autor (NOGUEIRA, 1962; GUIMARÁES, 1984,2000). Todavía, é sob um "ideario existencialista" que aFenomenología ganha espago no pensamento filosófico no Brasil, apartir da década de 1940 (GUIMARÁES, 1984, 2000).Nomes como os de Euryalo Cannabrava (1908-1979) e VicenteFerreira da Silva (1916-1963) aparecem - no terreno da filosofía -

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como os pioneiros nesta empreitada. Mas um terceiro nome ganhadestaque ainda nos anos 1940, agora associado á emergente cienciapsicológica, que é Nilton Campos, a quem iremos nos reportar nestemomento. Um dos objetivos dessa apresentagáo é mostrar que afenomenología brasileira - tal qual o próprio projeto husserliano(HUSSERL, 1907/1990, 1910/1965, 1913/1985, 1928/2011; GOTO,2008; HOLANDA; FREITAS, 2011) - desde cedo encontra solo fértilna Psicología, e que esta pode ser considerada urna cienciaprivilegiada para o desenvolvimento das idéias fenomenológicas.

2 Nilton Campos e o Pioneirismo na Fenomenología

As reflexóes e as aplicagoes da Fenomenología ao campo daPsicología, tém no nome de Nilton Campos urna referencia obrigatóriae pioneira para grande parte dos psiquiatras e psicólogos brasileiros(MORUJÁO, 1990; GUIMARÁES, 2000), tendo-o igualmente comofigura importante na construgáo da psicología brasileira (CABRAL,1964; PENNA, 1992, 2001).Nilton Campos (1898-1963) nasceu no Rio de Janeiro e formou-se emMedicina na Faculdade Nacional de Medicina da antiga Universidadedo Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), voltando-separa a neurología e a psiquiatría. Foi o primeiro profissional adedicar-se em tempo integral á Psicología (CABRAL, 1964).Após sua especializagáo em psiquiatría, Nilton Campos passa aintegrar, já em 1924, a equipe da Colonia de Psicópatas do Engenhode Dentro1, na época dirigida por Gustavo Riedel que, em 1923, criaum laboratorio de Psicología. Com o apoio financeiro da FundagáoGraffée-Guinle, o laboratorio foi instrumentalizado e passou á diregáode Waclaw Radecki, do qual passa a ser assistente. O Laboratoriofuncionava como instituigáo auxiliar médica, como núcleo depesquisas científicas e como centro didático de formagáo depsicólogos (ANTUNES, 1998; PENNA, 2001; GOMES, HOLANDA;GAUER, 2004; CENTOFANTI, 2011).Nilton Campos atua no Laboratorio de Psicología entre 1925 e 1937,com urna breve interrupgáo para viagem a estudos á Europa, em1927 (CAMPOS, 1945), e por urna "missáo profissional a Sao Paulo",em 1931 - onde, entre 1931 e 1933 - ajuda a organizar e fundar oInstituto Médico-Pedagógico Paulista - voltado para o trabalho comexcepcionais -, com seu amigo Joaquim Penino (PENNA, 2001). Aindaem Sao Paulo, Nilton Campos participa da fundagáo da Sociedade deNeuropsiquiatria de Sao Paulo.A partir de 1934, já de volta ao Rio de Janeiro, torna-se diretor doServigo Neuropsicológico da Secretaria de Saúde e Assisténcia aPsicópatas do Distrito Federal (PENNA, 1992, 2001) e, no anoseguinte, é designado Diretor do Instituto de Psicología de Assisténcia

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Adriano Furtado HolandaO método fenomenológico em psicologia

a Psicópatas, até 1937 (PENNA, 1992, 2001; GOMES, HOLANDA;GAUER, 2004; CENTOFANTI, 2011). Teve ainda passagem comoprofessor do Colegio Pedro II e na Faculdade Nacional de Filosofía(em substituigáo a Lourengo Filho).A partir de 1944 passa a exercer a cátedra de Psicologia Geral, naFaculdade Nacional de Filosofía, em substituigáo a André Ombredane.Esta cátedra foi conquistada através de concurso, quando apresentousua tese, preparada em 1945, sob o título O Método Fenomenológicona Psicologia (CAMPOS, 1945; PENNA, 1992, 2001; GUIMARÁES,2000; GOMES; HOLANDA; GAUER, 2004).Numa sensível análise, Penna (1992) assinala - em A Historia daPsicologia no Rio de Janeiro - o esforgo de Nilton Campos paraencaminhar empíricamente o método fenomenológico. Um dosaspectos mais importantes do legado de Nilton Campos para aFenomenologia e a Psicologia brasileiras é o fato que este antecipa, jáem sua tese, a potencialidade desse método para a pesquisapsicológica, além de assinalar a proximidade com varios aspectos daPsicologia da Gestalt, destacando, contudo, urna percepgáo crítica daapropriagáo desta escola do método fenomenológico, quando apontapara a necessidade de modificagáo do método para melhoradequagáo á pesquisa em Psicologia.O texto de Nilton Campos permanece, ainda hoje, como um textoatual e singular, pela sua clareza de exposigóes e, principalmente porsua visáo crítica e aberta do método. Como assinala em sua tese, a"pesquisa fenomenológica procura descobrir, e nao, inventar"(CAMPOS, 1945, p. 17). Defendendo urna posigáo compreensiva dapesquisa em psicologia - na mesma diregao da proposigao diltheyana- completa: n...a investigagáo fenomenológica tem que se afastartanto da interpretacao vulgar como da refíexao lógica sobre anatureza da realidade" (CAMPOS, 1945, p. 44).A obra de Nilton Campos nao se resume á sua tese. Além de diversosartigos empíricos publicados durante sua participagáo no Laboratorioda Colonia de Psicópatas do Engenho de Dentro, seria importantedestacar alguns artigos relacionados diretamente com aFenomenologia, como o texto "A influencia do pensamento de Diltheyna evolugáo da Psicologia como ciencia autónoma", publicado noAnuario do Instituto de Psicologia em 1951; "Diferenga entredescrigáo e explicagáo no estudo da Psicologia", de 1953;"Antecedentes filosóficos do isomorfismo gestaltista", de 1954 e"Importancia e Significado da análise fenomenológica no estudo dasciencias", de 1958, todos publicados no Boletim do Instituto dePsicologia.

3 Sobre "O Método Fenomenológico em Psicología'

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Adriano Furtado HolandaO método fenomenológico em psicología

A tese de Nilton Campos, que iremos agora analisar, pode - e deve -ser considerada desde já um clássico da historia da psicologíabrasileira. Nao deixa de ser, igualmente, um escrito epistemológicoque radica sua discussáo ñas diversas facetas de urna cienciaprincipiante, ainda infante, e que discute os diversos modelos deapropriagáo que esta ciencia busca em seu processo de autonomía.Neste particular, o cenário atual nao está táo distante de suasdiscussóes, principalmente quando discutimos o "fazer" e o "saber"da Psicología. O autor também nao se exime de questionar osalicerces ideológicos propugnados por determinados contextos deépoca.Um dos aspectos mais significativos de sua tese é o fato de destacaras mais recentes reflexóes - de sua época - no terreno da Psicologíae da Filosofía. Para tal, basta observarmos que na sua apresentagáo,Nilton Campos conta com comentarios sobre sua obra, de autoresrenomados como Wolfgang Kóhler e Gordon Allport, que congratulamo pesquisador brasileiro por seus esforgos e reflexóes.O Método Fenomenológico em Psicología é sua Tese a presentada áCátedra de Psicología Geral, ocupada interinamente desde 1944. Paraefetivagáo desse trabalho, Nilton Campos (1945) ressalta suasconsultas as fontes origináis de Brentano e Husserl, feitas gragas aoauxilio de Achim Fuerstenthal, que havia sido aluno de HermánSchmulenbach, na Basiléia - este, finalmente, antigo discípulo deBrentano. Sua Tese foi finalizada em margo de 1945.O trabalho está dividido em quatro capítulos:

1) Os Fundamentos da atitude fenomenología;2) A Investigagáo fenomenológica deschtiva em psicología;3) A Legitimidade do método introspectivo; e,4) As Modalidades da natureza intencional da consciéncia e adistincao entre funcao e conteúdo.

Iremos brevemente nos reportar cada capítulo, buscando discutiraspectos relevantes para a psicología e a pesquisa psicológica, bemcomo apontando elementos que toquem a discussáo filosófica. Otrabalho como um todo é urna defesa da fenomenología e urnaaproximagáo ao Gestaltismo mas, antes de tudo, é urna leitura sobreos fundamentos da Psicología.

3.1 Capítulo I - "Fundamentos da Atitude Fenomenológica"

Nilton Campos (1945) comega sua discussáo com a controversiasobre a natureza do objeto da psicología. Fala, desde já, de"psicologías", o que contrariaría o reconhecimento da autonomíadesta ciencia, num texto absolutamente erudito e que demonstrarelagáo direta com a literatura mais atualizada, á época.

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Adriano Furtado HolandaO método fenomenológico em psicoiogia

No debate epistemológico sobre a validade das ciencias, chama aatengáo para o criterio de validade das hipóteses, que seria aconcordancia com os fatos e, portanto, deveria derivar da observagáodos fenómenos, desprovida de julgamentos. Isto nos reporta ámáxima husserliana sobre o positivismo. Em suas Ideen, de 1913,escreve Husserl:

Se por 'positivismo' entendemos o esforgo, absolutamentelivre de pré-julgamentos, para fundar todas as ciencias sobreo que é 'positivo', ou seja, suscetível de ser tomado demaneira originaria, somos nos os verdadeiros positivistas(HUSSERL, 1913/1985, p. 69).

Citando Charles Spearman, quando este aponta que uma ciencia damente se alia á experiencia atual, evoca a máxima latina Hypothesisnon fingo ("hipóteses, nao fago" ou "nao invento" ou "crio"), evocadapor Isaac Newton quando inquirido sobre as "causas" da gravidade,cuja resposta seria "apenas" a constatagáo - a partir dos própriosfenómenos - da ocorréncia de tal ou tal fato. Em nosso contexto, dizrespeito ao recurso á experiencia direta como base e solofundamentador para uma ciencia empírica.Ainda nesta diregáo, toma o Gestaltismo como a escola que defendea experiencia direta, e cita Koffka quando este diz que o métodofenomenológico é a descrigao ingenua e completa da experienciadireta [em Principios da Psicoiogia da Gestalt]. Mas o Gestaltismo naose satisfaz com a pura descrigao e propoe nova hipotese naturalista,o isomorfismo. "Se o isomorfismo for válido, as fungóes do SistemaNervoso apresentam as mesmas propriedades molares dosfenómenos mentáis" (CAMPOS, 1945, p. 14).Ao se referir a uma crítica contra o "naturalismo" gestaltista,recupera a tese de William MacDougall - colocada em Dynamics ofthe Gestalt-Psychology, de 1936 - quando este caracteriza a hipoteseisomorfista como uma "nova versáo do antigo paralelismo psico-fisiológico" (CAMPOS, 1945, p. 14). Ficamos nos perguntando, oquanto que nossa cultura ou nossa modernidade se afastou dessashipóteses polares e o quanto "superamos" esses modelos tidos comoarcaicos na contemporaneidade. Em outras palavras, estamosafirmando a atualidade da crítica ao naturalismo, presente nopensamento fenomenológico, e a sua diregáo aos modeloscontemporáneos de psicoiogia, além da inutilidade do debate emtorno da "unidade" do pensamento psicológico.Esta crítica ao naturalismo gestaltista se expressa muito bem naseguinte passagem: "Verificamos que os gestaltistas, apesar derepelirem o mecanicismo e o vitalismo, incidem na preocupagáo deformular outra teoría explicativa, levantando a suspeita de desejaremfísica ¡izar a psicoiogia" (CAMPOS, 1945, p. 14).

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Todavía, em sua própria defesa, os gestaltistas clamaram por urnafiliagáo á realidade fenomenológica dos fatos da consciéncia,tomando-os como os objetos de investigagáo psicológica, como temosem Kóhler e Koffka. O próprio Nilton Campos apresenta, em especial,dois textos como apoio: The Place of Valúes in a World of Facts, deWolfgang Kóhler; e Principies of Gestalt, de Kurt Koffka. Kóhlermesmo reconhece que "(•••) voltar as coisas-mesmas é urna artedifícil que Husserl chamou fenomenología".A esta defesa de urna perspectiva científica baseada na realidadeconcreta e desprovida de preconceitos, Nilton Campos (1945) aindaafirma que "(•••) as doutrinas nenhum progresso real trazem para aciencia" (p. 16). Sem dúvida, diríamos que esta seria "a verdadeira"posigáo do cientista, muito próximo do que Carl Sagan - grandedivulgador da ciencia - delimitaría como o espirito "democrático" daciencia. Igualmente Husserl - em famosa epígrafe - concordaría, aocolocar que "o verdadeiro método segué a natureza das coisas ainvestigar, mas nao segué os nossos preconceitos e modelos".Nessa mesma perspectiva, um interessante paralelo tragado peloautor, refere-se á posigáo de Bertalanffy sobre a dupla oposigáorelativa á crise da biología: por um lado, urna idéia que reduz osprocessos biológicos a sua físico-química; por outro, principiosexplicativos metafísicos, "divorciados dos fatos". "Assim, em lugar daambicionada autonomía científica, o estudo dos fenómenos biológicososcila entre a física e a metafísica" (CAMPOS, 1945, p. 16). Idéntica aposigáo da Psicología, oscilando entre o materialismo e oespiritualismo, sendo que "ambos impedem a pesquisa dosfenómenos psíquicos livre de preconceitos" (CAMPOS, 1945, p. 16).Assim sendo, o mérito da atitude fenomenológica é exatamente a suaposigáo pré-teorética:

(...) a investigagáo fenomenológica nao emprega nenhummétodo de análise dissociativa. Nao disseca artificialmente arealidade para reduzi-la a elementos últimos. Limita-se arespeitar os fatos em seu aparecimento original, observándo-os como eles sao em si mesmos (CAMPOS, 1945, p. 17).

Distinto do idealismo kantiano, que separa os fenómenos donoumenon. Alia-se, todavía, a Leibniz, quando este se nega aconsiderar o mundo um caos. E na mesma diregáo da máxima: Alieswas ist hat Sinn, "tudo se faz sentido"; ou, tudo tem um sentido. Aposigáo, pois, da Fenomenología - e que alicerga a colocagáohusserliana que a considera a "ciencia das ciencias" - é que "[A]pesquisa fenomenológica procura descobrir, e nao inventar"(CAMPOS, 1945, p. 17). O próprio Husserl, em suas InvestigagóesLógicas, coloca que "o sistema inerente á ciencia - naturalmente averdadeira ciencia - nao é urna invengáo nossa, mas reside ñas

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coisas, das quais as descubrimos simplesmente", como cita Campos(1945, p. 18). E continua Husserl (1900/2005): "(•••) o dominio deurna ciencia é urna unidade objetiva fechada; nao reside no nossoarbitrio onde e como delimitamos o dominio da verdade" (p. 31).Campos (1945) chama a atengáo para esta posigáo husserliana,quando este afirma que:

Toda a teoría ñas ciencias empíricas é meramentepressuposta. Ela nao fornece explicagao a partir das leisfundamentáis intelectivamente certas, mas somenteintelectivamente prováveis. Assim, também as própríasteorías sao somente de probabilidade intelectiva, teoríassomente provisorias, nao definitivas (HUSSERL, 1900/2005,p. 255).

Percebe-se, aqui, a atualidade do pensamento fenomenológicoexpresso por Nilton Campos. Ainda, a fenomenología investiga arealidade do mundo natural, sem duvidar de sua existencia. Esta é aprópria afirmagáo do mundo que faz Husserl ñas Idéias, ao se referirá epoche:

(...), eu nao negó este "mundo", como se fosse um sofista;eu nao coloco sua existencia em dúvida, como se fosse umcético; mas eu opero a epoche "fenomenología" que meimpede de todo julgamento sobre a existencia espacio-temporal (HUSSERL, 1913/1985, p. 102-103).

A Fenomenología é, pois, contraria a qualquer forma de ceticismo.Em apoio a esta idéia, Nilton Campos ainda nos lembra AlbertEinstein, quando este diz que difícilmente alguém contemplaría asestrelas sem crer em sua existencia; e Max Planck, que afirma que aciencia também precisa de espíritos crentes. "A investigagáofenomenológica funda-se na consideragáo da realidade de todos osseres, sejam propriamente reais, no sentido de rerum natura, oupuramente ideativos" (CAMPOS, 1945, p. 19). Assim, um centauro(como exemplifica Sartre), ou a figura de Júpiter (outro exemplo,este de Husserl), sao táo reais como objetos da consciencia, quanto ocorpo que vivo, a folha de papel que tenho ñas máos, a inflagáo quecorrompe minhas economías ou o delirio do sujeito delirante.Nilton Campos - ainda em seu exercício de erudigao - cita Taine, quenum escrito de 1870, sobre a inteligencia, quando este aponta apercepgáo exterior como urna "alucinagáo", mas que primeiramentese apresenta como urna sensagáo (CAMPOS, 1945). Mas o próprioHusserl já afirmara que nao vemos a sensagáo das cores, mas ascoisas coloridas. "A teoría alucinatória do mundo exterior é [pois]incompatível com a atitude fenomenológica" (CAMPOS, 1945, p. 20).A atitude fenomenológica é a abertura do sujeito ao mundo, emintrínseca relagáo com este. Homem e mundo se constituem.

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O próprio William James, ao falar sobre as alucinagoes, afirma ser umerro considerar que as mesmas tém ausencia de estímulos objetivos.A fenomenología admite - ao mesmo tempo - tanto a realidade dapercepgáo exterior, quanto a objetividade dos conteúdos mentáis.Para apontar a "natureza" da investigagáo fenomenológica darealidade, Nilton Campos recorre a Binet, e recorre ainda á historiadesse genio da psicología, que - primeiramente ao adotar urnaperspectiva atomística, considerando a percepgáo como urna "síntesede sensagóes e imagens" - ao visitar o laboratorio de Leipzig, em1893 -, e mobilizado por urna grande decepgáo decorrente destavisita, modifica radicalmente seu pensamento quanto á aplicagáo dométodo experimental ao progresso da Psicología. Parte daí para urnadiscussáo com Oswald Külpe, o que permite a Binet urna novaconcepgáo de método experimental, agora liberto do fisiologismo, eque levou o nome de "introspecgáo dirigida", sendo publicado em1903, em L'Étude Experiméntale de l'intelligence.

A intransigencia de Wundt relativamente ao emprego dométodo experimental na pesquisa dos fenómenos mentáissuperiores precipitara o aparecimento de um novo centro deestudos, em Würzburg, sob a diregao de Külpe,desenvolvendo-se ai, a partir de 1901, a chamada'Denkenpsychologie' ["Psicología do pensamento"] (CAMPOS,1945, p. 23).

Dissidéncia esta que teria favorecido Brentano, que fizera seriascríticas á obra wundtiana - Grundzüge der physiologischenPsychologie - no seu caráter de restrigáo á pesquisa associada áfisiología. Em seu lugar, Brentano coloca a "experiencia", como aapreensáo direta dos fenómenos. Mesmo que Boring (1929) aponteque a "psicología empírica" de Brentano nao seja urna "psicologíaexperimental", conclui-se que a própria experimentagáo sistemáticaprecisa da descrigáo, sendo assim - segundo Nilton Campos (1945)- "indubitável que as descobertas realizadas nos laboratorios deWürzburg e Graz foram influenciadas pelas idéias de Brentano, queclamavam pela emancipagáo da pesquisa psicológica do naturalismoexperimental" (p. 24). Foi a "conversáo" brentaniana ao conceitoescolástico de intencionalidade que possibilitou o advento daFenomenología.Campos (1945) ainda ressalta a interessante proximidade entre ospensamentos de Husserl e de Ehrenfels, mais específicamente no queo primeiro escreve em sua Filosofía da Aritmética, de 1891; e no queo segundo escreve em 1890, sobre as Gestalt-qualitáten. E,igualmente, chama-nos a atengáo para esse importante movimentode renovagáo e revisionismo dos estudos psicológicos, em fins doséculo XIX, representado por figuras proeminentes como HenriBergson (em Les Données Immédiates de la Conscience, 1889),

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William James (em Principies of Psychology, 1890) e Wilhelm Dilthey(em Ideen über eine beschreibende und zergliedernde Psychologie[Idéias concernentes a urna psicología descritiva e analítica], de1894), em aberta "oposigáo ao mecanicismo dominante [que] dáoorigem respectivamente a novos criterios teleológicos sobre o caráterqualitativo dos fenómenos mentáis, a natureza dinámica daconsciéncia e a diferenga entre explicar e compreender a atividademental" (CAMPOS, 1945, p. 25).Direta ou indiretamente, Nilton Campos antecipa urna discussáosobre o método "qualitativo" em pesquisa, que somente toma forgana década de 1980, cerca de trinta anos depois, e que hoje -podemos afirmar - encontra-se solidificado.Imediatamente a influencia dessas idéias encontra terreno fértil napsicopatologia - até entáo dominada pela "anatomía patológica" -através de Karl Jaspers, como podemos observar em sua proposta deurna psico-patologia, a partir de urna "fenomenología descritiva",como a apresentagáo dos estados psíquicos vivenciados pelospacientes. Nisto - escreve Jaspers (1987) - "nos servem de ajuda,sobretudo, as descrigóes próprias dos pacientes (...)" (p. 75).Retomemos Nilton Campos (1945), em sua defesa de urna identidadepara a ciencia psicológica, com urna base fenomenológica: "A atitudefenomenológica defende o direito de as ciencias possuírem um objetoespecífico e inconfundível (...). [Mas] o verdadeiro espirito científicoconsiste no respeito aos limites naturais que distinguem entre si asciencias, a fim de consagrá-las em sua autonomía" (p. 28). Com isto,Nilton Campos afirma a irredutibilidade de urna ciencia á outra e,portanto, defende - á luz da fenomenología - a abertura da cienciapsicológica e, por conseguinte, a definigáo husserliana dafenomenología como "ciencia das ciencias".

3.2 Capítulo II - "A Investigacao Fenomenológica Descritiva eo Conceito de Explicacao em Psicología"

O segundo capítulo versa, sobretudo, - ñas palavras de NiltonCampos - sobre o "problema da consciéncia", que seguiría, naPsicología, segundo duas diretrizes, urna estática e urna dinámica. Apsicología clássica ficou num contexto estático - elementarista, ou"atomística" e, portanto, próxima dos determinismos elementaristas(PENNA, 1997) -, tentando dissecar a consciéncia, decompondo-a emelementos, "á maneira do físico e do químico", seguindo um modelopróximo ao "atomismo psicológico". Na mesma diregáo teríamos aperspectiva de Watson e a negagáo do subjetivismo na psicología,negando a especificidade dos fatos psíquicos; e desenvolvendo urna"psicología apsicológica".Novamente temos aqui a questáo do método psicológico trazido ábaila. Todavía, coloca Nilton Campos (1945), a proposta de Wundt de

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urna "síntese criadora", que fez com que a psicología experimentalnao excluísse totalmente a natureza específica dos fenómenosmentáis.O behaviorismo se distinguiría de urna "psicología da consciéncia",por negar as sensagoes e a associagáo como objeto de pesquisapsicológica. Mas o behaviorismo permanece com o mesmopreconceito explicativo da atividade mental a partir do atomismomotor. "Em substituigáo ao atomismo interno da consciéncia próprioda psicología associacionista, Watson propóe o atomismo periféricodo comportamento. Em lugar do átomo-sensagáo, surge o átomo-reflexo como elemento explicativo", diz Campos (1945, p. 34).William James, já em 1904, afirmara o absurdo de se negar aexistencia da consciéncia, dado que os "pensamentos existem".Todavía, nega seu caráter de "entidade" e, afirmando-a como urnafungáo, nega - portanto - a consciéncia como materia. Substituí,assim, o conceito de urna entidade estática por urna fungáo dinámica:

Deixe-me logo explicar que eu quero dizer apenas para negarque a palavra [consciéncia] significa urna entidade, mas ainsistir mais enfáticamente, que nao resiste a urna fungáo.(...) "Consciéncia" é suposto necessário para explicar o fatode que as coisas nao apenas sao, mas sao reportadas, saoconhecidas (JAMES, 1904, p. 477).

Mesmo negando o caráter substancial da consciéncia, James - aoafirmá-la como fungáo - finda por posicioná-la como um ente, comourna realidade, na acepgáo fenomenológica; sendo, portanto, um"objeto" suscetível de investigagáo. "James, afirmando ser aconsciéncia condigáo necessária para a revelagáo da existencia dascoisas, assegura-lhe a propriedade de 'coisa' também existente nomundo dos fatos" (CAMPOS, 1945, p. 35).Esta discussáo colocaría William James ao lado da perspectivafenomenológica: "(...) a acusagáo de James contra o atomismopsicológico, que abandonara o verdadeiro método empírico deinvestigagáo, exprime urna atitude fenomenológica, que o tornaprecursor das idéias de Husserl" (CAMPOS, 1945, p. 37). Ademáis, opróprio Husserl afirmara a importancia do valor do Principies ofPsychology, para o campo da psicología descritiva. Lembremos queJames, ao se referir ao problema da consciéncia, usa a metáfora deum rio para falar da "corrente de consciéncia", e ao expressar-sesobre a vivencia do tempo, afirma que nossa experiencia ¡mediatanao se dá de modo atomístico, visto que temos um sentido depassado e um sentido de futuro diretamente dados. "Para usar afrase de William James, nossa experiencia do presente nao é o fio deurna faca, mas um telhado de duas aguas. Tudo o que é dado paranos na percepgáo é dado como sumindo e também como chegandona presenga" (SOKOLOWSKI, 2007, p. 147). Ainda, afirmando que a

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propriedade reflexiva da consciéncia nao é primitiva, James seaproximaría de Piaget, quando este diz que a consciéncia de si nasceda dissociagáo do eu com a realidade, reiterando, pois, o caráterdinámico da consciéncia."O problema do conhecimento de si mesmo foi profundamenteestudado por Descartes, que, afinal, esclareceu a natureza dofenómeno como sendo uma apreensáo ¡mediata e, nao, o resultadode um raciocinio dedutivo" (CAMPOS, 1945, p. 39-40). Ora, istoimplica dizer que esta apreensáo "se dá", ou seja, se mostra comouma coisa conhecida de si. Em outras palavras, a conclusao que setira de uma clássica epígrafe como "pensó, logo sou" ou "existo", naose dá por silogismo ou por uma conclusao tirada do seu pensamento,mas de uma coisa conhecida em si, diz Campos (1945). "Vemos,portanto, Descartes demonstrando que a consciéncia de si mesmo éuma evidencia assertórica2, realizando-se sem intermediario, poisresulta de uma percepgáo interna ¡mediata" (p. 40). Eis de volta aexperiencia ¡mediata sendo reabilitada.Campos (1945) ainda caminha na diregáo da análise de uma críticaao mecanicismo, unindo - segundo ele - Locke a Descartes, quandoaquele aponta que o conhecimento do próprio ser se dá por intuigáo,enquanto que o conhecimento das coisas se dá por sensagáo (comoescreve Locke em An Essay Concerning Human Understanding, de1690). A coincidencia do pensamento de Locke com a fenomenologiairia mais além, segundo Campos (1945), como quando o filósofoinglés defende que a ideia seria o "objeto" do pensamento, ou ainda,que seria sobre a experiencia que nosso conhecimento se funda. Istomarca uma filiagáo "empirista" da fenomenologia - especialmente asfiguras de Locke e de Hume (DEPRAZ, 2007).Assim, Campos (1945) reitera que a consciéncia apresenta ummovimento incessante, deslocando-se dos polos objetivo e subjetivo.Posteriormente, define experiencia como o "fenómeno de sentir ouviver os fatos, de maneira espontánea e ¡mediata" (p. 43). Assim, saovivencias tudo o que tem lugar na consciéncia: as percepgóes, asrepresentagóes, a imaginagáo, a fantasía, o pensamento, etc. Eigualmente sao vividas suas partes componentes e seus conteúdos.Em suas palavras, seria característico da consciéncia, ser "um fluxomultiforme de vivencias mentáis" (CAMPOS, 1945, p. 43).No caso das vivencias - ou experiencias da percepgáo externa, comoassinala Campos (1945) - a apreensáo de objetos externos é umconteúdo "vivido" ou "experimentado",

(...) portanto, consciente, tanto quanto o ato dessaapreensao. Lembremos que a visao alucinatória de umconteúdo colorido sine materia é também uma vivenciafenomenológica real. A ausencia do excitante físico materialnao impede que a vivencia colorida alucinatória seja um fato.A investigagao fenomenológica das vivencias tem que se

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afastar tanto da interpretagao vulgar como da reflexao lógicasobre a natureza da realidade (p. 44).

Assim, diz Nilton Campos (1945), qualquer discussáo sobre amaterialidade ou a substancialidade dos fatos psíquicos teria umcaráter metafísico. Em outras palavras, a fenomenología nao sepreocuparía com os fatos em si, mas com os sentidos dos fatos. Naoimporta se há ou nao há o azul ou o vermelho nos objetos, estas saoqualidades da consciéncia e, portanto, realidades ¡mediatas edistintas urna das outras.Brentano mesmo já afirmara que, quando dizemos que apreendemosos fenómenos psíquicos pela percepgáo interna, afirmamosigualmente que essa percepgáo é urna evidencia ¡mediata. Assim, aexistencia coincide com os próprios fenómenos. Aqui, "percepgáointerna" representa o sentido da própria Psicología, para Brentano:"Psicología é a ciencia da vida interior das pessoas [Seelenleben], istoé, a parte da vida captada através da percepgáo interior [InnereWarhnemung]" (BRENTANO, 1995, p. 3)No debate epistemológico sobre a validade das percepgóes - internaou externa - enquanto Brentano duvidava da percepgáo externa, eWatson da percepgáo interna, Kóhler e Husserl consideravam arealidade de ambas as vivencias. "Husserl - diz Campos - confirmaque, no caso da percepgáo externa, os conteúdos sensíveisprocedentes do mundo físico sao igualmente vividos, possuindo amesma indiscutível evidencia peculiar á experiencia interna"(CAMPOS, 1945, p. 48).Esse capítulo versa, sobretudo, das polémicas relativas asapropriagóes de método e as epistemologías diversas, ou seja, sobreobjeto e método da Psicología. Nilton Campos (1945) busca, aínda,defender o gestaltismo da acusagao de naturalizagao, colocando que"os fenómenos qualitativos e específicos da atividade mental saodiferentes dos processos físicos" (p. 54). E continua, dizendo:

A explicagao isomorfista nao significaría (...), urna conversaodo mental em físico. Apenas pretendería ser urna hipótesedestinada a interpretar os processos fisiológicos cerebraissotopostos aos fenómenos psíquicos, segundo o modelofornecido pelas teorías da moderna física dinámica, semafetara autonomía da psicología (CAMPOS, 1945, p. 54).

E, vale a pena assinalar, essa perspectiva é a mesma adotada porKurt Lewin, que se apropria de terminologías das ciencias físicas,como "campo", "valencia", etc. Mas Kóhler - e com ele a Escola deBerlim - nao se satisfez com um estudo puramente descritivo ebuscou tornar a psicología urna ciencia explicativa, tendo suashipóteses sido extraídas da física, "o modelo indiscutível de exatidáocientífica" (CAMPOS, 1945, p. 55). Assim, o Gestaltismo seria

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rigorosamente fenomenológico em sua perspectiva descritiva, mas seafastaria dessa posigáo ao intentar urna teoría explicativa, abdicandoda psicología em favor da fisiología e da física.

3.3 Capítulo I I I - "Legitimidade do Método Introspectivo"Aínda sobre a questáo da consciéncia e sobre a possibilidade defundamentá-la como objeto de urna ciencia, Nilton Campos resgataagora a contribuigáo de Brentano para urna psicología de orientagáofenomenológica.Ribot já anunciara o nome de Brentano como aquele que funda urnaorientagáo que excluí a metafísica e a fisiología do campo científico dapsicología e, portanto, inaugura urna perspectiva autónoma para esta(CAMPOS, 1945). Apropriando-nos das mesmas palavras do filósofo,em seu prefacio no longínquo ano de 1874, diz-nos Brentano(1874/2008): "Eu me coloco, em psicología, do ponto de vistaempírico. Meu único mestre é a experiencia" (p. 11).Na perspectiva brentaniana, temos a distingáo entre percepgáointerna e observagáo interior. A primeira implica numa clivagem daconsciéncia em duas partes simultáneamente existentes: urna queobserva e outra que é observada; assim, esta perspectiva - queimplicaría "num desdobramento da consciéncia em sujeito e objetosimultáneos, é urna indiscutível impossibilidade. A observagáo interioré somente concebível no sentido de urna retrospecgáo, pelo recursoda evocagáo mnemónica" (CAMPOS, 1945, p. 65). A consciéncia"vive", pois, seus fenómenos num "suceder ininterrupto". Assim:

Todas as objegoes contrarias ao valor científico do métodointrospectivo tém de cessar diante dos criteriosfenomenológicos, que vem restaurá-lo como um dos recursosimprescindíveis de pesquisa psicológica (CAMPOS, 1945, p.69).

Aqui, Campos retoma a grande contribuigáo de Brentano, em seutexto de 1874 - A Psicología do Ponto de Vista Empírico-em que seformula a nogáo de intencionalidade, que conduz á superagáo docaráter "estático" da consciéncia, para urna perspectiva "dinámica" damesma. Decorre daí que "(...) a psique humana se estruturadinámicamente em atos, todos referidos a objetos imanentes áconsciéncia" (MACIEL, 2003, p. 36).

3.4 Capítulo IV - As Modalidades da Natureza Intencional daConsciéncia e a Distincao entre Funcao e ConteúdoNo capítulo IV, Nilton Campos recupera a nogáo fenomenológica deintencionalidade como a característica da consciéncia ser consciénciade alguma coisa, e nos recorda que este conceito fundamental foraestudado por Brentano, a partir de seus estudos da Escolástica

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medieval, em particular na nogáo de intentio, que exprime a diregáoespontánea da consciéncia para algo, e é expressa na máxima: Actusmentís quo tendit in objectum. Ressalta ainda que a intentio éabsolutamente distinta do vocábulo intengáo, que tem um sentidovolitivo (CAMPOS, 1945), e ainda recupera urna advertencia de Gaos- tradutor para o espanhol - de que este conceito, para osescolásticos medievais, refere-se a urna in-existencia intencional, queimplica em urna existéncia-em.Por fim, ressalta outra distingao fundamental em Brentano, entre atopsíquico e seu respectivo conteúdo, que teria influenciadodiretamente as escolas de Graz e de Würzburg. Apenas a título deilustragáo, convém lembrar que a Escola de Graz se desenvolveu emtorno de Alexius von Meinong. Dentre seus discípulos ecolaboradores, destacaram-se Eduard Martinak e Stephan Witasek,além de Vittorio Benussi. Já a Escola de Würzburg girou em torno deOsvald Külpe, da qual se destacaram August Messer, Karl Bühler eNarziss Ach.Na discussáo acerca dos "atos da consciéncia", Campos (1945)assinala que Husserl, ñas suas Investigagóes Lógicas, considera atocomo equivalente a vivencia intencional: "Na percepgáo da trovoadacoexiste a consciéncia virtual do silencio 'interrompido' pelo trováo,cujo ruido nao constituí, pois, apenas urna apreensáo atual pura ou¡solada" (p. 85). Consciéncia, pois, é urna corrente continua eindissociável de vivencias e experiencias.Husserl - posteriormente, em suas Ideen - amplia a nogáo deintencionalidade, demonstrando que:

(...) a corrente da consciéncia encerra vivencias ouexperiencias atuais e virtuais, distinguindo o conceito atual eo conceito potencial da intencionalidade. Na percepgáo dosobjetos, realizamos urna apreensáo atual e virtualconcomitantes, justificando aquilo que Husserl denominou de"background" do campo da consciéncia (CAMPOS, 1945, p.82).

Husserl admite, assim, a percepgáo de modo intuitivo, sendo estaintuigao dotada das mesmas propriedades intencionáis - de dirigir-separa algo - que os atos da consciéncia cognitiva. Ñas palavras dopróprio Husserl: "É a intencionalidade que caracteriza a consciénciano sentido extremo e que autoriza ao mesmo tempo a tratar todo ofluxo do vivido como um fluxo de consciéncia e como a unidade deurna consciéncia" (HUSSERL, 1913/1985, p. 283).

4 Consideragóes Fináis

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O trabalho de Nilton Campos, embora nao se proponha a umexaustivo exame, nem da questáo do método em Psicología, nem dospressupostos da Fenomenología; nao sendo assim, exatamente umtratado numa ou noutra perspectiva, aponta - todavía - para algunselementos que devem ser destacados.O primeiro deles refere-se ao seu caráter de contemporaneidade. Jáem 1945, o autor demonstra urna interessante apropriagáo deliteraturas cruciais nos campos filosófico e psicológico, colocando-se -de certa forma - na vanguarda de um pensamento que no Brasilacabou sendo construido por vias que chamaríamos "acessórias" ou"suplementares", quais sejam, os dos pensamentos existencialistas(em suas diversas formas, mas especialmente a partir de Sartre) e ode Heidegger (com toda a gama de sua especificidade).Com isto, queremos apontar para um fato que consideramos crucialpara a compreensáo do legado da fenomenología, que foi o de terNilton Campos, em certa medida, trilhado o caminho dosfundamentos, aqui no caso, relativos aos pensamentos de Brentanoe de Husserl.Na medida em que consideramos as diversas perspectivasexistencialistas do século passado como construgoes devedoras -diretamente - da fenomenología husserliana, este fato ganha maisdestaque. Reconhecemos que a fenomenología (a partir de sua nogáocentral de intencionalidade), radicalizada desemboca,necessariamente, numa filosofía da existencia - idéia estacompartilhada por Merleau-Ponty e por Pierre Thévenaz (RICOEUR,2009).O pioneirismo de Nilton Campos ganha mais destaque seconsiderarmos que nao só seus estudos estáo referentes á"atualidade" do pensamento fenomenológico á época - lembremosque a primeira referencia direta a Husserl no Brasil data de 1941(como Euryalo Cannabrava), de forma indireta - mas, principalmentepelo fato de ter sido, provavelmente, o primeiro brasileiro a citarfontes diretas da fenomenología husserliana.Todavía, nao podemos nos furtar a urna apreciagáo de algumaslimitagóes de sua obra sem, contudo, reconhecer os próprios limitesde seu tempo. Urna délas é o fato de nao se ter urna apropriagáo daobra de Husserl como um todo, o que é absolutamente natural pelofato do ineditismo de muitos dos textos husserlianos, que somentevieram a público, décadas depois. Em seu texto, Campos (1945) citatextualmente os seguintes textos de Husserl: as InvestigagóesLógicas (de 1900), as Idéias (de 1913, em seu primeiro volume3), eas Meditagóes Cartesianas (de 1929).Por focar sua atengáo na questáo da ciencia, Nilton Campos naoexplora a totalidade desses mesmos textos, deixando de ladoquestóes importantes para a própria psicología, como a questáo daconsciéncia pura ou transcendental, ou mesmo a discussáo entre a

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atitude natural e a atitude fenomenológica, ou aínda o problema dasredugoes fenomenológicas (todos esses temas estáo presentes noprimeiro volume das Ideen); e a determinagáo da consciéncia comointersubjetividade (presente ñas Meditagóes Cartesianas).Nada disto invalida ou diminuí o trabalho de Nilton Campos. Sua obra- bem como seu trabalho legado em tantos outros escritos - precisaser resgatada, tanto em conteúdo, quanto em forma, o que nosajudaria a construir um solo de perspectivas de leituras dafenomenología, aplicadas á psicología, menos enviesadasideológicamente, e mais coerentes com a ligáo husserliana de retornoas coisas mesmas.

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Enderezo para correspondenciaAdriano Furtado HolandaDepartamento de Psicología e Mestrado em Psicología, Universidade Federal doParaná. Praga Santos Andrade, 50 - Sala 215 (Ala Alfredo Buffren). 80060-240,Curitiba, PR, BrasilEnderego eletrónico: [email protected]

Recebido em: 19/10/2011Reformulado em: 04/06/2012Aceito para publicagao em: 05/06/2012Acompanhamento do processo editorial: Ana Maria López Calvo de Feijoo

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Notas*Doutor em Psicología pela PUC-Campinas e Professor Adjunto do Departamento dePsicología e do Programa de Pós-Graduagao em Psicología da Universidade Federaldo Paraná.fundada em 1910. O Laboratorio de Psicología é posteriormente transformado emInstituto de Psicología, subordinado - em 1932 - ao Ministerio da Educagao eSaúde Pública, e em 1937, é incorporado á antiga Universidade do Brasil.2Asseverativa, que contém afirmagao.3Merece destaque o fato que o segundo volume das Ideen, que trata da questao daconstituigao e tem implicagoes fundamentáis em problemas como subjetividade,intersubjetividade e corporeidade, e que é central para a compreensao do sentidodo "mundo-vida" na obra de Husserl, somente veio a público em 1952, com suaprimeira tradugao francesa em 1982.

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ARTIGOS

A consciéncia e o mundo na fenomenología deHusserl: influxos e impactos sobre as cienciashumanas

Consciousness and the world in Husserl's phenomenology:influences and impacts on the human sciences

Carlos Diógenes Cortes Tourinho*Universidade Federal Fluminense - UFF, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil

RESUMOO presente artigo busca, inicialmente, esclarecer o problema fenomenológicoda relagao entre a consciéncia e o mundo. A fenomenología de E. Husserladota, do ponto de vista metodológico, a suspensao do juízo em relagao áposigao de existencia do mundo, para recuperá-lo, na consciéncia, de modoindubitável, na sua pura significagao. O artigo procura esclarecer aespecificidade da atitude fenomenológica, bem como da estrategiametodológica adotada pela fenomenología para fazer da filosofía urna"ciencia rigorosa". O artigo aborda ainda a crítica da fenomenología á visaopositivista ñas ciencias humanas. Se a adogao do programa positivista ñasciencias humanas limita-nos á urna lógica indutiva e probabilística, o métodofenomenológico ñas ciencias humanas convida-nos a exercer urna atitudereflexiva e analítica acerca do que há de mais originario na coisa sobre aqual retornamos.Palavras-chave: Consciéncia, Mundo, Fenomenología, E. Husserl, Cienciashumanas.

ABSTRACTThe present paper has as objective clarify the phenomenological problem ofthe relation between the consciousness and the world. The phenomenologyof E. Husserl adopts of a methodological point of view the suspensión of thejudgement in relation to the position of the world's existence, recovering itin the consciousness, in an indubitable way, in his puré meaning. The papertries to explain the specificity of the phenomenological attitude and themethodological strategy adopted by the phenomenology to do of philosophya "rigorous science". The article also discusses the critical of thephenomenology to positivist view in the human sciences. The adoption ofthe positivist program in the human sciences limits us to an inductive andprobabilistic logic, while the phenomenological method in the humansciences invites us to exercise a reflective and analytical attitude about whatis most essential in the thing on which we return.Keywords: Consciousness, World, Phenomenology, E. Husserl, Humansciences.

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicología Rio de Janeiro v. 12 n. 3 p. 852-866 2012

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Carlos Diógenes Cortes TourinhoA consciéncia e o mundo na fenomenología de Husserl

1 Introducao

O presente artigo concentra-se, inicialmente, em torno da tarefa deaclarar a especificidade da atitude fenomenológica (enquanto modode consideragáo do mundo), bem como da estrategia metodológicaadotada pela fenomenología de Edmund Husserl para o alcance deum grau máximo de evidenciagáo dos fenómenos. Tal atitudeconsiste, conforme será destacado, em urna atitude reflexiva eanalítica, a partir da qual se busca, fundamentalmente, elucidar,determinar e distinguir o sentido íntimo das coisas (a coisa em sua"doagáo originaria", revelada "em pessoa"), bem como as diferentesmodalidades do aparecer enquanto tal. Já o método fenomenológicoserá, por sua vez, um método de evidenciagáo dos fenómenos, cujaestrategia consiste, grosso modo, no exercício da suspensáo de juízoem relagáo á posigáo de existencia das coisas, viabilizando arecuperagáo das mesmas em sua pura significagáo. Contrastando aatitude fenomenológica com o que Husserl chamou de "atitudenatural" (modo de orientagáo no qual se encontra mergulhada aconsciéncia das ciencias positivas), o artigo abordará, em seguida, acrítica da fenomenología á perspectiva positivista ñas CienciasHumanas.Enquanto o programa positivista deixa-nos, para o estudo do homem,confinados, do ponto de vista metodológico, a urna lógica indutiva,segundo a qual conhecer consiste em descrever, pela observagáopositiva dos fatos, a regularidade desses fatos, a abordagemfenomenológica ñas ciencias humanas convida-nos para urnaclarificagáo do que há de mais fundamental na coisa sobre a qualretornamos, deslocando-nos a atengáo dos fatos contingentes para oseu sentido originario indissociável de urna vivencia intencional.Tal abordagem consolida, com isso, urna especie de "conversáofilosófica" que nos faz passar de urna visáo ingenua do mundo paraum modo de consideragáo das coisas, no qual o mundo se revela emsua totalidade como "fenómeno".

2 A filosofía como ciencia de rigor: a orientacaofenomenológica e a estrategia metodológica adotada pelafenomenología de Husserl

Pode-se dizer que, no século XX, o projeto filosófico anunciado porHusserl sob o nome de "fenomenología transcendental" é, dasInvestigagóes Lógicas a Crise das Ciencias Européias, movido earticulado desde o seu comego pela intengáo primaria de constituir afilosofía como urna "Ciencia de Rigor", ambigáo que segundo opróprio autor acompanha a filosofía desde as suas origens (HUSSERL,[1911]1989). Fradique Morujáo lembra-nos que, para Husserl, talvez

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nao haja outra idéia táo poderosa, mais continuamente progressivaem toda a vida moderna, do que a idéia da "ciencia". "Por isso, afilosofía, se quer manter os títulos de poder satisfazer as mais altasaspiragoes do espirito, deve constituir-se como ciencia rigorosa"(Fradique Morujáo, 2002, p. 149).O ideal husserliano exprime-se pela determinagáo em dar urnafundamentagáo rigorosa á filosofía e, através déla, a todas as demaisciencias. Tomado por sua ansia de rigor absoluto, por um ímpetopróprio de sua formagáo matemática, Husserl encontrava-se, ñasprimeiras décadas do século XX, convencido de que a fundamentagáoda filosofía deveria implicar necessariamente em urna plenaracionalidade da mesma, em urna clarificagáo do sentido íntimo dascoisas por meio de urna reflexividade radical que daria consistencia áprópria filosofía. Husserl nao se contentaría, a partir de entáo, comcoisa alguma que nao se revelasse em seu sentido próprio áconsciéncia como um dado absolutamente evidente (para usar urnaexpressáo sua, que nao se revelasse "em pessoa"), mantendo-se,com isso, fiel ao propósito de garantir nao o rigor ao modo dasciencias ditas "positivas" (o rigor do método experimental), mas sim,o rigor absoluto necessário á pretensáo de fundamentagáo do saberfilosófico a partir do que é suscetível de ser conhecido de modooriginario.Isto porque a explicagáo empírica nao poderia, apoiada naobservagáo sistematizada e na descrigáo da regularidade dos fatosnaturais, servir de fundamento último para este saber. Partia-se,entáo, da idéia de que para fazer da filosofía urna ciencia rigorosa,para construir urna filosofía livre de todas as divergencias, livre daameaga de um ceticismo que, segundo Husserl, seria nocivo á própriafilosofía, fazia-se necessário alicergar a filosofía sob bases sólidas,apoiando-a em evidencias absolutas (ou apodíticas), ou seja, em urna"ausencia absoluta de dúvida" (absolute Zeifellosigkeit). De certomodo, fora já este o ideal de Descartes no século XVII: o de naoadmitir coisa alguma como verdadeira sem conhecé-la evidentementecomo tal. Trata-se, na parte II do Discurso do Método, da chamada"regra da evidencia" (DESCARTES, [1637] 1967, p. 47). O fim e oimpulso do projeto filosófico husserliano encontram-se, portanto,intimamente determinados pela filosofía cartesiana, o que faz dafenomenología urna especie de "herdeira da modernidade" em plenoséculo XX, herdeira de um ethos dominante na filosofía moderna.Nos termos de Husserl, "poder-se-ía quase chamá-la um neo-cartasianismo..." (HUSSERL, 1931, p. 1). A filosofía é, para Husserl, aciencia que deve partir de fundamentos últimos ou, o que é o mesmo,de urna responsabilidade última indissociável de um espirito deradicalismo (como aquele manifestado ñas Meditagóes cartesianas),de urna "vitalidade primitiva", cujo ímpeto nao perde de vista asevidencias últimas, encontrando nelas próprias a sua justificativa

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absoluta.A intengáo primaria de constituir a filosofía como urna "ciencia derigor" é, portanto, em Husserl, a expressáo do anseio maior quemoverá, ñas primeiras décadas do século XX, os rumos dafenomenología. Vé-se, claramente, um esforgo continuado de Husserlem retomar, em suas principáis obras, a discussáo acerca dosfundamentos da filosofía e, por conseguinte, das demais ciencias.Afinal, o diagnóstico de Husserl sobre o seu tempo era o de que ocomego do século XX anunciava, de certo modo, com a expansáo deurna abordagem naturalista (tanto ñas ciencias naturais como ñasciencias do espirito), um quadro crescente de crise na filosofía que,por sua vez, implicaría diretamente em urna crise de seusfundamentos. A énfase neste ideal de urna fundamentagáo absolutapara a filosofía busca, conforme destacado, urna forte inspiragáo noprojeto da filosofía cartesiana do século XVII (reforma total dafilosofía para fazer desta urna ciencia de fundamentos absolutos),cujo contexto também era de crise, marcado pela redescoberta doceticismo antigo e por urna atmosfera de dúvidas e de incertezas.No § 2 de Meditagóes Cartesianas, Husserl afirma-nos que:"Desenvolveremos as nossas meditagóes dum modo cartesiano, comofilósofos que principiam pelos fundamentos mais radicáis..."(HUSSERL, 1931, p. 5). Husserl busca em Descartes esta inspiragáo.Porém faz-se necessário ressaltar que a radicalizagáo da qual resultoua fenomenología transcendental apenas se tornou possível a partir deurna certa superagáo da filosofía cartesiana, ou como prefere Husserl:"....devido a um desenvolvimento radical de temas cartesianos"(HUSSERL, 1931, p. 21). Afinal, era preciso ir além da certeza docogito, da chamada "evidencia da cogitado", do que Descartesapenas intuiu sem, no entanto, adentrar, deixando de explorar as"riquezas" de sua grande descoberta, nao apreendendo o verdadeirosentido e, consequentemente, nao ultrapassando os portáis dagenuína filosofía transcendental. Daí o próprio Husserl compararhumorísticamente Descartes a Colombo:

também este fez urna grande descoberta - a descoberta dumnovo continente, mas nao penetrou no alcance déla, poisjulgou ter descoberto apenas um novo caminho da velhaIndia (HUSSERL, [1924] 1970, p. 340).

Á fenomenología caberia, portanto, promover impetuosamente urnainvestigagáo rigorosa do ¡menso campo da subjetividadetranscendental.Movido por seu projeto filosófico, Husserl anuncia-nos explícitamente- em A Idéia da Fenomenología, núcleo das "Cinco Ligóes" proferidasem abril-maio de 1907 - que, com a fenomenología, deparamo-noscom a proposta de urna "nova atitude" e de um "novo método". A

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atitude fenomenologica consiste em uma atitude reflexiva e analítica,a partir da qual se busca fundamentalmente elucidar, determinar edistinguir o sentido íntimo das coisas, a coisa em sua "doagáooriginaria", tal como se mostra á consciéncia. Trata-se de descrevé-laenquanto objeto de pensamento. Analisar o seu sentido atualizado noato de pensar, explicitando intuitivamente as significagoes que seencontram ali virtualmente implicadas em cogitos inatuais, bem comoos seus diferentes modos de aparecimento na própria consciénciaintencional. Explorar a riqueza deste universo de significagóes que acoisa - enquanto um cogitatum - nos revela no ato intencional é oque é próprio da atitude fenomenologica, enquanto um"discernimento reflexivo" levado a cabo com rigor. A especificidade detal atitude faz da fenomenología a "ciencia clarificadora" porexcelencia. Já o método fenomenológico será, por sua vez, ummétodo de evidenciagáo plena dos fenómenos. Também será, paraHusserl, o método específicamente filosófico, cuja estrategia maiorconsiste, para o alcance de um grau máximo de evidencia, noexercício da suspensáo de juízo em relagáo á posigáo de existenciadas coisas. Tal exercício viabiliza, assim, a chamada "redugáofenomenologica" e, com ela, a recuperagáo das coisas em sua purasignificagáo, tal como se revelam (ou se mostram), enquanto objetosde pensamento, na consciéncia intencional.O ponto de partida de Husserl é o que ele próprio definiu como sendoa "Tese do Mundo", isto é, a tese segundo a qual o que chamamos de"mundo" encontra-se ai, diante de nos, tudo isto que, da maneira amais ¡mediata e direta, nos é revelado através da experienciasensível: as coisas situadas em uma dimensáo espago-temporal, cadauma das quais com as suas propriedades, relagóes, etc. Trata-se domundo que nos cerca, constituido de entes mundanos, frente aosquais podemos tomar atitudes variadas, quer nos ocupemos com elesquer nao. Vivenciamos, portanto, a todo instante, a chamada "Tesedo Mundo". Mas, se além da vivencia dessa tese, fazemos uso damesma, passamos, entáo, a exercer o que Husserl chamou de"atitude natural" (natürliche Einstellung), atitude por meio da qualatribuo a mim um corpo em meio a outros corpos e me insiro nomundo através da experiencia sensível, "...num mundo de coisas quese estende "perante o meu olhar' no espago e no tempo...Descubro-me a mim mesmo como 'ser-no-mundo'" (KELKEL L, A.; SCHÉRER,1982, p. 41). Admito, em tal atitude, sem que haja, ao menos, umexame crítico, a posigáo de existencia do mundo (concebido como"realidade factual"), bem como a possibilidade de conhecé-lo e, comisso, adoto, de certo modo, um "realismo ingenuo". Nos termos deKelkel & Schérer: "A atitude natural da consciéncia colocada nomundo caracteriza-se, precisamente, pela fé ingenua na realidade ena permanencia do mundo percepcionado" (KELKEL L., A.; SCHÉRER,1982, p. 41). Neste sentido, a tarefa crítica da Teoría do

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Conhecimento de promover uma investigagáo acerca do que tornapossivel a relagao de correspondencia entre as vivenciascognoscitivas e as coisas a serem conhecidas encontra-sedesapercebida na atitude natural. Dá-se as costas para o chamado"enigma do conhecimento transcendente", para o que, classicamente,passou-se a chamar pelo nome de "problema da correspondencia".Afinal, o que torna possivel tal conhecimento do mundo? Em que elese funda? Quais sao os seus limites? Dá-se, portanto, na atitudenatural, a possibilidade do conhecimento do mundo - entendido como"realidade factual" - como algo certo e inquestionável. Para Husserl,tanto a consciencia do senso comum quanto a consciencia dasciencias ditas "positivas" encontram-se, ainda que de modosdistintos, mergulhadas na atitude natural, cujo exercício expressa arelagao entre uma consciencia espontánea (empírica ou psicológica) eo mundo natural, revelado empíricamente para essa consciencia emsua facticidade.Fiel ao seu projeto filosófico de constituigáo da filosofia como uma"Ciencia de Rigor", Husserl sabe que as tais evidencias apodíticas -necessárias para a fundamentagáo da própria filosofia - naopoderiam ser extraídas do plano empírico-natural, pois, por maisperfeita que seja uma percepgáo empírica, ela será sempre apercepgáo de um ponto de vista e, enquanto tal, somente poderárevelar "aspectos" ou "perspectivas" da coisa percebida que, por suavez, nao será revelada em sua plenitude, mas apenas parcialmente.Ainda assim, a crenga acerca do que percebemos empíricamente vaimuito além daquilo que a percepgáo empírica efetivamente nosrevela. Neste sentido, pode-se dizer que a coisa vista empíricamenteserá sempre um "misto de visto e nao visto". Portanto, toda evidenciaextraída do plano empírico-natural, no qual a consciencia empírica serelaciona com as coisas mundanas, será sempre uma evidenciaperspectivista (ou existencial), ou seja, uma evidencia parcial. Comonos diz Husserl, dos fatos nao podemos extrair "evidencias absolutas"(a coisa e o mundo em geral nao sao apodíticos, pois nao excluem apossibilidade de que duvidemos deles e, portanto, nao excluem apossibilidade de sua nao existencia). Eis um segundo motivo doporque nao podermos, na visáo de Husserl, extrair evidencias plenasde nossa percepgáo empírica do mundo, pois, a julgar pelo o que aexperiencia sensível nos revela do mundo, nos jamáis poderíamoseliminar, por completo, a possibilidade de duvidar da posigáo deexistencia das coisas que se nos apresentam e, neste sentido,estaríamos sempre prestes a corrigir as nossas percepgóes do quehavia sido estabelecido com base na experiencia sensível. Portanto,para Husserl, com base no ente mundano, seria impossível elaboraruma filosofia que se pudesse apresentar como ciencia rigorosa.Como estrategia metodológica para o alcance das evidenciasapodíticas, condigáo para a fundamentagáo da filosofia como "ciencia

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rigorosa", Husserl opta pelo exercício da epoché, isto é, pelo exercícioda "suspensáo de juízo" em relagáo á posigáo de existencia dascoisas.Husserl recupera, já ñas "Cinco Ligóes" e, posteriormente, em IdéiasI, o conceito de epoché do ceticismo antigo, porém, para pensá-lonao como um modus vivendi (como um principio ético a ser praticadocomo "hábito virtuoso") - conforme propunha o ceticismo pirrónicono período Helénico - mas sim, como um recurso metodológico. Como exercício da epoché, abstemo-nos de tecer consideragoes acerca daexistencia ou nao existencia das coisas mundanas. Nos termos deHusserl, promovo a "colocagáo da atitude natural entre parénteses",a facticidade do mundo fica "fora de circuito". Ao suspender o juízoem relagáo á facticidade do mundo, eu nao deixo de vivenciar a "tesedo mundo", no entanto, como diz o § 31 de Idéias I, nao fago maisuso dessa tese, procuro manté-la fora de circuito: "...a tese é umvivido, mas dele nao fazemos 'nenhum uso'..." (HUSSERL, [1913]1950, p. 99).Tal renuncia implica, de certo modo, em urna especie de "conversáofilosófica" e, por isso mesmo, como nos lebra Lauer, implica naaceitagáo de urna nova atitude por meio da qual o mundo ele mesmonos é revelado, conforme veremos, em sua versáo imánente (LAUER,1954).A servigo desta tal reflexividade radical própria da atitudefenomenológica, a epoché fenomenológica proporcionará, em seuexercício generalizado, o deslocamento da atengáo, inicialmentevoltada para os fatos contingentes do mundo natural, para o dominiode urna subjetividade transcendental, "... dominio absolutamenteautónomo do ser puramente subjetivo..." (HUSSERL, [1924] 1970, p.321), dentro do qual e a partir do qual os "fenómenos" - enquantoidealidades puras - se revelaráo como "evidencias absolutas" paraurna consciéncia transcendental, dotada da capacidade de ververdadeiramente estes fenómenos tal como se apresentam em suaplena evidencia. Trata-se, como o próprio Husserl insiste emressaltar, em diferentes momentos de sua obra, de um "puro ver"das coisas. Ainda nos termos do § 35 de Idéias I, trata-se "...naoexatamente e meramente do olhar físico, mas do solhar doespirito'..." (HUSSERL, [1913] 1950, p. 113).Ñas "Cinco Ligóes", Husserl nos diz: nA fenomenología procedeelucidando visualmente, determinando e distinguindo o sentido...Mastudo no puro ver" (Husserl, [1907] 1997, p. 87). Em suma, afenomenología prescindirá de tecer consideragoes acerca da posigáode existencia das coisas mundanas para direcionar, entáo, a atengáopara os "fenómenos", tal como se revelam (ou como se mostram),em sua pureza irrefutável, na auto-reflexáo da consciénciatranscendental. Nos termos de Husserl, atingimos assim o "egocogito" verdadeiramente radical, somente inteligível na sua

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explicitagáo plena "ego-cogito-cog/teíi/m" (Husserl, 1931, pp. 28-32).Portanto, de um lado, deparamo-nos com um modo de consideragáodas coisas a partir do gual o mundo se revela para a nossaconsciéncia espontánea como o dominio empírico-natural dos fatos,do gue se encontra submetido a urna dimensáo espago-temporal.Trata-se do modo de consideragáo do mundo próprio das cienciaspositivas em geral. Paralelamente, como um recurso metodológicopara o alcance das evidencias apodíticas, o exercício generalizado daepoché e, consegüentemente, da redugáo fenomenológica,promoverá o salto para o modo de consideragáo transcendental (oufenomenológico) das coisas, fazendo agora com gue o mundo serevele, na e para a consciéncia pura (ou transcendental), como um"horizonte de sentidos". Se esta consciéncia pura nao pode sertomada em termos de dados empíricos, cabe-nos apenas concebé-laa partir de sua relagáo intencional com o seu objeto gue, em suaversáo reduzida, enguanto um objeto de pensamento, nada mais é dogue um conteúdo intencional da consciéncia. Trata-se, com talredugáo, de fazer o mundo reaparecer na consciéncia como umhorizonte de idealidades meramente significativas, gue se revelamcomo um dado absoluto e ¡mediato para urna tal consciéncia pura gueo apreende e o constituí intuitivamente. A mesma consciéncia gueintuitivamente apreende o objeto em sua versáo reduzida, isto é,como "fenómeno puro", é também responsável pela constituigáodesse mesmo objeto, agora atualizado no pensamento como urnaunidade de sentido. O objeto, precisamente porgue inconcebível semser pensado, enguanto um cogitatum, exige urna doagáo de sentidogue só pode vir através dos atos intencionáis da consciéncia, isto é,as unidades de sentido pressupóem urna consciéncia doadora desentido.

Portanto, deparamo-nos com duas atitudes - a "atitude natural" e a"atitude fenomenológica" - das guais decorrem dois modos distintosde consideragáo das coisas: se no primeiro modo de consideragáo, omundo nos é revelado em sua facticidade, no segundo modo, omundo se revela, na consciéncia transcendental, em sua purasignificagáo, o gue é o mesmo gue dizer gue o mundo se revela, emsua totalidade, como "fenómeno". Nesse sentido, pode-se dizer gue oexercício generalizado da epoché - concebido como um recursometodológico para o alcance de um grau máximo de evidenciagao, oucomo prefere Lauer, como "urna técnica de eliminagáo da dúvidainerente a toda posigáo do fáctico, do contingente" (LAUER, 1954, p.173) - coloca-nos frente a frente com o gue Husserl considerou amais radical de todas as diferenciagóes ontologicas. De um lado, o sercomo ser "transcendente" (o mundo exterior gue transcende aconsciéncia, mundo para o gual nos encontramos naturalmenteorientados e sobre o gual a epoché será exercida) e, de outro, o sercomo um dado imánente, presenga absoluta, in-existindo sob o modo

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de "coisa pensada", apreendida e constituida intuitivamente naconsciencia transcendental. A fenomenologia transcendental será,entáo, urna fenomenologia da consciencia constituinte (pode-se dizerque, em Husserl, "ser evidente é ser constituido"). Exercer a epochéé reduzir á consciencia transcendental. Tal redugáo do objeto áconsciencia transcendental, na medida em que nao desfaz a relagáoentre sujeito e objeto, revela urna dimensáo nova dessa relagáo,impedindo que a verdadeira e auténtica objetividade desaparega.

3 A crítica de Husserl á orientacao positivista ñas cienciashumanas: inducao X intuicao de esséncias

Quando pensamos a crítica da fenomenologia as ciencias positivas,pensamos, entáo, em dois modos distintos de consideragáo domundo. A crítica da fenomenologia ao modo de consideragáopositivista se faz notar, particularmente, quando colocamos frente afrente o exercício do método indutivo adotado pelas ciencias positivascom o que Husserl chamou de "intuigáo de esséncias" (Wesenschau).Na investigagáo fenomenológica, tal "intuigáo de esséncias" surgecomo a visáo por meio da qual a coisa intencionada nos é reveladaem sua doagáo originaria e, portanto, em um grau apodítico deevidenciagáo. Toda ciencia pressupóe, segundo Husserl, um quadrode esséncias. Porém, ao tomar o fato como objeto de urnaobservagáo sistematizada, procurando descrever a sua regularidade,o cientista positivista desconhece o quadro de esséncias que a suainvestigagáo pressupóe, almejando, com o exercício da indugáo,inferir urna "lei geral". Para Husserl, tal lei inferida nada mais é doque urna generalizagáo, cuja validade é meramente empírica oucircunstancial (HUSSERL, [1900] 1959, § 21).Em um processo inverso aquele adotado pelo programa positivista, ainvestigagáo fenomenológica esforga-se em promover urna reflexáolevada a cabo com rigor e discernimento acerca do que sejapropriamente a coisa investigada. Antes de se levar adiante urnainvestigagáo na ciencia física, por exemplo, faz-se necessário refletirsobre o que seja a "coisa física" em sua esséncia. O próprio Husserlsalienta, em sua Crise das Ciencias Européias, que Galileu já haviaestabelecido urna eidética da coisa física, de modo que nao poderiaobter a lei da queda dos corpos induzindo o universal a partir dodiverso da experiencia, mas somente pela "intuigáo de esséncia" docorpo físico. O mesmo raciocinio valeria para as demais ciencias, demodo que, para cada ciencia empírica correspondería, segundoHusserl, urna ciencia eidética concernente ao eidos regional dosobjetos adotados para investigagáo.Com a fenomenologia, deparamo-nos, de antemáo, com urnaeidética, isto é, com urna "doutrina de esséncias". Para Husserl, nao

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há ciencia gue nao comece por estabelecer um guadro de essénciasobtidas pela chamada "técnica de variagáo imaginaria dos objetos". Avariagáo arbitraria de um objeto gualguer na imaginagáo permite-nosnotar gue tal arbitrariedade nao pode ser completa, urna vez gue hácondigóes necessárias sem as guais as "variagóes" deixam de servariagóes daquilo gue se intenciona no pensamento. Cada urnadessas possibilidades ou desses "exemplares" gue se perfilam - "...deurna maneira inteiramente livre, ao sabor da nossa fantasía..."(HUSSERL, 1931, p. 59) - na imaginagáo somente poderá variarenguanto variagáo daquilo gue se intenciona em um cogito atual, namedida em gue necessariamente tais variagóes compartilham algo de"invariante", coincidindo em relagáo ao caráter necessário do gue éintencionado no próprio pensamento.Nos termos de Husserl, no § 98 de Lógica Formal e LógicaTranscendental, tratam-se de "divergencias gue se prestam ácoincidencia" (HUSSERL, [1929] 1965, p. 33). Trata-se, portanto, deurna "condigáo necessária" sem a gual nao poderíamos exercer asreferidas variagóes, sem a gual seguer poderíamos considerar nopensamento um determinado objeto intencionado como tal. Tal"núcleo invariante" do cogitatum - o caráter necessário do objetoidealmente considerado - define precisamente a "esséncia" daguilogue se mostra na e para a consciéncia intencional, revelando-se,portanto, em sua dimensáo originaria na própria intuigáo vivida. Eis ogue Husserl denominou de "intuigáo de esséncias" {Wesenschau). Aesséncia se experimenta, entáo, em urna intuigáo vivida. Cabe notargue, em Husserl, conforme nos lembra Lyotard:

...a "visao de esséncias" nao tem nenhuma característicametafísica, a teoría das esséncias nao se enquadra em umrealismo platónico onde a existencia de esséncias seriaafirmada, a esséncia é somente esta em que a "coisamesma" me é revelada em urna doagao originaria (LYOTARD,[1954] 2004, p. 12).

A "esséncia" deve ser, entáo, entendida em Husserl nao como urna"forma pura" gue subsiste por si mesma, independentemente domodo como se mostra á consciéncia intencional, mas sim, como ogue é retido no pensamento pela referida técnica de variagáoimaginaria: atenho-me, ao exercer a redugáo fenomenológica, aonúcleo invariante da coisa, isto é, ao gue persiste na coisa pensadamesmo diante de todas as variagóes as guais a submetoarbitrariamente em minha imaginagáo.No § 34 de Meditacoes Cartesianas, Husserl descreve-nos novamentea dinámica do exercício da variagáo imaginaria dos objetos naconsciéncia, afirmando-nos gue tal exercício permite-nos deslocar aatengáo das variagóes as guais submeto arbitrariamente o objetointencionado para a sua "generalidade essencial" e absoluta,

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generalidade essencialmente necessária para qualquer caso particulardesse mesmo objeto (HUSSERL, 1931, p. 59/60).Pode-se dizer que a investigagáo de esséncias (Wesensforschung) setorna urna pega decisiva quando nos referimos a urna abordagemfenomenológica das ciencias. No caso das ciencias do homem,Lyotard mostra-nos que, adotando, por exemplo, tal abordagem nasociología, se quisermos investigar a existencia de urna instituigáo emum determinado grupo social, sua génese histórica e o seu papelatual na sociedade, faz-se necessário definir, primeiramente, pelavariagáo imaginaria, o que seja esta instituigáo (LYOTARD, [1954]2004). Se tomarmos a sociología de Durkheim como exemplo,constataremos que a mesma assimila a vida religiosa á experienciado sagrado, afirmando-nos que o sagrado tem a sua origem nototemismo, cuja origem resulta, por sua vez, de urna sublimagáo dosocial. No entanto, é exatamente neste ponto que urna visadafenomenológica da sociología poderia promover os seguintesquestionamentos: a experiencia do sagrado constituí a esséncia davida religiosa? Nao seria possível conceber (por variagóesimaginarias) urna religiáo que nao se apoiasse sobre esta prática dosagrado? Enfim, o que significa o "sagrado" propriamente dito? Aoinvés de inferir regras gerais a partir da observagáo de casosparticulares e da descrigao da regularidade desses casos, conformepropóe, do ponto de vista metodológico, o programa positivista, aatitude fenomenológica concentra-se - em um processo inversoaquele adotado pelas ciencias positivas - na descrigao (ou análise) deesséncias. Nos termos de Husserl, trata-se, com a atitudefenomenológica, de um processo dinámico, de urna atitude reflexiva eanalítica, cujo intuito central passa a ser o de promover a elucidagáodo sentido originario que a coisa expressa, em sua versáo reduzida,independentemente da sua posigáo de existencia.Engana-se aquele que pensa que, com a estrategia metodológica,adotada pela fenomenología, Husserl estaría negando a existencia domundo. Antes sim, estaría renunciando a um modo ingenuo deconsideragáo do mesmo, para viabilizar, com o exercício da redugáofenomenológica, o acesso a um modo transcendental de consideragáodo mundo. Afinal, como nos lembra Merleau-Ponty, "o filósofo,enquanto filósofo, nao deve pensar á maneira do homem exterior,deste sujeito psicofísico que estaría no tempo, no espago, nasociedade..." (MERLEAU-PONTY, [1951]1973, p. 22). Ao filósofo énecessário suspender o juízo acerca do conjunto de afirmagóesimplicadas nos dados de fato de sua vida. "Suspende-las, porém, naoé negá-las, e, menos ainda, negar o vínculo que nos liga ao mundofísico, social e cultural; ao contrario, é vé-lo e ser dele consciente"(MERLEAU-PONTY, [1951]1973, p. 22).

Em sua versáo reduzida, o mundo se abriría, entáo, enquanto campofenomenal, na e para a consciéncia intencional como um "horizonte

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de sentidos". Sem negar a existencia do mundo factual, renunciamos,pela epoché, á ingenuidade da atitude natural, para reter, entáo, a"alma do mundo", o mundo na sua pura significagáo. Conforme fazquestáo de destacar Júio Fragata (1956), citando o próprio Husserl,em um curso inédito proferido na Universidade de Góttingen, naAlemanha, em 1909:

Perdemos o mundo, para o ganhar de um modo mais puro,retendo o seu sentido. A fenomenología poe fora de circuito arealidade da natureza, mesmo a realidade do céu e da térra,dos homens e dos animáis, do próprio eu e do eu alheio, masretém, por assim dizer, a alma, o sentido de tudo isso com oqual estou ¡mediatamente em contato, de modo que osobjetos assim considerados nao só estao presentes diante demim, mas brotam de mim mesmo (FRAGATA, 1956, p. 113).

A redugáo fenomenológica faz reaparecer, na própria carnadaintencional do vivido, a verdadeira objetividade pela qual o objetointencionado é, enquanto conteúdo intencional do pensamento,constituido e apreendido intuitivamente. Daí o próprio Husserl dizer,em Idéias diretrizes para uma Fenomenología (1913), que se por"positivismo" entendemos o esforgo de fundar as ciencias sobre o queé suscetível de ser conhecido de modo originario, nos é quem somosos verdadeiros positivistas! (HUSSERL, [1913] 1950, p. 69) Se asciencias positivas nao deixam de conceber a relagáo entre subjetivo eobjetivo em termos da dicotomía "interioridade" / "exterioridade",considerando o objetivo como algo que nos remete sempre para umarealidade exterior e independente, para o que transcende a própriavivencia do mundo, a redugáo fenomenológica permite-nos, ao noslangar para o modo transcendental de consideragáo do mundo,recuperar a auténtica objetividade na própria subjetividadetranscendental - dominio último e apoditicamente certo sobre o qualdeve ser, segundo Husserl, fundada toda e qualquer filosofía radical -unindo, com isso, o objetivo e o subjetivo. Trata-se, nos termos deHusserl, em suas Conferencias de París, em 1929, de "...umaexterioridade objetiva na pura interioridade" (HUSSERL, [1929] 1992,p. 11), unindo, com isso, o objetivo e o subjetivo.

4 Conclusao

A adogáo do programa positivista ñas ciencias humanas implica, aofazer uso da Tese do Mundo, ao mergulhar a consciéncia na atitudenatural, na aceitagáo de um realismo ingenuo (isto é, na aceitagáo domundo como uma "realidade de fatos", acerca da qual oconhecimento se torna uma possibilidade inquestionável),desconsiderando, nesse sentido, os problemas filosóficos suscitados

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pela Teoría do Conhecimento, tais como: o que torna possível talconhecimento do mundo? Em que ele se funda? Quais sao os seuslimites? Este mesmo programa insiste, nos estudos sobre o homem(seja em Sociología, seja em Psicología), em inferir generalizagoesempíricas a partir da observagáo sistematizada do comportamentohumano, desenvolvendo um estudo periférico do homem em relagáoao meio no qual se encontra inserido. Particularmente, em Psicología,a aceitagáo do programa positivista comega a se consolidar no últimoquarto do século XIX por meio de uma alianga da ciencia psicológicacom o método experimental das ciencias naturais. Tal alianga fez, nomesmo período, com que boa parte dos sistemas em psicologíaincorressem no equívoco de confundir, na aceitagáo de umparalelismo psicofísico, as leis do pensamento com as leis causáis danatureza (propondo inclusive uma especie de "física dopensamento"), confundindo, com isso, o "sujeito do conhecimento"com o "sujeito psicológico", conforme o próprio Husserl denunciou emsua crítica ao psicologismo nos Prolegómenos das InvestigagóesLógicas. Tal programa positivista deixa-nos, para o estudo dohomem, confinados, do ponto de vista metodológico, a uma lógicaindutiva, segundo a qual conhecer consiste em descrever, pelaobservagáo positiva dos fatos, a regularidade desses fatos, buscando,a partir de casos particulares, inferir "leis gerais" que, por sua vez,nao passam de "generalizagóes empíricas" e, como tais, nao perdemo seu caráter "circunstancial", "episódico" e "probabilístico". Taisgeneralizagóes nao sao, portanto, "leis" no sentido genuino, uma vezque nao possuem um valor apodítico. Neste sentido, no exercício daindugáo, o positivista desconhece o quadro de esséncias acerca dosfatos que investiga. Já a abordagem fenomenológica ñas cienciashumanas convida-nos a exercer justamente uma reflexividade levadaa cabo com rigor e discernimento acerca deste quadro de essénciasestabelecido por variagóes imaginarias, a recuperar a intuigáooriginaria daquilo que se toma como objeto de investigagáo. Convida-nos, portanto, a uma atitude reflexiva e analítica acerca do "sentidoíntimo" daquilo que se investiga - tanto aquele que se atualiza nopensamento quanto as significagóes que se encontram alivirtualmente presentes, bem como os seus diferentes modos deaparecimento na própria camada intencional do vivido.Tal abordagem fenomenológica convida-nos, enfim, para umaclarificagáo do que há de mais fundamental na coisa sobre a qualretornamos, deslocando-nos a atengáo dos fatos contingentes para oseu sentido originario indissociável de uma intencionalidade,consolidando, com isso, uma especie de "conversáo filosófica" quenos faz passar de uma visáo ingenua do mundo para o "puro ver" dascoisas, no qual o mundo se revela em sua totalidade como"fenómeno". Eis o convite genuino da fenomenología as cienciashumanas.

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Carlos Diógenes Cortes TourinhoA consciéncia e o mundo na fenomenología de Husserl

Referencias

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Enderezo para correspondenciaCarlos Diógenes Cortes TourinhoUniversidade Federal Fluminense. Faculdade de Educagao. Departamentode Fundamentos Pedagógicos (SFP) Campus do Gragoatá - Bloco D - 4o

andar - sala 403. Rúa Professor Waldemar Freitas Reis, s/n° CEP: 24.210-201, Niterói, RJ, BrasilEnderego eletrónico: [email protected]

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Carlos Diógenes Cortes TourinhoA consciéncia e o mundo na fenomenología de Husserl

Recebido em: 20/10/2011Reformulado em: 23/05/2012Aceito para publicagao em: 24/05/2012Acompanhamento do processo editorial: Ana Maria López Calvo de Feijoo

Notas*Doutor em Filosofía pela PUC-Rio. Professor Adjunto de Filosofía da Faculdade deEducagao da UFF. Professor do Programa de Pós-Graduagao em Filosofía da UFF.Membro do GT de Filosofía Francesa Contemporánea e do GT de Fenomenología daANPOF.

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ARTIGOS

Intencionalidade: estrutura necessária a urnapsicología em bases fenomenológicas.

Intentionality: necessary structure for a psychology inphenomenological bases.

Roberto S. Kahlmeyer-Mertens*Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,Brasil

RESUMOO artigo toma por tema o conceito de intencionalidade. Questiona a posigaodeste conceito no ámbito de urna psicología fundada em basesfenomenológicas. Para respondermos a esta questao, objetivamosapresentar o conceito de intencionalidade segundo a fenomenología,reconstruir brevemente sua génese histórica ñas filosofías de Brentano,Husserl e Heidegger e indicar a importancia deste conceito em autores daassim chamada Daseinanalyse (Binswangen e Boss). Abordadafenomenologicamente, tomamos a intencionalidade como trago fundamentalde urna consciéncia; julgamos poder sustentar que esta estrutura viabilizaurna interpretagao do psiquismo diversa daquela promovida pela leituratradicional que reduz a consciéncia a sujeito. Considerando aintencionalidade a estrutura que permite a correlagao ¡mediata daconsciéncia com seus fenómenos, julgamos lícito afirmar que urnaDaseinanalyse, entendida como psicología e psicopatologia fenomenológica,apenas se viabiliza no espago aberto pela consciéncia intencional.Palavras-chave: consciéncia, intencionalidade, Daseinanalyse, Heidegger.

ABSTRACTThe article takes the concept of intentionality as theme. We inquired into theposition of this concept in the context of a phenomenological psychology. Toanswer this question, we aim to introduce the concept of intentionalityaccording to Phenomenology, briefly reconstruct its historical génesis in thephilosophies of Brentano, Husserl and Heidegger, and indícate theimportance of this concept in the so-called Daseinanalyse (Binswangen andBoss). Treated phenomenologically, we understand intentionality as afundamental feature of a consciousness; we judge it to be sustainable thatthis structure enables a different interpretation of the psyche that promotedby the traditional reading that reduces consciousness to the subject.Considering the intentionality the structure that allows immediate correlationof consciousness with its phenomena, we should judge Daseinanalyse,understood as phenomenological psychology and psychopathology,phenomenological psychology and psychopathology, has viability only in thespace opened by the intentional consciousness.Keywords: consciousness, intentionality, Daseinanalyse, Heidegger.

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicología Rio de Janeiro v. 12 n. 3 p. 867-882 2012

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1 Introducao

O artigo assume por tema a intencionalidade no ámbito daDaseinanalyse; questiona, assim, qual o estatuto que essa estruturaintencional possuiria no ámbito de urna psicología fundada em basesfenomenológicas. Para tratar o referido tema, visando responder oproblema que dele deriva, o trabalho cumprirá tres tarefas: .conceituar a estrutura da intencionalidade á luz da fenomenología; .reconstruir brevemente sua génese conceitual junto a Brentano,Husserl e Heidegger ;. e, principalmente, indicar a presenga desta ideia na obra de autorescomo Binswanger e Boss.Compreendendo a intencionalidade como trago fundamental daconsciéncia, julgamos poder entrever que a intencionalidade viabilizaurna interpretagáo do psiquismo diversa daquela promovida pelaleitura tradicional que reduz a consciéncia a sujeito.Portanto, com a intencionalidade, a fenomenología redefine oestatuto da consciéncia tanto no plano da filosofía, quanto no planoda psicología, urna vez que tal estrutura permite evidenciar que aconsciéncia nao é interioridade cerrada, a qual constituiría sede paraestruturas e processos psíquicos, tampouco, polo subjetivo de caráterreceptor e reflexivo dos fenómenos exteriores.Isto nao apenas oportunizaria, para a filosofía, urna revisáo domodelo metafísico que referenda a dicotomía entre sujeito-objeto,mas, também, reforma a posigáo da psicología segundo a qual osujeito sediaria o psiquismo. O que se revelará com isso é urnarelagáo ¡mediata da consciéncia com seus fenómenos correlatos emum espago intencional no qual urna psicología fenomenológica se fazpossível.

2 Ideias diretrizes para urna "psicología sem psique".

[...] o existir humano em seu fundamento essencial nunca éapenas um objeto simplesmente presente num lugarqualquer, e certamente nao é um objeto encerrado em si. Aocontrario, este exigir consiste de 'meras' possibilidades deapreensao que apontam ao que se fala e o encontra e naopodem ser apreendidas pela visao ou pelo tato. Todas asrepresentagoes encapsuladas objetivantes de urna psique,um sujeito, urna pessoa, um eu, urna consciéncia, usadas atéhoje na psicología e na psicopatologia, devem desaparecerna visao daseinanalítica em favor de urna compreensaocompletamente diferente. (HEIDEGGER, 2001, p.33)

Todos conhecemos essas linhas, tomadas de ditado de MartinHeidegger (1889-1976). Elas iniciam os Seminarios de Zollikon. Se

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bem lembrarmos, nos protocolos da primeira sessáo dos seminarios(datada de 8 de setembro de 1959), Heidegger ilustra comsemicírculos e setas o que ele entendería como o objeto da assimchamada Daseinanalyse. Em semicírculos e setas temos ali o Dasein,o ser-aí. Na filosofía clássica alema, o termo ser-aí é indicativo deurna experiencia de simples presenga. É com esse significado que oencontramos na filosofía de Jacobi, de Kant e, mesmo, em Hegel.Heidegger, entretanto, diante das necessidades de nomear a figurade consciéncia em pauta ñas suas pesquisas programáticas defenomenología, acaba por se apropriar diferenciadamente daexpressáo ser-aí {Dasein). Tal escolha ocorre mediante a ponderagáode tres fatores:

1. a constatagáo de que o conceito de facticidade, presente no seuprojeto de urna hermenéutica da vida fática (e em vigor em seusescritos de 1922-25) nao compreende fenómeno mais ampio queserá, futuramente, alvo de sua analítica existencial;

2. a hesitagáo em adotar o conceito de homem, temendo atrair parasi todos os inconvenientes de urna tradigáo que o compreenderiacomo vívente essencialmente racional, denotando, assim, um entedotado de substancialidade, de quididade;

3. a impossibilidade de optar sem reservas pelo conceito diltheyanode vida em épocas ñas quais também este se encontra eivado pelasconcepgóes de escolas como o vitalismo de Hans Driesch e obiologismo de Ludwig Klages.

Sendo assim, com o termo ser-aí, Heidegger entende um ser situadono mundo, um ser que possui um mundo por correlato, correlato estesem o qual ele próprio nada seria. Esta compreensáo écompletamente diferente das demais referidas.Diante táo somente do que foi dito até aqui, asseveramos que oesquema apresentado por Heidegger no primeiro encontró emZollikon ilustra bem essa negatividade possivel do ente em questao.O ser-aí é este que nao possui esséncia, substancialidade ouquididade e, quando pensado como um semicírculo, deixatransparecer que é urna experiencia em aberto, um ser inacabado e,portanto, muito diverso da condigáo de um objeto subsistentementedado. Apresentando-o como "obra aberta", Heidegger pretendeevidenciar que o ser-aí nao consiste na experiencia óntica de umsujeito, de urna subjetividade, de um ego substancialmenteestabelecido; daí o comentario que reforga a necessidade de abdicardas interpretagóes objetivantes que redundariam num egoencapsulado, numa subjetividade inserida na dicotomía sujeito-objeto; daí, a prescrigáo de abandonar essas ideias caras aos

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modelos da psicología e da psicopatologia em prol de um olhardaseinanalítico, fenomenológico, portanto.Sob um primeiro olhar, a diretiva de Heidegger em favor de urnapsicología em bases fenomenológicas1 cobra um alto prego e naooferece qualquer garantía. Urna avaliagáo daquela situagáohermenéutica nos mostraría que abrir máo da ideia de sujeitosignifica renegar tudo o que a psicología auferira até entáo e, se naodesejarmos retroagir as origens metafísicas da psicología com Platáoe Aristóteles, conservando-nos no ámbito de urna psicologíacientífica, é possível constatar que mesmo as bases psicofísicaslangadas por autores como Fechner, Wundt e Titchner (bases estascom presenga vestigial na psicanálise freudiana e nos esbogos depsiquiatría fenomenologica de Jaspers) seriam sobremaneiraabaladas. Em troca disso, o que teríamos de urna psicologíafenomenologica aos moldes heideggerianos? Urna psicología que naoparte da consideragáo de um sujeito hipotético (hipostasiado), emoutras palavras: urna psicología sem psique. É isto que o filósofochamou na citagáo inicial de urna psicología e psicopatologia em urnacompreensáo completamente diferente; é esse o ponto de partida deurna clínica psicológica que nos sitúa "de urna maneira diferente tantodiante do logos como da psique [...]" (POMPEIA; SAPIENZA, 2011,p.150).Sob um segundo olhar, o que parece ser urna carencia dafenomenología (e, por extensáo, da Daseinanalyse) é, em verdade, oque Ihe assegura, desde o inicio, o ver e o agir fenomenológicosantes mesmo que qualquer procedimento normativo ou metodologíapossam pretender legitimidade. Assim, enquanto muitos entendemperder com a fenomenología, seus estudiosos entendem que o maiorganho que se pode ter na lida com os fenómenos (e neste caso osfenómenos do "psiquismo") provém do ato de nao apreende-los demaneira objetivada, hipostasiada por um ver que se faz desatento aomovimento da consciéncia em autoinspegáo. Daí, se até agorafalamos dos semicírculos presentes no esquema heideggeriano queilustra o ser-aí naqueles seminarios, descrevamos desde aqui o queestá em jogo ñas setas que, de maneira igualmente decisiva,compóem o diagrama. Este novo passo, além de oportunizar aretomada de pontos ainda obscuros na descrigáo anterior, introduziráem nosso texto o conceito de intencionalidade, tal qual anunciado emnosso título.

3 Intencionalidade, estrutura fenomenologica fundamental

De inicio, podemos entender a Daseinanalyse como a tentativa dospsiquiatras Ludwig Binswanger (1881-1966) e Medard Boss (1903-1990) em apropriar a filosofía de Martin Heidegger para pensar a

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psicanálise (RICHARDSON, 2003). O próprio Boss, no prefacio áprimeira edigáo dos Seminarios de Zollikon, admite que o contatocom a obra Ser e tempo (1927), durante a Segunda Guerra, foi o queinstigou suas primeiras pesquisas nesse sentido. O autor reconheciana analítica existencial de Ser e tempo "insights fundamentalmentenovos e inauditos no existir humano e seu mundo" (BOSS, 2001,p.10). Embora contendo inegavelmente contribuigoes origináis, épreciso reconhecer que a filosofía de Heidegger, neste período, seencontra indissociavelmente ligada á fenomenología de EdmundHusserl (1859-1938), sendo debitaría de algumas de suas intuigóesprimordiais. Com Husserl, Heidegger aprendeu o métodofenomenologico (depois depurado na forma de atitudefenomenológica) e a estrutura que permite este agir orientado pelosfenómenos. A referida estrutura: a intencionalidade.Urna advertencia deve ser dada aqui antes mesmo que o termointencionalidade seja introduzido conceitualmente: o que Husserl eHeidegger compreendem com o termo em nada tem a ver comintento, fito ou propósito voluntario. Essa nota, que soaria elementaraos familiarizados com a terminología fenomenológica, nao parecedispensável aos que buscam compreender a intencionalidade noámbito da psicología. De sorte que, mesmo Ludwig Binswanger,preocupado com ambiguidade que o termo poderia acarretar,ressalva:

Há que se esclarecer que nem a intentio, nem nenhuma desuas derivagoes tem que ver com atengáo, atividade, nemcom nada parecido. O intento significa aqui apenas a diregaoou a relagao da consciéncia com 'algo'[...]; a intencionalidadesignifica aquilo para o que nos dirigimos anímicamente.(BINSWANGER, 1973, p.26).

A nogáo de intencionalidade, sobre a qual a fenomenología se apoia,se edifica tendo em vista a correspondencia que urna figura deconsciéncia sempre possui com o fenómeno que objetivamente se Iheencontra correlato, mas que, por sua vez, também só se constituí emmeio ao acontecimento da intencionalidade (HEIDEGGER, 1992). Parao autor, a experiencia humana é consciéncia e, por sua vez,consciéncia é sempre consciéncia de algo, é como nos diz Husserl(1962, p. 168): "na percepgáo de um percebido, na imaginagáo deum imaginado, na enunciagáo de um enunciado, no amor de algoamado, [...] no desejo de um desejado etc". Com este trecho dasInvestigagóes lógicas, se ilustra o que, anteriormente, já falando emser-aí, tratamos por "correlagáo"; tanto Binswanger (1953) quantoBoss (1963) enfatizam incessantemente esta correlagáo em suasobras. Como dissemos adiante, a correlagáo desses dois polos emquestáo descreve fundamentalmente a impossibilidade de atos deconsciéncia que se fagam na ausencia de objetos; do mesmo modo,

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ela também implica a impossibilidade de campos objetuais sem acorrelagao com fenómenos da consciencia (HUSSERL, 1963).Como nos lembra Binswanger (1973), a fenomenología de Husserl semove na sutil fronteira entre a lógica e a psicología, descreyendo queo conhecimento possível dos entes se encontra intimamente ligado aatos da consciencia fenomenológica e nao consistindo, portanto, emum produto de representagoes de um sujeito que trava relagao comobjetos exteriores. Afirmando que objetos sao imanentes áconsciencia, Husserl busca reatar, fenomenologicamente, o lago daconsciencia com o mundo objetivo possível, grifando a relagaointencional de base indicativa de que todo conhecimento é constituido(conhecido) em atos de conhecer, ou ainda, que todo "ato deconhecer é uma objetivagáo do ente na medida em que ele é naconsciencia" (LAUER, 1955, p. 80). Esta imanéncia garante áfenomenología o conhecimento metódico, absolutamente fundado emevidencias fenomenológicas dos objetos; nestes termos se traduz aapoditicidade típica, importante e largamente explorada no interior doprojeto husserliano de uma filosofia rigorosa (MOHANTY, 1995). Paraque a fenomenología obtivesse tal certeza apodítica, foi preciso queHusserl investisse na estrutura da intencionalidade. Tal conceitocorresponde paradigmáticamente ao que Heidegger compreendecomo as setas no seu esquema ilustrativo do ser-aí.Originada na Escolástica medieval, esta nogáo, anos antes, havia sidoreapropriada por Franz Brentano em sua Psicología de um ponto devista empírico (1864). Ali, a intencionalidade permitiría a referencia aconteúdos de consciencia, objetos imanentes classificados á luz dessapsicología descritiva como fenómenos psíquicos (PRECHTL, 1989).Seguido de perto por seu discípulo Karl Stumpf (1848-1936),Brentano concentra-se em atos psíquicos como representagoes,juízos e emogóes; no entanto, ao fazer isso, deixa inexplorada aquelaestrutura de base: Brentano negligencia o que seria seu achado maisprecioso do ponto de vista fenomenológico (por este motivo nao sepode vincular Brentano, tampouco Stumpf, conforme erróneamentese tem feito, á fenomenología; a associagáo mais plausível a ambos éá psicología descritiva) (SCHÉRER, 1969).

Ao ater-se á intencionalidade, Husserl valoriza nela o que ficouimpensado em seus predecessores; ele mostra que a intencionalidadepropicia clareza quanto á constituigáo de campos de aparigáo dosobjetos, estes que nao se manifestam mediante representagáo, masna intuigáo de suas idealidades, isto é, aparecendo tal qual é dado, oobjeto evidencia o que em si mesmo há de mais essencial. Assim,para Husserl (1992), o modo com que intencionalmente a conscienciaatua permite, verdadeiramente, a percepgáo dos objetos (LAUER,1955). Ao desenvolver o conceito de intencionalidade, Husserl podeagora (trilhando as vias do método fenomenológico) evidenciar queas vivencias da consciencia em atitude natural tém esta estrutura

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fenomenal obstruida, tomando, por conseguinte, os campos objetuaisabertos pela intencionalidade de maneira confusa e simplificada(quadro que se estende, até mesmo, para as investigagoes compretensóes psicológicas). A fenomenología indica que essaambiguidade adquirirá proximidade tamanha a ponto de ser tomadacomo "natural". De igual modo, esta atitude também desconsiderareiteradamente o elemento intencional que a fenomenología tem emvista, assumindo, assim, urna postura ingenua com relagáo ao objeto,qual seja: aquela que nos leva á sólida convicgáo de que oconhecimento é constituido a partir da relagáo empírica de um sujeitoautónomo (dado a priori e dotado de aparato psíquico) com entes depresenga constante, independente e reificável.Na contramáo dessa tendencia, a análise rigorosa da intencionalidadede um ponto de vista fenomenologico permite-nos compreender ocaráter transcendente dos atos de consciéncia e, a partir desses, oscampos nos quais os entes já se mostram desde sempre comocorrelatos noemáticos á consciéncia. Daí, suspender (por meio de umprocedimento chamado "epoché") os efeitos hipostasiantes eobstrutivos da atitude natural, decompor conglomerados de atos deconsciéncia em caracteres intencionáis primitivos, descrever aesséncia pura e transcendental das vivencias e analisar os lagosnecessários que a consciéncia possui com seus objetos sao tarefasprecipuas da fenomenología husserliana (HUSSERL, 1962).Heidegger, entretanto, entende que há algo de urgente ainda empauta: aprofundar o achado fenomenologico que é a intencionalidade,levando-o a urna instancia mais radical do que teria pensadoHusserl.2

Com a licenga de nao aderir aos novos rumos da fenomenología deseu mestre estabelecidos em seu Ideias diretrizes para urnafenomenología pura (1910-13), Heidegger entende que maisimportante do que tratar a génese e as operagóes transcendentes deurna subjetividade sintetizadora de vivencias seria compreender asligagóes de sentido que denotam a implicagáo entre o poloequivalente á consciéncia e seus correlatos. É assim que entra emcena a nogáo de ser-aí.

4 Ser-aí e intencionalidade

Nao é simples a tarefa de urna caracterizagáo do ser-aí. Urna primeiraaproximagáo deste fenómeno deixa logo claro que mais fácil do quepredicá-lo, seria dizer o que ele nao é, caracterizagáo negativa quenos traria alguma clareza quanto ao ser-aí. Daí, comegarmosindicando que o ser-aí nao corresponde ao modo de ser da meracoisa (HEIDEGGER, 1993), urna vez que, implícito nesta nogáo,aparentemente neutra, identificaríamos as propriedades realidade e

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"coisidade" (categorías influentes ñas ontologias tradicionais namedida em que interferem em suas interpretagoes metafísicas doser). Tomando estritamente, o ser-aí "nao é um ente que ocorreentre outros" (HEIDEGGER, 1993, p.12), um ente que possuiriaentidade ou quididade (quidditas), de sorte que nem a designagáo deente (entendido como elemento de um dominio objetivo) traduzprecisamente o modo de ser do ser-aí. A negativa dos argumentosanteriores cabe, por extensáo, á interpretagao derivada de enteenquanto "criatura" (ens creatum). O ser do ser-aí tampouco seconstituí como animal rationale, pois, para Heidegger, "estadeterminagáo nao é apenas a tradugáo latina do zóon lógon ekhongrego, mas uma interpretagao metafísica" (HEIDEGGER, 1967, p.153)que remonta, uma vez mais, á ideia de substancialidade expressa nachave do género supremo-diferenga específica (HEIDEGGER, 1988).Por fim, mesmo a denominagáo de objeto resulta inadequada parauma caracterizagáo rigorosa do ser-aí, isso porque a palavra objetopressupóe algo posto ou langado defronte a um sujeito para quemesse algo impóe resistencia.3 O pensamento que naturalmente julgapoder assumir essas premissas move-se ainda no interior dadicotomía sujeito-objeto, expondo-se a todas as implicagóesmetafísicas que o modelo tradicional oferece.

O descrito ácima é o que poderíamos identificar como o resultado daapropriagáo heideggeriana do gesto inaugural, decisivo e continuoque é a epoché fenomenologica (ato que suspende a validade deconteúdos das duas referidas tendencias teórico-hipostasiantes). Nopresente caso, Heidegger, considerando e radicalizando a epochéfenomenologica, acaba por submeter a própria consciencia intencionalá redugáo. Isso porque, para um Heidegger táo intransigente quantoatento ao modus operandi da fenomenología, conservar asubjetividade, ainda que refinadamente pensada como subjetividadesintetizadora de vivencias, é expor-se ao risco da nogáo de sujeitorealojar-se sub-repticiamente nessa, de modo que seria possívelindicar que, na fenomenología de Husserl, esta nogáo, "enquanto naopassar por uma elucidagáo previa de sua determinagáo ontológicafundamental," (HEIDEGGER, 1993, p.46) reteria ainda um resquiciosubjetivo.Deste modo, o efeito da epoché heideggeriana suspende mesmo avalidade da consciencia {ego, cogito), esta, que ainda resguardavaum atributo substancial, é passível de ser apontada como uma últimadeterminagáo metafísica do ente que antes caracterizamosnegativamente como ser-aí.4

Os leitores devem estar se perguntando: o que resta parachamarmos de ser-aí, depois de um movimento como esse? O quepermanece do ser-no-mundo para empreendermos uma analíticaexistencial e, por extensáo, uma Daseinanalyse? A epoché estendida

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á consciéncia póe-nos diante da evidencia de um espago fenomenalconstituido no interior do qual o ser-aí se relaciona com osfenómenos; antes disso, nos coloca diante do ser-aí como um poder-ser (RICHARDSON, 2003). Isto significa que nao sendo sujeito,consciéncia ou ego, o ser-aí é este marcado pelo caráter de poder-ser, de sorte que se algo pode ser propriamente dito sobre este enteé o fato de ele poder ser. Isso se torna ainda mais claro ñas palavrasde Heidegger: "Ser-aí nao é um simplesmente dado que tem,adicionalmente, o poder de ser alguma coisa. Ele, primariamente, épossibilidade de ser". (HEIDEGGER, 1993, p.143). Neste momento,contudo, mais importante do que reafirmar a existencia em aberto doser-aí por meio da ideia de poder-ser, é indicar o espago depossibilidades deste ente aberto na intencionalidade.Na filosofía de Heidegger, como já vimos, o ser-aí é correspondentefático de urna figura de consciéncia, figura correlata a um campoobjetual que a ele se abre. Na referida correlagáo, a intencionalidadese revela como a estrutura necessária á correlagáo entre o ser-aí e oscampos de objetos. Diferentemente de Husserl, Heidegger inscreve aintencionalidade na dinámica da existencia do ser-no-mundo, passaela, assim, a ser compreendida no ámbito existencial do ser-aí esegundo as interpretagóes que tal ente faz de sua existencia e de seumundo. Assim pensada nos dominios de urna analítica existencial, aintencionalidade é compreendida como constituinte do horizonte derealizagáo do ser-no-mundo, isto é, do espago no qual os entes semanifestam, da projegáo de sentidos possíveis e da determinagáo designificados dos fenómenos mundanos. Dito isso, podemosdepreender que, de um ponto de vista fenomenológico, é aintencionalidade que nos permite compreender o carátertranscendente dos atos de consciéncia e, a partir desses, os camposfenomenais nos quais os entes já se mostram como tal (HALL, 1993).Mesmo pensado como urna malha relacional em que se estruturamcampos objetuais a partir dos quais se subministram os entesmanifestos, o mundo do ser-aí, tal como pensando por Heidegger,conserva a correlagáo intencional. Isso significa que a estrutura daintencionalidade continua operante na analítica existencial e, apesarde a intencionalidade estar pouco visível (devido a Heidegger, nointerior de seu exame do ser-no-mundo, té-la reestruturado na formaexistencial de compreensáo voltada á complexidade do mundo), naosignifica, em nenhum momento, que o filósofo tenha perdido de vistaesta estrutura fundamental. Nao seria exagero chamar aintencionalidade de estrutura fundamental, afinal, ela é pressupostoda psicología descritiva de Brentano, orientando, também, o fazer dafenomenología husserliana, da analítica existencial de Heidegger e daDaseinanalyse, na conexáo entre Binswanger e Boss. Com estaafirmativa, chegamos ao ponto central de nosso trabalho, que é a

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afirmagáo segundo a qual urna psicología em bases fenomenológicasdepende, necessariamente, da intencionalidade.Ora, mas por que a Daseinanalyse dependería da estrutura daintencionalidade? Precisamente pelo fato de os comportamentos,afetos e, mesmo, patologías do ser-aí (e neste caso mesmo indiciospsicopatológicos possíveis a este ente) já sempre se manifestaremem campos fenomenais intencionalmente abertos, neste caso, nohorizonte constitutivo de um mundo. Ao reestruturar aintencionalidade existencialmente, Heidegger permite que o ser-no-mundo seja evidenciado na chave intencional, urna vez que essanogáo traduz o ente que se manifesta num espago fenomenal. Assim,urna psicología em bases fenomenológicas ao descrever e analisar osfenómenos constituidos no interior dos espagos de jogo do ser-aí, jápressupóe a estrutura de base da intencionalidade, esta atuante naforma da compreensáo do ser-aí. Isso reforga o fato de que qualquerpsicología ou psicoterapia fenomenológica precisaría contemplar seusfenómenos na correlagáo intencional, ou seja: considerar um desejarem face do que se mostra desejado, um amar (ou odiar) ao que seIhe mostra amado (ou odiado), do sonhar ao que se Ihe mostrasonhado... (BINSWANGER, 1973; BOSS, 1979).

5 Da apropriacao daseinanalítica do conceito deintencionalidade em Binswanger e Boss

Indicios da apropriagáo daseinanalítica da intencionalidade estáo portoda parte na obra de Ludwig Binswanger e de Medard Boss. Apresente comunicagáo, após toda a exposigáo conceitual da referidaestrutura, se limitará a indicar alguns modos com os quais estesautores contemplam a intencionalidade em suas investigagóes.Binswanger (que na década de 1920 manteve contato com Heideggerna Universidade de Marbourg e foi correspondente de Freud) sabe afenomenología tal, como define Husserl (1961, p.21), como urna"psicología descritiva das vivencias puras". Contudo, o psicoterapeutaentende necessário esclarecer que a Daseinanalyse, enquantofenomenología, ao mover-se no horizonte da intencionalidade,ocupando-se com síntomas concretos distintos e perceptíveis napsiquiatría, psicopatologia e psicoterapia, difere quanto a seu escopoda investigagáo das esséncias de Husserl, bem como em suametodología da psicología descritiva. Deste modo,

trata-se aqui de urna fenomenología que, aínda que naoalcance as alturas da esséncia pura, nao deve se confundircom o que se chama, em relagao á psicología descritiva, depsicopatologia descritiva ou subjetiva, o que tornaría afenomenología psicopatológica quase por completoincompreendida (BINSWANGER, 1973, p. 32).

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Feitas essas ressalvas, o autor ainda reforga que, se pensada aDaseinanalyse como psicología fenomenologica, esta necessita dasdiferentes descrigóes de numerosos fenómenos patológicos apenaspossíveis desde o espago fenomenológico aberto na dinámicaintencional; garantindo, assim, á psicopatologia uma compreensáosempre esclarecida e renovada, por exemplo, da ideia delirante, daalucinagáo, do autismo etc. Em sua abordagem, o autor tem tambémem vista o fato de que a psicopatologia se perfaz diante daconsideragáo do outro. Isto quer dizer que, para Binswanger (1973),"o fundamento da psicopatologia é básicamente a percepgáo de umeu outro ou de outro eu [...]" (P-33). Deste modo, nao se podecompreender o objeto da Daseinanalyse como sendo estruturasinternas de uma suposta subjetividade explicada por uma teoria, mascomo o que é percebido quando, em atitude fenomenologica, nosvoltamos á vida anímica de uma pessoa.5 Assim, o essencial naobservagao fenomenologica das psicopatologias sao os fenómenos nohorizonte da experiencia humana ou, dizendo de outra maneira, oque importa á Daseinanalyse é o que se manifesta de tal ou qualmodo no horizonte fenomenal do ser-aí. O ser-aí afetado por umapatología se manifesta, neste caso, desde um fenómeno específico ea Daseinanalyse, por sua vez, tem o fenómeno patológico nohorizonte intencional do ser-aí afetado. Esta relagáo aparecesintetizada por Ernest Keen, que a tendo compreendido bem, rematanossa exposigáo de Binswanger ao afirmar que:

[...] a abordagem de Binswanger nao é uma técnica pararevelar horizontes internos de experiencia; ao contrario, éuma teoria relativa a horizontes que estao universalmentepresentes na experiencia humana. É uma filosofía dohomem, dos estados de humor e da terapia (KEEN, 1979, p.55).

Como Binswanger, Boss guardava profundo aprego por SigmundFreud (1856-1939), isto, entretanto, nao impediu que essecontestasse, á luz da fenomenología, muitas das ideias das teoríasexplicativas freudianas. A nosso ver, a ideia de uma subjetividadedotada de aparelho psíquico e regida por leis naturais, ainda presentena psicanálise de Freud, era o principal alvo de objegóes de umapsicología fenomenologica. Isso porque, a metapsicologia de Freudainda recorría a um sujeito hipostasiado para estabelecer suasexplicagoes e classificagoes, esforgo que consiste na interpretagao deelementos psíquicos diante de um rol de hipóteses empíricamenteverificáveis (GUIGNON, 1993).Partindo do paradigma fenomenológico, para o qual aintencionalidade é estrutura envolvida na evidenciagáo dosfenómenos (também de uma figura de consciéncia correlata, aqui

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assumida como o ser-aí), e reconsiderando todo o movimento deexposigáo do ser-aí, por nos elaborado, como um ser desprovido desubjetividade, nao mais seria possível acatar a ideia de umasubjetividade simplesmente presente, recipiente, reflexiva e que sedesempenha encapsulada em si. Consoante a Heidegger, Boss nosgarante isso ao afirmar que:

nao há prova, nos fenómenos reais da existencia humana, daexistencia de entes endopsíquicos tais como representagoes,ou afetos a eles ligados. Ainda assim, nem sequer a maisimportante condigao previa para estas premissas foi atéagora explicada: ninguém sabe onde está ou o que é esterecipiente "psíquico" ao qual a palavra dentro se refere. Se aresposta é "dentro" de uma psique, faz-se necessáriodemonstrar primeiro que nos seres humanos possuímospsiques, entes que existem em alguma parte acessível emalgum espago vazio. Em segundo lugar, precisaríamos sabera natureza desta psique dentro de qual "afetos" erepresentagoes do mundo exterior poderiam penetrar, comose ele fosse uma cápsula (BOSS, 1979, p. 45).

Diante da forga deste argumento, se nos deixarmos orientar táosomente pela atitude fenomenológica ou daseinanalítica atendo-nosexclusivamente aos fenómenos da existencia do ser-aí,depreenderíamos que as teorías de faculdades e muitas de suasrespectivas inferencias nao poderiam ser endossadas pelaDaseinanalyse. Isso, porque (como ensina Husserl), toda teoría (e nopresente caso se insere a psicanalise freudiana), se move apoiando-se em hipostasias, de sorte que suas premissas reproduziriam aingenuidade intrínseca a esta pressuposigáo inicial. A fenomenología,que consiste em um procedimento apenas descritivo e, portanto, naoteorizante, seria assim via privilegiada para compreender elementosdo psiquismo sem adulterá-los com especulagóes e interpretagóes.Medard Boss nos dá prova eloquente de como a fenomenología podeapropriar validamente intuigoes da psicanalise sem transigir com umsujeito tradicionalmente concebido. Trata-se de uma hermenéuticados sonhos que toma o ser-aí como agente sonhador. Para Boss(1979, p.44), esses "exercícios práticos de compreensáofenomenológica dos elementos oníricos" sao capazes de evitar adistorgáo dos fenómenos sonhados mediante teorizagóes eespeculagóes uma vez que nao mais presume significados ocultos emuma faculdade inconsciente. Nosso autor sabe que nada há para serperscrutado atrás dos significados que se revelam a nos diretamentedos fenómenos oníricos, deste modo, evidencia que, mesmo duranteo sonho, a intencionalidade permanece atuante, o que nos faz crerque o espago onírico nao é outro senáo um caso do horizontefenomenal do ser-aí em vigilia (BOSS, 1963). Isto nos garante Boss(1979) quando propóe que a "experiencia de sonhar pertence á

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existencia tanto quanto a sua vida desperta, [...] que a sua sujeigáoas coisas que encontra [...] nao só existe no seu mundo como urnarelagáo [...] ao externo, mas também como trago característico desua própria existencia" (p. 42).Dito isso, a Daseinanalyse com Boss empreende um exercício decompreensáo dos sonhos, de modo que os fenómenos do mundo dosonho se conservem exatamente como sao quando se revelam aoser-aí sonhador. Isto porque,

livres dos acréscimos supérfluos e engañosos das modernasteorías psicologísticas do sonho, estaremos prontos acomegar o treinamento para urna visao nao distorcida do ser-no-mundo de seres humanos que sonham. Urna abordagemtao simples é com frequéncia criticada como "banal", mas[...] esta crítica recai sobre os próprios críticos, pessoas quese tornaram cegas á riqueza de significado existente em cadafenómeno que encontramos, seja acordados ou sonhando.(BOSS, 1979, p. 43).

Mais do que o empenho de levar ao cabo, com a Daseinanalyse, o"slogan" fenomenológico: as coisas elas mesmas, presenciamos aquio acuro de Boss em cultivar um ver capaz de perceber, avahar ecuidar da riqueza da experiencia humana na indigencia do ser-aí. Umolhar que, orientado pela intencionalidade, acompanha sua própriatranscendencia podendo descrever o que nela se manifesta;denunciando as limitagóes e tendencias derivadas que nos leva ainterpretagóes desviantes da experiencia de nossa inerentesimplicidade. Ao investigar o sonho, o desejo, a lembranga e outrosfenómenos que nada tém de endopsíquicos (como pressuporiam asteorías psicologísticas), também Boss evidenciou que todo sonhar,desejar, lembrar é inerentemente um sonhar, desejar, lembrar dealguma coisa. Isto significa que qualquer um desses comportamentosnos remete a um modo específico de relacionar-se inteiramente comalgum fenómeno numa base intencional, o que, por si só, evidencia(como se vé junto aos demais autores da Daseinanalyse) aimportancia da intencionalidade.

6 Consideragóes fináis

Tendo conceituado a intencionalidade, á luz da fenomenologíahusserliana, como trago fundamental da consciéncia, grande parte doesforgo de nosso artigo foi o de indicar que a consciéncia intencionalabre campos fenomenais nos quais os entes se manifestam; por suavez, o manifestó nestes campos fenomenais é descrito pelafenomenología. Buscamos mostrar, também, que insatisfeito com osrumos da fenomenología transcendental de Husserl, Heidegger

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elaborou urna síntese própria da fenomenología, colocando sob efeitoda suspensáo fenomenológica a própria consciéncia. O resultadodisso é um ente marcado pelo caráter ontologico da possibilidade, umser que possui seu próprio mundo como correlato determinante e quetem a intencionalidade enfeixada em suas muitas demandasexistenciais. Ao dissolver os últimos delineamentos da consciénciaintencional na forma de ser-aí, Heidegger tornou possível paraBinswanger e Boss urna psicología sem psiquismo, urna psicología embases fenomenológicas, ou ainda em urna Daseinanalyse. Com esta,é possível descrever, analisar e cuidar do ser-aí sem que este sejaabordado como um sujeito estabelecido, do mesmo modo, é possívelter acesso a seus fenómenos "psíquicos" sem precisar, para tanto,recorrer a teorías explicativas do sujeito, geralmente adulterantesdos objetos da psicología, psicoterapia e psicopatologia. Tendo aestrutura da intencionalidade na pedra de toque da fenomenología e,ainda, na pauta de urna Daseinanalyse, é possível acessar oscomportamentos, afetos e patologías do ser-aí como fenómenos ecomo tais fenómenos aparecem significativamente para o outro.Assim, se com a psicología em bases fenomenológicas de Binswangere Boss, nao auferimos a apoditicidade do conhecer táo ansiada porHusserl, nos parece lícito afirmar que a Daseinanalyse nos evidenciaos fenómenos no horizonte em que se constituí a experienciahumana, em suas múltiplas possibilidades.

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Enderece» para correspondenciaRoberto S. Kahlmeyer-MertensRúa Sao Francisco Xavier, 524, Pavilhao - Joao Lyra Filho, 9 andar, Bloco F,sala 9037, Maracaná, Rio de Janeiro, RJ - Cep: 20550-013Enderego eletrónico: [email protected]

Recebidoem: 09/11/2011Aceito para publicagao em: 30/11/2012Acompanhamento do processo editorial: Ana Maria López Calvo de Feijoo

Notas*Doutor em filosofía pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Membroefetivo da Sociedade Brasileira de Fenomenología - SBF*O que, grosso modo, tomamos como sinónimo de Daseinanalyse.2Veja-se mais a este respeito em Dreyfus (1993); Moran (2000).3Para essas duas acepgóes, reservam-se os termos "gegenstand" e "gegenwurf",respectivamente.4Após este argumento, nao é preciso dizer, que o ser-aí nao é apenas urna palavrapara substituir consciéncia, tampouco a representa: trata-se de um ente pensadonum contexto radicalmente diverso do antropológico e mesmo do psicológico.5Nesse ponto, Binswanger (1973) nos lembra que mais teria a contribuir com urnafenomenología psicopatológica as investigagoes minuciosas sobre o fenómeno dasimpatía elaboradas por fenomenólogos como Max Scheler, do que as teorías dasescolas associacionistas.

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ARTIGOS

O plantáo psicológico como possibilidade deinterlocucáo da psicología clínica com as políticaspúblicas

The psychological emergency attendance as possibility ofinterchange between clinical psychology and public policies

Emanuel Meireles Vieira*Universidade Federal do Para - UFPA, Belém, Para, Brasil

Georges Daniel Janja Bloc Boris**Universidade de Fortaleza - UNIFOR, Fortaleza, Ceará, Brasil

RESUMOEste trabalho visa a discutir acerca da insergao do psicólogo clínico ñaspolíticas públicas a partir de urna experiencia de plantao psicológico. Comoaporte para as reflexoes desenvolvidas, recorre a autores que discorremsobre o papel atual do psicólogo clínico e que reconhecem que a clínicaremete ao contato com o outro em sua inteireza. Além disso, diante dainsuficiencia da simples oferta da escuta, aponta a necessidade desteprofissional tornar-se um parceiro na busca de alternativas para asdemandas. Aponta a necessidade de conhecimento das políticas públicas,que podem servir como espago de acolhimento á queixa apresentada pelosclientes. Aponta, também, a deficiente formagao do psicólogo no que tangea essas questoes e o modelo privatista em que atuam as clínicas-escolas dePsicología no Brasil. O plantao surge como um espago questionador destemodelo e introduz a necessidade de contato com questoes, até há bempouco tempo, alheias ao campo psi.Palavras-chave: Plantao Psicológico, Políticas Públicas, Psicología Clínica.

ABSTRACTThis work aims, from an experience of Psychological Emergency AttendanceService, to discuss trie insertion of clinical psychologists in public policies. Asa contribution to the reflections developed hiere, trie text is supported byauthors who discuss the clinical psychologist's current role and recognizethat the clinical space refers to the contact with the other in its entirety.Furthermore, since the inadequacy of a mere proposition of listening, thetext points out the need of this professional to become a partner in thesearch for alternatives to the demands. It highlights, too, the need forknowledge of public policy, which can serve as a host space to customers'complaints. The text points out, also, the poor training of psychologists inregard to these issues and the privatist model in which opérate the clinics-school of psychology in Brazil. The Psychological Emergency AttendanceService arises as a query space for this model and introduces the need tohave contact with questions that, until recently, were beyond the psi field.Keywords: Psychological Emergency Attendance Service, Public Policies,Clinical Psychology.

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicología Rio de Janeiro v. 12 n. 3 p. 883-896 2012

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Emanuel Meireles Vieira, Georges Daniel Janja Bloc BorisO plantao psicológ. como possibil, de interl. da psic. clínica com as políticas públicas

1 Introdugao

Se for perguntado a um estudante ou profissional de Psicologíaacerca do oficio de psicólogo clínico, é provável que se escute comoresposta que a este profissional cabe o exercício da psicoterapia. Pormuitos anos, de fato, a atuagáo do psicólogo clínico no Brasil passavapela ideia de um profissional liberal que atendía num modeloprivatista e individual, e que aplicava os preceitos de teoríasimportadas ao contexto de seu consultorio particular, de custo alto eacesso restrito (PEREIRA; PEREIRA NETO, 2003).Interessa-nos, neste trabalho, a partir de urna breve discussáo acercadas condigoes de possibilidade de surgimento da Psicología, elaborarurna análise da Psicología Clínica na contemporaneidade, tendo comomote a experiencia de plantao psicológico vivida pelos autores. Talvivencia tem nos mostrado um possível e proficuo diálogo daPsicología com políticas públicas que re-situa o lugar ocupado pelopsicólogo clínico. De antemáo, portanto, destaca-se, aqui, opressuposto de que a psicología é urna construgáo histórica e que asatuagóes em suas diversas áreas se transformam de acordó com ostempos e lugares em que se desenvolvem.Para que elaboremos urna análise mais clara acerca do tema aquiabordado, faz-se necessário que recorramos as reflexóes elaboradaspor Figueiredo (1992; 1996; 2004). De acordó com ele, para que secompreenda a historia da Psicología nao basta apenas acumulardados sobre as teorías diversas que compóem este espago dedispersáo do saber (GARCIA-ROZA, 1977). É necessário,primeiramente, discutir acerca das condigóes de possibilidade de"invengáo" (FIGUEIREDO, 1992) deste saber para que se entenda oque se convencionou chamar de Psicología - criada num contextoespecífico de questóes colocadas a diversos campos do saber.De acordó com Dutra (2004), a etimología do termo clínica nosremete a urna tradigáo médica que atravessa o fazer psicológico.Clínica significa estar a beira do leito, ou seja, o profissional posto ácabeceira de alguém que se entende estar doente e que necessita dacura proporcionada pelo profissional. É neste esteio que surge, naoapenas a psicología clínica, como a própria psicología como cienciaque se tenta autónoma.Segundo Figueiredo (2004), a Psicología é urna invengáo damodernidade e somente por meio do entendimento do que foi osurgimento deste período e suas implicagóes torna-se possívelelaborar urna análise consistente do que possibilitou odesenvolvimento desta ciencia. Por modernidade, nao estamosapenas situando um período de datas, mas urna forma deorganizagáo social no Ocidente que inaugurou urna serie detransformagóes sentidas até os dias de hoje.

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Anteriormente a esse período, a Europa passou por urna época emque havia delimitagoes muito claras de ser, saber e poder: a IdadeMedia, organizada a partir de urna sociedade feudal e controlada porum Estado aliado ao centro das decisóes na Igreja Católica. Naquelaconjuntura, a Filosofía era utilizada como fundamento para ajustificativa da posigáo adotada pelo poder clerical e, no que tangía aquestionamentos e respostas sobre o mundo, encontrava absolutareferencia nos dogmas católicos.A organizagáo social, também legitimada pelo poder clerical, eracaracterizada pela imobilidade. Deste modo, o estrato social a quepertencia o individuo era determinado pela sua descendencia familiar.Um nobre, por exemplo, jamáis deixaria de ser nobre, assim comoum servo nao encontrava, no meio social, qualquer possibilidade de"ascender" a senhor feudal. Assim, destacamos que, nos diversosámbitos, havia pouco espago para pensar um conceito muito caropara o surgimento da psicología, qual seja, o de individuo. Esteconstructo remete-nos á ideia de que a experiencia de cada um comdeterminado fenómeno é singular e a ele, somente, caberia o acessoe o entendimento desta experiencia. Isto ocorreria por urna relagáohomem-mundo pautada, sobretudo, por urna nogáo de que, ao serhumano, caberia admirar a criagáo divina, sem alterá-ladrásticamente, sob pena de macular a sagrada obra do Senhor.É na modernidade que essa relagáo muda. A Ciencia toma o lugar daFé e, desse modo, torna o mundo cada vez mais humano e menosdivino, o que autoriza o homem a nao apenas admirá-lo, mas,sobretudo, construir meios para manipulá-lo. Desse modo, criaram-secondigoes para desvendar os misterios da natureza por meio daquiloque guia todo o saber científico desde entáo: previsáo e controle(FIGUEIREDO, 1992). Segundo Figueiredo (1992), o racionalismo e oempirismo, representados por Descartes e Bacon, respectivamente,ganham destaque no estabelecimento de parámetros para um melhorconhecimento da realidade. O homem se debruga sobre o mundopara se antecipar ao que naturalmente seria colocado. É a razáo sesobrepondo á natureza e, se anteriormente á Modernidade, eraatribuida á fé a fungáo de justificar as agóes do homem no mundo,durante o novo período é a razáo que ocupa lugar de destaque nestafungáo, prometendo dar ao homem a liberdade que a "idade dastrevas" Ihe tomou.

Como se sabe, porém, a Modernidade nao cumpriu todas as suaspromessas e o que se observou desde o inicio do período foi umaprofundamento de antigos conflitos (que culminou em duas grandesguerras mundiais e outros conflitos regionais), meios maissofisticados de exploragáo do homem pelo homem e umdesconhecimento deste homem a respeito de si mesmo.1

Se para a utilizagáo de urna máquina bastava a aplicagáo de regrasda física e da matemática, para a compreensáo daquele que utilizava

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esta mesma máquina os saberes instituidos mostravam-seinsuficientes. É neste fosso entre o saber sobre o mundo e o naosaber sobre este ser que opera transformagoes na realidade que criacondigoes para o surgimento da Psicología como ciencia"independente".Inicialmente atrelada á reprodugáo da lógica das ciencias duras aocampo do estudo da mente - objeto até hoje pouco preciso -, aPsicología surge como mecanismo de tentativa de controle do homempor ele mesmo. Todavía, mais do que solugóes, as Psicologías que sedesenvolvem a partir de entáo mostram os problemas que envolvema tarefa do homem de conhecer-se por completo. Seja pelapsicanálise, que aponta ignorancia do homem sobre si, seja pelobehaviorismo, que releva um homem bem longe de ser senhor de si eo afasta do ideal antropocéntrico Moderno, ou ainda pelo Humanismo,que valoriza os afetos em detrimento de urna construgáo racionalsobre si, as varias Psicologías se esquivam de responder aquilo queinicialmente sao solicitadas a fazer, ou seja, prever e controlar ocomportamento humano.A Psicología Clínica nao foge dos ditames instituidos inicialmente paraa Psicología em geral. A fungáo normativa e adaptadora que Ihedelega a sociedade é logo rechagada por ela, em nome da escuta dosofrimento do outro, do interditado (FIGUEIREDO, 2004).Independentemente do referencial teórico utilizado, dar vez ámanifestagáo da historia do outro é praxe na prática do PsicólogoClínico. Isto significa que, por vezes, esta escuta póe em evidenciaaspectos nem sempre valorizados pelas relagóes instituidas nocotidiano, deixando de lado as interjeigóes interpostas entre odiscurso de quem fala e a escuta de quem ouve (AMATUZZI, 1990;DUTRA, 2004).

2 A psicología clínica no Brasil - partes de um cenário emmovimento

A psicología clínica se apresenta neste contexto de emergencia dapsicología como algo em permanente movimento. Se até temposrecentes, conforme dito no inicio deste texto, ao profissional depsicología clínica apenas cabía a atividade liberal de psicoterapeutade pessoas económicamente privilegiadas em consultorio privado e aaplicagáo descontextualizada de teorías de origem estranha ábrasileira, o ámbito de realizagáo deste trabalho sofreu profundasmudangas de meados dos anos 1980 até os dias de hoje (BASTOS &GOMIDE, 1989; LO BIANCO et al., 1994).Lo Bianco e colaboradores (1994) apresentam-nos duaspossibilidades de se classificar as produgóes contemporáneas dapsicología clínica: a tradicional ou clássica e as tendencias

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emergentes. Na forma tradicional, destacam-se concepgoesintrapsíquicas e processos psicopatológicos individuáis, a partir daspráticas descritas ácima. Este modelo era predominante até o fim dosanos 1980, no Brasil. Para que se tenha ideia, segundo Meira e Nunes(2005), naquela década, mais de 50% dos psicólogos de Sao Paulo(lugar de grande concentragáo de cursos de Psicología no país)diziam-se clínicos.Ñas tendencias emergentes, ainda segundo Lo Bianco ecolaboradores, sobressai-se urna preocupagáo elevada com avinculagáo do entendimento dos fenómenos psicológicos ao contextosocial. De acordó com Dutra (2004, p. 382), "podemos dizer que onovo fazer clínico incluí urna análise do contexto social em que oindividuo está inserido.". Ainda segundo a autora, ao invés dasclássicas abordagens, o compromisso ético ocupa papel de destaqueñas diretrizes para a realizagáo do trabalho do psicólogo clínico.Na mesma diregáo, Pombo-de-Barros e Marsden (2008) falam daimportancia de contextualizar o fazer clínica, inserindo-o numaperspectiva política e considerando a complexidade do humano. Deacordó com as autoras, contextualizar o fazer clínico "requer oesforgo de se articular métodos e indicadores padróes com assingularidades dos processos de subjetivagáo, de saúde eadoecimento." (p. 120)Tais reflexóes nos levam a compreender que mais do que aplicarconceitos ortodoxos das abordagens aprendidas ñas Universidades,os profissionais desta área tém procurado compreender asespecificidades deste fazer em contextos diversos daqueles em queas clássicas teorías se desenvolveram. Como Afirmam Pombo-de-Barros e Marsden (2008, p. 120), "o que se propóe nao é descartaros conceitos e teorías em uso, mas mudar o modo como se usa.".Destarte, Costa e Brandao (2005) falam da clínica como abordagem,nao como área. Ou seja, a nogáo de clínica traz consigo urnadimensáo de cuidado, de atengáo contextualizada com o ser humanoe a questao da subjetividade ai implicada (NEUBERN, 2001).Ferreira Neto (2004) aponta para a questao do mercado implicada naclínica Segundo o autor, seria ingenuo de nossa parte imaginar queesta tensáo na psicología clínica surgiu por decisáodescontextualizada de urna oferta de máo-de-obra. O discurso dapsicología e do compromisso social, encampado pelo ConselhoFederal de Psicología já há alguns anos, envolve também urnaquestao de reserva de mercado - legítima, mas que nao pode deixarde ser explicitada.Diante deste cenário muíante por que vem passando a PsicologíaClínica nos últimos anos, questóes que outrora nao faziam sentidoneste campo passam a se impor diante da necessidade de redefinigáodo conjunto de saberes que compoem este corpo por vezes difuso deconhecimentos.

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Pórtela (2008, p. 132) pergunta-se: "que sujeito é este de quem aclínica está falando? Ou melhor, que sujeito a teoría da clínicaconstruiu, ao longo do século XX?". Acrescentaríamos a estasimportantes indagagoes o seguinte aspecto: que sujeito é este que apsicología clínica no Brasil construiu ao longo das duas últimasdécadas?Ainda ancorados em Pórtela (2008), podemos afirmar que se trata deum sujeito longe dos ideáis modernos apresentados no inicio destetexto e que tem como consequéncia o fato de que "os limites atéentáo existentes entre as abordagens clínica e social se dissolveram,e o profissional deve articular o local e o global em um diálogo que déconta do sujeito pós-moderno." (PÓRTELA, 2008, p. 137). Comoexemplo, podemos citar o trabalho de Moreira e Sloan (2002), quefogem do campo tradicional em que geralmente é pensada aPsicopatologia, para situá-la numa perspectiva crítica, propondo-secomo tarefa deste campo do saber um fazer desideologizador.

3 O plantao psicológico no cenário da psicología clínica

Surgido no fim dos anos 1960, no Servigo de AconselhamentoPsicológico da Universidade de Sao Paulo (SAP), o plantao psicológicotem como inspiragáo as walk-in clinics, nos Estados Unidos, Canadá eparte da Europa (MOZENA, 2009). A lógica do servigo é de ofertarescuta empática e compreensiva a quem demandar por ela, nomomento de emergencia de sua necessidade, sem tempo pre-determinado e obrigatoriedade de retorno (MAHFOUD, 1987).Segundo Mahfoud (1987, p. 76), nesta modalidade de atendimento"[...] o trabalho do conselheiro-psicólogo é no sentido de facilitar aocliente urna visáo mais clara de si mesmo e de sua perspectiva ante aproblemática que vive e gera um pedido de ajuda. Nisso, a forma deenfrentar a problemática se definirá no próprio processo de plantao ecom a participagáo efetiva de ambos, cliente e conselheiro.".Tassinari (2009, p. 176) define plantao psicológico da seguintemaneira: "[...] um tipo de atendimento psicológico que se completaem si mesmo, realizado em urna ou mais consultas sem duragáopredeterminada, objetivando receber qualquer pessoa no momentoexato (ou quase exato) de sua necessidade para ajudá-la acompreender melhor sua emergencia e, se necessário, encaminhá-laa outros servigos.". Tal servigo se justifica na medida em que nemtodas as pessoas que procuram psicoterapia necessitam desteservigo, pois, como mostram os trabalhos realizados neste campo(MAHFOUD, 1987; MORATO, 1999; TASSINARI, 2009; ROCHA, 2009;VASCONCELOS et al., 2009; CURY, 2009; SCHMIDIT, 2004), muitasvezes, a escuta atenta e empática de urna determinada queixa nomomento ¡mediato em que a demanda se apresenta pode servir como

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um clarificador das necessidades do individuo, sem que este precisefazer todo um trabalho de mudanga de sua personalidade, bastando,para tanto, um tempo bem menor do que longos anos de terapia.O plantao psicológico precisa ter regularidade na oferta de seuservigo, bem como boa divulgagáo para que ocorra satisfatoriamente(MAHFOUD, 1999). Para isso, urna equipe de plantonistas,geralmente estagiários de Psicología Clínica sob supervisáo, ficadisponível durante horas e dias fixos a serem estabelecidos paraatendimento de demandas de pessoas que julgam necessitar deatendimento emergencial. Nao funciona, portanto, com filas deespera.As pesquisas no referencial da Abordagem Centrada na Pessoa(MOZENA, 2009), de inspiragáo fenomenológica (AMATUZZI, 2009),tém-se dedicado bastante nos últimos anos ao tema do plantaopsicológico. A atitude calorosa e empática do conselheiro centrado napessoa tem se mostrado bastante efetiva na clarificagáo da queixapor parte do individuo e seus devidos encaminhamentos.Assim, a Abordagem Centrada na Pessoa tem se mostrado como umimportante referencial teórico-metodológico para o desenvolvimentodo plantao psicológico no Brasil, tanto na esfera de sua execugáo,quanto no ámbito da pesquisa em psicología clínica.Esta abordagem toma por base o que Rogers (1992) descreve comocondigóes necessárias e suficientes para a mudanga terapéutica dapersonalidade, a saber: que duas pessoas estejam em contatopsicológico; que urna délas (o cliente) esteja em desacordó interno;que a outra (o terapeuta) esteja em acordó interno naquela relagáo;que o terapeuta experimente consideragao positiva incondicional pelocliente; que o terapeuta sinta empatia pelo cliente; que o clienteperceba estas condigóes na relagáo que estabelece com seuterapeuta. Esta última é condigáo sinequa non para o bomandamento do processo psicoterapéutico, ou seja, caso o cliente naose sinta aceito e compreendido, mesmo que o terapeuta julgue que,objetivamente, age assim, a terapia nao será bem sucedida.As condigóes expostas ácima, amplamente conhecidas no seio dapsicología clínica e marcantes na produgáo rogeriana sobrepsicoterapia, foram, ao longo dos anos, sendo postas á prova e tendosua importancia revalidada por pesquisas em diversas partes domundo (KIRSCHENBAUM; JOURDAN, 2005). Ñas pesquisas realizadasem plantao psicológico (ROCHA, 2009; VASCONCELOS et al., 2009,CURY et al., 2009), há urna énfase bastante acentuada no lugar doterapeuta e a efetivagáo das condigóes postuladas por Rogers (1992)como necessárias e suficientes para a mudanga da personalidade.Vale ressaltar que, no atendimento de plantao psicológico, caso sejaidentificada, pelo terapeuta e pelo cliente, a necessidade de algumtrabalho que demande maior aprofundamento do que a escuta eclarificagáo da demanda, o cliente é encaminhado para servigos

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outros que possam recebé-lo. Estes servigos, segundo Rocha (2009)nao necessariamente sao de psicoterapia, já que variam de acordócom a demanda identificada de maneira dialogada e empática com ocliente que procura o servigo.Ou seja, o plantao, ao mesmo tempo em que afirma o lugar daescuta como algo de importante destaque no desenvolvimento dapsicología clínica, aponta para o fato de que esta escuta deve estarapta a reconhecer que nem tudo pode ou deve ser demanda depsicoterapia, o que significa urna atitude de nao "psicologizar" ou"patologizar" as queixas de quem procura o servigo. Comoconsequéncia, podemos afirmar também que o plantao, em acordócom as novas tendencias em Psicología Clínica, diferencia este campodo da psicoterapia, de modo que esta está contido na primeira. É aquique se instaura o debate pretendido por este artigo.

4 O plantao psicológico e as políticas públicas - a experienciada UFPA

O plantao psicológico tem sido desenvolvido na Universidade Federaldo Para desde agosto de 2009. O servigo ocorre todas as tergas equintas-feiras e conta com a supervisáo de um professor e a atuagáode doze voluntarios que passam por treinamento específico paraatender por essa modalidade.Tal treinamento incluí a leitura semanal de texto sobre o plantaopsicológico e suas interfaces, bem como a discussáo permanente dopróprio servigo, de modo a avahar seu desenvolvimento. Além disto,urna vez por semestre, o supervisor e os alunos que participam doservigo viajam juntos a um local afastado de Belém para trocarexperiencias e exercitar a escuta mutua (AMATUZZI, 1990) comourna ferramenta necessária para a atuagáo do plantonista.Durante o período de funcionamento do plantao, que tem aAbordagem Centrada na Pessoa como teoría fundamental para seudesenvolvimento, sao diversas as demandas dos que procuram oservigo. Igualmente variados sao os encaminhamentos dados a estasdemandas, pois váo do encaminhamento á psicoterapia tradicional ede longa duragáo, ao diálogo com projetos vinculados a políticaspúblicas. Estes últimos nos interessam mais fortemente para adiscussáo aqui desenvolvida. Relatemos um caso para que, emseguida, desenvolvamos o argumento pretendido neste escrito.Para ilustrar a discussáo, optamos por trazer á tona um fato ocorridonum dos atendimentos do servigo. Certa vez, procurou o servigo dePlantao Psicológico urna mulher cujo marido foi assassinado numdistrito da Grande Belém e que estava sendo ameagada de mortepelos mesmos assassinos de seu cónjuge. Sua tensáo era muito alta

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devido aos acontecimentos recentes e, como de costume no servigo,foi-lhe ofertada urna escuta sensível e empática (ROGERS, 1983).Conforme a sessáo se desenvolvía, tornava-se evidente que aquestáo colocada pela cliente era seu medo de vir a ser assassinadapelo que a ameagavam de morte, de modo que, claramente, o que acliente pedia era protegáo para si, urna assisténcia que pudesseprotegé-la do que temia. Em supervisáo, chegou-se á conclusáo deque, no que pese a utilidade e forga de escuta oferecida a ela peloservigo de Plantao, esta era insuficiente face á questáo por elacolocada. Assim, optou-se por entrar em contato com a Secretaria deJustiga de Direitos Humanos do Estado para que, lá, a clienterecebesse apoio adequado e mais completo.Antes de prosseguirmos com urna análise da situagáo colocada, faz-se necessário que definamos políticas públicas. De acordó com Souza(2006, p. 26), esta seria "o campo do conhecimento que busca, aomesmo tempo, 'colocar o governo em agáo' e/ou analisar essa agáo(variável independente) e, quando necessário, propor mudangas norumo ou curso dessas agóes (variável dependente).".As políticas públicas, portanto, refletem a forma como os governantescompreendem a relagáo do Estado com a Sociedade. Deste modo, natensáo entre os polos que compóem este lago, se atualizam comoagóes que acolhem a demandas postas nesta relagáo, o que significaque ganham concretude nos programas instituidos pelosgovernantes.Ainda segundo Souza (2006), "políticas públicas, após desenliadas eformuladas, desdobram-se em planos, programas, projetos, bases dedados ou sistema de informagáo e pesquisas" (p. 26). É no campodos programas e projetos formulados pelas políticas públicas que sedesenvolve a questáo que ora analisamos. Deste modo, quandocolocamos o plantao psicológico em contato com as políticas públicas,abrimos espago para que a Psicología inclua em seus temas dedebate as intengóes projetos de governo para a sociedade.Retomando o caso relatado no inicio deste tópico, devemosreconhecer um limite e urna possibilidade colocados á psicologíaclínica. O limite diz respeito ao fato de que se reconhece de antemáoque urna boa escuta, no que pese toda a sua utilidade, nem sempre ésuficiente para dar conta da situagáo levada pelos individuos queprocuram ajuda ñas varias clínicas de psicología.Mesmo Rogers (1992), quando do desenvolvimento de sua TerapiaCentrada no Cliente, deixou claro que as condigóes que julgavanecessárias e suficientes diziam respeito á mudanga dapersonalidade. Assim, podemos dizer que consideragáo positivaincondicional, empatia e genuinidade sao necessárias no manejo desituagóes como a aqui exemplificada, mas insuficientes em seusencaminhamentos. Isto porque o exercício da escuta da cliente, aomesmo tempo em que Ihe permite aproximar-se de urna fala

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auténtica (AMATUZZI, 1994) e ter maior clareza de qual a questáo aser trabalhada, aponta para um necessário diálogo com as políticaspúblicas como forma de cuidar de modo mais direito dos problemastrazidos pelos clientes do Plantao e articular este cuidado a urnadiscussáo política.É exatamente neste apontar para fora do espago físico da Clínica dePsicología que o Plantao Psicológico cria urna possibilidade, pois sedenuncia urna insuficiencia da escuta quanto ao encaminhamento deurna demanda, anuncia, por outro lado, a necessidade de oplantonista dialogar com as políticas públicas e os programas eprojetos que as compóem.Quando nos referimos ao diálogo, nao se trata apenas de saber queexistem determinados projetos e catalogá-los numa lista presente noservigo, mas, sim, de conhecer a fungáo de cada um e com elesestabelecer trocas no sentido de reconhecer um modo de cooperagáono acolhimento da pessoa que procura ajuda.Desse diálogo, pode surgir urna redefinigáo do que é a clínica nacontemporaneidade, bem como do que significa fazer política pública.Neste sentido, é interessante atentarmos para o questionamentolangado por Dutra (2004, p. 385), que pergunta: "Como o psicólogoclínico acolherá o sofrimento do homem contemporáneo, sem perderde vista os seus espagos epistemológicos e o compromisso social?".Dito de modo contextualizado na questáo levantada neste trabalho:como fazer plantao psicológico sem que ele seja urna simplesvariagáo da clínica tradicional explicitada no inicio deste trabalho?Dialogar com as políticas públicas parece indicar um interessantecaminho de transformagáo da clínica como um lugar em diregáo aoque Figueiredo (2004) nomeia de "ethos". Isto significa que a Clínicaocupa um lugar de acolhimento do interditado, daquilo que naoencontra eco em outros espagos, lugar, portanto, de afirmagáo daalteridade do Outro (FREIRÉ, 2002).

5 Consideragóes fináis

O desenvolvimento histórico da Psicología como ciencia e profissáonos mostra muito claramente as razóes pelas quais este saber ecomprometeu com urna determinada forma de pensar suasarticulagóes com o campo social. Conforme demonstramos no iniciodeste trabalho, sem a clareza das condigóes de possibilidade desurgimento de um saber dito psicológico e independente, corre-se orisco de naturalizar estas relagóes e, assim, compreender-se que oestado de coisas sempre foi este que ora se apresenta.O entendimento histórico também nos proporciona a observagáo deum movimento que já se desenrola há algumas décadas em relagao ádefinigáo do campo de atuagáo da psicología clínica. Conforme

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exposto durante todo o texto, nao é mais possível, no Brasil, falar dePsicología Clínica como no inicio da regulamentagáo da profissáo.Como pudemos perceber, isto se deu pela insergáo dos profissionaisem outros campos que Ihe eram estranhos até bem pouco tempo(DIMENSTEIN, 2001).O plantao, como modalidade contemporánea de atuagáo no campo daPsicología Clínica, reconhece a necessidade da oferta de escuta aquem passa por sofrimento. Todavía, aponta também suainsuficiencia quanto a futuros encaminhamentos a estes que buscamajuda no servigo. Indicamos aqui as políticas públicas como umproficuo e necessário campo de diálogo na reconstituigáo daPsicología Clínica contemporánea.Urna questáo, porém, com que se depara o plantao psicológico emsua interlocugáo com o campo das políticas públicas é a mesma indicapor Ferreira Neto (2010), quanto á formagáo do psicólogo. Segundo oautor, ainda há um modo de estruturagáo de currículos nos cursos dePsicología que privilegia a preparagáo de psicoterapeutas. Outroimpasse apontado por Ferreira Neto diz respeito á concepgáo declínica presente na formagáo, distante ainda de um modelo que naoreproduz a ideia liberal de "consultorio privado, mas portando urnacompreensáo ampliada do campo, com destaque para a preocupagáosobre o "contexto social" da prática clínica" (FERREIRA NETO, 2010,p. 393).Assim, pode-se pensar na insergáo do plantao psicológico eminstituigáo que executam programas e projetos vinculados a políticaspúblicas, no sentido de sua aproximagáo e integragáo concreta nestecampo de atuagáo. Quem sabe, assim, poder-se-ia instituir nesteslocáis um espago de escuta do interditado, como nos sugereFigueiredo (2004) quanto á fungáo do psicólogo clínico. Isto significasituar as instituigóes que executam esses programas numa condigáodiferenciada da de simples prestadoras de servigo á populagáo, bemcomo se reconhece urna fungáo política e social da escuta clínica.

Referencias

AMATUZZI, M. M. O que é ouvir. Estudos de Psicología, Campiñas,n. 2, ago./dez., 1990.

. O resgate da fala auténtica. Campiñas: Papirus, 1994.

. Psicología fenomenológica: urna aproximagáo teóricahumanista. Estudos de Psicología, Campiñas, v. 26, n. 1, p. 93-100, 2009.BASTOS, A. V. B.; GOMIDE, P. I. C. O Psicólogo brasileiro: Suaatuagáo e formagáo profissional. Psicología: Ciencia e Profissáo,Brasilia, v. 9, n. 1, 1989.

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Enderezo para correspondenciaEmanuel Meireles VieiraFaculdade de Psicología - Universidade Federal do Para - Campus SetorialBásico - Instituto de Filosofía e Ciencias Humanas - Rúa Augusto Correa, n°1 - Guama - Belém - PA, BrasilEnderego eletrónico: [email protected] Daniel Janja Bloc BorisUniversidade de Fortaleza, Programa de Pós-Graduagao em Psicología,Bloco N - Sala 13, Avenida Washington Soares, 1321- Bairro EdsonQueiroz - Fortaleza - CE, Brasil

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Enderego eletrónico: [email protected]

Recebidoem: 20/10/2011Aceito para publicagao em: 31/05/2012Acó m pan ha mentó do processo editorial: Ana Maria López Calvo de Feijoo

Notas*Mestre em Psicología pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Doutorando emPsicología pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Professor daFaculdade de Psicología da Universidade Federal do Para (UFPA) Belém/Brasil, ondecoordena o servigo de Plantao Psicológico na Clínica-Escola**Psicólogo, Professor titular do Programa de Pós-Graduagao em Psicología daUniversidade de Fortaleza (UNIFOR). Doutor em Sociología pela Universidade deFortaleza. Coordenador do APHETO - Laboratorio de Psicopatologia e PsicoterapiaHumanista Fenomenológica Crítica^oderíamos aqui citar as Filosofías de Nietzsche e Marx, entre outras, comoexemplos de correntes de pensamento que ilustram bem a desilusao humanaquanto ao nao cumprimento de expectativas geradas no estabelecimento doperíodo Moderno. Todavía, por urna questao de foco do trabalho, limitar-nos-emosa apenas descrever características gerais do período.

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ARTIGOS

Atendimento psicológico em instituicóes: da tradicáoá fenomenología existencial

Psychological care in institutions: from tradition to existentialphenomenology

Juliana Vendruscolo*Universidade de Ribeirao Preto - UNAERP, Ribeirao Preto, Sao Paulo, Brasil

RESUMOA delimitagao do lugar da Psicología como ciencia continua sendo trilhada naatualidade, gerando embates relativos á classificagao. Um importante campode discussao foi aberto com a insergao do psicólogo em novos espagos deatuagao. Como deve ser a intervengao no contexto institucional? Diferentestécnicas de atendimento psicológico foram desenvolvidas. O objetivo dessetrabalho é apresentar nomenclaturas que diferenciem algumas modalidadesde atendimento psicológico, utilizadas em instituigoes, e, posteriormente,desconstruir tal concepgao presente na tradigao da psicología científica.Abre-se espago para compreensao fenomenológico-existencial doatendimento do psicólogo institucional. Nesse artigo um caso foi relatado ediscutido a partir da questao norteadora (nao formulada aos participantes)"Como se dá a relagáo terapéutica?" Conclui-se que a relagaoterapéutica, no ámbito clínico ou institucional pode ser concebida apenaspela pré-ocupagao por anteposigao libertadora. Nao há necessidade declassificagoes e diferenciagoes técnicas para especificar as modalidades deatendimento psicológico possíveis no cenário contemporáneo.Palavras-chave: Psicología Institucional, Psicología da Saúde, PsicologíaFenomenológico-Existencial.

ABSTRACTThe delimitation of the place of Psychology as a science is stillbeing

drawn in the present days, generating discussions relatively to classification.An important field of discussion was opened with the insertion of thePsychologist in new operating spaces. How should thePsychologistintervention be in the institutional context? Different psychological caretechniques have been developed. The objective of this work is to presentnomenclatures that distinguish some psychological care modalities, used ininstitutions, and, eventually, deconstruct such conception, present in thescientific psychology. A space is being opened for an existentialphenomenological understanding of the institutional psychologist care. Inthis study, a case was reported and discussed, departing from the guidingquestion (not exposed to the participants) "How does the therapeuticrelation happens?" We get to the conclusión that the therapeutic relation,in the clinical or institutional scope can be conceived only by the pre-occupation with a liberating preplacing. There is no need of classifications,

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicología Rio de Janeiro v. 12 n. 3 p. 883-896 2012

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ñor technical differentiations to specify the possible modalities ofpsychological care in the contemporary scenario.Keywords: Institutional Psychology, Health Psychology, Existential-Phenomenological Psychology.

1 Práticas Psicológicas em Psicologia da Saúde: uma demandade técnica

A Psicologia traz em sua historia, um percurso de embates geradosem torno da necessidade de sua classificagáo. Por certo períodoesteve associada á Filosofía, porém, com a crescente valorizagáo dopensamento científico-natural, comegou a surgir o interesse deinseri-la no grupo de tais ciencias. Giorgi (1985) descreve essemomento histórico marcado pela fundagao do primeiro laboratorio dePsicologia Experimental, de Wundt, na Alemanha, mas evidencia, quejá havia autores preocupados em apresentar a Psicologia comoCiencia Humana. Dentre eles, Brentano e Dilthey. Esse caminho, queprocura delimitar o lugar da Psicologia como ciencia, continua sendotrilhado na atualidade, concomitantemente as delimitagóes daPsicologia em diferentes áreas de atuagáo.Em 1960, a profissáo do Psicólogo foi regulamentada (SPINK, 2003),mas é interessante notar que já havia a atividade do psicólogo noámbito hospitalar. Encontramos nesse período o cerne do que hojeconhecemos como Psicologia da Saúde.Mesmo com os entraves teóricos, a "área da saúde", termocomumente utilizado para designar a atuagáo relativa á Psicologia daSaúde, tem sido foco de constantes estudos, bem como tem seconstituido como terreno fértil para contratagáo de psicólogos. Atémeados da década de 90, a Psicologia Hospitalar era a representagáomais evidente da área da saúde. Nesse período, surgem publicagóesnessa temática, assim como congressos e encontros relativos aotrabalho na instituigáo hospitalar (ANGERAMI, 2006). Alguns setoresespecíficos ganham destaque ñas pesquisas realizadas, sendo aPsiconcologia um desses expoentes. A literatura, gradativamente,comega a anunciar uma ampliagao: a Psicologia Hospitalar, até entáonome de disciplinas, congressos e livros, passa a integrar a grandeárea da Psicologia da Saúde.Vale ressaltar que há 20 anos surgiu a proposta de democratizagáoda saúde com o SUS - Sistema Único de Saúde. Segundo Paim(2009), muitas conquistas podem ser comemoradas em relagáo áconcepgáo, nascimento e implementagáo do SUS, mas os obstáculostambém se destacam. De acordó com Carvalho (2009) a saúdemental, que constitucionalmente integra a saúde, deveria serrespeitada. Portanto, pensar na Psicologia da Saúde envolve osdiferentes níveis de atengáo á saúde, em seus respectivos locáis de

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atuagáo: primario (Unidades Básicas de Saúde-UBS e UnidadesBásicas Distritais de Saúde - UBDS); secundario (Unidades deinternagáo) e terciario (cuidados relativos á reabilitagáo). A presengado psicólogo tem sido cada dia mais valorizada e exigida nosdiferentes espagos de atengáo á saúde (MINAYIO; CAMPOS;AKERMAN, 2006). Vale ressaltar que a Psicología está inserida tanto apartir de urna proposta mais relacionada aos aspectos sociais, quantomais direcionadas as questóes pertinentes aos atendimentos clínicosinstitucionais, individuáis ou em grupo, que constituem o foco desseestudo.Os profissionais da psicología tem enfrentado muitas demandas ao seinserirem no setor da saúde, seja no espago público ou privado. Aexpectativa em relagáo ao trabalho no campo da saúde mental vem,na maior parte das vezes, marcada pela concepgáo mecanicista ebiomédica do processo saúde e doenga. De acordó com OrganizagáoMundial da Saúde, a saúde pode ser considerada como um estado debem-estar físico, psíquico, social e espiritual total, sendo assim, seesse estado for interrompido por algum fator ele deverá serrestaurado o mais rápido possível (VALLE; FRANCOSO, 1997).Quando um pedido de avaliagáo ou de atendimento psicológico érealizado, ele vem acompanhado de urna expectativa do solicitante,que na maior parte das vezes é algum outro profissional da saúde, deresolugao de algum confuto, bem como de minimizagao do sofrimentoque o individuo adoecido está vivenciando.Sendo assim, um importante campo de discussáo comegou a seraberto a partir da insergáo do psicólogo nesses novos espagos deatuagáo. Como deve ser a sua intervengáo no contexto institucionalna área da saúde? Há necessidade de se empregar técnicasespecíficas para diferentes momentos? Deve ser respaldada pelomodelo clínico, representado prioritariamente pela psicoterapia?Quem solicita o atendimento necessariamente é o cliente/paciente,ou seja, é aquele cuja demanda será atendida? A literatura apresentaum grande número de pesquisas que estáo de alguma forma,relacionadas a esses questionamentos. Alguns autores seráo citadosa seguir para ilustrar essa afirmagáo.Sebastiani e Maia (2005) apontam a necessidade do psicólogo seinstrumentalizar, com técnicas específicas para atuar com o pacienteque passará por um processo cirúrgico, o que se inicia através doconhecimento de alguns processos de respostas previstas naexperiencia desse paciente.Gorayeb (2010) salienta a necessidade de esclarecer que a Psicologíada Saúde nao é a mera aplicagáo da Psicología Clínica na área daSaúde, mas configura-se como urna área específica, que requertécnicas e métodos específicos. Para esse autor, em sua experienciana área, os conhecimentos científicos, pautados na PsicologíaExperimental sao essenciais.

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A Interconsulta Psicológica é apresentada por Santos et al (2011),como instrumento metodológico utilizado pelo profissional de saúdemental para compreender e prestar assisténcia ao paciente emhospital geral. Em seu estudo, as autoras apresentam resultados queapontam a solicitagáo de tal modalidade, prioritariamente pormédicos e enfermeiros, tendo como motivos do pedido os síntomaspsicológicos relacionados ao adoecimento e a identificagáo docomprometimento da adaptagáo do paciente á hospitalizagáo.Esses e outros trabalhos contribuem inegavelmente com a práticapsicológica na área da saúde. É possível afirmar que se destinam asistematizagáo de urna prática, que nascida no modelo biomédico,desenvolveu-se rumo á conceituagáo biopsicossocial do atendimentoem Psicología da Saúde. Entretanto, tomando a Psicología a partir daproposta fenomenológico-existencial, e, portanto, desprendendo-sede qualquer proposta de manejo do aparelho psíquico (FEIJOO,2011), surge a necessidade de buscar outra forma de compreender efazer Psicología da Saúde. Sendo assim, partiremos da apresentagáode algumas técnicas de atendimento psicológico relacionadas aocontexto institucional, para, em seguida, ao desconstruirmos essanogáo de psicología aplicada, apresentarmos a atuagáo com basefenomenológico-existencial como norteador da prática na área dasaúde.

2 Sobre as técnicas - da atitude natural

Em estudos anteriores (VENDRUSCOLO, 2005; VENDRUSCOLO;BARRETO; El KHOURI; FERREIRA; MEZZIARA, 2008; VENDRUSCOLO;DEL LAMA, 2008; VENDRUSCOLO; COSENZO; FESTUCCI; SOUZA,2008; VENDRUSCOLO; COSENZO; FESTUCCI; SOUZA, 2008;) épossível encontrar dados significativos quanto á pertinencia dediferentes modalidades no atendimento institucional de clinica-escolade psicología e servigos a ela relacionados. Esses estudos foramembasados pela metodología fenomenológica em psicología, porém,mesmo com apoio nessa literatura, ainda é possível notar a atitudenatural. Acrescentar á expressáo Atendimento Psicológico umcomplemento para designar o contexto em que ele é realizado (emhospital, em oncología, em luto, dentre outros), caracteriza urnafragmentagáo do existir humano em diferentes situagóes. Esseaspecto se dá em urna concepgáo de prática psicológica pautada nopensamento científico-natural, em que as diferentes modalidades saoconcebidas como organizagóes e técnicas que visam atingir o modomais adequado de realizagao em cada contexto. Segundo Sá (2009)

Mas, mesmo quando a experiencia é tomada como objetoprivilegiado de análise, trata-se, em geral, da experiencia

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enquanto vivencia psíquica e, portanto, encontramo-nosainda em urna atitude natural, que considera a experiencia apartir de urna realidade em si de processos psicológicostranscendentes á própria experiencia.

Podemos destacar algumas délas a seguir.

2.1 O Plantao PsicológicoO Plantao Psicológico pode ser compreendido como urna proposta¡novadora que segundo Mahfoud (1987) constituí um desafio a servivenciado. Seria um "aprender da experiencia a partir de umempenho com a realidade assim como ela é para de dentro de outratransformá-la" (MAHFOUD, 1999, p . l l ) .

2.2 O Aconselhamento Terapéutico - Proposta de Forghieri(2007)O Aconselhamento Terapéutico é urna prática que está associada ápsiquiatría, mas também ligado aos movimentos de OrientagáoProfissional e vocacional que surgiram a partir de 1900, nos EstadosUnidos e na Europa. Essa prática se expande e chega até a clínicapsicológica.

2.3 A Psicoterapia BreveA literatura aponta com muita clareza a base psicanalítica presenteno surgimento da Psicoterapia Breve (BRAIER, 1997). Lemgruber(1997) descreve a origem dos termos breve ou curto prazocalcados na tentativa de Ferenczi, discípulo de Freud, em encurtar otempo e de duragáo dos tratamentos psicanalíticos. Sendo assim, aproposta dessa psicoterapia teria apenas o diferencial do tempo deduragáo reduzido, pois o ponto de vista psicodinámico nacompreensáo do problema do paciente seria mantido. Trata-se,portanto, de urna técnica que, oriunda da psicanálise freudiana, foi sedesenvolvendo e constituindo alguns conceitos básicos como:Experiencia Emocional Corretiva; Alianga Terapéutica, Foco eAtividade e Planejamento.De acordó com Fiorini (2004) a Psicoterapia Breve é um processoterapéutico realizado dentro de um tempo limitado para atender e seadaptar as condigóes e demandas institucionais. Suas raízespsicanalíticas remontam o período de Guerra, urna fase de grandedemanda.Segundo Vendruscolo (2009) a Psicoterapia Breve, compreendida apartir de urna abordagem fenomenológico existencial, se constituí emum espago de tematizagáo do próprio existir, ou seja, acerca daspossibilidades existenciais e da reflexáo sobre a experiencia vivida.

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3 Sobre o atendimento psicológico - da atitudefenomenológica

Diversos e distintos conteúdos estáo presentes no discurso dopaciente. Muitas vezes encontramos comportamentos similares comoreagáo a um adoecimento, bem como manifestagoes de sentimentosmuito próximos frente á constatagáo de urna perda. Essasexperiencias ocorrem no cotidiano das pessoas, que de inicio e namaior parte das vezes, encontra-se diluida no impessoal. Segundo Sá(2008) a prática clínica da Psicología parte da mudanga da atitudenatural para a atitude fenomenológica. Para o autor, na atitudefenomenológica, independente de como pode ser denominada amodalidade do atendimento, este se caracteriza como espago deexplicitagáo da experiencia existencial.O setting terapéutico, ou seja, o espago físico, as condigóesambientáis de silencio e nao interrupgáo dentre outros aspectos,devem ser considerados e manejados da maneira que for possível nasituagáo. O que se tem é o individuo que está sofrendo, vivenciandoum período de fechamento de suas possibilidades existenciais(FEIJOO, 2000). A relagáo terapéutica se constituí entáo como aabertura as possibilidades e o resgate do modo de ser temporal elivre e nao necessariamente a mudanga de comportamento ou aeliminagáo do síntoma. Esta relagáo se dá em liberdade e nao é urnatécnica que se aplica, ou urna ferramenta. Ela visa facilitar ao clientefalar a si mesmo, de urna forma própria e dessa forma o homemassume a responsabilidade por suas escolhas. Além disso, se percebelangado no mundo, entregue ao seu poder-ser mais próprio(VENDRUSCOLO, 2009).

4 Caminho metodológico

Esse trabalho integra um projeto de pesquisa do Servigo deAtendimento Psicológico Fenomenológico-Existencial da clínica-escola/ UNAERP e demais servigos a ela relacionados. Os dadosapresentados nesse estudo sao relativos ao ano letivo de 2010, ematividades realizadas sob supervisáo de um docente, contando com aparticipagáo de estagiários da 9a etapa do curso de graduagáo emPsicología.O projeto de pesquisa foi realizado em tres locáis distintos: O servigo-Escola da universidade, o Hospital Universitario e um Hospitalbeneficente da cidade.Participaram deste estudo os clientes (criangas, adultos eadolescentes) que foram submetidos a alguma das modalidades deatendimento psicológico referidas anteriormente em algum dos locáisde atendimento. Porém, nesse artigo apenas um caso será relatado.

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Será identificado de modo ficticio como Joáo, 23 anos.Os dados foram obtidos a partir da ocorréncia dos atendimentospsicológicos individuáis1, que foram transcritos procurando manter omaior grau de fidedignidade possível e compreendidos a partir deurna questáo norteadora que esteve implícita nessa pesquisa (e naofoi formulada aos participantes) - "Como se dá a re/agáoterapéutica?"

5 Resultados e Discussao

5.1 Acolhendo Joáo

Joáo, 23 anos, foi internado em um hospital público de nivelsecundario com episodios recorrentes de diarréia e perda depeso acentuada acompanhada de um quadro de desnutrigáo.Já possuía o diagnóstico de retocolite ulcerativa e estavasendo investigado um possível tumor pulmonar.

Na solicitagáo de atendimento psicológico feita pela equipe médicahavia a descrigáo de um paciente depressivo, pouco colaborativo e"sem vontade de se ajudar". O texto também dizia: "Solicita-seavaliagáo e conduta pra ajustamento do paciente ao seu tratamento."É importante ressaltar que os pedidos de interconsulta psicológica emhospital geral normalmente já chegam até o psicólogo com um"diagnóstico" previo dos disturbios psíquicos, bem como com asindicagóes da conduta que deve ser tomada.

No primeiro atendimento, o paciente ao ser indagado comoestava, disse estar tudo bem, que se encontrava internadohá 15 días e, quanto aos síntomas, disse que há dois anosapresenta este diagnóstico e que estava tomando remedio.

Joáo se mostra, de inicio, á maneira do "tudo bem". Está na cama, seesvaindo em fezes e sangue, sem forgas e diz estar bem. Como é issopara ele? Como é dizer tudo bem nessa situagáo? Qual o sentidodessa experiencia para ele? Até aqui só temos interrogagóes enenhuma resposta ou explicagáo. Qualquer tentativa de esclarecertais questionamentos seria no mínimo como saltar na frente de Joáopara dizer-lhe quem ele é.

Nesse momento, aproveitando a intervencao do enfermeirojunto ao paciente, um senhor se aproximou dizendo: "se viraqui 20 pessoas e perguntar como ele está, ele irádizer que está tudo bem, tudo bem até a bombaestourar."

Apesar de nao sabermos por Joáo sobre ele mesmo, ouvir os

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familiares nos permite apreender como ele é visto em sua familia.Compartilhando esse momento da visita é possível sentir as relagoesacontecendo.

Pergunto a esse senhor se ele era o acompanhante e qual oparentesco com o paciente. Ele me respondeu ser o padrastodo paciente e ¡niela o relato: "ele tem retocolite há doisanos, quando comegou ele foi levado ao hospital deItapetininga, onde ficou internado por dois dias,depois teve alta." Disse ser vendedor e que viaja multo, equando chegou em casa e viu o Joáo naquele estado, comdiarréia e com sangramento, ele mesmo o levou a ummédico particular e iniciou o tratamento com osmedicamentos da rede pública, porque sao medicamentosmulto caros, e entao o Joáo se recuperou.

O atendimento psicológico institucional na área da saúde procuraestar pautado na tríade: paciente, familia e equipe. A equipe desaúde vé Joáo, um garoto "pouco colaborativo" e deprimido, mas naosabem de onde vem, como é sua familia, quem o visita, ou mesmo senao recebe visitas. É quase um intestino que tem um "dono" que naoestá agindo da maneira mais adequada á situagáo. O psicólogo, quevai até Joáo, para que ele se mostré, acompanha o que se revela nasituagáo.

Segundo o padrasto, como o Joáo traba I ha va, ele deixoupara o mesmo o seu próprio tratamento. Ele deveriapagar a consulta com o médico particular a cada 3 ou 4meses e seguir o tratamento. Mas Joáo nao deucontinuidade ao tratamento e comegou a comer detu do, até pimenta (mostrase indignado) e a beber. Omédico havia dito que ele poderla comer de tudo e aquelesalimentos que provocassem a diarréia deveriam sereliminados, mas o Joáo nao seguíu nada disso e toma va oremedio por conta própría.

A responsabilidade é "passada" ao paciente, desde que siga o"correto". É evidente que há atitudes que podem prejudicar a saúde eoutras que, ao contrario iráo restaurá-la. Entretanto o psicólogo,nessa situagáo nao precisa prender-se aos acontecimentos e muitomenos as causas a eles relacionadas. Eles já estáo ai, já ocorreram.Sao fatos. Resta desvelar, com Joáo o sentido desse caminho, quecertamente nao se restringe ao adoecimento, mas ao modo deexistir.

Este senhor também disse que nao pode parar de trabalharpara fícar com o paciente no hospital e que sua esposa temque cuidar das tres filhas que estáo em Itapetininga, queestáo na escola. A avó e a tia, quando possível, iam visitarJoáo, mas ninguém tinha como ficar com ele ali, e como Joáo

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tem 23 anos, "está na hora dele se virar sozinho". Ele dizque fica irritado com o paciente, que ele nao se cuida quetem 23 anos, mas nao tem mentalidade dessa idade, que elenao para nem aquí e nem em Itapetininga, que comepimenta, e me pergunta: "ele pode comer pimenta?"

Qual é o tempo em que Joáo está? Tanta gente dizendo o que eledeve fazer, como deve ser, qual é a dieta permitida, quais sao asrestrigoes. Podemos questionar: Quais sao suas possibilidades? Quaisrestrigoes de sentido experiencia? É preciso nao saber paracompreender.

Respondo que nao sei, e que deve perguntar ao medio qual adieta adequada para Joáo. Aproveito esse momento paraincluir Joáo, e digo: "Tudo o que vocé quiser saber sobresua alimentacao, sobre o que vocé quiser saber sobrevocé ou quanto ao seu tratamento pode perguntar aosenfermeiros e eu estou aqui para poder ajudar vocénaquilo que eu puder e quando eu nao puder, nosiremos ver quem poderá ajudá-lo." Sinto o paciente maisreceptivo nesse momento e encerró o atendimento.

A conduta mais terapéutica nesse caso foi acreditar que Joáo existia.No espago terapéutico, que no hospital é estabelecido ao lado doleito, em pé, com gente passando o tempo todo, comega a surgirJoáo como ser em abertura, com possibilidade de vir-a-ser. Umexistente.É preciso mudar o conceito saúde-doenga. Associar saúde ao estadode bem-estar total é estático e ilusorio; o ser humano é mutável,dinámico, funciona com irregularidades e variagóes.A doenga surge como algo inesperado, fora do controle do sujeito,rompendo com seu caminho pessoal; gera sensagáo devulnerabilidade, de medo, de perplexidade. Na psicología da saúde éesperado que o atendimento psicoterapéutico controle síntomas e quedé seguranga ao paciente com alguma enfermidade grave.Entretanto, o sujeito atribuí um sentido á doenga, de acordó comsuas possibilidades e limites. Se a compreensáo dos profissionais dasaúde for ampia e integrada frente a qualquer adoecimento serápossível transcender o aspecto técnico. Nao há receitas, as atitudesdevem ser caracterizadas por urna atengáo á pessoa que adoece enao á doenga em si.Para Sá (2002) a técnica moderna tem como principáis característicascontrole e seguranga. O autor continua e afirma:

A crítica Heideggeriana da ciencia e da técnica nao questionaa veracidade das mesmas e muito menos pretende substituí-las por algum outro modo de saber óntico mais verdadeiro. Oque a crítica pretende atingir é o modo histórico de relagaoque se estabeleceu entre homem e técnica na época

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moderna. O modo de desvelamento do sentido dos entes quea técnica possibilita nao é mais nem menos verdadeiro doque aqueles possibilitados por outros modos dedesvelamento de sentido, como a arte ou a religiao. Oproblema com a técnica diz respeito á disposigao de fascínioque ela impós ao homem, fazendo com que o sentido dosentes, sua esséncia, se reduzisse exclusivamente ao aspectoque ela, técnica, desvela, (p. 20)

A idéia de que urna pessoa que adoece fisicamente deve,necessariamente, "superar" essa situagáo, ou seja, nao seentristecer, ou nem mesmo sentir-se desanimada, está em perfeitaconsonancia com a relagáo de fascínio que a técnica impóe aohomem. O psicólogo, atualmente integrante das equipes de saúde, é,na maior parte das vezes, convocado a usar suas técnicas paraajudar alguém. O problema é que ajudar, no cenário da psicologíamoderna pressupóe a utilizagáo de técnicas para adaptar, acalmar,ou seja, para que o especialista diga ao outro como ele deve se sentire se comportar em relagáo á sua própria vida. Há um inegável desejoe senso de poder quase sempre travestido de ajuda.É preciso disponibilidade para ouvir o paciente, integrando ossentidos que ele atribuí á sua experiencia; captar a experiencia dooutro como ela é vivida; possibilitar ao outro ser ele mesmo eassumir seus próprios caminhos; devolver a pessoa ao cuidado de simesma.Porém é preciso que o profissional também se perceba comoexistente e com realidade de dor, angustia, morte e impotencia que asituagáo de adoecimento traz. Quando ele nao consegue lidar com aprópria condigáo existencial na relagáo com o paciente - refugia-sena técnica.A relagáo terapéutica, e aqui já podemos dispensar as distingóes deáreas, parte da nogáo de quem somos: entes cujo modo de ser estáem jogo; somos abertura de possibilidades -Dasein. Urna relagáoentre Psicólogo e Paciente que sao entes temporais em abertura,carregados de sentido.O Psicólogo, ao tomar urna atitude anti-natural - EPOCHÉ- busca acompreensáo do fenómeno, a verdade Aletheia (velamento edesvelamento) e nao Ventas (representagáo que se sobressai sobreas demais e as encobre). Parte inicialmente do acolhimento, ou seja,estabelece um bom vínculo que possibilite a relagáo de escuta e falasustentada na angustia (FEIJOO, 2000).Como entes em abertura, nos mostramos ao modo de cuidado dapré-ocupagáo, que pode ser substitutiva quando o psicólogo dá tutelaao paciente, dá respostas, ou da anteposigáo libertadora, em quepsicólogo acompanha o paciente e na hora da escolha "da um passoatrás", proporciona que o outro seja livre em suas escolhas.

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6 Consideracóes fináis

Ao escolher apenas a primeira sessáo de um processo que completou35 atendimentos realizados em um hospital geral, tive a intengáo demostrar o quanto nao há o que deve ser feito psicólogo, mesmoquando este se encontra inserido em urna equipe. Seja no contextoclínico em consultorio particular ou em instituigoes de saúde, arelagáo terapéutica pode ser a mesma. A diferenga está, certamente,na maneira como o psicólogo compreende a si e, consequentemente,ao outro e ao próprio processo de ajuda. Segundo Sá:

A terapia nao é um processo conduzido voluntariamente peloterapeuta (...) (...) A clínica com base hermenéutica,pretende-se um espago de tematizagao de sentido, dedesnaturalizagao dos sentidos previamente dados, daampliagao dos limites dos horizontes de compreensao. O "simesmo" é sempre o lugar provisorio de urna narrativa naprimeira pessoa, provisorio porque a narrativa que sustentaa sua identidade está sempre fazendo, ainda queperseguíssemos a tarefa impossível de nao mudar, serianecessário o esforgo continuo de repetir a mesma narrativa.Pensar o sentido da clínica é desconstruir a idéia de aplicagaode urna técnica já dada, de urna psicotecnologia neutra quevisa ajudar pessoas a atingirem objetivos pessoais. O espagoclínico busca acolher e sustentar a vida enquantoquestionamento, enquanto produgao narrativa de sentido.(2002, p. 26-27)

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Enderezo para correspondenciaJuliana VendruscoloUnaerp Campus Ribeirao Preto - Av. Costábile Romano, 2.201, CEP 14096-900, Ribeirania - Ribeirao Preto, SP, BrasilEnderego eletrónico: [email protected]

Recebido em: 21/10/2011Reformulado em: 16/09/2012Aceito para publicagao em: 11/10/2012Acó m pan ha mentó do processo editorial: Ana Maria López Calvo de Feijoo

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Notas*Profa. Dra Juliana Vendruscolo, Docente na Universidade de Ribeirao Preto e naUniversidade Paulista.^s atendimentos foram realizados pelos estagiários.

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ARTIGOS

Desdobramentos clínicos das propostas humanistasem processos de promocáo da saúde

Clinical unfoldings from humanistics proposals within healthpromotion processes

Marcia Alves Tassinari*Universidade Estácio de Sá - UNESA, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

RESUMOO texto propoe urna articulagáo entre a concepgáo da Psicología clínicacontemporánea e seu desdobramento nos servigos de Plantao Psicológico.Apresenta-se um breve histórico da Psicología Clínica, desde os primordiosda avaliagao psicológica, passando pela compreensao clássica de clínicacomo tratamento psicoterápico, para delimitar a concepgao atual de clínicaampliada e seu paradigma da promogao da saúde. Na comparagao entre asdimensoes patogénica e salutogénica, enfatiza-se a visao humanista,particularmente a proposta pela Abordagem Centrada na Pessoa, quemostra-se potente para lidar com o sofrimento humano em seus diferentesmatizes de intensidade e profundidade. A autora apresenta as principáiscompreensoes de Plantao Psicológico: como recepgao, como triagem e comoprocesso de atendimento á urgencia psicológica. O artigo aponta aspotencialidades do diálogo como restaurador da saúde e atualizador dacidadania. A proposta da clínica ampliada mostra-se pertinente para acolherurna parcela significativa da populagáo brasileira em diversos contextos.Palavras-chave: Promogao da Saúde, Plantao Psicológico, AbordagemCentrada na Pessoa, Psicología Clínica.

ABSTRACTThis paper proposes a link between the conception of contemporary clinicalPsychology and its unfolding within the services of psychological duty. Itpresents a brief history of clinical psychology since the early days ofpsychological assessment, through the clinical classical understanding aspsychotherapeutic treatment, to define the current concept of amplifiedclinic and its paradigm of health promotion. In comparison between thepathogenic and salutogenic dimensions, it emphasizes the humanistic visión,particularly the one held by the Person-Centered Approach, which ispowerful to deal with human suffering in its different shades of intensity anddepth. The author presents the major understandings of psychological duty:as reception, assessment and as a process of emergency psychological care.The article points out the potential of dialogue as a restorer of health andcitizenship updater. This proposal appears to be relevant to welcome asignificant portion of the Brazilian population in different contexts.Keywords: Health Promotion, Psychological Emergency Attendance,Person-Centered Approach, Clinical Psychology.

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicología Rio de Janeiro v. 12 n. 3 p. 911-923 2012

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Marcia Alves TassinariDesdobramentos clínicos das prop. humanistas em proces. de promogao da saúde

1 Introducao

O qué esperamos nos quando desesperados, emesmo assim procuramos alguém? Esperamos

certamente urna presenca por meio da qual nos édito que o sentido aínda existe. (BUBER)

A profissáo de psicólogo no Brasil, regulamentada pela lei n.° 4119de 27 de agosto de 1962, estabelecia tres campos básicos deatuagáo: Clínico, Escolar e Industrial. Porém, ao longo do tempoesses campos foram sofrendo modificagoes para dar conta de novasdemandas da contemporaneidade. Desde 2001, o Conselho Federalde Psicología tem oferecido título de especialista em 11 modalidades,onde Psicología Clínica é apenas urna délas, aínda que continué sendoo campo privilegiado dos psicólogos. (Resolugáo CFP 013/2007, querevoga as anteriores: n° 014/00, 02/01, 07/01, 03/02, 05/03, 02/04,03/05, 04/05, 08/05, 013/05 e 014/05.)A Psicología vem ampliando seu raio de atuagáo para se inserir ñasdiversas instituigóes, além da saúde, como a jurídica, do esporte,comunitaria, do tránsito, carecendo de um suporte teórico-metodológico que oriente sua atuagáo.O texto propóe urna articulagáo entre a concepgáo da psicologíaclínica contemporánea e seu desdobramento nos servigos de prontoatendimento psicológico, ou plantáo psicológico, visando a promogaoda saúde em contextos diversos.Para seguir esse percurso, será apresentado breve histórico daPsicología Clínica, desde os primordios da avaliagáo psicológica, comWittmer, passando pela compreensáo clássica de clínica comotratamento psicoterápico, a partir de Freud, para entáo delimitar aconcepgáo atual de clínica ampliada e seu paradigma da promogao desaúde.Na última parte, centro desta reflexáo, apresenta-se a modalidadeclínica dos atendimentos em Plantáo Psicológico e sua insergáo emdiversos contextos, desconstruindo a visáo clássica da clínicapsicológica. O fechamento do artigo apresenta algumas provocagóespara futuras reflexóes tanto da autora quanto dos leitores, que sesentirem instigados.

2 Psicología Clínica - breve histórico

Na verdade podemos atribuir ao sofista Antífon, no século V a.C, aprimeira intuigáo da escuta clínica psicológica, através da TechnéAlupias. A sua techné, ou arte de tirar o desgosto, fundada na forgada palavra ou día logon (diálogo) consistía em aliviar o peso degrandes dores, restituindo um pouco de renovada serenidade, como

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se fosse uma intervengáo de emergencia, que ajudava a pessoa aperceber que estava agindo em desacordó com a sua natureza.A denominagáo Psicologia Clínica foi utilizada pela primeira vez em1896, por Lightner Wittmer, "para se referir aos procedimentos deavaliagáo que eram empregados com changas retardadas efísicamente deficientes" (MACKEY, 1975). A etimología da palavra"clínica", de origem grega, remete ao significado "cama" e "inclinar-se", designando os cuidados que o médico dispensa aos doentesacamados.Desde o inicio percebemos a dimensáo avaliadora ñas definigóes dePsicologia Clínica, que apresenta a sua primeira formalizagáoconceitual em 1935, através da divisáo de Psicologia Clínica daAssociagáo de Psicologia Americana, com a seguinte declaragáo:

A Psicología Clínica tem por finalidade definir as capacidadescomporta mentáis e as características do comportamento deum individuo através de métodos de medigao, análise eobservagao, e na base de uma integragao desses resultadoscom os dados recebidos dos exames físicos e historiassociais, fornece sugestoes e recomendagoes com vistas aoapropriado ajustamento do individuo (MACKAY, 1975, p. 75).

A Psicanálise inaugura, na modernidade, a originalidade do"tratamento pela fala", aproximando a nogáo de clínica para tratardos "problemas da alma", influenciando sobremaneira a Psiquiatría ea Psicologia. Esta passa a conceber a Clínica a partir do modelomédico, onde o profissional atuava como um expert e restringia-se aclientela oriunda de classes sociais favorecidas, com enfoqueintrapsíquico, enfatizando os processos psicológicos epsicopatológicos, realizando psicodiagnóstico e psicoterapia individuale grupal (esta, mais raramente).Vale ressaltar que na década de 40, surge nos EUA, o campo doAconselhamento Psicológico (tradugáo inadequada para Counselling),inicialmente inserido ñas escolas e centrado na avaliagáo e solugáodos problemas de aprendizagem das criangas, disseminando-se paraoutras demandas, tornando frágil e sutil a distingáo entre psicoterapiae aconselhamento.O grande responsável por esta confusáo conceitual foi Carl Rogers,que aproximou o aconselhamento da clínica psicológica, proposta porele como trabalho de crescimento e nao apenas como tratamento,centrado na pessoa que tinha o problema, com vistas a facilitar ocrescimento, através de uma relagáo calorosa e incondicional. Rogersmuda os principáis eixos do Aconselhamento, aproximando-o daPsicoterapia, o que legitimou, na época, a psicoterapia como campode atuagao para os Psicólogos. (ROGERS, 2000).A visáo clássica da clínica psicológica atravessa algumas décadas,insinuando uma correspondencia entre psicologia clínica apenas como

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psicoterapia individual, entendida como tratamento, realizado emconsultorio particular, por um profissional liberal, duas a quatro vezespor semana, por um período longo (de tres a cinco anos),fundamentada preferencialmente na psicanalise. (TASSINARI, 2003)Nota-se a urgencia em questionar a identificagáo da primeiraafirmagáo, pois Psicología nao se esgota no campo da Clínica. Essa éapenas urna das possibilidades de trabalho do psicólogo. Além daClínica, temos diversos campos de atuagáo do psicólogo.Identificar Psicología Clínica com psicoterapia também empobrece aatuagáo do psicólogo clínico, que nao se identifica com o local detrabalho (o consultorio), mas que se constituí como um agente demudanga, contextualizado social, histórica e politicamente.A segunda afirmagáo tradicional - de se considerar psicoterapiaefetiva aquela realizada com urna única pessoa de cada vez (nivelindividual), durante um longo período, duas a quatro vezes porsemana, fundamentada na Psicanalise - encontra-se inadequadafrente aos desafios que a vida atual apresenta, além de nao refletir oque muitos profissionais de fato já realizam.A penetragáo da Psicología em instituigóes diversas, especialmentetrabalhando com grupos, aponta a necessidade de fortalecimento denovas teorias para que os psicólogos possam atuar, de forma efetiva,como agentes de mudanga. Portanto considerar a psicoterapia,somente a diádica, novamente reduz as suas possibilidades deatuagáo e de alcance a urna populagáo mais ampia. Os diferentestrabalhos já efetuados com grupos, tanto nos moldes de urnareconstrugáo de personalidade (psicoterapia extensiva) quanto comobjetivos preventivos (grupos operativos, grupos de encontró, gruposreflexivos, trabalhos com e na comunidade etc.) confirmam oequívoco da frase. Vale ressaltar que estas críticas referem-se áformulagáo clássica das psicanálises, quando praticada apenas pormédicos, com formagáo psicanalista (década de 70, no Brasil).A última parte da equagáo - que considera a psicoterapia efetivaaquela realizada duas a cinco vezes por semana, por um longoperíodo (de tres a cinco anos), fundamentada na Psicanalise (e suasderivagóes) - também produz um reducionismo falso, obscurecendoas outras fundamentagóes teóricas, por exemplo, as psicoterapiashumanistas, existenciais, comportamentais, cognitivas etranspessoais.

3 Nova Concepcao de Psicología Clínica

A concepgáo tradicional nao resistiu as mudangas socio culturáis,sócio-políticas do país e as do próprio campo da Psicología,propiciando urna nova compreensáo da clínica psicológica paraatender as demandas do contexto institucional, á ampliagáo do

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espago no setor público, á necessidade do trabalho multi einterdisciplinar, ao estreitamento do vínculo da universidade com acomunidade, á necessidade de investigagáo. Estes vetores foramresponsáveis pelo rompimento do modelo clássico (ACHCAR, 1994)Oferecendo urna visáo mais atualizada de Psicología Clínica, Pérez(1999), propoe:

"... sob tal perspectiva, a clínica nao mais se refere a umcampo de atuagáo específico ou a urna modalidade da práticade psicoterapia. O uso do termo 'clínica', passará a designara especificidade do trabalho do psicólogo, referíndo-se a urnaforma de olhar os fenómenos que ultrapassa a obviedade dosfatos e vai buscar no oculto, no nao-dito, ñas entrelinhas, ainterpretagao intersubjetivamente construida ecompartilhada, que confere significado e pertinencia aexistencia concreta" (p. 14).

O perfil de trabalho do psicólogo clínico brasileiro tem se modificado,para incluir áreas de atuagáo distintas da relagáo diádica emconsultorios particulares, inclusive mudangas mesmo no interiordessa dimensáo. A Psicología Clínica está se adaptando ao homem deagora, da mesma forma que precisa abarcar urna concepgáo maisampia de atendimento psicológico.Dutra (2004) reitera o compromisso ético inerente ao papel dopsicólogo clínico, implicando a vinculagáo do fenómeno clínico ádimensáo social, quando afirma: "podemos dizer que o novo fazerclínico incluí urna análise do contexto social em que o individuo estáinserido" (p. 382).Guedes (1992), pesquisando a atuagáo do psicólogo clínico,apresenta a expansáo desse profissional para o trabalho eminstituigóes. Por outro lado, essa autora postula ser a "PsicologíaClínica a área que visa oferecer meios para as pessoas seconhecerem e perceberem suas próprias limitagóes e confUtos" (p.18). Portanto, identificar a atuagáo clínica com o local onde éexercida (o consultorio), significa excluir a sua potencialidade ñasinstituigóes - especialmente as públicas (junto as populagóescarentes) - e complementando o trabalho através do intercambio comoutros profissionais (equipe multi/trans/inter disciplinar).Assume-se aqui o entendimento da Psicología Clínica comopertencente á área da Saúde, com sua atuagáo no contexto social,podendo atuar também no nivel preventivo (prevengáo primaria),utilizando-se de diferentes orientagóes teóricas, promovendo saúdeem diversos contextos, além do consultorio particular: hospital geral,hospital psiquiátrico, prisóes, manicomio, creche, postos de saúde,escolas, favelas, trabalho com meninos e meninas de rúa, comfamilias vítimas de violencia doméstica, ñas varas de familia, infanciae juventude, somente para citar algumas de suas possibilidades

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atuais, convergentes com a nova Clínica Ampliada. (LO BIANCO,1994)

4 A Clínica Ampliada

Em 2004, o Ministerio da Saúde implementa o PNH (Projeto Nacionalde Humanizagáo), publicando a cartilha sobre a Clínica Ampliada,dentro do Projeto HumanizaSUS, reconhecendo assim que o fatorhumano estava ausente em nosso sistema de Saúde.A Clínica Ampliada propóe que o profissional de saúde desenvolva acapacidade de ajudar as pessoas, nao só a combater as doengas, masa transformar-se, de forma que a doenga, mesmo sendo um limite,nao a impega de viver outras coisas na sua vida. Na explicitagáo desuas metas, a cartilha afirma:

Por humanizagáo entendemos a valorizagao dos diferentessujeitos implicados no processo de produgao de saúde. Osvalores que norteiam esta política sao a autonomía e oprotagonismo dos sujeitos, a co-responsabilidade entre eles,o estabelecimento de vínculos solidarios, a participagaocoletiva no processo de gestao e a indissociabilidade entreatengao e gestao (p. 4).

Estas metas foram influenciadas indiretamente (já que naoencontramos nenhuma referencia direta) pelos principios norteadoresda Psicología Humanista, específicamente aqueles propostos porRogers desde a década de 40: singularidade, compromisso ético,responsabilidade, autonomía e diálogo com outros campos doconhecimento.Esta clínica vé o doente primariamente como urna pessoa autónoma edigna de consideragáo, que necessita da escuta atenta do profissionalde saúde. Esta pessoa, a partir da formagáo de vínculos com osdiferentes representantes do sistema de saúde, vai se tornar ator eautor de sua vida, incluindo os cuidados com sua saúde, engajando-se nos processos de promogao da saúde, orientagóes presentes naformulagáo da Psicología Humanista na década de 60 (BOAINAIN,1998).Encontramos no CBO - Catálogo Brasileiro de Ocupagóes do Ministeriodo Trabalho a delimitagáo do trabalho do Psicólogo clínico, cujospontos essenciais remetem a sua atuagáo na área específica dasaúde1, para o exame de pessoas que apresentam problemas intra einterpessoais, de comportamento familiar ou social ou disturbiospsíquicos, e ao respectivo diagnóstico e terapéutica, empregandoenfoque preventivo ou curativo e técnicas psicológicas a fim decontribuir para a possibilidade de o individuo elaborar sua insergáo navida comunitaria.

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Este profissional acompanha programas de pesquisa, treinamento epolítica sobre saúde mental, elabora, coordena e supervisiona, paragarantir a qualidade de tratamento em nivel de macro e microsistemas. Atua junto a equipes multiprofissionais identificando ecompreendendo os fatores emocionáis, para intervir na saúde geraldo individuo em unidades básicas, ambulatorios, hospitais, partindodas questóes concernentes á sua insergáo social. (Resolugáo CFP013/2007)Propomos urna Psicología Clínica Centrada na Pessoa comprometidacom o contexto sócio-político-cultural das pessoas que sao atendidasnos mais variados locáis, maniendo sua especificidade enquantoescuta local (aos significados e sentidos implícitos) e, ao mesmotempo, global (aos atravessamentos ambientáis, sociais, políticos,religiosos, culturáis, familiares, genéticos, físicos)

5 Plantao Psicológico

Urna rápida revisáo do que tem sido denominado de Psicología Clínicafez-se necessário, numa tentativa de limparmos a área, para nelaincluir um tipo de escuta clínica, denominada de Plantao Psicológico.Este exige a escuta integral do outro no momento de sua indagagáo,requisitando nao só urna atitude atenta ao desconforto emocional,mas também urna avaliagáo desse pedido de ajuda e seusatravessamentos (sociais, políticos, biológicos, ambientáis). Énítidamente urna proposta que promove a saúde visto focalizar anecessidade de se cuidar, de ouvir atentamente o desconforto dooutro para que ele possa também se ouvir de maneira translúcida.A proposta inicial do Servigo de Plantao Psicológico surgiu em 1969,no Brasil (no Servigo de Aconselhamento Psicológico da Universidadede Sao Paulo), tendo sua primeira sistematizagáo sido publicadasomente no final da década de oitenta (ROSENBERG, 1987).Urna primeira definigáo de Plantao psicológico é oferecida porMahfoud (1987):

A expressao Plantao está associada a certo tipo de Servigo,exercido por profissionais que se mantém á disposigao dequaisquer pessoas que deles necessitem, em períodos detempo previamente determinados e ininterruptos. Do pontode vista da instituigao, o atendimento de plantao pede urnasistematicidade do servigo oferecido. Do profissional, estesistema pede urna disponibilidade para se defrontar com onao planejado e com a possibilidade (nem um pouco remota)de que o encontró com o cliente seja único. E, ainda, daperspectiva do cliente significa um ponto de referencia, paraalgum momento de necessidade" (p. 75).

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Tassinari (1999/2003) amplia esta definigáo, ao propor o PlantáoPsicológico como um tipo de atendimento psicológico que se completaem si mesmo, realizado em urna ou mais consultas sem duragáopredeterminada, objetivando receber qualquer pessoa no momentoexato (ou quase exato) de sua necessidade, para ajudá-la acompreender melhor sua emergencia e, se necessário, encaminhá-laa outros Servigos. Tanto o tempo da consulta quanto os retornosdependem de decisóes conjuntas do plantonista e do cliente, tomadasno decorrer da consulta.É exercido por psicólogos que ficam á disposigáo das pessoas queprocuram espontáneamente o Servigo, em local, dias e horariospreestabelecidos, podendo ser implementado em diversos contextos einstituigóes.O encaminhamento para a psicoterapia, para outros Servigos ouespecialidades sao objetivos secundarios que nao devem ocupar aatengáo principal do plantonista. O plantonista e o cliente váo juntosprocurar no "momento-já" as possibilidades ainda nao exploradas quepodem ser deflagradas a partir de urna relagáo calorosa, semjulgamentos, onde a escuta sensível e empática, a expressividade doplantonista e seu genuino interesse em ajudar desempenham papelprimordial.Aprofundando este questionamento, Souza e Souza (2011) concluí:"As necessidades humanas e suas motivagóes podem ter um sentidoemergencial para quem as vivencia e, nesse sentido, compreende-seo Plantáo Psicológico como a clínica do acolhimento das urgencias, (p.247)Ainda que o Servigo de Aconselhamento Psicológico da USP tenhacompletado 40 anos de atuagáo com o Plantáo, este tipo de atengáoclínica passa a se disseminar, por todo o Brasil, no final da década de90.Encontramos diversos contextos, onde tem sido criado Servigos dePlantáo Psicológico: em clínica-escola de Psicología, em consultorio,em hospital geral (em diversos setores), em hospital psiquiátrico, emescola (desde o nivel fundamental), em presidio, em delegacia, emcomunidades de baixa renda, associados a projetos sociais, commeninos e meninas de rúa, no tribunal regional do trabalho, noprojeto esporte-talento, etc.Souza & Souza (2001) realizaram um excelente estudo a respeito daspublicagóes sobre o Plantáo Psicológico, no período de 1997-2009,revelando um quadro heterogéneo quanto á distribuigáo da produgáocientífica ñas bases de dados consultadas. A regiáo sudeste apresentamaior concentragáo de publicagóes, com a maioria do trabalhos (dedissertagáo de mestrado) realizados em 2005 e 2006, apresentando aAbordagem Centrada na Pessoa como fundamentagáo teóricadominante.

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Acreditamos que esta preferencia teórica nao seja por acaso, masque expresse a amplitude e a potencialidade desta Abordagem. Ospsicólogos que se inspiram e utilizam esta abordagem sentem-sedesafiados a responder as novas demandas da contemporaneidade eencontram no jeito de ser proposto por Rogers (1997; 1998/2008;2000) e reorganizado por Wood (2008) como urna possibilidadepotente.Wood (Op.cit.) propóe a ACP como um jeito de ser (e nao de fazer),permeado por sete aspectos interdependentes, a saber: urnaperspectiva, de modo geral, positiva; urna crenga numa tendenciaformativa direcional; urna intengáo de ser eficaz; um respeito peloindividuo e sua autonomía e dignidade; urna flexibilidade depensamento e agáo; urna tolerancia quanto as incertezas ouambiguidades e senso de humor, humildade e curiosidade (p. 4).Entendemos que o jeito de ser proposto por Wood (2008) a partir dascondigóes necessárias e suficientes, propostas por Rogers (2008),formam o alicerce teórico-metodológico que norteiam o prontoatendimento conceituado em seguida como Plantáo-processo ouPlantáo Interventivo.Das seis condigóes necessárias e suficientes, propostas por Rogersem 1957 (WOOD, 1998) e revisitadas no livro Um Jeito de Ser(1983), destacamos o conjunto atitudinal das condigóes deautenticidade, consideragáo positiva incondicional e compreensáoempática, amplamente definidas na literatura rogeriana, quegarantem a criagáo de um clima seguro e permeiam as intervengóesno Plantáo Psicológico.Esta visáo faz eco com Amatuzzi (2010), ao propor a AbordagemCentrada na Pessoa como urna ética: "... como urna maneira de serque permite um determinado olhar e gera urna maneira de fazer." (p.58).Os diferentes contextos aqui elencados apontam alguns tiposdiferenciados de compreensáo de urna escuta pontual. Na USP,inicialmente, ele foi concebido como recepgáo diferenciada aosclientes que procuravam o Servigo de Aconselhamento, o que foi, naépoca, urna alternativa para dar conta da ¡mensa fila de espera.Outras instituigóes que oferecem o Servigo de Plantáo Psicológicoobjetivam urna recepgáo diferenciada á sua clientela, para avahar aadequagáo da pessoa aos encaminhamentos futuros. Esseentendimento de Plantáo aproxima-se da triagem rápida, visandoencaminhamento para algum tipo de psicoterapia.Vasconcelos (2009) em sua dissertagáo de mestrado, acrescenta oPlantáo burocrático, como sendo aquele

que enfatiza o fator tempo e espago para sua definigao,reunindo assim características distintas da psicoterapiatradicional. Desta forma, o Plantáo é definido como um

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espago onde profissionais da psicología estao disponíveis, emdeterminado tempo (normalmente turnos de atendimento),para quem os procurar, sem necessidade de marcagao deconsulta previa, (p. 35)

Esta autora aponta também a possibilidade do Plantáo-Focal,"como um espago de ajuda pontual, para o cliente clarificar anatureza de seu sofrimento psíquico e depois encaminhá-lo para umservigo (psicoterapia individual, de grupos etc.) da clínica tradicional,eventualmente tendo alta." (p. 37). Este tipo funciona básicamentecomo urna triagem, cujo foco é o encaminhamento.Privilegiado aqui, temos a modalidade de Plantáo Interventivo(VASCONCELOS, 2009) ou Plantáo-Processo (TASSINARI, 2003),onde a intengáo básica é estar presente de maneira a acolher apessoa numa escuta ativa, construindo em parceria umesclarecimento de seu pedido de ajuda, explorando as capacidadescriativas de atualizagáo. Esta modalidade, quando utilizada emcontextos diferenciados de consultorios, exige urna flexibilizagáo dosetting terapéutico, em termos espaciáis e temporais, além dodeslocamento do centro de poder para a pessoa/grupo atendida/o.

6 Consideragóes fináis

Essa modalidade de atengáo psicológica permite alcangar, acurtíssimo prazo, um número significativo de pessoas que, de outramaneira nao teriam possibilidades de serem acolhidas em seussofrimentos.Atender no momento exato ou quase exato da necessidade promovea saúde e amplia o exercício da cidadania. As possibilidades saoenormes, da mesma forma que o sao as dificuldades para suaimplantagáo ao nivel macro.A proposta do Plantáo Psicológico no acolhimento da urgenciaradicaliza a confianga no ser humano em seu potencial atualizador.Aqui seguimos a inspiragáo de Amatuzzi (Op.cit.): "Para urna pessoase pentear, um espelho ajuda; para urna pessoa se conhecer melhor,um espelho humano é a melhor ajuda." (p. 63).Nesse sentido, o Servigo de Plantáo Psicológico aparece como urnaatividade de promogao da saúde, já que a escuta do plantonista visapossibilitar que a pessoa se situé melhor naquele momento e consigaverbalizar sua urgencia, clareando para si mesma aquilo de quenecessita, podendo, portanto, evitar o acumulo da ansiedade.Acreditamos que, ser atendida no momento de sua necessidade, poriniciativa própria, estimula o cuidado consigo mesma, atingindo,assim, os objetivos da prevengáo primaria.

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Enquanto psicólogos nao podemos nos esquecer, nem porum instante, da complexa rede que se estabelece quandonos relacionamos com outra pessoa com a intengao de nostornarmos mais humanos (psicólogo e usuario) aofocalizarmos a singularidade da experiencia. (TASSINARI,2003, p. 125)

Schmidt (2004) nos alerta para a necessidade do apoio de políticaspúblicas mais ampias, de modo a possibilitar que os Servigos dePlantáo possam responder á diversidade e singularidade dasdemandas que aparecem nos espagos institucionais públicos.O reconhecimento dos avangos e da construgáo do conhecimento naúltima década a respeito do potencial do pronto atendimento dosServigos de Plantáo Psicológico nao significa que o territorio já tenhasido totalmente explorado. Temos um longo e promissor caminhopela frente.

Referencias

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Tese (Doutorado em Psicología), Universidade Federal do Rio deJaneiro, Rio de Janeiro.VASCONCELOS, T. P. de A atitude clínica no plantao psicológico:composigáo da fotografía experiencial do terapeuta-sherpa. 2009.136f. Dissertagáo (Mestrado em Psicología) - Universidade deFortaleza, Fortaleza, CE.WOOD, J. K.; DOXSEY, J. R.; ASSUMPgÁO, L. M.; TASSINARI, M. A.;JAPUR, M.; SERRA, M. A.; ROSENTHAL, R. W.; LOUREIRO, S. R.;CURY, V. E. (Orgs.). Abordagem Centrada na Pessoa. UFES,Vitoria, 2008.

Enderece» para correspondenciaMarcia Alves TassinariUniversidade Estácio de Sá, Campus Norte Shopping, Av. Dom HélderCámara, 5080, Praga da Expansao, 3o piso, 4o andar, Pilares, CEP: 20771-004, Rio de Janeiro, RJ, BrasilEnderego eletrónico: [email protected]

Recebido em: 14/10/2011Reformulado em: 13/08/2012Aceito para publicagao em: 20/10/2012Acó m pan ha mentó do processo editorial: Ana Maria López Calvo de Feijoo

Notas*Psicóloga, Especialista em Psicología Clínica, Doutora em Psicología,^inda que interessante, nao temos espago para discutir a concepgao de Saúde,definida pela Organizagao Mundial da Saúde (OMS) como um completo estado debem estar físico, mental e social e nao meramente a ausencia de doenga (WHO,1946). Esta concepgao, avangada para a época, mostra-se desatualizada e édesconstruída e criticada por Segre (1997), provocando-nos em sua conclusao, aopropor: "saúde é um estado de razoável harmonía entre o sujeito e a sua própriarealidade" (p. 542). Adotamos neste trabalho esta concepgao provisoria, indicandoque a Psicología Clínica dialoga com outros campos do saber, anteriormenterestritos á Medicina.

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ARTIGOS

Suicidio de universitarios: o vazio existencial dejovens na contemporaneidade

University student's suicide: existential emptiness incontemporary times

Elza Dutra*Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, Natal, Rio Grande do Norte,Brasil

RESUMOEstudos realizados na regiao nordeste com estudantes universitarios doscursos de medicina e de psicología evidenciam um alto índice de ideagao ede tentativas de suicidio entre eles. Ao mesmo tempo, nao sao incomuns asnoticias de suicidio de estudantes em instituigoes de ensino superior, emuniversidades da regiao nordeste e sudeste, como por exemplo, Pernambucoe Rio de Janeiro. Partindo dessas evidencias, este trabalho desenvolvereflexoes acerca do contexto académico, social e existencial em que talfenómeno ocorre. Para isso recorre-se a algumas ideias da AnalíticaExistencial, tais como angustia, tedio e técnica. Espera-se que as discussoesempreendidas possam acrescentar ao campo de estudo, bem comodespertar as instituigoes académicas para a importancia desse fenómeno e,assim, favorecer a criagao de estrategias de cuidado e solicitude que possamacolher o aluno em sua dimensao existencial.Palavras-chave: suicidio de universitarios, suicidio e analítica existencial,tedio e suicidio, fenomenología heideggeriana.

ABSTRACTStudies conducted in Brazilian Northeast región with medicine andpsychology university students show a high rate of suicidal ideation andsuicide attempts among them. At the same time reports of suicidal attemptsin higher education institutions in northeast and southeast región such asPernambuco and Rio de Janeiro are not uncommon. Based on these data,this work relies on some existential analysis ideas such as anguish, boredomand technique to understand the academic, social and existential contextswhere the phenomenon occurs. It is hoped that the discussion on thesubject calis attention to the relevance of the problem and foster thedevelopment of strategies for care and acceptance of the student'sexistential dimensión.Keywords: student's suicide, suicide and existential analysis, suicide andboredom, Heideggerian phenomenology.

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicología Rio de Janeiro v. 12 n. 3 p. 924-937 2012

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Elza DutraSuicidio de universitarios

1 Introducao

Nao sao raras as noticias sobre suicidios de estudantes universitariosno Brasil. Independente da regiáo do país onde o ato ocorra, ésignificativa a estatística de suicidio desses jovens, embora o registrode tais ocorréncias nao corresponda á realidade. Sabe-se mais pelasnoticias veiculadas na mídia e internet (redes sociais e blogs) do quepor registros oficiáis. Vale ressaltar que o mesmo ocorre em relagáoao suicidio como um todo. Ou seja, os preconceitos e significados quepermeiam esse fenómeno, como por exemplo, valores religiosos emoráis, muitas vezes impedem que um ato dessa natureza sejaidentificado como tal. Nao é raro que esse acontecimento sejainterpretado como um acidente ou morte natural. E quando o suicidioé interrompido, no caso da tentativa de suicidio (TS), o sub-registroacontece com mais facilidade e frequéncia, urna vez que a TS, namaioria das vezes, ocorre por meio de ingestáo de medicamentos epesticidas (DUTRA, 2007; MS-SIM, 2006, MELEIRO, 1998; MIRANDAE QUEIROZ, 1991, o que favorece a distorgáo na interpretagáo ou nanegagáo do ato.Tendo como referencia alguns estudos realizados sobre essatemática, nos propomos, neste trabalho, a iniciar urna discussáoacerca do suicidio de universitarios numa perspectivafenomenologico-hermeneutica heideggeriana, interrogando sobre ossentidos existenciais desse ato, considerando-se a condigáo de ser-no-mundo de seus autores.Com o intuito de fornecer urna visáo estatística desse fenómeno,recorreremos a dados oficiáis sobre a ocorréncia do suicidio nomundo e no Brasil. Posteriormente nos debrugaremos sobre ofenómeno do suicidio sob urna ótica distinta daquelas por meio dasquais o suicidio comumente é interpretado.

2 Contexto epidemiológico do suicidio

Em termos epidemiológicos, a cada ano, em todo o mundo, o suicidioatinge o índice de 16 mortes para cada 100.000 habitantes,representando urna morte a cada 40 segundos. Cerca de um milháode pessoas cometem o suicidio, segundo a Organizagáo Mundial deSaúde (OMS-2001), enquanto que entre 10 e 20 milhóes tentammatar-se. De acordó com a OMS, o suicidio encontra-se entre as dezprincipáis causas de morte em todo o mundo, para todas as faixasetárias, incluindo jovens e adultos jovens com idade entre 15 e 35anos (OMS, 2000), entre as tres principáis. Nos últimos 45 anos, osíndices de suicidio aumentaram 60% em todo o mundo. Estudosepidemiológicos atuais tém revelado um aumento na prevaléncia desuicidios, com dados estatísticos bastante preocupantes.

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No Brasil, o mesmo acontece. O número de suicidios vemaumentando significativamente, principalmente entre jovens eadultos jovens. No ano de 2000, segundo o Ministerio da Saúde (SIM,2006), o total de suicidios no país foi de 6.780 ocorrencias, em todosos sexos e faixas etárias, representando urna taxa de 3,99 óbitospara cada 100.000 habitantes. Já no ano de 2007, a TME (Taxa deMortalidade Específica) representou 5,8 para cada 100.000habitantes, revelando um aumento bastante significativo emcomparagáo ao ano de 2000.No que se refere aos jovens na faixa etária dos 20 aos 24 anos, noBrasil, em 2007, o suicidio dessa populagáo alcangou a taxa de 5,4para cada 100.000 habitantes, o que representa um índiceextremamente preocupante. Pois é justamente nessa faixa etária queesses jovens estaráo adentrando no mercado de trabalho, nos cursostécnicos ou de nivel superior, enfim, encontram-se efetuandoescolhas e definindo os seus destinos na vida, construindo erealizando os seus projetos de vida. Assim, tendo em vista essenúmero de mortes por suicidio, urna pergunta clama por umentendimento: o que faz com que esses jovens nao estejamdesejando viver? Que contexto de mundo é esse que favorece oaumento do número de jovens que preferem nao viver?Os estudos sobre adolescentes e adultos jovens que tentam suicidiotém sido bastantes presentes na literatura mundial e no contexto donosso país. Por exemplo, um estudo sobre suicidio de adolescentesno Brasil revelou que Porto Alegre e Curitiba apresentam as maiorestaxas de suicidio em adolescentes, entre nove capitais brasileiras(SOUZA, MINAYO & MALAQUIAS, 2002). Considera-se que naadolescencia os individuos podem recorrer a comportamentos ditosagressivos, impulsivos ou suicidas para solucionar os seus problemas.Em relagao ao género, foi demonstrado que durante essa fase asmulheres apresentam maiores taxas de ideagáo suicida do que oshomens. A explicagáo apresentada é que já na adolescencia asmeninas apresentam maiores índices de depressáo e dedesesperanga do que os meninos (BORGES & WERLANG, 2006).No que se refere, específicamente, a ideagáo e tentativas de suicidiode estudantes universitarios, a produgáo científica no Brasil ainda semostra bastante incipiente, considerando-se a significativa estatísticade suicidio de jovens, como mencionado antes. A literatura mostraque urna das populagóes mais abordadas em pesquisas sobre ideagáoe TS tem sido a de estudantes de medicina. Em relagao a essapopulagáo, é possível apontar alguns estudos significativos, embora amaior parte deles tenha sido desenvolvida ñas regióes Sul e Sudeste(MELEIRO, 1998; MIRANDA E QUEIROZ, 1991; CORDÁS et al, 1988).Na regiáo Nordeste, um dos estudos pioneiros sobre esta populagáo(DUTRA, 2005), revela urna significativa relagao entre alguns fatoresde risco como a depressáo, abuso de álcool e desejo de morrer e

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tentativa de suicidio entre esses estudantes. No estudo mencionadoforam investigados 152 alunos da maior universidade pública doestado; os resultados mostraram que um aluno (0,7%) haviacometido uma tentativa de suicidio.Entretanto, esta pesquisa verificou outros achados, como o uso eabuso de álcool pela maioria dos estudantes, inclusive as mulheres;um número significativo (25%) de alunos que pensavam em sematar, além da presenga de estados depressivos entre eles. Quantoao baixo número de tentativas de suicidio, somente uma, o quecontraria resultados de estudos desenvolvidos com essa populagáo naregiáo sudeste (MIRANDA E QUEIROZ, 1991; MELEIRO, 1998), Dutra(2005, p. 297) sugere que "tal resultado nao afasta a preocupagáoem relagáo á saúde mental desses jovens; "primeiro, pelo fato de o"suicidio" ser um tema polémico, ainda tabú, o que pode fazer comque o pesquisado nao responda de forma sincera á pergunta feita".Pesquisas estatísticas foram realizadas por Dutra (2007; 2008) com637 estudantes de psicologia, em duas universidades (uma pública euma privada) e duas faculdades, na cidade de Natal-RN. E em JoáoPessoa-PB, foram pesquisados 374 estudantes do curso de psicologiada maior universidade pública do estado. Os resultados saopreocupantes, pois entre os 637 alunos que responderam aoquestionário de pesquisa, no RN, 52,45% disseram que sentiamvontade de morrer; 48 dos estudantes pesquisados, representando7,5% do total, haviam tentado se matar. No estudo realizado naParaíba, os dados sao ainda mais preocupantes, se comparados aosachados no RN. Entre os 374 alunos que responderam aoquestionário aplicado, 43 pessoas haviam tentado se matar,representando 11,49% da populagáo pesquisada. Tais resultados jáseriam suficientes para justificar a realizagáo de outros estudosvisando ao maior conhecimento e reflexáo sobre os fatores easpectos psicossociais e existenciais favorecedores desse ato.Estudos sobre estresse, identificado como um aspecto relacionado aosuicidio, tém sido frequentes na literatura científica, inclusive noBrasil. Calais, Andrade e Lipp (2003) investigaram o estresse emadultos jovens, relacionando-o á escolaridade e ao sexo. O estresse,para as autoras, é definido como "uma reagáo intensa do organismofrente a qualquer evento bom ou mau que altere a vida do individuo.Essa reagáo ocorre, em geral, frente á necessidade de adaptagáoexigida do individuo em momentos de mudanga" (p. 257). O estudomostrou que os estudantes de pré-vestibular sao os que mais sofremde estresse, seguidos do terceiro ano do ensino medio e dos alunosdo primeiro ano do nivel superior. Por sua vez, Sarriera, Berlim,Verdín e Cámara (2004), num estudo sobre jovens desempregados,observaram que, diferentemente dos demais jovens, estesapresentavam sentimentos de auto-desvalorizagáo e riscos de

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depressáo e apatía, os quais poderiam levá-los a comportamentosanti-sociais e desprezo pela vida.Até o momento atual, como mencionado, nao foi localizado, ñasfontes de pesquisa bibliográfica, produgao científica significativa sobreo suicidio e TS de estudantes universitarios no Brasil. Entretanto, naosao raras as noticias veiculadas na mídia sobre ocorréncias emalgumas universidades, como, por exemplo, na UFPE, na regiáoNordeste, e na UERJ, no Sudeste.O aumento ñas taxas de suicidio entre jovens nao ocorre somente noBrasil, mas também e, principalmente, em países de primeiro mundo.Os Estados Unidos, por exemplo, país detentor de taxas expressivasde suicidio e de tentativas de suicidio, tem produzido relevantesestudos sobre essa temática. De acordó com pesquisas desenvolvidaspelo Suicide Prevention Resource Center-SPRC (2004), entreestudantes universitarios com idade entre 20 e 24 anos, o suicidio é aterceira causa de morte, estando o homicidio como a segunda causa.Os servigos de aconselhamento dos campi universitarios témdetectado um aumento na procura deste servigo pelos estudantes. Osdados coletados mostram urna prevaléncia de depressáo e de ideagáosuicida entre os estudantes.Por sua vez, nesse mesmo país, um consorcio de 36 centros deaconselhamento detectou, entre estudantes de varias universidades,aumento de ansiedade, medo, disturbios de alimentagáo, abuso deálcool e outras drogas, raiva e hostilidade entre colegas. O mesmoestudo encontrou significativo aumento no impacto da violencia, nadinámica familiar, aumento da depressáo e desordens bi-polares.Estudos demográficos foram desenvolvidos por (SILVERMAN; MEYER;SLOANE; RAFFEL; & PRATT, 1997) sobre os suicidios nos campiuniversitarios americanos, com estudantes de graduagáo e pós-graduagáo, no período entre 1980 e 1990. O maior número desuicidios ocorreu entre estudantes de 20 a 24 anos (46%), entrealunos de graduagáo (32%).Um estudo de 13 anos foi realizado por pesquisadores da KansasUniversity (1989-2001), entre 13 mil estudantes que haviamprocurado o servigo de aconselhamento. Os pesquisadoresobservaram que os estudantes sofriam de mais estresse, maisansiedade e mais depressáo, do que urna década atrás. O aumento,segundo os pesquisadores, foi dramático, urna vez que a estatísticado número de suicidios triplicou.Outros pesquisadores verificaram que o estresse entre os estudantesse relacionava com a performance académica. Corroborando estaideia, os estudos de Kitzrow (2003) mostraram que "problemas desaúde mental tém um impacto negativo na performance académica,na permanencia e ñas taxas de conclusáo" (p.171).O abuso de substancias, em particular, o álcool, também atinge asaúde do estudante e o seu desempenho académico, relacionando-se

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com as tentativas de suicidio. (WATERS & DUTRA, 2006). Wechsler;Lee; Kuo & Lee, (2000) relatam que 44% dos estudantes se definemcomo "grandes bebedores". O National Institute on Alcohol Abuse andAlcoholism (2002) relata que em torno de 1.400 estudantes morremcada ano de doengas relacionadas ao abuso de álcool.Para o SPRC (2004), o suicidio tem sido descrito como o final de umcontinuum que comega com a ideagáo, segué com o planejamento ea preparagáo do suicidio e termina com a tentativa e o suicidiocompleto (KACHUR, POLTER, POWEL & ROSENBERG, 1995).Um estudo de (BARRIOS, EVERETT, SIMÓN & BRENER, 2000)mostrou que há urna relagáo entre suicidio, depressáo e abuso deálcool e outras drogas. Os autores verificaram que aquelesestudantes que relataram ideagáo suicida eram mais propicios aportarem armas, se envolver em brigas, nadar embriagados, dirigirembriagados e raramente usavam cinto de seguranga. Todos essesestudos, em parte ou na totalidade, se assemelham aos resultadosencontrados ñas pesquisas realizadas no Brasil, em relagáo aosfatores de risco. Constata-se que a depressáo, o uso de drogas, entreelas o álcool, familias desagregadas, etc., tém urna relagáo próximacom as condutas autodestrutivas de estudantes universitarios.

3 Fatores de risco do suicidio e das tentativas de suicidio

Alguns fatores de risco do suicidio e das tentativas de suicidio témsido identificados nos estudos realizados tanto em outros países comono Brasil. Fatores como transigáo de vida, ou seja, deixar a casa dospais para frequentar a universidade - pode exacerbar as dificuldadespsicológicas. Deixar a familia e entrar num ambiente nao familiar comaltos padróes académicos pode causar depressáo ou altos níveis deangustia.O estresse é um fator significativo em qualquer modo de se entendero comportamento suicida. Estima-se que urna perda interpessoal,um grande confuto com um párente, ou namorado(a), está presenteem 70% dos casos de tentativas de suicidio e de suicidio. Essacompreensáo, aliada a um senso de responsabilidade, tornam oadolescente e o adulto jovem mais suscetível ao estresse associado áescola, estudos ou problemas sociais. Nessa fase dedesenvolvimento, eles podem antecipar o impacto do seucomportamento todo o tempo, o que faz com que as questóespossam ser percebidas como urna possível causa de estresse eproblemas futuros e assim precipitar atos autodestrutivos napopulagáo adolescente.Além dos já apresentados, devemos considerar outros fatores quepodem favorecer o suicidio, como por exemplo: o uso abusivo deálcool e drogas; a disponibilidade dos meios para efetuar o ato

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suicida; a violencia física na infancia; a violencia sexual na infancia; oisolamento social; os disturbios psíquicos como a depressáo, aesquizofrenia ou sentimentos de desesperanga, além de, por fim, umhistórico de tentativa de suicidio, o que é considerado na literaturacomo a mais forte variável (WERNECK et al., 2006).No entanto, além dos estudos citados aqui, quase sempre apontandopara causas psicossociais, para os transtornos psiquiátricos edesajustes emocionáis, é oportuno refletirmos sobre a dimensáoexistencial desse fenómeno, sem que se eliminem os aspectosapresentados, entendendo-os como motivos, e nao, causas. Pensar ocontexto de mundo e ser-no-mundo do Dasein e como o suicidiopoderia ser interpretado á luz de um pensamento que compreende ohomem na sua condigáo de indeterminagáo e poder-ser.

4 Da angustia e do tedio do ser-no-mundo-com-outros

Diversas sao as interpretagóes do suicidio. Partindo de diferentescampos de saber, como a Antropología, Psicología, Psiquiatría eFilosofía, só para citar alguns, sao muitas e distintas, e quase sempredivergentes, as visóes sobre esse ato. Mas arriscamos dizer, no quetange ao suicidio que, sob o olhar da ciencia, prevalece urna visáoobjetivista, por meio da qual se busca encontrar causas explicativaspara o fato de alguém nao mais desejar viver.Entretanto, é possível abordar o suicidio de varias outras maneiras.Urna délas é considerar o ser humano como um Dasein, tal como ofaz Martin Heidegger em sua Ontologia Fundamental. Dasein, ser-ai,ser-no-mundo, dizem da indeterminagáo de um ente que pensa,existe e se desvela como possibilidade de Ser no mundo que se abrediante dele enquanto pré-senga. No prefacio de Introdugáo áMetafísica (HEIDEGGER, 1999), Emmanuel Carneiro Leáo afirma:

O homem nao pode existir senao em comercio e comunhaocom o mundo dos entes. Ente significa tudo que de algummodo é: o homem, as coisas, os acontecimentos, até mesmoo Nada, enquanto é um Nada, i.é, enquanto tem umsignificado, seja positivo ou negativo para a existencia.Incluindo o seu modo de ser, tudo que é, é um ente, e tudoque implica ou se refere ao ente e seu modo de ser, é óntico,adjetivo formado da palavra grega, on (=ente).

No entanto, continua ele:

O Ser nunca é diretamente acessível. Como diferengaontológica, inclui sempre urna irredutibilidade ao ente. Nuncapoderá ser objetivado. Nunca poderá ser encontrado nemcomo ente, nem dentro do ente. Nunca poderá serconstatado a modo de um dado, fato ou valor objetivo. O Ser

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só se dá obliquamente, enquanto, retraindo-se eescondendo-se em si mesmo, ilumina o ente segundodeterminada figura de sua Verdade (p. 16).

Assim, ainda que nos encontremos em urna cultura, ocidental, naqual prevalece urna forma de pensamento fundamentado por urnaontologia que interroga sobre o que é o ser e nao sobre o sentido doser, como o faz Heidegger (1927/1999), e desse modo buscandoverdades universais e absolutas, é possível se desconstruir, outentar, refletir sobre um fenómeno como o suicidio, de urna maneiraque contemple a dimensáo indeterminada e de poder-ser a que opensamento fenomenológico-hermenéutico heideggeriano nosconduz.Temos pensado no suicidio como um modo de se lidar com aangustia, que é constitutiva do Dasein, eliminando-a. Como aangustia permite ao Dasein colocar-se diante da possibilidade de ser-si-próprio, isto é, de singularizagáo, ele escolhe a finitude, o ser-para-a-morte. No entanto, temos acrescentado as nossas reflexóesum pensar que leve em conta a questáo do tedio e as implicagoesdessa tonalidade afetiva na existencia, em um mundo pós-moderno,hipervirtualizado ou contemporáneo, seja como for chamado o mundoatual. Mas o que distinguiría essas duas tonalidades afetivas, urnavez que angustia e tedio se aproximam em seu caráter de aberturaao ser-si-próprio?

Feijoo (2010) reconhece essa questao ao dizer que Tedio eangustia constituem-se em tonalidades afetivasfundamentáis que viabilizam a crise do projeto do impessoal,abrindo espago para que a singularizagáo se dé. Na angustia,há um repetido esvaziamento do sentido que sustenta omovimento existencial cotidiano, e tudo, entao, se mostracomo possibilidade. No tedio, todo o campo temporaldesaparece, o ser-aí nao temporaliza mais, e o nada semostra na total ausencia de possíveis (p. 158).

Ou seja, a angustia surge na obra Ser e Tempo (1927/1999) comoconstitutiva do Dasein, enquanto que em Os Conceitos Fundamentáisda Metafísica (2006), o tedio profundo ocupa as reflexóes filosóficasde Heidegger como urna tonalidade afetiva característica da culturado mundo da técnica. Portanto, além de oportuna, numa época emque a técnica é reificada, a nogáo de tedio nos permite pensar acercado sofrimento do homem contemporáneo e a perda do seu poder-serdiante da condigáo de ausencia da historicidade e de tempo da suaexistencia.A tonalidade afetiva, tradugáo do termo Befindlichkeit, assim comodisposigáo afetiva, humor, sentimento e afetagáo, (FORGUIERI,1993; GENDLIN, 1978/1979; NOVAES, 2010; DUTRA, 2008), indica acondigáo afetiva que constituí as experiencias de ser-no-mundo-com-

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outro. Referindo-se á tonalidade afetiva, Heidegger diz que"Tonalidades afetivas sao jeitos fundamentáis nos quais nosencontramos de um modo ou de outro. Tonalidades afetivas sao ocomo de acordó com o qual as coisas sao para alguém de um modoou de outro" (2006, p. 81).No tedio, a tonalidade afetiva que, segundo o filósofo, se apresentaem tres modos, o que se sobressai é a temporalidade, tal como éextensa e profundamente discutido por Heidegger (2006). Ao mesmotempo, a temporalidade evoca a historicidade, tornando-se, ambas asdimensóes, perdidas, quando se vive o tedio profundo, proposto porele como o terceiro modo do tedio.Ao tematizar o tedio, Feijoo esclarece que

No tedio, o ser-aí se depara com uma recusa de todas ascoisas, como fechamento de possibilidades de realizagao domundo. O tedio traz á tona o mundo como espago desingularizagao do ser-aí, bem como espago de diferenciagaoentre o ser-aí e os outros. O tedio consiste no tragodeterminante do mundo atual, no qual o homem se tornadesinteressante para si mesmo. Esse homem absorvido pelatécnica, desarticulado da relagao com sua historicidade,inviabiliza a conquista de si próprio, segundo Heidegger(2010, p. 158).

Assim, partindo dessa visáo de tedio, que se dá em um contexto demundo do qual o Dasein é co-originário, é oportuno se refletir sobre omundo atual, ao qual chamaremos de contemporáneo. A sociedadecontemporánea, denominada por Bauman (2007), de sociedadelíquida, se aproxima do que Heidegger nomeia de era da técnica.Nesta, impera o imediatismo, a pressa, a eficiencia e o consumo. É amesma sociedade que tanto favorece a descoberta da cura dedoengas, com os avangos na medicina, como a que fabrica muitasoutras, tais como a violencia, a síndrome do pánico, as depressóes, osuicidio. Consequencia da coisificagao do ser humano, nesse contextosocial, tudo se esvai, como um líquido que escorre por entre nossasmáos sem que consigamos senti-lo por muito tempo, inclusive osvínculos afetivos. É o caso do "ficar", no contexto das relagóesamorosas; estabeleceu-se que tal modo de relacionar-se representa aausencia de compromisso, semelhante a um "teste-drive" que se fazcom um veículo, como o carro; desta feita, transferido para asrelagóes afetivas, estas, agora, coisificadas e descartáveis.A sociedade contemporánea é marcada pela cultura midiática, cujafilosofía preconiza a busca da beleza, a valorizagáo da imagem, aaparéncia e a felicidade a todo custo. O consumo é o grande valoradotado e perseguido por todos. Consome-se de tudo: desde os fast-foods as drogas, de todas as especies, que eliminam a dor,promovem o bem-estar e a felicidade, ainda que á custa de um

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estado de entorpecimento que "apaga" os sentimentos, e por que naodizer, elimina os sentidos de ser. Nao mais é permitido ficar triste,chorar, sentir-se infeliz. Como se fosse proibido existir, no sentido daincompletude e de um ser finito, para quem o mundo será sempreinóspito. Como sentir-se infeliz num mundo repleto de solugoesmateriais? Portanto, com qual propósito se justifica pensar na mortee na finitude? Como ser próprio, singular, num mundo que massificaos desejos e afetos? Como atender á demanda de um mundo deofertas atraentes, vendendo a ilusáo de urna felicidade e realizagáopessoal como se mercadorias fossem?Identificado com tal visáo de sociedade, Baudrillard (2001), afirma:

Hoje, a vida é preservada na medida em que tem valor, istoé, valor de troca. Mas se a vida é preciosa, é justamenteporque ela nao tem valor de troca- porque é impossíveltrocá-la por algum valor final. O mundo nao pode sernegociado como mercadoria, nem trocado por qualquer outromundo, sobretudo o mundo virtual.

Próximo a este modo de pensar encontra-se Debord (ApudGiovanetti, 2010, p. 239), ao afirmar que vivemos a sociedade doespetáculo. Já nao é suficiente rompermos um relacionamento;agora, o importante é a sua publicizagáo, de preferencia, ñas redessociais. Portanto, é necessario publicar no Facebook, MSN e Orkut, sepossível com fotos, a nossa dor e solidáo, deixando que o nossoethos, a nossa morada, perca os limites do seu territorio,confundindo-se e misturando-se com os outros, tornando-se, assim,impessoal e desenraizado da sua historia. Como diz Heidegger(1981), somos "todos nos... ninguém". E a máxima dos temposatuais parece ser esta: "aparego, logo, existo".Assim, nesse mundo hipervirtual, técnico, eficiente e rápido, aqueleque nao se "adequa" ao modo-de-ser moderno e "antenado", seentedia. O jovem que alimenta o projeto de entrar na universidade, eo consegue, quase sempre após grandes e sofridas batalhas paraatingir esse lugar, o que acontece, quando atinge o seu objetivo? Oque se passa com o jovem que se atira de um predio que abriga asua própria sala de aula? Talvez, diante de tantas solicitagóes domundo, diante de um tempo que nunca se alcanga, haja vista avirtualidade das relagóes nesse mundo de Ipods, Ipeds, mensagensinstantáneas; como entáo, viver essa temporalidade? Comoacompanhar o ritmo da experiencia de existir, diante de urna historia,pessoal e de mundo, que passa e nao marca, como se fosse deletadaem um rápido click? Nesse contexto, entáo, o Dasein se depara como tedio, encobrindo o seu poder-ser. O tempo se esvai, ou nao passa.O mundo torna-se desinteressante e nada tem sentido. Passado efuturo já nao apontam para um poder-ser próprio. A singularidade,esta, perdeu-se no impessoal, no "a gente". Diante de tantas

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"ilusóes" perdidas, foi-se o rumo, a diregáo, o sentido. O ser seencobriu diante da ausencia do tempo. Com isso, interrogaHeidegger (1927/1999, p. 15):

Qual o resultado negativo ou positivo das tentativas quesempre somos levados a fazer? - Nao é nada mais nadamenos do que a experiencia originaria do tempo como"pronome do ser", em retragao. O ser nao se deixaapreender ou determinar nem por via direta nem pordesvíos, nem por outra coisa nem como outra coisa. Aocontrario, exige e impoe que nos contentemos com o tempode seu sentido e nos relacionemos com todas as realizagoesa partir de seu nada, isto é, a partir de seu retraimento e desua ausencia.

Assim, tal como na angustia, esse constituí o momento em que acondigáo de impessoalidade e de vazio existencial do Dasein sedesvela na tonalidade afetiva do tedio profundo, colocando o Daseindiante da possibilidade de buscar urna existencia mais própria oupermanecer no desinteresse de viver, na impessoalidade e no vazioda existencia.

5 Consideragóes fináis

Ao final dessas reflexóes, constatamos que muito mais poderia serdito. No entanto, ficamos na proposta das reflexóes iniciáis eprovisorias, tal como o próprio Dasein, enquanto um ser langado emum mundo que se apresenta inóspito e sem qualquer fixidez, já quetoda verdade é relativa e provisoria. Pensar o suicidio, fenómenopresente na historia das civilizagóes, desde as mais remotas, de urnaforma filosófica que rompa com um saber constituido na tradigáocientífica, significa, sempre, urna tarefa ardua e complexa. Comoreconhece Emmanuel Carneiro Leáo, referindo-se á obraheideggeriana "Introdugao á metafísica" (HEIDEGGER, 1999, P. 9),na sua apresentagáo:

Em filosofía nao há possibilidade de introdugao. Um abismosepara o espago ordinario da existencia, em que se movetanto o modo de ser habitual, familiar e ¡mediato da vidacotidiana, como o modo de ser objetivo, técnico e exato davida científica, do espago extraordinario, em que se agita ainvestigagao filosófica. E nenhuma ponte o poderá transpor.Nao, certamente, por estar o espago da filosofía demasiadodistante e sim demasiado próximo de todos os modos de serda existencia histórica.

Tal modo de pensar a filosofía nos faz acreditar que cada passo quedermos, por menor que seja, em diregáo a um diferente modo de

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pensar a existencia, representará urna contribuigáo na diregáo de umsaber que reflita a condigáo humana. A condigáo de um Dasein que,antes de qualquer explicagáo ou determinagáo, constitui-se como umpoder-ser exigindo, portanto, para o seu desvelamento, um horizontede compreensáo e respeito as singularidades humanas.

Referencias

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Enderece» para correspondenciaElza DutraAv. Prof. Olavo Montenegro, 2887 Capim Macio, Natal, RN, BrasilEnderego eletrónico: [email protected]

Recebidoem: 09/11/2011Reformulado em: 16/10/2012Aceito para publicagao em: 20/10/2012Acó m pan ha mentó do processo editorial: Ana Maria López Calvo de Feijoo

Notas^Docente do Programa de Pós-graduacao em Psicología PPgPsi/UFRN.

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ARTIGOS

Mundo como fundamento da psicoterapia de grupofenomenológica

World as the basis of phenomenological psychotherapy group

Luís Eduardo Frangao Jardim*LABI-USP/Universidade Paulista - UNIP, Sao Paulo, Sao Paulo, Brasil

RESUMONeste trabalho pretendemos relacionar o mundo da fenomenología de MartinHeidegger as características de psicoterapia de grupo, enquanto fundamentoessencial para essa modalidade terapéutica. Mundo abarca a totalidade doser-com os outros, ser junto aos entes e ser si mesmo. Nao há como pensaro Dasein destituido de mundo, tampouco mundo sem Dasein. Inserido emurna rede de significagoes compartilhadas, somos nosso próprio mundo, noqual nos relacionamos e conhecemos. Somos constituidos a partir dasrelagoes com os outros e somente ñas relagoes que acessamos nosso modode ser. Em grupo, abre-se a possibilidade de entrarmos em contato comnossas próprias referencias de mundo, que constituem nosso existir e nossacompreensao de si mesmo. Nesta modalidade de atendimento, estabelece-se um mundo compartilhado terapéutico a partir de urna disponibilidadeespecífica á escuta de si mesmo e do outro.Palavras-chave: psicoterapia de grupo, fenomenología, mundo, MartinHeidegger.

ABSTRACTIn this paper we intend to relate the Martin Heidegger's phenomenologyworld to the characteristics of group therapy, as basis for this therapeuticmodality. World encompasses the totality of being with others, being-alongside and being yourself. There is no Dasein without world, ñor worldwithout Dasein. Inserted into a network of shared meanings, we are our ownworld in which we relate and know. We are constituted from relationshipswith others and only in the relations we access our ways of being. In agroup, it is possible to get in touch with our own reference of world, whichdetermines our existence and our understanding of ourselves. In thismodality of therapy of care, a therapeutic shared world is established froman availability to listen to yourself and others.Keywords: group psychotherapy, phenomenology, world, Martin Heidegger.

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicología Rio de Janeiro v. 12 n. 3 p. 938-951 2012

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Luís Eduardo Frangao JardimMundo como fundamento da psicoterapia de grupo fenomenológica

É só quando esquecemostodos os nossos conhecimentos

é que comegamos a saberClarice Lispector

O objetivo deste artigo é apresentar e desenvolver alguns aspectosde mundo tal como concebido por Martin Heidegger, comofundamentagáo de urna psicoterapia de grupo, a partir dafenomenología hermenéutica. Entendemos que no contexto de grupo,a fenomenología se mostra como um recurso para lidarmos com oachatamento da singularidade do homem e com a uniformizagáo doolhar para o humano, característico da era da técnica, na qualestamos inseridos. No ámbito psicoterapéutico, o olhar para ofenómeno de grupo, a partir do fundamento heideggeriano de mundo,possibilita estabelecer no grupo um microcosmo de manifestagáo ecompreensáo terapéutica do modo de ser dos membros a partir dosacontecimentos no aqui-e-agora.Quando falamos em fundamentagáo fenomenológica da psicoterapiade grupo, estamos falando do paño de fundo no qual se assenta essaprática clínica e a compreensáo dos acontecimentos que ali se dáo.Na medida em que Heidegger nao pretendía, e tampoucodesenvolveu urna teoría sobre o homem, nao estamos aqui lidandocom urna teorizagáo de urna prática psicoterapéutica a partir de seupensamento.Por essas características, em alguns momentos, poder-se-ia tragarum paralelo do trabalho de fundamentagáo de urna terapia de grupofenomenológica com outros ámbitos de criagáo, como ñas artes.Quando um artista se debruga sobre um trabalho, primeiramenteesboga linhas iniciáis para que a partir délas se crie a obra. Nao setratam de linhas que delimitam, que restrinjam um fazer, mas linhasque fundam urna regiáo como horizonte, para que a partir délasemerja a obra a partir do caráter poético da arte, rompendo seustragos e recriando aquela regiáo. A obra de arte nao é determinadapreviamente pelos rascunhos iniciáis, mas eles também já partem deurna irrupgáo do que vira a ser a obra e transitam sobre oureconfiguram os rabiscos iniciáis.No contexto da psicoterapia de grupo, sua fundamentagáofenomenológica acontece com alguns pontos convergentes. Osdelineamentos tragados aqui nao dizem de urna determinagáo do quepode acontecer no encontró do grupo, tampouco estas linhasrestringem a compreensáo a um saber teórico sobre o homem. Mas oque aqui é delineado diz do lugar de escuta do coordenador, oupsicoterapeuta de grupo. O preenchimento e ruptura dessas linhasesbogadas inicialmente se dáo apenas no acontecer mesmo do grupo,ñas trocas e ñas relagóes entre os membros.

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Luís Eduardo Frangao JardimMundo como fundamento da psicoterapia de grupo fenomenológica

Devido as restrigoes pertinentes a um artigo, neste curto espago naoserá apresentado um tratado abarcando "todos" os tragos quecaracterizam a psicoterapia de grupo para a fenomenología, muitomenos um compendio sobre mundo heideggeriano. Trata-se aqui deum recorte de algumas características fundamentáis de mundo ecomo esses aspectos estáo manifestos no contexto psicoterapéuticode grupo.A Fenomenología-Hermenéutica heideggeriana fundamenta um modode pensar o homem que, na psicoterapia de grupo, surge como urnapossibilidade de estar aberto para a intimidade e recuperagáo de simesmo. No cenário técnico atual em que vivemos, identificamos demodo crescente o fenómeno descrito por Heidegger (2004; 2007)como "desertificagáo" humana, no qual as relagóes de mundoconstituem-se progressivamente de modo mais distanciado eimpessoal. O homem contemporáneo parece cada vez mais fechadoem si mesmo e, as comunicagóes, trocas de experiencias e afetostornam-se mais raros ou formatados pelo aparato tecnológico.Para Heidegger, "o mundo do Dasein é mundo compartilhado" (1998,p.170, tradugáo modificada1) e, no mundo em que o Dasein (ser-aí)habita, a todo o momento está em relagáo com o outro e com simesmo. Os modelos de relagáo referidos ácima sao modoscontemporáneos possíveis de relagáo com o outro. E, longe desubmeté-los a um julgamento de valor, cabe apenas analisar suaspossibilidades, perdas e ganhos. Embora esta "nova" roupagem docontato humano virtual traga muitas possibilidades diferentes derelagáo - as quais nao podemos negar sua importancia no mundocontemporáneo -, essas comunicagóes podem também favorecer umempobrecimento da proximidade ñas relagóes e a quase extingáo docaráter de intimidade no contato.A terapia de grupo fenomenológica nao tem urna proposta derecuperagáo de um suposto "ideal" de relagáo, tampouco a busca poralgo que pudesse ter sido perdido ao longo da historia da era datécnica.O grupo se configura inicialmente como urna abertura compartilhadae privilegiada na qual podem se desvelar modos de ser possíveis nomomento mesmo em que acontecem na relagáo com o outro. E nestarevelagáo de modos de ser, abre-se a possibilidade de seremapropriados e, com isso, lidar com eles mais livremente.Para entendermos o que vem a ser o grupo como aberturacompartilhada privilegiada, precisamos antes esclarecer o quesignifica dizer que o mundo do Dasein é um mundo compartilhado.Primeiramente, a ligagáo entre Dasein e mundo nao deve serentendida a partir dos moldes da relagáo sujeito-objeto. Tampoucopodemos conceber o Dasein como um ente que venha a ter ummundo, ao qual pode ligar-se ou nao de acordó com sua própriavontade. Por esta última perspectiva, entenderíamos o mundo como

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urna "propriedade" do Dasein, a qual poderia langar máo emdeterminado momento. Ao contrario, o Dasein está intrínsecamenteligado ao mundo e vice-versa. Nao há como pensar Dasein destituidode mundo, do mesmo modo que nao faz sentido pensar o conceito demundo sem o Dasein.O Dasein está no mundo. O caráter fundamental de ser-em ummundo se refere ao sentido de habitar e diz: "eu moro, me detenhojunto... ao mundo, como alguma coisa que, deste ou daquele modo,me é familiar" (Heidegger, 1998, p.92). Estar no mundo significahabitar o mundo no qual desde o inicio já existo. A existencia doDasein somente se dá, sempre e a cada vez, em um mundo, de modoque, o ser-no-mundo é a constituigáo fundamental do Dasein.Quando dizemos Dasein, já visamos de ¡mediato que "a ligagáo com omundo é um trago essencial do ser-aí mesmo e, porque nao dizer, ésua constituigáo essencial marcante. Ser-aí nao significa nada senáoser-no-mundo" (Heidegger, 2008, p.324). Na medida em que ser-no-mundo é um trago fundamental do Dasein, nao faz sentido perguntarse há urna relagáo do Dasein com o mundo. Dasein já significa ser-no-mundo.Enquanto ser-no-mundo, o Dasein projeta-se em possibilidades e issonao é algo que se dé como que pairando no ar, mas a existencia sedá, sempre e a cada vez, no mundo. Em outras palavras, a existenciasomente acontece tácticamente. Existo sempre já langado em ummundo de significatividade compartilhada no qual habito. O caráterde ser-langado (Geworfenheit) pertence ao Dasein enquanto ser-no-mundo. Desde o inicio, o Dasein já foi langado em um mundo semque tenha anteriormente decidido sobre seu próprio langamento e,por isso mesmo, nunca pode estar aquém do seu langamento.Para Heidegger,

mundo é o todo da constituigáo ontológica. Ele nao é apenaso todo da natureza, da conivéncia histórica, do próprio ser-si-mesmo e das coisas de uso. Ao contrario, ele é a totalidadeespecífica da multiplicidade ontológica que é compreendidade maneira una no ser-com os outros, no ser junto a e noser-si- mesmo (Heidegger, 2008, p. 328).

O mundo é o lugar ontológico aberto, o ai {Da), no qual o Dasein(ser-aí) tem acesso e pode compreender os entes e a si mesmo.Langado em um mundo compartilhado, o Dasein se relaciona e secomporta junto aos entes intramundanos, com os outros Dasein econsigo mesmo. Pertence ao ser-no-mundo o caráter de ser junto aosentes, ser-com os outros e ser-si-mesmo.Na perspectiva do atendimento em grupo fenomenológico, na base do"microcosmo" que é criado, está o fundamento do ser-no-mundo emque "o mundo é sempre o mundo compartilhado com os outros. Oser-em é ser-com os outros" e "os outros [...] sao aqueles dos quais,

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na maior parte das vezes, ninguém se diferencia propriamente, entreos quais também se está" (Heidegger, 1998, p.169-70).Em sua constituigáo fundamental, Dasein é sempre ser-com os outrose isso quer dizer que está, a cada vez, em um modo possível derelagáo com o outro. Ser-com significa que o Dasein é determinadoexistencialmente por esse aspecto, mesmo quando o outro nao édado ou percebido facticamente."Dentro do mundo, esse Dasein compartilhado dos outros só se abrepara o Dasein e assim também para os co-existentes". (Heidegger,1998, p.172, tradugáo modificada). Para Heidegger, é no estar com ooutro que temos uma referencia de nos mesmos, o outro dá a medidado meu si mesmo. Na relagáo com o outro, o Dasein pode perder-seno acolhimento familiar do a gente impessoal, mas também abre apossibilidade de encontrar-se.A possibilidade de encontrar-se, de ser resoluto, nao significa queDasein seja retirado do mundo ou da cotidianidade. Muito pelocontrario, para Heidegger, "a existencia própria nao é algo que pairepor sobre a de-cadéncia do cotidiano. Em sua estrutura existencial,ela é apenas uma apreensáo modificada da cotidianidade" (1998,p.241). Portanto, a resolugáo nao retira o Dasein da convivencia como outro, nem da lida com os utensilios langando-o em algum suposto"mundo paralelo". Como uma modificagao do cotidiano, a propriedadeacontece ñas relagóes, na lida e na solicitude cotidianas.Deste modo, o poder-ser mais próprio é um modo de relagáo comsuas próprias possibilidades, e isso acontece no mundo. O Daseinsomente pode se apropriar de si mesmo no seu cotidiano, isto é,como ser-no-mundo, o que significa: na relagáo com o outro, junto ascoisas e com si mesmo. Somente podemos existir de um modosingular ou apropriado de si mesmo, se for com o outro, pois essa é acaracterística fundamental do Dasein. É a partir do outro queconhecemos o si mesmo.Para Heidegger, mundo é "aquilo a partir do qual o ser-aí se dá aentender a que ente pode dirigir-se seu comportamento e como sepode comportar com relagáo a ele" (Heidegger, 1973, p.313).Habitando um mundo compartilhado, o Dasein é sua própria aberturae com os outros estabelece uma abertura comum, na qual os entes eo outro vém ao encontró. O mundo do Dasein é determinado,primeiramente, pela sua abertura. Isso significa que o Dasein naopossui uma tal abertura que esteja em contato com um mundo, oDasein nao tem uma abertura, muito pelo contrario, "o Dasein é suaabertura" (Heidegger, 1998, p.186, tradugáo modificada). Ser suaprópria abertura aponta para o "a/" {Da), o lugar aberto ao qualexiste facticamente e pelo qual está a cada vez junto aos entes e aosoutros. Dasein já sempre é nesse ai na medida em que a abertura, o"a/", é condigáo de possibilidade de compreensáo do mundo e,portanto, de si mesmo e dos outros.

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Na facticidade, o Dasein já se encontra em um mundo a partir de suaabertura. O Dasein descobre a si mesmo em suas possibilidades jásidas sempre e a cada vez a partir da abertura do seu ai. Nacoexistencia do Dasein, é constituida também urna abertura comumcomposta por aqueles que estáo se relacionando. Em outras palavras,na relagáo com o outro, compartilhamos um lugar comum em que ascoisas a cada vez aparecem para nos.No contexto da terapia em grupo, trata-se, de urna aberturacompartilhada entre todos os membros. Apesar de nao secaracterizar como um espago terapéutico com um suposto "objetivo"de apropriagáo, muito antes, o grupo terapéutico se constituí comourna co-abertura, um espago de "mostragáo" em grupo, no qual osoutros "vém ao encontró a partir do mundo em que o Dasein semantém de modo essencial" (Heidegger, 1998, p.170, tradugáomodificada) e que, a partir da relagáo com o outro, pode revelar-se osi mesmo de cada um em seus modos de ser. O grupo caracteriza-se,assim, como urna abertura compartilhada, um ai {Da) compartilhado.No caso da terapia em grupo, quais aspectos deste compartilhamentoa diferenciam de um outro grupo qualquer? Em um grupo terapéuticoo contato com o outro se estabelece com outras características. Paraexplicitar essas características, será focado nesse momento no queaqui é referido como nai terapéutico".O "ai terapéutico" diz respeito a abertura mesma constituida narelagáo estabelecida em terapia; é o espago de revelagáo do modo deser do membro do grupo e de explicitagáo do sentido que permeiacada experiencia relatada. É o psicoterapeuta quem sustenta abertoesse ai terapéutico enquanto urna "área" de confianga na qual cadamembro pode circular e encontrar sua medida de contato eaproximagáo com si mesmo.Enquanto urna abertura compartilhada, constituida a partir daabertura de cada um dos membros do grupo, o ai terapéuticotambém é constituido ontologicamente pela disposigáo{Befindlichkeit), compreensao {Verstehen) e discurso {Rede). Nao hácomo separar cada um destes constituintes da abertura do Dasein,urna vez que os tres sao aspectos co-originários e acontecem aomesmo tempo.A disposigáo é um existencial constituinte da abertura do Dasein e,portanto, um caráter ontológico deste ente. Como todo constituinteontológico da abertura do ai {Da) do Dasein, a disposigáo tambémpossui um correspondente óntico. Interessa ao presente trabalhoestudar seu correspondente óntico, a afinagáo {Stimmung). Aafinagáo, enquanto a referencia óntica da disposigáo, é o que há demais cotidiano e conhecido para o existir. A todo e qualquer momentoo Dasein é transpassado por urna afinagáo, um modo de estarafinado. A cada vez, o Dasein está em urna determinada afinagáo,porém, ela nao deve ser confundida com qualquer psicología das

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emogóes ou afecgóes. A afinagao é mais originaria que um humor ouuma emogáo psicológica e isso quer dizer que somente existemestados psicológicos, porque, primeiramente e a cada vez, o Dasein éafinado de um modo ou de outro.O Dasein está sempre afinado de determinado modo. A cada vez, oDasein já se encontra em uma ou outra afinagao, mesmo quandocotidianamente transita de um marasmo corriqueiro para uma faltade ánimo, quando de mau humor ou quando nao apercebe-se de taisfenómenos. Do ponto de vista ontológico, esse transitar entrediferentes modos de estar afinado apenas comprova que o Daseinestá sempre em uma determinada afinagao (Heidegger, 1998, p.188,tradugáo modificada).No encontrar-se em uma disposigáo, afinado mais densa oueufóricamente, o peso da responsabilidade de ser seu próprio ai podeser intensificado ou aliviado. Como alivio ou como fardo, essaspossibilidades de afinagao revelam o caráter de peso do Dasein. Apossibilidade de saberse em uma afinagao é nublada se comparada á"abertura originaria das afinagóes, em que o Dasein se depara comseu ser enquanto ai [...] A afinagao evidencia "como alguém está e setorna". É nesse "como alguém está" que o estar afinado traz o serpara o seu 'ai '" (Heidegger, 1998, p.188, tradugáo modificada). ODasein, enquanto ente entregue á responsabilidade de, existindo, terde ser, já se abriu em uma sintonía com uma afinagao naafinabilidade (Gestimmtheit), isto é, no caráter de estar afinado.Para Heidegger, "a abertura do co-Dasein dos outros, pertencente aoser-com, significa: na compreensáo do ser do Dasein já subsiste umacompreensáo dos outros porque seu ser é ser-com. [...] Esteconhecer-se está fundado no ser-com que compreendeoriginariamente" (1998, p.176, tradugáo modificada). Mas acompreensáo nunca é separada da afinagao. Muito pelo contrario, acompreensáo é sempre afinada. A afinagao é o determinante ónticoda compreensáo, e isto quer dizer que a todo momento, as afinagóesé que abrem a compreensáo para a percepgáo de uma coisa ou outra.Tudo que compreendemos no mundo, isto é, das coisas, dos outros ede nos mesmos está tingido pelo modo como já estou afinado. Ecomo nao poderia ser diferente, na psicoterapia, as afinagóestambém afinam o setting a todo o momento e sao os determinantesdo que se mostra e do que é compreendido de si mesmo.Mas como se estabelece esse ai terapéutico? Além das afinagóescaracterísticas de cada um dos membros e do psicoterapeuta, emuma abertura terapéutica já existe de antemáo uma afinagao com aparticularidade de uma certa disponibilidade por parte dos membros eterapeuta para aquele tipo de encontró. Na constituigao de um grupoterapéutico, já há um tipo de expectativa para esta modalidade deencontró que permeia a possibilidade terapéutica e que se constituíem uma afinagao anterior.

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Luís Eduardo Frangao JardimMundo como fundamento da psicoterapia de grupo fenomenológica

Na psicoterapia individual, é fundamental para o analisando que seestabelega urna relagao de confianga. A confianga abre a possibilidadede auto-revelagáo. É na confianga que pode surgir o relato de algo desi, ou um acontecimento, mas no momento em que é contado, nao évivido aquilo mesmo relatado. Esta fala parte de um lugar seguro, olugar da confianga, sobre algo que já se deu determinado por urnaafinagáo de outro momento. Parte do trabalho do psicoterapeutatambém é caracterizado por contribuir para que o analisando possarecuperar, naquilo que está relatando, o impacto experimentado nasituagáo e acesse a regiáo de origem da afinagáo presente naquelerelato. Abrindo-se, assim, a possibilidade de responsabilizar-se por simesmo e, talvez inaugurar urna nova articulagáo em seu modo deestar no mundo.No contexto de psicoterapia de grupo, esse processo de construgáode confianga é obviamente mais difícil pela própria complexidade dasrelagóes. Neste processo, nao se trata da relagao entre duas pessoas,mas da co-existéncia de todo um grupo. A complexidade do gruponao está somente no estabelecimento da confianga, mas é necessáriotambém que o grupo se configure como um espago de afeto, decompreensáo recíproca da experiencia um dos outros e,principalmente, de lidar com as diferengas.A relagao de confianga nao acontece apenas da parte de um membrodo grupo com o psicoterapeuta, mas além do psicoterapeuta,também com cada outro membro e com o grupo como um todo.Nesta relagao, para cada um, escutar o outro tem tanta importanciaquanto expressar-se. O grupo nao tem um sentido único, mas asrelagóes se estruturam a partir de urna multiplicidade de afinagóes emodos de ser presentes naquele mundo compartilhado do grupo.Em grupo, a confianga tem um desdobramento peculiar. Napsicoterapia de grupo, a confianga nao é apenas um espago para falarsobre um ocorrido, um relato de urna experiencia anterior. Masconseguindo-se estabelecer um espago de acolhimento e confiangaentre os membros daquele microcosmo, abre-se também para quecada um seja tal como ele é na relagao de um com o outro. O queisso significa?No §26 de Ser e tempo, Heidegger descreve a solicitude (oupreocupacao) em seus modos positivos que, em diferentes graus, sedáo de formas mistas entre dois modos extremos: solicitudesubstitutiva (ou dominadora) e solicitude liberadora (VorspringendeFürsorge). O primeiro modo caracteriza-se por fazer pelo outro, nolugar do outro, o que pode retirar do outro a responsabilidadeperante seu próprio poder-ser, enquanto o segundo parte de urnaconvivencia mais própria, em que cada um pode ser-com o outro apartir de si mesmo.Fundamentado nestes modos positivos da convivencia descritos porHeidegger, Jardim (2003) os relaciona ao contexto da psicoterapia.

Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 938-951, 2012. 945

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Luís Eduardo Frangao JardimMundo como fundamento da psicoterapia de grupo fenomenologica

Para o autor, o psicoterapeuta evita substituir o outro em sua tarefade ser, buscando liberá-\o para a compreensáo de si e pararesponsabilizar-se pelo seu modo de ser. O modo de se dar específicoda relagáo psicoterapéutica é derivado, ontologicamente, dasolicitude com o outro denominada solicitude liberadora, ouantecipadora.Na relagáo e na escuta terapéutica em grupo, o psicoterapeuta naotoma para si a responsabilidade perante o si mesmo dos membros,nao faz pelo outro, mas, ao contrario, sustenta urna postura de, noencontró, deixar-ser o outro tal como ele é e devolver, assim, aooutro a responsabilidade perante ele mesmo.Em todas as relagóes, transita-se sempre em modos mistos dessesdois extremos positivos de relagáo. O psicoterapeuta nao deixa de"fazer pelo outro" quando sustenta urna determinada característicade abertura de compreensáo em grupo, mas, em ultima instancia, apostura terapéutica pretende que cada um possa, em seu ritmo, serentregue á responsabilidade de ser si mesmo e assumir a própriaexistencia enquanto tarefa. Como se a postura do terapeuta secolocasse em urna especie de "tendencia" a urna solicitude liberadora.A relagáo entre um e outro fundada na solicitude liberadora nao é ummodo exclusivo da prática clínica, e tampouco urna relagáo certa edefinida. No contexto estudado, devemos entender esse modo de serelacionar como fundamento de urna postura que é tomada pelopsicoterapeuta. Quanto mais o psicoterapeuta conseguir estabelecerurna convivencia própria e liberadora com o outro, maior apossibilidade de que esse encontró venha a ter o caráter de deixar ooutro ser em seu mais próprio poder-ser (Jardim, 2003). O encontróem grupo é um deixar-ser ele mesmo em que o outro pode se libertarpara sua própria existencia.No ai terapéutico de grupo, o coordenador deve buscar sustentar aomáximo essa postura dentre os modos mistos de relagáo. Desde oprimeiro momento esse modo de deixar o outro ser a partir delemesmo já deve permear a característica das relagóes do grupo.Concomitantemente, o estabelecimento da confianga em grupofavorece que as questóes significativas de cada um venham naoapenas pela reflexáo de um falar sobre, mas principalmente nomomento mesmo em que o grupo acontece. No acontecer ao vivogrupal, as relagóes permitem que emerjam o modo de ser de cadaum durante a troca, a fala e mesmo a escuta do que o outro diz.Nesse encontró, a compreensáo buscada nao está voltada só para oconteúdo do relato das reflexóes e "eventos" trazidos á sessáo pelosmembros do grupo, mas trata-se de urna escuta atenta para osentido que sustenta tal relato ou acontecimento possui para aquele oexperienciou. A escuta terapéutica está atenta para o fenómeno quese mostra, através das relagóes do grupo.

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O sentido que se dá nos acontecimentos em grupo, muitas vezesainda encoberto, revela ao psicoterapeuta e ao grupo o modo como ogrupo e cada membro se relaciona com seu mundo, isto é, o modo deser que se apresenta no aqui-e-agora das relagoes. O desvelamentodesse modo de ser pode abrir para os membros a possibilidade de seapropriar de si mesmo e se responsabilizar pelo seu próprio ser.A psicoterapia de grupo é descrita até aqui como um lugar deaparecimento dos modos de ser de cada membro e do grupo comoum todo, favorecido por urna postura liberadora. Nesse lugar deaparecimento de modos de ser, busca-se a compreensáo do sentidoque se revela na experiencia e ñas relagóes entre os membros. Apartir da revelagáo e compreensáo do sentido, abre-se a possibilidadede apropriagáo de si mesmo e responsabilizagáo pelo próprio existir.O fundamento ontológico deste entendimento do modo de acontecerda psicoterapia de grupo é o mundo e as relagóes de mundo, talcomo pensados por Martin Heidegger. Essa compreensáo dapsicoterapia de grupo parte das relagóes que acontecem em grupo, apartir das quais revela-se o sentido mesmo da experiencia. Nestamedida, mundo, enquanto fundamento, possibilita pensar apsicoterapia de grupo e os fenómenos que ali se mostram de ummodo fenomenológico, nao atrelado ao caráter reificante das teoríaspsicológicas tradicionais e livre de urna tendencia humanista,centrada na pessoa.A fundamentagáo no mundo heideggeriano, possibilita a ruptura doentendimento da psicoterapia de grupo como o somatório de terapiasindividuáis. É na convivencia que se estabelece no microcosmo dapsicoterapia de grupo que o sentido pode se mostrar. Odesvelamento de modos de ser em grupo acontece a partir dasrelagóes e ñas relagóes.Os modos de ser que se explicitam, nao só ao psicoterapeuta, mastambém ao grupo, sao transpassados por um jeito de estar afinado.Este jeito abre suas possibilidades de compreensáo de si mesmo e derelacionar-se com o mundo e com os outros. Estas afinagóesconstituintes da existencia de cada um podem ser percebidas nomomento em que se mostram pela fala, pelo comportamento, peloolhar, pelo corpo, pelo gesto etc.No contato ao vivo, abre-se a possibilidade de explicitagáo para opróprio membro do seu modo de ser, isto é, na relagáo com o grupopode compreender a si e responsabilizar-se por como percebe omundo a cada vez.Na escuta do que se revela em grupo, "a coisa fala a mim. Secompreendermos a linguagem do dizer no sentido de se deixarmostrar como algo, entáo perceber é sempre linguagem e ao mesmotempo dizer palavras" (Heidegger, 2006, p.215).Se levarmos em conta que a agáo e relato do membro do grupo estáperpassado e tonalizado, do inicio ao fim por afinagóes, temos acesso

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mais claramente ao seu sentido se compreendermos como estáafinado.

Urna tonalidade afetiva [afinagao] é um jeito, nao apenasurna forma ou padrao modal, mas um jeito no sentido deurna melodía, que nao paira sobre a assim chamadasubsistencia própria do homem, mas que fornece para este otom, ou seja, que afina e determina o modo e o como de seuser (Heidegger, 2003a, p.81).

Entretanto, o caráter terapéutico nao está somente em saber de si,em como me relaciono no mundo. Mas também é fundamental abusca por acessar o que Heidegger (2003b; 2003c) denominou comoregiao (Gegend) de mundo em que essa abertura se originou. Énessa regiao que se sustenta a articulagáo do estar-afinado de cadaum, em outras palavras, a afinabilidade (Gestimmtheit) de cada um.Compreender o sentido que sustenta este modo de estar afinadopode trazer a possibilidade de rearticular essa afinabilidade e abrirum modo mais próprio de se relacionar com o mundo.A afinagao determina a melodía na qual cada um vibra. É o tom quecolore e abre a perspectiva na qual se enxerga o mundo. Aspossibilidades de ser do membro do grupo sao sempre abertas apartir do seu mundo e, portanto, a partir do modo como está afinado.Em outras palavras, o poder-ser é determinado pelo jeito como opaciente está no mundo, configurando urna especie de atmosfera, naqual está inserido e transpassado por seu tom (Jardim, 2009).Em grupo nao se trata apenas da afinagao de cada um isoladamente.Um grupo, nao só o terapéutico, estabelece urna afinagaocompartilhada, isto é, cada grupo como um todo tem urna atmosferadeterminante das relagóes e dos modos de ser comum aquelesmembros. Na psicoterapia de grupo a compreensáo se dá a partirdessa afinagao compartilhada também. O psicoterapeuta nao estáisento de seu caráter de estar afinado, tampouco escapa dessaafinagao que se constituí em grupo. Por esse aspecto, torna-sefundamental que o psicoterapeuta tenha urna visáo ampia do grupo,consiga dar "um passo para tras" e consiga perceber também comoesse clima determina seu olhar.

No momento em que o próprio grupo está olhando para o grupo ediscutindo como soou para cada um o que se passou ali, é estaafinagao compartilhada do grupo que mais se manifesta. Manifesta-se, seja como determinante do olhar e compreensáo de cada umsobre o grupo, mas também como o que se mostra do grupo comoum todo para o grupo. Poder olhar para isso e compreender como sedá, é também um fator terapéutico na medida em que essa afinagaocompartilhada também determina o modo de ser de cada um em suasingularidade.

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A elaboragao das afinagoes como constituintes da abertura de mundoe determinantes da compreensao e dos modos de ser dos membrosdo grupo proporciona um entendimento novo sobre o fenómeno degrupo, nao pautado ñas teorías psicológicas sobre comportamento degrupo. Esta elaboragao aqui proposta pertence ontologicamente áfundamentagáo no mundo, tal como pensado por Heidegger,principalmente, na década de 1920.Por fim, a postura fenomenológica terapéutica, como um dosaspectos mais importantes para a modalidade de atendimentopsicoterápico de grupo, está refletida neste trecho de ClariceLispector, extraído do livro "Urna aprendizagem ou o Livro dosPrazeres". Ela diz:

É só quando esquecemostodos os nossos conhecimentos

é que comegamos a saber

Para a relagáo psicoterapéutica fundamentada na fenomenología-hermenéutica de Martin Heidegger, esse lugar do nao saber é o quehá de mais fundamental na compreensao das possibilidades de ser dooutro. Para isso, urna escuta terapéutica fenomenológica para o quese mostra no grupo nao pode estar pautada em teorías psicológicas,que na busca pela generalizagáo, achatam as particularidades ereificam a experiencia mesma de cada um.Na postura fenomenológica suspende-se todo conhecimento,julgamento e conceito anterior para que seja possível acessar como omundo daqueles membros se abrem, isto é, qual é o sentido que semostra na relagáo terapéutica estabelecida em grupo a partir dorelato e da agáo dos membros, como um todo. É somente a partirdessa postura que o psicoterapeuta e o grupo conseguem acessar oque emerge, o que acontece diante do grupo nos atendimentos.Pensar mundo como fundamento da psicoterapia de grupofenomenológica significa um deixar-vir-ao-encontro dos sentidos quese desvelam ñas relagóes e nos acontecimentos do grupo e, destemodo, rompe com a postura humanista centrada na pessoa.Esta postura de suspensáo e de nao saber é fundamental para que omembro, ao se mostrar na co-abertura do grupo, possa sercompreendido e se compreenda a partir dele mesmo em seu modo deser. Em outras palavras, para que neste espago de escuta e revelagáoconstituido pelo ai terapéutico, possa emergir o que é maiscaracterístico da existencia do grupo e de cada um dos membros dogrupo, e nao as expectativas, crengas e anseios do psicoterapeuta.

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Referencias

HEIDEGGER, M. Sobre a esséncia do fundamento. In: .Conferencias e escritos filosóficos - Col. Pensadores XLV. Trad.Ernildo Stein. Sao Paulo: Abril Cultural, 1973.

. Ser e tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis:Vozes, 1998.

. Sein und Zeit. 18. Auflage; Tübingen: Max Niemeyer,2001.

. Os Conceitos fundamentáis da metafísica: Mundo,Finitude, Solidáo. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro:Forense Universitaria, 2003a.

. A Esséncia da Linguagem. In: . A caminho dalinguagem. Trad. Márcia de Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis:Editora Universitaria Sao Francisco/Vozes, 2003b.

. O Caminho para a Linguagem. In: . A caminho dalinguagem. Trad. Márcia de Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis:Editora Universitaria Sao Francisco/Vozes, 2003c.

. What is called thinking? Transí. J. Glenn Gray. New York:Perennial/Harper Collins, 2004.

. Zollikoner Seminare. 3. Auflage; Frankfurt am Main:Vittorio Klostermann, 2006.

. O Eterno Retorno do Mesmo. In: Nietzsche I. Trad. MarcoAntonio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 2007.

. Introducao á filosofía. Trad. Marco Antonio Casanova. SaoPaulo: Martins Fontes, 2008.JARDIM, L. A Preocupacao liberadora no contexto da práticaclínica. Trabalho de Conclusáo de Curso nao publicada - PUC-SP.Sao Paulo, 2003.

. Um estudo sobre as afinacóes a partir da ontologiafundamental de Martin Heidegger: contribuigóes para as práticasclínicas. Dissertagáo de Mestrado nao publicada - PUC-SP, Sao Paulo,2009.LISPECTOR, C. Urna aprendizagem ou livro dos prazeres. Rio deJaneiro: Rocco.

Enderezo para correspondenciaLuís Eduardo Frangao JardimRúa Capote Valente, 1394, 05409-003 Pinheiros, Sao Paulo, SP, BrasilEnderego eletrónico: [email protected]

Recebido em: 28/11/2011Reformulado em: 18/06/2012Aceito para publicagao em: 21/06/2012

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Acompanhamento do processo editorial: Ana Maria López Calvo de Feijoo

Notas*Mestre em Psicología Clínica pela PUC-SP e doutorando do Instituto de Psicologíada USP-SP. Membro pesquisador do Laboratorio de Estudos do Imaginario (LABI-USP) da Universidade de Sao Paulo-SP. Membro e Coordenador da área de PesquisaAcadémica de Fenó&Grupos e é professor e supervisor clínico de Fenomenología naUniversidade Paulista UNIP em Sao Paulo.^ptou-se por fazer modificagoes da tradugao brasileira de Heidegger (1998) eutilizagao do termo original alemao Dasein (ou a tradugao literal ser-aí) ao invés depre-senga, com o intuito de evitar distorgoes de sentido. O mesmo se aplica para ostermos afinagao (Stimmung), ao invés de humor e ai (Da) ao invés de pré. Asmodificagoes foram feitas com base no texto original Heidegger (2001), emboratenha sido mantida a paginagao da versao brasileira para o viabilizar o acesso parao leitor.

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ARTIGOS

Reflexóes fenomenológico-existenciais para a clínicapsicológica em grupo

Phenomenological-existential reflections for psychologicalclinic in group

Ana Tereza Camasmie*Universidade Federal Fluminense - UFF, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil

Roberto Novaes de Sá**Universidade Federal Fluminense - UFF, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil

RESUMOA modalidade grupo na clínica psicológica parece habitar um lugar instávelñas práticas clínicas, urna vez que sua validade e legitimagáo saoquestionadas principalmente em comparagáo com a modalidade individual. Epor estarmos imersos em urna perspectiva contemporánea de privilegiarmétodos que afirmem tudo o que é da ordem do individual e daautossuficiéncia, essa prática clínica pode restringir-se apenas a espagos degrandes demandas de atendimento psicológico, correspondendo á lógica daprodutividade e comprometendo sua finalidade clínica. A fim de afirmar essamodalidade clínica na abordagem fenomenológico-existencial, este artigopretende aproximar a fenomenología hermenéutica de Martin Heidegger áexperiencia clínica a fim de refletir sobre dois aspectos importantes docotidiano psicoterápico: o diálogo clínico e o vínculo psicoterapéutico,diferenciando das abordagens que partem de teorías essencialistas sobregrupos.Palavras-chave: Psicoterapia, Grupo, Fenomenológico-existencial, Clínica,Martin Heidegger.

ABSTRACTThe group modality in the psychologic clinic seems to inhabit an instableplace in the clinical practice, since its validation and legitimacy arequestioned mainly in comparison with the individual modality. Due to beingoverwhelmed by the contemporary perspective of granting privilege tomethods that affirm everything that concerns the individual and the self-sufficiency, this clinical practice may restrain itself to spaces of greatdemands of psychological treatment, corresponding to the productivity logicand compromising its clinical purpose. Aiming at affirming this clinicalmodality in the phenomenological-existential approach, this article means tobring the hermeneutic phenomenology of Martin Heidegger closer to theclinical experience in order to reflect upon two important aspects of thepsychotherapeutic routine: the clinical dialogue and the psychotherapeuticlink, differentiating it from the approaches that are based in essentialisttheories about groups.Keywords: Psychotherapy, Group, Phenomenological-existential, Clinic,Martin Heidegger.

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicología Rio de Janeiro v. 12 n. 3 p. 952-972 2012

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Ana Tereza Camasmie, Roberto Novaes de SáReflexoes fenomenológico-existenciais para a clínica psicológica em grupo

1 Introducao

A modalidade grupo na clínica psicológica parece habitar um lugarinstável ñas práticas clínicas. Nao é raro que sua validade elegitimagáo sejam questionadas principalmente em comparagáo coma modalidade individual, ou que sua presenga seja requisitadasomente como recurso para atender a grandes demandas deatendimento psicológico em instituigóes. Esse questionamentogeralmente aparece através da tentativa de validá-la segundo variosparámetros, tais como: superficial/profundo, eficacia/eficiencia,indivíduo/coletivo, conteúdo/processo, particular/institucional, o quemantém a psicoterapia de grupo no lugar em questáo, onde seucontorno requer constante reconfiguragáo.No entanto, diversas teorías psicológicas que se propóem a sustentara clínica grupal, tém tido a preocupagáo de poder responder a essesquestionamentos oferecendo argumentos que legitimem essa prática.Ainda assim, parece faltar urna interrogagáo sobre o fundamentodessas questóes pertinentes, por estas se tratarem de ordemessencialista e, portanto, requererem respostas que atendam a essamesma perspectiva. Por essencialista entende-se tomar o grupocomo objeto em si, e, portanto, dotado de permanencia quepossibilite teorizagóes universais. Talvez seja pela falta de reflexáosobre esses fundamentos, e, portanto, de que concepgáo sobre grupose está partindo para questionar, que grande parte da literaturasobre grupos se atenha e se dedique a responder objetivamente.Pensar numa prática clínica que busque seus fundamentos na filosofíada existencia requer um caminho de reflexáo em que se abandonemconcepgóes gerais sobre grupos para que se possa aproximar ao queé mais próprio á experiencia clínica em grupo.Para o filósofo Martin Heidegger (2001, p. 211), toda vez em que seprocura o fundamento de algo no sentido genético-causal afasta-sedo seu entendimento mais próprio, pois esta perspectiva parte devalores previos á própria coisa. O autor sugere entáo, que a buscapelo fundamento deveria ser a procura pela sua condigáo depossibilidade de ser. Tomar o fundamento como aquilo em querepousa tudo o que se dá a mostra, essa é a proposta heideggerianaa qual se pretende aproximar para refletir sobre esta prática clínica.Busca-se assim realizar um diálogo da clínica em grupo com afenomenología existencial, a fim de evidenciar seus desdobramentosno cotidiano psicoterápico.

2 Aproximacóes heideggerianas para a questáo do vínculo

Segundo Duarte (2002, p. 157), críticos de Martin Heidegger, comoRichard Wolin, Lawrence Vogel, Jurgen Habermas e outros,

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costumam apontar em Ser e lempo a falta de preocupagáo do autorsobre a questao da alteridade. Tal posicionamento teri sugerido que aobra tenha entáo desconsiderado a questao da ética, em favor de umsolipsismo existencial, na medida em que Heidegger se refere apossibilidades existenciais que á primeira vista podem parecerpropriedades, ou finalidades do ser-aí, tais como por exemplo,quando afirma que "a angustia singulariza e abre o ser-aí como solusipse" (HEIDEGGER, 1998a, p. 252), ou que o ser-aí pode "recuperar-se a si-mesmo", ou "encontrar seu ser mais próprio".Por outro lado, nao sao poucos os artigos que se tém publicado sobreo tema (NUNES, 2001; BARATA, 2009; DUARTE, 2000 e 2002), natentativa de evidenciar as pistas que contrariam essa visáo. E estaspistas nao estáo escondidas, a comegar pelo quarto capitulo de Ser eTempo, que diz respeito á co-existéncia dos outros, mas também seencontram dispersas e entremeadas em toda a obra. E emboraHeidegger nao tenha escrito um texto especifico sobre "os outros",isso nao significa que a alteridade seja irrelevante em seupensamento. Quem sabe nao seria justamente o contrario? Pelaimpossibilidade fenomenológica de se separar eu e outro, já que oser-aí é ser-no-mundo com outros, nao faria sentido Heidegger sededicar ao "outro" como algo independente ou que pudesse seranalisado fora da perspectiva do si e do mundo. Ñas palavras deHeidegger: "... de inicio, um mero sujeito nao 'é' e nunca é dado semmundo. Da mesma maneira, também de inicio, nao é dado um eu¡solado sem os outros" (HEIDEGGER,1998a, p. 167). E ainda, "O ser-aí se singulariza, mas como ser-no-mundo" (HEIDEGGER, 1998a, p.253).

Heidegger nao se utiliza dos termos sujeito, homem, individuo,subjetividade, em seu pensamento, primeiramente por serem termosque já carregam em si significados históricos de longa data, eprincipalmente por sugerirem urna ideia contraria a que Heideggerquería expressar. Para se compreender a perspectiva heideggerianada alteridade, torna-se necessário desconstruirmos a ideia de sujeitoenquanto substancia, urna vez que esse termo guarda urna herangada tradigáo.O autor dedicou-se a investigar a questao do ser e assim devolve aoente seu lugar diferenciado em relagáo ao seu ser. E é justamentedevido a essa diferenciagao que é possivel ao ente que nos somos, oser-aí, colocar em questao o sentido do seu próprio ser, do ser dosentes intramundanos e do ser dos outros. Este ente, que é ser-aí(dasein), diz Heidegger, "somos nos mesmos" e o ser deste ente "ésempre e a cada vez meu" (HEIDEGGER, 1998a, p. 77). Se o ser é acada vez meu, isto significa que, a cada momento, este ser-aí temque se haver com seu ser. Esse movimento constante que o ser-aírealiza, que evidencia que o seu ser "está sempre em jogo"(HEIDEGGER, 1988a, p. 77), retira de ¡mediato qualquer

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entendimento do homem enquanto esséncia ou substancia quepermanece. Assim, a esséncia é a própria existencia onde essemovimento se dá, portanto, nao há urna esséncia previa, anterior aqualquer experiencia.A partir desses esclarecimentos iniciáis, podemos entender aalteridade como sendo um fenómeno existencial cuja condigáo depossibilidade de acontecer se funda ontologicamente. Ou seja, osentido psicológico, óntico, de encontró entre homens, só é possívelporque desde sempre o homem é um ente cujo modo de ser ésempre já no mundo junto com os outros. Podemos dizer assim que aexperiencia cotidiana é sempre em relagáo, num sentido ontológico,na medida em que nao é possível ao homem existir fora daconvivencia. Eu e os outros formam urna relagáo diferenciável, masindissociável, entre entes cujo modo de ser se apresenta como ser-aí,ou seja, langado as possibilidades num mundo compartilhado.Heidegger nomeia essa indissociabilidade, de ser-no-mundo-com-outro (HEIDEGGER, 1998a, p. 164).E mesmo ñas situagóes em que o ser-aí experiencie o ser-com aomodo do simplesmente dado, ou seja, igualando o modo daconvivencia ao modo como se aproxima dos entes intramundanos,isso nao o isenta de ser ontologicamente já ai junto com os outros. Éjustamente por essa condigáo ontológica que Ihe é possível convivernessa modalidade.Podemos, assim, afirmar que a alteridade é constitutiva daexistencia, e mesmo nos casos de isolamento imposto ou voluntario,trata-se ainda de modalidades do ser-com-outro, que podem semostrar mais ou menos restritas, quanto em maior ou menor grau deliberdade existencial se encontrarem.

3 A Co-Existéncia dos Outros

Como já dito anteriormente, Heidegger nao se dedicou ao tema dosoutros de modo especial, mas, no entanto, o assunto sobre "osoutros" está presente o tempo todo em Ser e Tempo. Vamos nos aterespecíficamente ao parágrafo 26 desta obra, onde Heidegger é maisexplícito quanto á sua concepgáo sobre este tema.Primeiramente, o título do parágrafo 26 já anuncia de onde Heideggerparte para explicitar seu entendimento. Para o autor, os outros saoco-existentes ao ser-aí. Isso quer dizer que nao há um eu e depoisum outro. A convivencia originariamente se dá sempre junto com osoutros.Heidegger inicia este parágrafo, esclarecendo o quanto o ser-aí dosoutros se dá ao mesmo tempo em que o ser-aí lida com os utensiliosá máo no mundo. E mesmo que nesta manualidade nao estejatematizada a presenga desses outros, nao quer dizer que eles nao

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estejam presentes. Ele dá alguns exemplos para evidenciar essa co-existencia:

"o campo por onde passamos lá fora, mostra-se como ocampo que pertence a alguém, que é por ele mantido emordem; o livro usado foi comprado em tal livreiro, foipresenteado por (...) o barco ancorado na praia refere-se aum conhecido que nele viaja ou entao um barcodesconhecido mostra outros" (HEIDEGGER, 1998a, p. 169).

Heidegger parece mostrar que os outros estáo sempre juntos ao ser-ai de um modo diferente dos entes intramundanos, ou seja, o modode ser dos outros que vém ao encontró dentro do mundo, aparecesegundo o modo de ser-no-mundo, mesmo que de modo oculto.Assim, o campesino, o livreiro, o viajante sao entes cujo ser tambémestá em jogo e que lidam com o campo enquanto campo, livro ebarco, só que em sentidos diferentes daqueles que os usufruem.Mas ainda resta a possibilidade de se entender o encontró com osoutros como sendo algo que se dá posteriormente ao "eu", como sepudéssemos passar do estado do eu ao encontró com os outros.Heidegger, entáo, afirma: "os outros nao significam todo o resto dosdemais além de mim, do qual o eu se ¡solaría" (HEIDEGGER, 1998a,p. 169), ou seja, pelo contrario, os outros constituem o "eu", numarelagáo de indissociabilidade. Por isso afirma que o ser-aí é em suaesséncia ser-com-os-outros, pois se o ser-aí é ser-no-mundo, mundoaqui entáo, adquire o sentido de mundo compartilhado com os outros(HEIDEGGER, 1998a, p. 170). Mas aqui cabe atengáo no sentido deque mundo compartilhado nao quer dizer um espago com um grupode pessoas, pois mundo é relagáo de sentidos. O que se partilhajunto com os outros é urna rede significativa de sentidos, na qual seencontra urna progressáo infinita de "outros" que a constituem.Mas como se dá o encontró com os outros? Heidegger é incansávelem explicitar que esse encontró com os outros se diferencia darelagáo que o ser-aí estabelece com os entes intramundanos, quepossui o modo de ser da manualidade. Mas esse encontró com osoutros se dá a partir das ocupagóes mundanas:

"De inicio e na maior parte das vezes, o ser-aí se entende apartir de seu mundo e a co-presenga1 dos outros vem aoencontró ñas mais diversas formas a partir do que está ámao dentro do mundo" (HEIDEGGER, 1998a, p. 171).

Importante retomar este a partir do que. É que os outros nao chegamao ser-aí como pessoas simplesmente dadas. O encontró acontece apartir de urna situagáo, emerge do mundo. Cada presenga de "umoutro" se dá como um modo de ser. E como tal, a co-existéncia dosoutros só pode entáo ser apreendida por um ente que possui o

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mesmo modo de ser-no-mundo, ainda que essa apreensáo se dé namaioria das vezes de modo improprio.Assim, só se pode ser visto por outro ser-aí. As coisas, os animáis, asplantas, nao nos véem, porque sendo seu modo de ser simplesmentedado, nao lidam com os outros entes enquanto entes. Por nao seremexistentes, a relagáo de sentido com o mundo é pobre ou inexistente(HEIDEGGER, 2003, p. 207), nem estáo presentes a compreensáo edisposigáo, estruturantes da abertura do ser-aí, que é formador demundo. Por isso pode-se dizer que numa relagáo entre co-existentes,há uma experiencia de exposigáo mutua. É justamente por essaexposigáo acontecer independente da vontade, já que ser é aparecer,que diversos adoecimentos podem se dar, como sendo modosrestritivos de se experienciar essa exposigáo.Outro ponto importante que pode gerar equívoco é o entendimentode ser-com enquanto uma propriedade do ser-aí, como se fosse umacaracterística óntica da especie humana. Heidegger chama a atengáopara este fato do seguinte modo:

"se a frase: 'o ser-no-mundo do ser-aí se constituíessencialmente pelo ser-com', quisesse dizer isto, entao oser-com nao seria uma determinagao existencial que conviriaao ser-aí segundo o seu modo próprio de ser. Seria umapropriedade que, devido a ocorréncia dos outros, introduzir-se-ia a cada vez." (HEIDEGGER, 1998a, p. 172).

Somente a partir do entendimento da co-existéncia dos outrosenquanto constitutivo da existencia do ser-aí, pode-se compreenderque mesmo quando se encontra sozinho ele ainda é ser-com. Oestar-só aparece entáo como uma modalidade do ser-com-outro,como afirma:

"mesmo o estar-só do ser-aí é ser-com no mundo. Somentenum ser-com e para um ser-com é que o outro pode faltar. Oestar-só é um modo deficiente do ser-com e a suapossibilidade é a prova disso" (HEIDEGGER 1998a, p. 172).

O estar-só nao se refere táo somente ao isolamento, mas áexperiencia de solidáo, que pode aparecer também na companhia demuitos homens. É que o estar entre os outros pode acontecer comouma co-existéncia ao modo da estranheza e da indiferenga(HEIDEGGER, 1998a, p. 172). Assim, tanto a falta, como a ausencia,sao modos de presenga e nao seu oposto.

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4 Mundo Compartilhado e clínica em grupo

A clínica em grupo é urna modalidade de psicoterapia marcadaprincipalmente pela experiencia da convivencia. É pela presengadessa característica constitutiva que os modos de ser-com-o-outrotendem a se tornar visíveis mais rápidamente do que em outrasmodalidades psicoterápicas. Se, por um lado, isso pode parecerexcelente pela oportunidade que oferece de trabalho terapéutico, poroutro, justamente essa condigao de exposigao dos modos de ser-com,que se dá com menos controle, é que pode afastar a escolha ¡mediatapor esse tipo de psicoterapia.O entendimento de que o homem é um ente cujo modo de ser sóacontece no mundo compartilhado com outros, ou seja, de que elenada é separado do mundo que o constituí, implica que nao há urnaidentidade anterior ou exterior as experiencias relacionáis. A cadarelagáo, o ser-aí tem que se haver com seu modo de ser nela, aindaque, na maioria das vezes, de modo nao temático. Isto significa que,apesar desse modo da convivencia poder se repetir em varias outrasexperiencias relacionáis, nao há nada substancial que determine essarepetigáo. O que se pode observar é urna determinada tonalidadeafetiva que abre aquele modo de ser, repetidamente, e para queoutro modo possa se manifestar é preciso urna modificagáo daquelatonalidade.Na convivencia em grupo, o esforgo em sustentar um específico modode ser, ou seja, urna identidade estável, diante de tantasconvocagóes relacionáis, se torna geralmente maior do que numencontró individual, urna forma radical desta dificuldade, em que oesforgo se torna insuportável, é a chamada "fobia social". Em umencontró psicoterapéutico individual, a possibilidade do cliente seproteger e controlar a exposigao é maior, pois, parte-se, inicialmente,de temas escolhidos por ele. É mais fácil desviar ou adiar o "poderser tocado". No grupo, nao. Ninguém sabe qual assunto será tratado,nem como cada um será afetado e corresponderá a ele. Tanto osparticipantes, quanto o terapeuta tém que lidar com as diversassolicitagoes identitarias que ocorrem, sem que haja a possibilidade decontrolar o modo de corresponder a elas. No entanto, é justamentepor essa diversidade que aparece e evidencia o quanto o ser-aí estáem jogo no existir, que a psicoterapia grupal alcanga possibilidadesterapéuticas importantes. Estar em grupo pode intensificar o risco deexposigao de nosso ser-aí, pois há mais situagóes de atrito quedemandam posicionamentos. Mesmo quando algum participanteescolhe estar de modo indiferente na sessáo, isso, frequentemente,leva o grupo a fazer provocagóes que acabam revelando a indiferengacomo um modo de tocar e ser tocado, de ser-com-o-outro, que oparticipante pode reconhecer em outras situagóes semelhantes doseu cotidiano.

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Depois de algum tempo de convivencia com o grupo, a maioria dosparticipantes desenvolve a experiencia de pertencimento ao mesmo.Esse clima de familiaridade, que favorece o aprofundamento dasrelagoes estabelecidas, diminuí o desconforto da tensáo que se dápelo esforgo de conciliar tantas identidades. O tempo de convivenciaoferece a possibilidade dos participantes criarem identidadescorrespondentes áquele grupo. Sao modos de ser-com que serepetem, se estabilizam, permitindo um certo descanso quanto a terque controlar atentamente o modo de se relacionar com aquelaspessoas. É possível que seja exatamente por isso que a entrada deum membro novo seja desconfortável, pois obriga o grupo a ter quese haver com essa identidade já estabelecida. Há grupos que podemlidar com o desconforto de maneira hostil ou no extremo oposto, demodo excessivamente acolhedor e permissivo. Vencer esse estadoinercial é importante para que nao se cristalizem determinadosmodos de ser-com no grupo, o que traria restrigáo da mobilidadeexistencial. Assim, ao invés do grupo ser urna instancia propiciadorade transformagóes, tornar-se-ia impeditivo de qualquer movimento,em nome da manutengáo do próprio grupo.Esse tempo de familiarizagáo, que, como dito ácima, favorece oestabelecimento de determinadas identidades estáveis no grupo, é oque, muitas vezes, motiva o próprio grupo a diminuir o contato comoutros espagos de convivencia. Pois, com frequéncia, torna-se urnatarefa pesada para o grupo ter que conciliar identidades diversas, ou,para dizer em urna linguagem fenomenológica, manter-se abertopara diferentes possibilidades de ser. Se isso ocorre prematuramente,antes que o grupo tenha essa tessitura um pouco mais estruturada, apossibilidade do grupo se romper é maior, por nao ter condigóes desuportar a tensáo que se instaura diante da necessidade decorresponder as demandas distintas e, as vezes, contraditórias, deespagos existenciais heterogéneos.Como veremos a seguir, Heidegger denominou como modos do"cuidado" (Sorge) a esses modos de convivencia cotidiana. Diferentedo entendimento do senso comum, em que o cuidado é assimilado áideia de zelo, atengáo, cautela etc, o cuidado precisa ser entendidoaqui ontologicamente, como condigáo de possibilidade para oaparecimento dos comportamentos ónticos, qualificadoscotidianamente de cuidadosos ou descuidados.

5 Cuidado

O ser-aí mantém com os outros entes, sejam intramundanos ou nao,urna relagáo de cuidado. Significa dizer que esse modo de ser do ser-aí, que é um modo de ser-no-mundo junto com os outros,caracteriza-se essencialmente por desvelar o sentido dos entes que

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vém ao seu encontró. Assim, o ser-aí está sempre numa relagáo decuidado, seja consigo mesmo, seja com os outros ou com as coisas,pois ser si mesmo nao é, senáo, realizar seus modos de ser-com.O desvelamento de sentidos, que é o próprio existir, pode se dar dedois modos, nao excludentes ou alternativos: o modo da "ocupagáo"(Besorgen), quando o ser-aí se encontra numa relagáo com os entescujo modo de ser é simplesmente dado, e o modo da "preocupagáo"(Fursorge), quando ele se encontra numa relagáo com entes cujomodo de ser é como o seu, ser-aí.A preocupagáo, que também deve ser entendida ontologicamente,pode se mostrar deficiente, o que caracteriza o modo mais comumque o ser-aí mantém junto aos outros, como afirma Heidegger:

"o ser por um outro, contra um outro, sem os outros, opassar ao lado um do outro, o nao sentir-se tocado pelosoutros sao modos possíveis de preocupagao. E precisamenteestes modos, de deficiencia e indiferenga, caracterizam aconvivencia cotidiana e mediana de um com outro." (1998a,p. 173).

Esses modos indiferentes de convivencia podem fácilmente sugerirque a relagáo do ser-aí com outros entes que sao dotados do mesmomodo de ser, possa se dar ao modo da ocupagáo. Heidegger noschama a atengáo de que embora possa parecer insignificante,ontologicamente a diferenga é essencial, pois lidar de modoindiferente com urna coisa é bem diferente de nao sentir-se tocadopor um ente da convivencia cotidiana. Aqui o que aparece comoessencial é que, para um ente cujo modo de ser está sempre emjogo, seu ser se expóe na convivencia de uns com os outros. O quenao ocorre com os entes intramundanos, cujo modo de ser já é dado,pois por nao serem constituidos pela compreensáo, nem se podedizer deles que sao indiferentes.A preocupagáo na sua modalidade positiva, transita entre duasposssibilidades: a preocupagáo substitutivo-dominadora eantepositivo-liberadora, podendo aparecer de ¡números modosmistos.No modo da preocupagáo substitutivo-dominadora, a convivencia semostra de urna maneira tal que o outro o substituí tomando-lhe olugar ñas ocupagóes cotidianas. Assim, este se retrai e só retornaquando a ocupagáo se Ihe é oferecida de modo pronto. Nessamodalidade de convivencia, aparece a dependencia como modo deser, e a dominagáo pode se dar de modo encoberto para o dominado,pois o dominio também pode acontecer de modo silencioso(HEIDEGGER, 1998a, p. 174). É um modo do cuidado que convida ádesoneragáo do peso da sua existencia de ambos os lados.Assumindo as ocupagóes alheias, há um desencarregar-se daspróprias, mas trazendo sensagáo de peso na existencia. Na outra

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ponta, em que se permite que o outro o substitua, há também umdesencarregar-se, mas que pode remeter o ser-aí para um outro tipode peso, o tedio.Interessante notar que esse modo do cuidado, substitutivo-dominador, na clínica, aparece como sendo o pedido mais comum dogrupo ao terapeuta: que o grupo seja tutelado por ele.Paradoxalmente, sao exatamente desses modos relacionáis,frequentes no seu cotidiano, dos quais desejam se afastar oumodificar.Principalmente no inicio, quando o grupo ainda está se apropriandodo processo psicoterápico, é frequente que os olhares dosparticipantes estejam sempre dirigidos ao terapeuta, na espera daresposta final. E essa resposta pode ser ouvida de muitos modosalém do verbal, pois quem nao quer a aprovagáo do olhar doterapeuta? Conquistar autonomía num grupo psicoterapéutico nao étarefa fácil nao. Suportar o desconforto da solidáo das decisóesdiferentes, nao esperadas, exige firmeza.No outro extremo, que Heidegger caracteriza como sendoantepositivo-liberadora, a convivencia se mostra mais livre, namedida em que o outro se antepóe e, nao, substituí o ser-aí. Poranteposigáo deve-se entender que o outro procura colocar-se de ummodo tal que a convivencia libere o ser-aí na sua existencia. Aqui naoocorre retraimento, muito pelo contrario, há um convite paraampliagáo das possibilidades de existir, para assumir a própriaexistencia.No que diz respeito á clínica, seja na modalidade individual ou emgrupo, pode-se dizer que o vínculo psicoterapéutico deve seaproximar do modo de convivencia antepositiva-liberadora, sem, noentanto, excluir a possibilidade da relagáo se dar ao modo daconvivencia substitutiva. É preciso nao esquecer que há urnatendencia, sempre presente, da convivencia se mostrar substitutiva.Desse modo o psicoterapeuta mantém-se atento para que o vínculonao se fixe numa única maneira de se dar a fim de que nessamobilidade, a convivencia se estabelega do modo mais livre possível.Na clínica em grupo ainda há urna especificidade importante docuidado. É que o grupo tende a assumir urna postura conselheira,tutelar, diante do sofrimento do outro, próxima a grupos de ajudamutua. Nada contra esse posicionamento, que é necessário emgrupos dessa natureza. Mas um grupo de psicoterapia guarda urnadiferenciagáo importante de ser apontada. Em grupos de ajudamutua, há um comportamento esperado a ser alcangado pelosmembros do grupo, e a atmosfera de acolhimento é predominantenos encontros. Devido a isso, sao bem vindas sugestóes para quehaja modificagáo de comportamento, pois esse é seu objetivo e omotivo que mantém os participantes naquele grupo.

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Na psicoterapia de grupo, embora haja momentos em que a troca deinformagoes sobre a resolugao de questoes cotidianas seja inevitavele por vezes até favorável, essa nao deve ser a tónica do grupo porcomprometer sua característica essencial de espago de negatividade.Embora seja tentador, é necessário que o grupo nao descanse noconforto de respostas prontas as questoes que eles trazem.Necessário porque é justamente desse conforto que já nao oferecemais diregáo, que os adoecimentos silenciosamente emergem.Um caminho possível é que a cada sugestáo dada por algumparticipante, o terapeuta possa remeté-la de volta investigando aintengáo de quem a ofereceu, ou perguntando a quem recebe comové e como se senté diante da mesma, enfim, o que importa é mantero fio da sessáo de tal modo que os participantes possam questionarexatamente esses modos cotidianos, sedimentados, a fim de acolhero que Ihe for mais próprio, e, nao, o que se espera que ele reproduza.Dessa maneira, o terapeuta mais do que nunca precisa estar atentopara que ele também nao se deixe levar por orientagóes de mundoque, ao invés de ensejar apropriagáo, encubra mais intensamente ossentidos destas experiencias.

6 O Cotidiano Psicoterápico - diálogo

É comum se ouvir que "é bom participar de um grupo", "trabalhar emgrupo", que "os grupos sao terapéuticos para as pessoas". Saoafirmativas que partem de um entendimento já tomado comoinquestionável, de uma certa positividade previa, de que todosprecisam aprender a conviver. Sem negar o valor que umaconvivencia grupal traz, ela ainda nao é o bastante para justificar ousustentar a necessidade de se procurar uma psicoterapia em grupo.Há algo que caracteriza um encontró psicoterapéutico e que odiferencia dos encontros comuns com os outros no cotidiano. Comoponto de partida desta diferenga, temos as tonalidades afetivas quepredominam ñas sessóes.Para Heidegger, a disposigáo afetiva (Befindlichkeit) faz parte daconstituigáo ontológica do modo de ser do homem: a existencia. Porisso, o existir encontra-se sempre afinado numa determinadatonalidade afetiva (Stimmung). Se "tonalidades afetivas sao jeitosfundamentáis nos quais nos encontramos de um modo ou de outro nomundo" (HEIDEGGER, 2003, p. 81), quais as que aparecem maisfrequentemente na psicoterapia? Certamente nao sao apenas ascotidianas, já que quem se dirige para a psicoterapia encontra-se emgeral em um clima de desconforto existencial. É justamente pelaquebra dos modos cotidianos de conviver que a psicoterapia aparececomo espago de cuidado. Portanto, aquele que procura umpsicoterapeuta, precisa vencer certa inercia, que faz parte dos modos

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costumeiros de se lidar com as dores existenciais, e esperar dapsicoterapia a possibilidade de sentir algo diferente do queexperimenta.No horizonte da produtividade, da técnica, na qual nos encontramos,o desconforto pode se manifestar como vergonha, como fracasso dasestrategias de cuidar de si, urna vez que o "estar bem" é a atmosferaidealizada a ser alcangada e passível de ser mantida pelo controleindividual. Nessa perspectiva, a psicoterapia pode justamente atenderá convocagáo de habitar o lugar de estrategia de manutengáo dobem-estar. Segundo Heidegger (2002), nao nos é possível escapar aomundo técnico no qual estamos imersos, mas podemos nosinterrogar acerca do mesmo. Sendo assim, á psicoterapia deinspiragáo fenomenológica cabera o esforgo de manter a tensáodiante dos modos, já sedimentados, de corresponder a esses apelos afim de abrir modos singulares que possam transformar espagosexistenciais de convivencia.Outra caracterizagáo importante diz respeito ao diálogo terapéuticopropriamente dito, que em muito se diferencia dos diálogoscotidianos. Nestes, nossa atengáo se dirige para o conteúdo do quese fala e esses conteúdos sao tomados como fatos em si, objetivos,como que independente de quem fala. E os diversos modos deinteragir se dáo a partir desses conteúdos que tém a missáo deinformar o que cada um quer dizer para o outro, partindo-se do sensocomum. Nessa perspectiva toma-se o mundo como algo já dado eprevio á experiencia, e quem dialoga sao sujeitos em si mesmos. Aesse posicionamento Husserl (1989) denomina de atitude natural, naqual nao se leva em conta que o sentido da existencia está em jogonaquela experiencia porque ela é ser-no-mundo, portanto jamáispodendo ser tomada como algo separado do mundo. Para que odiálogo terapéutico em grupo nao se torne urna mera conversa, énecessário cuidado. Isso nao significa que a terapia se oponha aodiálogo cotidiano, pois é desde que se parte, mas com urna escutaespecífica, atenta.No diálogo psicoterápico na abordagem fenomenológica, a atitudenao poderia deixar de ser fenomenológica. Essa atitude implica emprimeiro lugar tomar o mundo como fenómeno. Assim, o conteúdoque é falado ñas sessóes nao é fato, simples acontecimento. Saoexperiencias dotadas de sentido, e, portanto, necessitam de urnaaproximagáo tal que permitam o desvelamento desses sentidos quenao sao captados pelo olhar ¡mediato, por se mostrarem de modoopaco na experiencia cotidiana.Explicitando um pouco mais, o que está velado é o horizonte, ocontexto, que abre urna certa constituigáo de sentido da experiencia.Assim, neste diálogo terapéutico, ouve-se "mais" do que o sensocomum, pois se compreende o que é falado a partir do contexto desentido. Significa identificar o contexto no qual aquela experiencia

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emerge enquanto fenómeno. Na medida em que esse contexto étecido pelo mundo, o que vem á luz sao, de inicio e na maior partedas vezes, orientagóes sedimentadas, ou seja, modos impessoais decorrespondencia aos apelos do mundo. Portanto, a partir dessedesvelamento de sentidos, o diálogo terapéutico dirigir-se-á atematizagáo dos mesmos. O que se tematiza em primeiro lugar, é oreconhecimento do quanto essas orientagóes sedimentadasdeterminam a experiencia do ser-aí. A partir disso é possível surgiralgum espago de singularizagáo existencial. Este movimento podeconvidar o ser-aí a urna apropriagáo de sua existencia, que, de inicioe na maior parte das vezes, se mostra distraída. Pode-se dizer que oser-aí vive adormecido no seu existir e o diálogo terapéutico podeacordar um "quem" que dorme.Sendo assim, para a psicoterapia em grupo, junto ao que é dito, asessáo se ocupa dos modos da fala, dos modos de agir, dos modos deescutar, enfim, dos modos de ser em relagao que os participantestravam entre si e com o terapeuta. Yalom denomina esse movimentode "foco no processo" (YALOM, 2008, p. 126), onde o terapeuta seocupa de explicitar, a partir do relato de alguém, o que esse modo dedizer revela sobre esse modo de encontrar o outro. Também seocupa de observar e trabalhar com o grupo o impacto dessa falasobre eles: como se sentem? O que diz de voces o modo comoescutam essa fala?E além de focar esses dois movimentos (como fala - como escuta), oterapeuta ainda volta sua atengáo para a sequéncia das falas dogrupo, na qual se revela nao só o modo relacional, mas desvela-se osentido dessas falas em grupo que emerge daquela experienciaespecifica ("o qué contamos hoje no grupo?"). Essas questóes saoapenas possíveis de serem levantadas porque o caráter do vínculoque é tecido entre os participantes do grupo é terapéutico, comodesenvolveremos a seguir.

7 A Questao do Vínculo

Na clínica psicológica na abordagem fenomenológico-existencial, arelagao terapéutica assume papel principal, pois é nesta onde todo oprocesso se dá. No que diz respeito á clínica em grupo, além darelagao com o terapeuta, há que se dedicar atengáo simultánea paraa relagao que ocorre entre os participantes do grupo, sem o qual essainvestigagáo perdería seu propósito.Mas além das relagoes que ocorrem no processo psicoterapéuticopropriamente dito, também está presente o modo de se relacionarque os participantes travam com as pessoas de sua convivenciacotidiana e essas relagoes nao guardam entre si nenhuma diferengaquanto ao grau de relevancia no processo. Ou seja, as relagoes da

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infancia, ou as relagóes atuais, mas "externas" ao grupo, nao saotomadas como sendo as principáis, ou causáis em relagao as dogrupo. Sendo assim, numa psicoterapia de grupo de inspiragáofenomenológica, nao faz sentido tomar as relagóes que ocorrem nogrupo como sendo "projegóes" das relagóes outras que osparticipantes mantenham além ou anteriormente ao grupo. Asrepetigóes que possam ocorrer nos modos de ser em relagao com osoutros, e que sejam observadas pelo participante ou pelo grupo, saoassim entendidas como um "estar amarrado numa determinadaafinagáo" (HEIDEGGER, 2001, p. 186) que só permite que o ser-aíveja aqueles determinados fenómenos, e nao outros. Aquilo para oqual ele está atento, que é o que se repete, revela um modo de ser, eencobre outros que só poderáo ser revelados quando o ser-aí seencontrar em urna outra tonalidade afetiva. Em diálogos com Boss,quando este pergunta sobre o fenómeno da transferencia que é táoconhecido na psicanálise, Heidegger afirma que:

"nada precisa ser transferido, pois em cada caso, a afinagáoa partir da qual e de acordó com a qual tudo que vem aoencontró só pode mostrar-se dessa maneira, já está sempreai. Dentro de cada afinagáo também urna pessoa que nosencontra mostra-se para nos de acordó com esta afinagáo"(HEIDEGGER, 2001, p. 187).

O trabalho terapéutico, nesta perspectiva, assume entáo contornosdiferentes pela concepgao de relacionalidade de onde ele parte, pois acompreensáo deste fenómeno, por apresentar variagóes, oferece¡números caminhos para urna prática psicoterápica. Alguns autoresiráo auxiliar na explicitagao da especificidade desse vínculo na clínicagrupal, como será mostrado a seguir.Para Cohn (2007, p. 55), o terapeuta de grupo é um membro dogrupo. Essa afirmativa aponta urna diferenga significativa daabordagem fenomenológica na clínica grupal, em relagao aosprocessos psicoterapéuticos grupais tradicionais. Diz respeito áinclusáo do psicoterapeuta no processo, ou seja, este jamáis podeestar fora ou isento do que se passa no grupo. E nao poderia ser deoutro modo, pois para a fenomenología, qualquer busca deneutralidade nao é possível. Esta impossibilidade se deve ao fato deque o ser-aí é sempre em situagáo, nao havendo o "fora" déla. Se oser-aí é ser-no-mundo, sempre em relagao com os outros, com ascoisas, enfim, está sempre envolvido em tudo o que Ihe acontece, eleé constituido e transformado a partir de suas relagóes. Sendo assimnao há um estado anterior as relagóes, mas sempre um a partir de,na qual se constituem modos diferentes de estar em relagao.Na situagáo psicoterápica, ao fazer urna observagáo no grupo, oterapeuta parte sempre de alguma tonalidade afetiva, que é urna co-respondéncia ao clima grupal. Nao há como ele se deslocar para um

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"ponto zero", isento, de onde ele poderia emitir suas percepgoes, poiselas surgem do contexto ao qual o terapeuta também o constituí. Osimples fato de estar presente ao grupo, já modifica sua percepgáo evice-versa, pois o grupo também se modifica tanto com a ausenciaquanto com a presenga de quem quer que seja na sessao.Spinelli também aponta para a importancia do modo da relagáoterapeuta-paciente como sendo um diferenciador de outrasabordagens:

"Diferente das outras abordagens na qual o foco e interesseestao no mundo subjetivo do cliente, na abordagemexistencial reside na inter-relagao entre terapeuta e clientecomo foco da descrigao da visao de mundo deste. Nestadiferenga o terapeuta existencial nao pode excluir suapresenga do processo nem estar preso a um modo particularde estar presente" (SPINELLI, 2007, p. 103).

O autor Fiorini também compartilha essa proposta, mas defende aideia de que essa inclusáo do terapeuta como membro do grupo, sedé de modo seletivo, já que sua participagáo no grupo tem urnafinalidade diferenciada dos demais:

"Questionamos, nesse sentido, as dissociagoes tradicionaisentre a técnica e a influencia pessoal do terapeuta,entendendo que a inclusáo seletiva do terapeuta comopessoa converte-se em componente decisivo da técnicapsicoterapéutica" (FIORINI, 1978, p. 23).

Goldberg (1973) afirma que na congruencia empatica entre pacientee terapeuta, sem o qual a terapia nao pode ocorrer, o terapeutapartilha da experiencia do paciente nao como se fosse sua própria,mas como sua mesmo. Contudo, que isso se dé sem que ele seperca de si mesmo. Além disso, o autor acentúa que o fato de que oterapeuta possa participar como um membro, mostra ao grupo queele é capaz de cometer erros, de apresentar fraquezas, mas que,sobretudo, sua presenga nao é urna representagáo, um personageminvulnerável. Portanto nao cabe a ele nenhum papel superior aogrupo, de máximo saber, de julgamento, ou de observagáo passiva.

8 Vínculo entre os membros do Grupo

Quem olha, olha de algum lugar, para um outro lugar.Sempre langado numa certa diregáo, o olhar é situado, se dá numacerta perspectiva, jamáis acontece na neutralidade. Mesmo quandosomos observadores, esse lugar de onde observamos nao é vazio desentido. É pleno de referencias, experiencias. Podemos até buscar um

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olhar que nao seja julgador, mas nao há a possibilidade de ser comoum ponto fora da experiencia.E ao mesmo tempo em que olhamos, somos olhados. E nesseencontró sem precedencia, constituímos e somos constituidos pelosoutros. Esse outro, tanto pode ser imaginado como tocado, mas naohá olhar sem a presenga emocionada desses tantos outros que nosacompanham. Assim, cada um de nos é um olhar langado no mundo,atravessado e construido por este, por sermos também visíveis aomundo.Essa condigáo de visibilidade, que nenhum de nos pode se apartar,transcende o órgáo da visáo, pois também olhamos através dapalavra, do pensamento, dos gestos de nosso corpo inteiro. E nosdiversos sentidos que um olhar pode se manifestar, como o deacolhimento, de vigilancia, de advertencia, de protegáo, ele aindapode acontecer ao modo da tristeza, da alegría, do alivio, daindiferenga. Ou seja, é modalizado, colorido afetivamente, revelandoo modo de ser do ser-aí. Fechar os olhos para nao ver torna-seassim, o modo de olhar que está presente naquele contato.Fechamento, negagáo, exclusáo, é também um modo de olhar. E essemodo diz de nos mesmos, diz do modo como somos afetados pelomundo e como nos relacionamos com os outros. É que ver é olharpara tomar conhecimento, e muitas vezes é justamente disto quedesviamos o olhar, pois, ver confere existencia.O sentido de reconhecimento que um olhar pode conferir, abre apossibilidade de mudanga numa relagáo, pois é um olhar de respeito(a palavra respeito vem de re = de novo e spicere = olhar,considerar). Considerar pode ser entendido entáo, como olhar algumacoisa na sua relagáo com o contexto mais ampio.Sentir-se desrespeitado, entáo, é o mesmo que sentir-se nao visto, ese nao sou visto a sensagáo é de nao existencia. E sendo assim,como pode ser reconhecido? Diante dessa falta de reconhecimento,dessa sensagáo de exclusáo, muitas vezes ser violento (latimviolentia = tratar com forga contra o direito alheio) é urna daspossibilidades para sair do anonimato, da negagáo do olhar do outro.Quem sabe assim pode-se garantir que existe, mesmo que seja aomodo do sofrimento?Olhar para tomar conhecimento. Reconhecimento, conhecer de novoe a cada vez. Para ver de um outro modo e assim poder descobrir oque antes ainda nao havia sido possível ver. Nao é que já está lá nooutro ou em mim mesmo o que me falta ver. Mas é exatamente nomodo de olhar que se abre o novo de mim e do outro. Nasce desteencontró, desta abertura, desta disponibilidade. Olhar para ver. Vero que se mostra, tal como é.Ricoeur (2009) aponta o respeito como sendo o que estabelece arelagáo fundamental da alteridade. O autor sugere que ao invés daempatia, que Husserl (2006) propóe como sendo foco central da

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intersubjetividade, o respeito seja mais fundamental que ela, urnavez que a empatia (Einfuhlung) é por demais contaminada por"tendencias románticas", o que dificultaría a compreensáo dedeterminados sentimentos como, por exemplo, o odio, ou aindiferenga. Por outro lado, parece que o autor, por nao distinguirclaramente a diferenga entre empatia e simpatía, sitúa o respeitocomo sua oposigáo:

"O respeito aprofunda a distancia fenomenológica entre osseres, pondo o outro ao abrigo das invasoes da minhasensibilidade indiscreta: a simpatía toca e devora o coragao,o respeito observa de longe" (RICOEUR, 2009, p. 323).

No entanto, é o respeito que oferece as condigóes para que o odiotanto quanto a alegría possa aparecer. O odio seria assim, urnamodalidade do respeito, um "respeito despeitado" (RICOEUR, 2009,p. 325).Para o autor, os sentimentos sao manifestagóes sentidas dosvínculos2, e permite que o ser-aí tenha pertenga no mundo:"enquanto a representagáo nos opóe aos objetos, o sentimento atestaa nossa afinidade, coadequagáo" (RICOEUR, 2009, p. 295). Ricoeurdenomina essa ligagáo do ser-aí com o mundo de vínculo conatural, eeste acontece de modo silencioso (RICOEUR, 2009, p. 296).Interessante esse termo silencioso, pois esclarece que a tonalidadeafetiva nao se dá pela escolha voluntaria do ser-aí, muito pelocontrario, é silenciosamente que o ser-aí, que é de abertura para oser, se encontra já desde sempre em relagáo com os entes nomundo.Partindo dessa nogáo do respeito como sendo o fundamento dosvínculos, no que diz respeito aos vínculos entre os membros dogrupo, nao é diferente. O modo como cada participante se manifestano grupo, "diz" do seu modo de se vincular no mundo. Mas há umaspecto importante, senáo essencial, quanto a esses vínculos: é seucaráter que se anuncia antes mesmo dos participantes seencontrarem pela primeira vez.O vínculo psicoterapéutico já se inicia com seu caráter definido: éterapéutico. E quando os participantes chegam á psicoterapia, sedeparam com um grupo que foi estabelecido alheio á sua escolha.Nao é que sejam obrigados a se relacionar, pois todos sao livres paraficar ou sair do grupo, mas se entregar ou restringir-se nesses lagos ésempre o que estará em jogo ñas sessóes. E, nao raro, esperam atutela do terapeuta, de modo que este possa dar a regra para esselangar-se, como se o modo de relacionar-se nao constituísse apsicoterapia em grupo propriamente dita.Apesar do caráter terapéutico do grupo ser pressuposto por todos, teresta mera informagáo nao é suficiente para dar conta dos fenómenos

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vinculares. Faz parte do processo grupal o caráter de ter que serreconquistado a cada momento, pois urna relagáo terapéutica nao édada previamente á experiencia do estar junto. Entender, saber,conscientizar se mostram sempre restritos diante dos fenómenosrelacionáis que estáo presentes em urna sessáo. É preciso urnaexperiencia própria das tonalidades afetivas em jogo. Sendo assim,ao longo de toda a vida do grupo, essa é urna questáo que jamáis seesgota, porque esse vínculo terapéutico se afasta e se aproxima otempo todo, nos diversos modos vinculares possíveis. E é nesseaproximar e afastar que a terapia se desenrola, pois é o que permiteexperienciar a identidade e a diferenga.Devido a essas características do vínculo psicoterápico, é que todasas questóes que surgem na sessáo atravessam o grupo por inteiro, etocam a cada um de um jeito peculiar, inclusive o terapeuta.Podemos investigar como cada um foi tocado por aquele tema, o quefaz a partir disto, o que pensa sobre isto, mas há que se ter cuidadopara nao hipostasiar as possibilidades de ser que assim se mostramcomo algo interior, previo ao ser-no-mundo-com. Pois, é naquelaexperiencia que aquelas questóes surgiram. O fato de que certomodo de se deixar afetar se repita constantemente, seja conhecido efamiliar, nao significa que se imponha por determinagóes "internas".Tal compreensáo aliena, mais do que leva a urna apropriagáo domodo de ser. É com aquelas pessoas, por exemplo, que o amorexigente aparece, pedindo exclusividade, sigilo absoluto. É com elasque o medo de se arriscar se levanta, pedindo asseguramento. Se écom essas pessoas nessas situagóes, torna-se necessário partirmosdessas relagóes especificas, situadas, para nos apropriarmos dosmodos como correspondemos a elas e das possibilidades que, assim,realizamos e as quais, muitas vezes, nos reduzimos. Os participantesdo grupo nao sao meros depositarios de projegóes das relagóesexternas a ele. Muito pelo contrario, é na convivencia com estes quese abre a chance de poder olhar os modos vinculares, que sao modosde ser no mundo junto com outros.Por isso, a cada sessáo o modo como se configura o grupo dependede quem está presente nela. O clima se constituí inclusive a partirdessa presenga que se diferencia constantemente. Geralmente, naoé muito claro para os participantes porque determinado assunto foipossível de ser trabalhado numa sessáo especifica. Torna-senecessário levar em conta quem está ali, constituindo o grupo,naquele momento. A atmosfera compartilhada abre condigóes paracertos estados afetivos e afasta outros, permitindo que assuntosespecíficos possam emergir e nao outros. Há sessóes em que aproximidade afetiva é táo intensa que os participantes nao precisamfalar muito, e algo se dá no encontró que faz com que todos sesintam compreendidos e pertencentes. Nao quer dizer que osproblemas estejam "resolvidos", mas que diante deles os

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participantes se sentem "sobre seus próprios pés". Assim como háoutras sessóes em que o clima é moroso, tedioso, ñas quais o grupose senté como que diante de urna pedreira irremovível, por mais quese tente a aproximagáo, tudo é absorvido por um falatório inocuo.As possibilidades descritas aqui nao devem ser tomadas comoestruturas universais das dinámicas de grupo. Assim como fazerterapia individual nao é garantía de aprofundamento, também nao sedeve atribuir á terapia em grupo garantía de melhor socializagáo eaprendizagem de convivencia. Os dispositivos terapéuticos apenasconvidam á apropriagáo e á desnaturalizagáo dos modos cotidianos esedimentados de corresponder ao mundo, ensejando, assim, oexercício da livre abertura a essas mesmas e a outras possibilidadesde ser. Procuramos apenas mostrar as especificidades do dispositivogrupal, descrevendo algumas de suas características e pensandosobre o seu sentido a partir de urna compreensáo fenomenológico-existencial do homem como ser-aí. Embora, ontologicamente, nao seesteja menos com-o-outro quando se está empíricamente ¡solado, doque quando se está em multidáo, a psicoterapia em grupo pode semostrar como um espago onticamente privilegiado para a apropriagáodos modos de ser-com-o-outro que constituem, essencialmente, onosso ser-si-mesmo.

9 Consideragóes fináis

A modalidade grupo requer que seu lugar ñas práticas clínicas sejaconstantemente reconfigurado por se tratar de urna estrategia quepode perder-se de sua própria finalidade, quando atende ásdemandas de produtividade técnica de assistir um maior número depessoas no menor tempo possível. A abordagem fenomenológico-existencial, atenta ao que é mais próprio á existencia, a liberdade,propóe que a modalidade em grupo seja atualmente um dispositivopara refletir sobre os modos impessoais de se corresponder ásdemandas contemporáneas. Refletir nao é negar nem se opor a essasdemandas, mas se manter despertó para tomar posigáo diante délasde modo mais singular. Entendemos que o trabalho psicoterapéuticoem grupo pode oferecer oportunidades privilegiadas para esse tipo deexperiencia, por se configurar como um campo onde os modos deconvivencia tendem a se evidenciar mais e onde as possibilidades decontrole e produtividade por parte do especialista tendem a sermenores, pelo alto grau de imprevisibilidade que urna sessáo emgrupo apresenta, se comparada a urna sessáo individual. Nao foi oobjetivo deste trabalho fazer urna comparagáo valorativa ouprivilegiar urna modalidade psicoterapéutica em detrimento da outra,mas apenas considerar os sentidos das contribuigoes específicas quea clínica em grupo pode trazer para as práticas psicológicas.

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Referencias

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Enderece» para correspondenciaAna Tereza CamasmiePrograma de Pós-Graduagao em Psicología da Universidade Federal Fluminense -Campus do Gragoatá - Rúa Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n, bloco O,sala 214, CEP: 24210-201, Gragoatá, Niterói, RJ, BrasilEnderego eletrónico: [email protected]

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Ana Tereza Camasmie, Roberto Novaes de SáReflexoes fenomenologico-existenciais para a clínica psicológica em grupo

Roberto Novaes de SáPrograma de Pós-Graduagao em Psicología da Universidade Federal Fluminense -Campus do Gragoatá - Rúa Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n, bloco O,sala 214, CEP: 24210-201, Gragoatá, Niterói, RJ, BrasilEnderego eletrónico: roberto [email protected]

Recebidoem: 09/11/2011Reformulado em: 14/07/2012Aceito para publicagao em: 24/07/2012Acó m pan ha mentó do processo editorial: Ana Maria López Calvo de Feijoo

Notas*Doutoranda em Psicología - Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói/RJ,Brasil; Mestre em Filosofía - PUC, Sao Paulo/SP, Brasil; Especialista em PsicologíaClínica - PUC, Belo Horizonte/MG, Brasil; Psicóloga - UERJ, Rio de Janeiro/RJ,Brasil.**Professor Titular do Programa de Pos Graduagao em Psicología daUFF, Niterói/RJ, Brasil.*A expressao alema mitdasein para a qual a tradugao brasileira utilizou o termo co-presenga, será por nos traduzida por co-existéncia.2A fenomenología que Ricoeur desenvolve sobre os sentimentos, aproxima-se daconcepgao heideggeriana sobre a tonalidade afetiva, como aparece no seguintetrecho: "Mas como essas qualidades (as qualidades sentidas) nao sao objetos emface de um sujeito, mas a expressao intencional de um vínculo indiviso com omundo, o sentimento vai aparecer ao mesmo tempo como um colorido de alma,como urna afecgao" (RICOEUR, 2009, p. 296).

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ARTIGOS

A clínica psicológica em urna inspiracáofenomenológica - hermenéutica

The psychological clinic influenced by phenomenologyhermeneutic

Ana María López Calvo de Feijoo*Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMONa tentativa de apresentar urna proposta de psicología clínica diferente dosmodelos de psicoterapia que se pautam ñas ciencias naturais, seraoapresentados argumentos em defesa de urna perspectiva clínica empsicología com base na fenomenología hermenéutica tal como desenvolvidapor Martin Heidegger. Para tanto, serao consideradas: 1- a indissociabilidadee nao a dicotomía homem e mundo; 2- o caráter epocal em que aexistencia se dá em oposigao ao caráter ahistórico da constituigao dohomem. 3- a técnica nao mais como um meio para atingir um fim, mascomo horizonte histórico de determinagao das crises existenciais. Por fim,mostrará que a clínica que tem como base a existencia consiste apenas emurna tentativa de pensar a psicología como um espago de tematizagao dasquestoes trazidas pelo analisando, para quem as transformagoes existenciaisapontam como possibilidades e nao como necessidades.Palavras-chave: Fenomenología-hermenéutica; Heidegger; existencia;psicología clínica.

ABSTRACTIn an attempt to present a proposal for a clinical psychology of differentmodels of psychotherapy that are implemented in natural sciences, ourintention is to bring arguments in defense of a perspective of clinicalpsychology based on phenomenological hermeneutics as developed byMartin Heidegger. To do so, will be: 1-the inseparability and not thedichotomy man and world; 2-the epochal character in that existence is inopposition to the not history of the constitution of man's character. 3-Tothink the technique no longer as a means to an end, but as a historicalhorizon in that existential crisis happen. Finally, it will show that the clinicwhich is based on the existence consists only in an attempt to thinkpsychology as an área of thematization of the issues brought by analyzing,for whom are possible and necessary the existential transformations.Keywords: Phenomenology hermeneutics; Heidegger; Existential; clinicalpsychology.

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicología Rio de Janeiro v. 12 n. 3 p. 973-986 2012

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Ana Maria López Calvo de FeijooA clínica psicológica em urna inspiragao fenomenológica - hermenéutica

1 Introdugao

Tentaremos, no desenrolar deste trabalho, inscrever outraspossibilidades na psicología clínica que se encontram obscurecidaspela absolutizagáo do psiquismo tal como tomado pela psicología combase ñas ciencias da natureza. Nessa psicología, o psiquismo éconsiderado urna subjetividade passível de objetivagáo - sujeito - edescrito pelas filosofías da subjetividade, e pela psicología aplicadaem geral, como que encarnando em sua interioridade os traumas, asrupturas e os conflitos, bem como a possibilidade de superá-los como autoconhecimento possibilitado pela psicoterapia.Para atender as determinagoes das ciencias naturais na elaboragáo deurna prática clínica, é preciso que se cumpra, no mínimo, a exigenciade elaboragáo de urna teoría que parta da ideia de urna interioridadepsíquica passível de ser apreendida em seu aspecto universalessencial. O psiquismo humano, entáo, deve ser passível deobjetivagáo e da consequente definigáo, para que assim se encontremseus sentidos e determinagóes. E para que a prática psicoterápicaefetivamente se dé, precisamos dispor de meios e procedimentos quepermitam a autorrevelagáo libertadora desse psiquismo. Este, nostermos das ciencias naturais, é, na maioria das vezes, desconhecidopara si mesmo. Sá e Mattar (2008) acrescentam que esse modocomo a psicoterapia se constituiu foi fortemente influenciado pelaperspectiva funcionalista amplamente divulgada no final do séculoXIX:

Apesar da heterogeneidade e da diversidade de práticas queencontramos no cenário da Psicología Clínica, permaneceainda hoje, embora muitas vezes de forma nao tematizada, aideia da psicoterapia como psicología aplicada, visando áprodugao de efeitos determinados, dentro de certas margensde controle e previsibilidade. (SÁ; MATTAR, 2008, p. 191)

Em 1890, William James assume que pretende fazer da psicologíaurna ciencia natural, tal como se observa mais tarde em seu artigointitulado "Apelo para que a psicología seja urna ciencia natural", noqual ele afirma:

O tipo de psicología que poderla curar um caso de melancolíaou afastar urna insana desilusao crónica certamente deveriapreponderar o mais seráfico vislumbrar da natureza da alma.E esse é o tipo de psicología que pessoas pouco ou nadaafeitas á suprema racionalidade - a saber, biólogos,psiquiatras e pesquisadores psíquicos - estao certamentetendendo a ocasionar, quer os auxiliemos ou nao. (JAMES,2009, p. 324)

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Ana Maria López Calvo de FeijooA clínica psicológica em urna inspiragao fenomenológica - hermenéutica

James, ainda defendendo o caráter pragmático da psicología, afirmao seguinte, em Principies of Psychoiogy: "os mecanismos psicológicosexistem porque sao úteis e auxiliam os individuos a sobreviver erealizar atividades importantes para a adaptagáo as exigencias domeio" (JAMES apud TOURINHO, 2009, p. 30). Nesse sentido, opragmatismo encontra-se presente urna vez que esta perspectivaavalia o psiquismo humano como constituido por um mecanismo quevisa sempre a consequéncias práticas, logo a determinagáo psíquicase constituí teológicamente. Importa, entáo, ao investigador dofenómeno psíquico, conhecer as operagoes das atividades mentáis aobuscar as metas futuras e a escolha dos meios para alcangá-las emcircunstancias reais. O pensar, o sentir e os motivos váopaulatinamente se modelando para atender as exigencias utilitariasadvindas do mundo, até se adaptarem ao meio e se tornaremautónomos. Com o conhecimento dessas fungóes do psiquismo porparte dos psicólogos modernos, poderiam eles prever e controlar asagóes humanas e, assim, ensinar aos homens como deveriam agir demodo a resolver seus problemas. Em síntese, a constituigáo dasteorías e práticas em psicología, inspirada nos criterios das cienciasnaturais, tal como elaborada por William James, dentre outros,considera a substancialidade do psiquismo e suas determinagóespassíveis de serem apreendidas empíricamente. Daí caber aoestudioso da psicología conhecer os criterios de urna normalidadepsíquica para entáo elaborar as suas práticas com o auxilio detécnicas que possibilitem o ajustamento e a adaptagáo daquele cujopsiquismo se encontra desajustado.

Pretendemos aqui apresentar urna proposta de realizagáo da clínicapsicológica com a utilizagáo de elementos que escapem dasdeterminagóes das ciencias naturais, tanto com relagáo aspostulagóes teóricas acerca do psiquismo quanto das práticas queobjetivam abrir um acesso as verdades desse psiquismo. Paraconstruir nossa proposta, aproximar-nos-emos da fenomenologíahermenéutica a fim de, entáo, alcangar elementos que nos permitampensar as bases de urna clínica psicológica que parta da ideia deDasein tal como desenvolvida por Heidegger (1988) e já iniciadapelos psiquiatras L. Binswanger e Medard Boss.L. Binswanger e M. Boss, nos idos de 1940, langaram urna propostaclinica com base no pensamento de Heidegger que eles denominaramDaseinsanálise. Feijoo (2011) esclarece acerca da constituigáo inicialda Dasensanalise por esses dois estudiosos da seguinte forma:

Ludwig Binswanger, que vai tomar como referencia as nogoesheideggerianas de projeto e cuidado, considera a questao daexistencia humana como ser-aí em seu caráter deindeterminagao, finitude e poder-ser. O segundo estudiosodesse tema é Medard Boss, que toma de Heidegger atemática das tonalidades afetivas da angustia e do tedio.

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Ana Maria López Calvo de FeijooA clínica psicológica em urna inspiragao fenomenologica - hermenéutica

Este é considerado por Medard Boss como a tonalidadeafetiva que abarca o homem em um mundo onde o quepredomina é o horizonte da técnica. (FEIJOO, 2011, p. 23).

Cabe, entáo, questionar o porqué de se propor urna clínica jáanteriormente apresentada. Ocorre que pelo fato de Boss eBinswanger terem iniciado essa proposta clínica e ambos teremmigrado da psicanálise, as suas daseinsanálises ainda trazemelementos de urna psicodinámica psicanalítica. E esses elementosainda apresentam aspectos contraditórios com a hermenéuticaheideggeriana. Ressaltamos, também, que durante todo o intervalode 1940 até os dias de hoje encontramos raríssimos trabalhos depesquisa nessa perspectiva. Feijoo (2011) ao deter-se nesse tema,chama a atengáo para o fato de que o próprio Heidegger naoreconhecera em Binswanger elementos suficientemente embasados,principalmente com relagáo as teorizagóes acerca do amor, quecaracterizassem urna Análise do Dasein. "Medard Boss (1954) pareceque ainda guarda em sua daseinsanálise elementos elaborados porBinswanger, como, por exemplo, a importancia das relagóes de amorpara alcangar a libertagao" (FEIJOO, 2011, p. 72).Pelos motivos expostos ácima é que acreditamos ser necessáriocontinuar as investigagóes acerca dessa temática na clínica. Paracontinuar a trilhar o caminho de urna clínica com base nopensamento de Heidegger vamos, em Ser e tempo, procurarsubsidios para pensar a existencia prescindindo da nogáo depsiquismo substancializado para, assim, podermos passar aconsiderar a existencia como se constituindo em fluxo constante, emmeio ao horizonte histórico em que ela se encontra. Nos escritos deHeidegger a partir de 1929, encontramos, também, as bases paracompreender as determinagóes presentes em nosso horizontehistórico, que nos permitem entender que as crises existenciaisocorrem quando, em urna tentativa de corresponder as solicitagóesdo mundo, abafamos as tonalidades afetivas fundamentáis que nessemesmo horizonte emergem.

Heidegger, com as consideragóes acerca da desconstrugáo eprescindibilidade da subjetividade, subtrai do ser-aí propriedadesontológicas previamente dadas. Com isso, a existencia, ao mesmotempo em que se define por sua nadidade, logo sem nenhumapropriedade que a determine a principio, destina-se obrigatoriamentea ter de ser para conquistar o seu ser. Ao tomar a existencia em seucaráter finito, logo, em seu espago próprio de realizagáo dasingularidade do ser-aí, e temporal, em fluxo, conquistamoselementos que nos indicam o caminho para assumir urna posigáo querompa com a ideia de interioridade psíquica, bem como de urnaclínica cujo fim seja a superagáo pelo autoconhecimento. Dessemodo, poderemos abrir outro espago possível á clínica psicológica,

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que denominamos de existencial. Mas cabe perguntar: qual e comoseria esse caminho? É isso que tentaremos desenvolver a seguir. Atarefa é de tamanha dificuldade que, muito frequentemente, algunsestudiosos do assunto chegam a afirmar veemente que se trata deum empreendimento fadado ao fracasso. Teriam razáo essesestudiosos? Será que eles visualizam pontos de tensáo queimpediriam que a psicología clínica pudesse ser posta em outrasbases que nao as da ciencia natural?Por se tratar de uma tarefa ardua é que precisamos, primeiramente,poder ver a psicología clínica sem as implicagoes de uma perspectivadas ciencias naturais e nem mesmo do senso comum. Se assim naofor, uma outra visada fica impossibilitada, uma vez que as referenciasde uma psicología aplicada torna inviável outro posicionamento quetransgrida suas referencias.Uma vez assumida uma atitude fenomenologica hermenéutica frenteao fenómeno que pretendemos trazer á discussáo, passamos arefletir acerca das referencias que tornam viável a possiblidade deuma clínica psicológica inspirada ñas reflexóes heideggerianas.Primeiramente, é importante que coloquemos em relevo a dissociagáoentre ser-aí e mundo histórico. Com a nogáo de ser-aí, pretendemospensar as bases de uma clínica psicológica que parte da ideia deDasein tal como desenvolvida por Heidegger em Ser e tempo. Issoimplica que pensar a existencia para além da nogáo de sujeito já quea ideia de sujeito apartado do mundo foi hegemonica na constituigáodas teorías e práticas psicológicas.Com a nogáo de mundo histórico, tal como desenvolvida porHeidegger, em um segundo momento de suas obras, traremos ádiscussáo a possibilidade de pensar as crises existenciais a partirdaquilo que se apresenta no horizonte histórico em que acontecem.Isso consiste em deslocar-se da dicotomía homem e mundo e deixarde atribuir este último as mazelas da vida singular. Essa nogáoadvém de uma inspiragao romántica na constituigáo das teorías epráticas em psicología. Assim, pela perspectiva do Daseinpretendemos abrir um outro horizonte de tematizagáo da psicologíapara que, com a apropriagáo de elementos fenomenológico-existenciais, possamos encaminhar uma reinterpretagáo da clínicapsicológica.Iniciaremos nossa exposigáo de argumentos que viabilizam apsicología fenomenológico-existencial mostrando como a temáticadesenvolvida em Ser e tempo já é uma tentativa de sair do campo dalógica pela qual a subjetividade se constituí e também do campoempírico pelo qual o sujeito é tomado como constituido dedeterminagóes do ámbito do natural. Passamos, entáo, a trazer ádiscussáo as determinagóes com seu cunho existencial, portanto naose limitando a uma interioridade, nem a uma exterioridade, mas aoespago que nao é nem interior e nem exterior. Trata-se do espago de

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copertencimento do dito interior e exterior, e assim retomamos aexistencia em sua originalidade.

2 A retomada da existencia

Heidegger, em Ser e tempo (1988), desenvolve uma filosofía compretensóes de retomar a existencia em sua faticidade, a gual haviasido suprimida pelas filosofías idealistas e empiristas em umatentativa de resolver a dicotomía sujeito e mundo. Eis a discussáo dofilósofo gue pode permitir á psicología um diálogo afinado com afilosofía de modo a possibilitar outra diregáo nos estudos psicológicos,além dagueles gue partem da nogáo de um eu posicionado ou de umeu objeto. O filósofo do Dasein, em sua analítica existencia^ tentaesclarecer a dinámica finita da existencia do ser-aí humano. É nesseaspecto gue encontramos a importancia dessa analítica da existenciapara a psicología, visto gue é justo a existencia o conceito-chave degue a psicología clínica com bases existenciais se apropria paraestabelecer outro modo do pensamento e da prática clínica.Comecemos entáo a esclarecer a dinámica do ser-aí como articuladapor Heidegger para entáo depois reposicionarmos a psicología clínica.Para esse filósofo (1988), no ser-ai sua esséncia é existencia,enguanto existir significa ek-sistir, ser-arremessado-para-fora-de-si,jogado em diregáo ao horizonte histórico-mundano de realizagáo desi. Defrontamo-nos entáo com um problema: como pensar umaclínica sem um objeto determinado a ser lapidado? Para discutirmos oproblema em guestáo, comegaremos a apresentar como Heideggerdesenvolve a nogáo de ser-aí. Para tanto, faz-se necessário gueressaltemos tres outras temáticas: mundo, era da técnica etonalidades afetivas fundamentáis gue também estáo em jogoguando se pretende defender uma psicología clínica fundamentada nafenomenología e na hermenéutica tal como desenvolvidas porHeidegger em suas obras.

2.1 Ser-aí {Dasein)

Heidegger (1988), para deixar evidente o caráter da existencia comoespago de constituigáo do ser-aí, esclarece dois aspectos pelos guaistudo se inicia: a indeterminagáo e a negatividade do ser-aí. Com isso,ele mostra gue a existencia nao pode ser tomada como um substratomaterial gue possui determinagóes e faculdades, passando a referir-se ao Dasein como apenas modos de ser do homem (ser-aí). E comotal, trata-se de um ser sempre articulado a sua historicidade - ai. Ofilósofo esclarece gue o ser-aí é um ente privilegiado por ser capaz deinterrogar o ser, e gue somente pelo exame fenomenológico desseexistente se poderá chegar á nogáo do sentido do ser em geral.

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Heidegger inicia pela apresentagáo das características constitutivasdo ser-aí: 1) primado da existencia frente á esséncia, que indica quesua esséncia consiste em sua existencia; 2) ser sempre meu, queaponta para o caráter de singularidade do ser-aí, por isso aimpossibilidade de compreendé-lo fora de suas expressóessingulares; 3) o ser-aí é marcado pela lógica do ter de ser,fundamento da responsabilidade com o seu existir; 4) caráter dopoder ser, o que caracteriza a incompletude ontológica do ser-aí.Considerando o ser-aí em sua incompletude, indeterminagáoontológica e ao mesmo tempo tendo o compromisso de ter de ser emsua expressáo singular, como afinal chega o existente a ser o que é?É justamente nesse ponto que entra em jogo o seu ai, caráterhistórico-fático de sua existencia, sem o qual o ser-aí jamáis seconstituiría, visto que, de inicio, ele nao é nada. Daí tornar-seimprescindível a tematizagáo do horizonte histórico em que aexistencia se constituí.

2.2 Mundo: horizonte histórico

Mundo histórico diz respeito ao sentido da existencia comoacontecimento histórico. Já que a existencia se apresenta no inicioem sua indeterminagáo originaria e consequente poder ser, é omundo com suas possibilidades, também originarias, que seapresenta com orientagóes do que, como e para que afinal se existe.Logo, a existencia se constituí em urna relagáo de copertenga ser eai. Mas é exatamente esse modo de constituigáo do ser-aí que, aomesmo tempo em que é liberdade, é também aprisionamento. Éliberdade pelo seu caráter de poder ser e é aprisionamento por seconstituir por meio das orientagóes próprias do seu horizontehistórico - ai -, em que o ser-aí se encontra e se expressa.Heidegger (1958) observa que cada período histórico apresenta certomodo de orientagóes. Ele argumenta que estamos na "Era datécnica", logo é ñas determinagóes do mundo da técnica que nosconstituímos no inicio e na maioria das vezes. Mas quais sao essasdeterminagóes que constituem e ao mesmo tempo aprisionam o ser-aí a um determinado modo de ser? Urna caracterizagáo quefundamenta todas as outras é a constante e incessante luta contra anegatividade da existencia. Daí constituir-se na era da técnica urnametafísica da presenga constante do ser, operando-se, desse modo,urna total retragao do caráter de negatividade da existencia. A tarefada metafísica passa a ser a busca das certezas, das definigóes e dasconstancias. Logo, ao eliminar a historicidade do espago deconstituigáo da existencia, obscurece-se o caráter de historicidade emque ela sempre se constituí. Portanto, introduzindo o caráter dehistoricidade á constituigáo do ser-aí, cabe questionar: quais seriamas determinagóes de nosso horizonte histórico em que nos

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constituímos e permanecemos aprisionados? O que fazer para naopermanecermos aprisionados as proposigoes de nossa era?

2.3 "Era da técnica"

Primeiramente, temos de trazer para discussáo questóes queaparecem na era da técnica para prestar esclarecimentos do nossohorizonte. Heidegger (1958) recomenda nao assumirmos frente átécnica urna atitude neutra, de negagáo ou de afirmagáo, mas, antesde tudo, que questionemos, pois questionando constrói-se umcaminho em que a exigencia é atentar-se ao caminho. Apenasquestionando algo é que podemos nos preparar para urna relagáolivre com aquilo que nos pode aprisionar. Heidegger (1958) entáointerroga sobre o que é a técnica em sua verdade nao técnica: qual asua essencia? Ele mesmo responde que a essencia da técnica só podeser revelada quando a nogáo de instrumentalidade (meio para atingirum fim), tal como tomada na concepgáo corrente da técnica, foresclarecida.E, assim, afirma Heidegger (1958) sobre as determinagóesinstrumental e antropológica da técnica, que, urna vez tomadas porverdadeiras e exatas, nao podem ser questionadas. Voltemo-nos,entáo, a questionar aquilo que a principio prescinde dequestionamento. A essencia da técnica tal como compreendida emurna determinagáo antropológica é a causalidade. Mas qual é aessencia da causalidade? Responde o filósofo alemáo que a essenciada causalidade é um ocasionar, tal como formulada por Aristótelessobre as quatro causas solidarias entre si, como modos do ato peloqual se responde. Ocasionar é deixar vir á presenga o que ainda naose apresenta, ou seja, o que a partir de si se apresenta é umproduzir. A técnica entáo nao é um meio para chegar a um fim; emsua essencia encontramos um modo de desabrigar, é um desvelar. Atécnica moderna, entáo, é um modo possível de desvelamento darealidade. Interessa-nos, entáo, saber de que modo esse desabrigarda realidade aparece como determinagóes do modo de ser em nossohorizonte histórico.O modo de desabrigar do real, no horizonte da técnica moderna,ocorre considerando apenas urna das quatro causas aristotélicas,trata-se de um total encurtamento a urna só causa: a eficiente. Estatotalmente articulada á produgáo de um efeito. Passa a ser verdadeaquilo que funciona e que tem como provar seus efeitos, resultados.Importam os resultados conquistados com a produgáo, mas trata-seda produgáo que desabriga o real como depósito de reservas. Odesvelamento que aparece na técnica moderna é a produgáo pelaprovocagáo da natureza, em que esta se torna materia que deveestar á disposigáo com fins á acumulagáo. Mas, com essesesclarecimentos, ainda nao alcangamos aquilo que Heidegger afirma

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ser o maior perigo das determinagoes da era da técnica. E qual seriao maior dos perigos? Ele acontece quando, aprisionados pelo primadoda produgáo que nao cessa e que aquiesce aos limites, nosesquecemos do ser e do que afinal estamos produzindo. E nessaconjuntura, Gestell, há um total obscurecimento da morada do ser,ou seja, sua historicidade. O homem esquecido de seu elementooriginal corre o perigo de retrair o verdadeiro. Mas onde háesquecimento, há também a possibilidade da lembranga capaz decorresponder aos apelos daquilo que Ihe é mais original, Ereignis. É oacontecimento apropriativo que evoca o comum pertencimento dohomem e ser que acontecem e se apropriam mutuamente. Por isso éque Heidegger (1958) afirma que questionar aquilo em que estamosimersos é preparar-se para urna relagáo mais livre com aquilo que seapresenta. Abre-se, assim um espago de alteridade em relagáo átécnica. Cabe agora perguntar: mas como estabelecer essa relagáolivre, como questionar nossas determinagoes se estamos imersosnelas?É preciso que acontega urna transformagáo, ainda que esta nao possajamáis ser produzida. A verdadeira transformagáo acontece em umespago que se abre como espago de alteridade, em que precisamosapenas nos deixar tocar por ele para que a possibilidade detransformagáo possa acontecer. E, para que esse espago de aberturaas transformagóes possa se abrir, é preciso que as crises acontegam.Vamos entáo pensar para que assim possamos trazer á lembranga ascrises existenciais do ser-aí no horizonte histórico em que nosencontramos, mas que se encontram obscurecidas, retraídas e assimnao se apresentam como possibilidade. As crises existenciais a quenos vamos reportar em nossa discussáo aparecem gragas atonalidades afetivas fundamentáis.

2.4 As tonalidades afetivas fundamentáis e o descortinar depossibilidades

Para Heidegger (2006), sao as tonalidades afetivas fundamentáis quese constituem em urna atmosfera que promove a possibilidade deurna saída da restrigáo e do estreitamento das possibilidadesexistenciais. Acontece que, na maioria das vezes, tendemos aencobrir tais tonalidades. A tentativa de encobrimento da verdade doser, ou seja, seu caráter de indeterminagáo, finitude evulnerabilidade, acaba acontecendo pela restrigáo de sentidos.Heidegger (1958) pensa o cotidiano em urna perspectiva docomportamento mediano na era da técnica, com o qual temos aimpressáo de que somos determinados, temos o controle e quepodemos viver imersos na novidade. Agimos de modo a acreditar quea nossa vida nos pertence e que nada pode ameagar nossaexistencia. E toda vez que temos o anuncio do incontrolável e do

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indeterminado tendemos, no inicio e na maioria das vezes, a retornará tutela do impessoal. Acontece que quando as tonalidades afetivasfundamentáis surgem e rompem com as determinagóessedimentadas, outras possibilidades sao descortinadas. E assim ábre-se a possibilidade de uma saída singular.Para avangarmos um pouco mais, precisamos ainda questionar sobre,afinal, o que seria uma psicología e, consequentemente, uma clínicapsicológica que mantivesse a ideia de existencia tal comoprimeiramente desenvolvida por Kierkegaard, ou seja, totalmenteindeterminada. É com Heidegger - já que este pretende se afastardas filosofías que ele mesmo denominou filosofías da subjetividade,desconstruindo a ideia de sujeito e pensando a existencia comonegatividade, logo prescindindo de todo e qualquer psiquismo - quevamos dialogar.

3 A clínica psicológica de inspiragao fenomenológico-existencial

Ao retiramos a situagáo problema da esfera da interioridade e acolocarmos no espago de acontecimento da existencia -ai - aparece ofato de estarmos langados e de que as coisas nao se realizam poruma questao apenas de forga e determinagao pessoais. Há situagóesque sao próprias ao nosso horizonte epocal, e nele estamos langados.E como atuará entáo o profissional psi que assim pensa a existencia?Ele, o psicólogo, parafraseando Kierkegaard (1987), desfaz os lagosda ilusáo, para que assim o iludido possa desvelar a sua situagáo enela assumir outras possibilidades que parecem obscurecidas pelarestrigáo da sua existencia a um só possível. Por isso o psicólogoclínico jamáis assume o lugar do especialista que conhece asverdades do psiquismo bem como desconhece o caminho de acesso asuas verdades.Na clínica existencial, o psicólogo analista apenas participa, mas naocomanda, nem determina, nem posiciona. No entanto, a suaparticipagáo é decisiva para que acontega um jogo em que o analistae o analisando abram um espago de abertura para possibilidades quese encontram obscurecidas, para que essas possam transparecer.Para tanto, esse analista precisa ao menos, como diz Kierkegaard(1987), da adigáo. Isso quer dizer que já tenha questionado asimposigóes, orientagóes sedimentadas ou retóricas hegemónicaspresentes em nosso horizonte histórico. Só assim o psicólogo clínicopoderá no mínimo nao sedimentar ainda mais a retórica, que, no finaldas contas, nos mantém totalmente aprisionados as determinagóeshegemónicas desse horizonte. Novaes e Mattar corroboram essaposigáo ao afirmarem:

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Urna vez que as demandas do sofrimento existencial,enderegadas á clínica psicoterápica, cada vez mais estaorelacionadas ao nivelamento histórico de sentido que podeser computado no cálculo global de exploragao e consumo, éimprescindível, para que a psicoterapia possa se constituirem um espago de reflexao propiciador de outros modos deexistir, que ela própria nao permanega subordinada a essemesmo horizonte histórico de redugao de sentido. (NOVAES eMATTAR, 2008, p.191)

Mas cabe entáo urna pergunta: como efetivamente o psicólogo clínicovai atuar para que possam surgir outros modos de existir? O clínicoacompanha aquele que sofre naquilo que ele tem a dizer e alamentar, aguarda pacientemente que, frente á dor, outraspossibilidades aparegam. E assim, no momento em que, comcoragem, aquele que está em sofrimento vislumbra outraspossibilidades, o clínico continua a acompanhá-lo de modo a aguardarque a transformagáo possa acontecer. Como esclarece Cabral (2012,no prelo):

Isso significa dizer que o terapeuta e a terapia sao elementosde um jogo que abre as portas para a simples possibilidadedo acontecimento da reinvengao de si. Enquantosalvaguardador dessa simples possibilidade, o terapeutaatinge sua riqueza, mesmo que se mova na precariedadeassinalada pela falta de modelos teóricos que expliquem oser humano. Tarefa que exige um novo aprendizado paraconquistar a sabedoria da docta ignorantia daqueles que, aolado do outro, participam favoravelmente de sua travessiaexistencial, sem langar mao de ideias universais de homem ede suas aplicagoes corretivo-morais na existencia alheia.Essa perspectiva na clínica tem sua "positividade", naoaniquila por meio de seus exercícios de destruigao datradigao a possibilidade da clínica, mas langa-lhe novoshorizontes. (CABRAL, 2012, no prelo.)

Considerando que sao as tonalidades afetivas fundamentáis que, aoabrir um espago para que as crises se instaurem, tem o poder desuspender as prescrigóes do mundo fático em que nos encontramos eassim permitir que outras possibilidades aparegam como tais, abrindoespago para urna libertagáo das condigóes hegemónicas de urnadeterminada atmosfera, como fazer para deixar que tal atmosferaacontega?Na tentativa de responder a essas questóes, vamos atentar para oque diz Cabral (2012, no prelo) ao referir-se á necessidade deempreender urna vredugao fenomenológica, entendida comorecondugáo do conhecimento ao topos, onde um fenómeno vem a sero que ele é" (HUSSERL apud CABRAL, 2012, no prelo.)- Urna vezalcangado o sentido primeiro, sentido este que unifica e articula todosos elementos, podemos pensar a unidade da pluralidade conjectural

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dos elementos. E esse sentido, por ser fenomenologicamenteconstituido, e, portanto nao se tratar de algo determinadoempíricamente, abre a possibilidade de experiencias outras, quetambém se encontram hermeneuticamente determinadas.Qual é o topos e o sentido da experiencia daqueles que buscam aclínica pela dor de seu projeto de vida conjugal frustrado? O que dizeraqueles que se referem á solidáo, ao abandono, á exclusáo? E comrelagáo ao temor do fracasso, onde encontramos a génese dessaquestáo? Do que as pessoas estáo falando ao se referirem ao eternocansago? É na busca da situagáo mais originaria, que está encobertapelas determinagóes hegemónicas no horizonte histórico de sentidoem que nos encontramos, que podemos desocultar outraspossibilidades. E é nesse horizonte que se abre a possibilidade de quea clínica psicológica encontré outro espago de realizagáo, o qual seestrutura no pressuposto de que o ente que somos é um poder serafetivamente articulado com o mundo histórico do qual faz parte, eincessantemente tem que dar conta de sua finitude constitutiva, e,ainda, na situagáo de que aquilo que somos e como nos constituímosse conquista performaticamente.

4 Consideragóes fináis

A psicoterapia como comumente é conhecida é urna técnica, quepossui instrumentos e ferramentas sustentados em um arcabougoteórico que permite ao psicoterapeuta desvendar os segredos everdades que se encontram no interior de urna subjetividade. Assim,aquele que nao conhece a verdade de si pode, urna vezconquistando-a, superar os seus conflitos e ganhar liberdade eautodominio.Um outro caminho a trilhar consiste em assumir o métodofenomenológico hermenéutico na clínica psicológica, que pretendedeixar que no próprio caminhar o caminho aparega. Por isso é quecada horizonte histórico traz as tensóes que Ihe sao próprias. E essastensóes só podem aparecer ñas expressóes singulares.Parece que, aos estudiosos do assunto que afirmam a inviabilidade dese pensar urna clínica psicológica em termos existenciais, osargumentos defendidos revelam o contrario. A psicología e suaprática clínica podem ser postas em outras bases que nao as daciencia natural. E isso acontece quando abandonamos a ideia de urnasubjetividade lógica ou empírica e pensamos o modo como o homemse expressa em termos do ser-aí, da existencia. Deixamos de pensaro mundo em dicotomía com o sujeito e passamos a consideram a co-originalidade homem e mundo. As crises existenciais nao mais seráotomadas como algo do ámbito de urna interioridade, mas sim comodeterminagóes que se constituem em um dado horizonte histórico em

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que universal e singular se entrelagam. Saúde psíquica nao é maisalgo que acontece quando um psiquismo conquista autonomía eliberdade ao descobrir a verdade de si. Sao as tonalidades afetivasfundamentáis que, ao suspenderem as prescrigoes hegemónicas emum determinado horizonte histórico, deixam transparecer outraspossibilidades que se encontravam obscurecidas.Vimos, que ao trazer á discussáo o caráter de abertura e histórico emque a existencia se constituí, conquistamos a possibilidade de urnareinterpretagáo da clínica psicológica existencial. Primeiramente, aodeslocarmo-nos da ideia de que os problemas existenciais dizemrespeito a urna fissura na interioridade psíquica, pensamos que ascrises sao existenciais porque dizem respeito ao ethos, espagocompartilhado, em que nos encontramos e que tem em sua base umhorizonte históricamente constituido. Assim passamos a inscrevernovas possibilidades na psicología que se encontravam obscurecidaspelo pensamento dominante. Essa apropriagáo de um outro espagoclínico, que vem marcado por sua negatividade porque nao dispoe defundamentos teóricos e práticos, consiste em acompanhar apossibilidade de que as transformagóes existenciais ou metamorfosespossam acontecer e nao que necessariamente acontegam.

Referencias

CABRAL, A. Da crise do sujeito á superagáo da confissáo clínica:sobre a obra A existencia para além do sujeito, de Ana Maria LópezCalvo de Feijoo. Estudos e Pesquisas em Psicología, Rio deJaneiro, v. 12, n. 3, 2012. (No prelo)FEIJOO, A. M. A existencia para além do sujeito: a crise dasubjetividade moderna e suas repercussóes para a possibilidade deurna clínica psicológica com fundamentos fenomenológico-existenciais. Rio de Janeiro: Viaverita Editora, 2011.KIERKEGAARD, S. Mi punto de vista. Madrid: Aguilar, 1987.HEIDEGGER, M. Ser e tempo. (M. Cavalcanti, Trad.). Petrópolis, RJ:Vozes. Parte I, I I . , 1988.

. La question de la technique. In: . Essais etconférences. Paris: Gallimard, 1958. p. 9-49.

. Seminarios de Zollikon. (Arnhold, G., & Prado, M. F.,Trad.). Petrópolis: Vozes, 2001.

. Os conceitos fundamentáis da metafísica: mundo,finitude e solidáo Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 2006.JAMES, W. Apelo para que a psicología seja urna "ciencia natural".Scientiae Studia, Sao Paulo, v. 7, n. 2, p. 317-324, 2009.SÁ, R. N.; MATTAR, C. M. Os sentidos da "análise" e "analítica" nopensamento de Heidegger e suas implicagóes para a psicoterapia.

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. (Org.). Estudos em psicologia: urna introdugáo. Rio deJaneiro: Proclama Editora, 2009.

Enderezo para correspondenciaAna Maria López Calvo de FeijooRúa Barao de Piracinunga, 62 - Tijuca - Rio de Janeiro, RJ, Brasil.Enderego eletrónico: [email protected]

Recebidoem: 12/06/2012Reformulado em: 26/07/2012Aceito para publicagao em: 11/11/2012Acompanhamento do processo editorial: Ana Maria Jaco Vilela

Notas*Doutora em psicologia pela UFRJ, Professor Adjunto do Departamento dePsicologia Clínica e do Programa de Pos- Graduagao em Psicologia Social do Estadodo Rio de Janeiro

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ARTIGOS

Da crise do sujeito á superacáo da confissáo clínica

The crisis of the subject to overeóme clinical confession

Alexandre Marques Cabral*Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,Brasil

RESUMOO presente artigo objetiva inicialmente assinalar como Ana Maria Calvo deFeijoo, no livro A existencia para além do sujeito, inscreve a nogao deexistencia, pertencente ao pensamento fenomenológico de MartinHeidegger, como eixo em torno do qual gira urna nova proposta para aprática clínica em psicología. Em um segundo momento, deve-se dizer porque sua proposta desconstroi o caráter confessional norteador das práticasclínicas tradicionais na psicología. Para tanto, o texto reconstruiráoperadores conceituais presentes na obra de Feijoo que viabilizem alcangartais objetivos, além de explicitar certos pressupostos tácitamente presentesem seu pensamento que viabilizem as propostas aqui almejadas. Nestesentido, será necessário mostrar como a nogao heideggeriana de existenciasubsidiada pelo conceito husserliano de intencionalidade desconstroi oconceito tradicional de verdade, pressuposto de toda prática confessional daclínica tradicional, prática esta que sempre imprimiu na psicología as marcasda moralidade.Palavras-chave: existencia; sujeito; clínica; confissáo.

ABSTRACTThe present article aims firstly at highlighting the way (how) Ana MariaCalvo de Feijoo uses the notion of Existence in her book The existencebeyond the subject. Such notion belongs to the phenomenological thoughtof Martin Heidegger, as an axis around which a new proposal for the clinicalpractice in psychology rotates. Secondly, the article focus on showing whyher proposal deconstruets the leading confessional character of thetraditional clinical practices in psychology. In order to reach its target, thetext not only rebuilds the conceptual operators found in Feijoo's work,which make the goal possible to be reached, but it also makes explicitssome principies present in her thought . To do so, it must be explained howthe Heideggerian notion of existence and the Husserl concept ofintentionality deconstruct the tradicional concept of truth. Such conceptdesigns every confessional practice in traditional clinic. This is the practicewhich has always marked psychology with morality..Keywords: existence; subject; clinic; confession.

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicología Rio de Janeiro v. 12 n. 3 p. 987-1006 2012

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Alexandre Marques Cabra IDa crise do sujeito á superagao da confissao clínica

1 Introducao

O último livro de Ana Maria López Calvo de Feijoo - A existencia paraalém do sujeito - é o objeto de tematizagáo do presente artigo cujoobjetivo primario é mostrar, por meio de urna abordagem crítico-reconstrutiva, como a autora, ao inscrever a existencia como eixo deurna nova proposta para a clínica psicológica, desconstrói o caráterconfessional norteador das práticas clínicas tradicionais e, assim,operacionaliza o procedimento destrutivo de matriz heideggeriana napsicología de orientagáo fenomenológico-existencial. Para tanto, seránecessário reconstruir alguns pressupostos hermenéuticosnorteadores da abordagem de Feijoo, além de explicitar algunsconceitos utilizados pela autora na estruturagáo de seu pensamento.Deve-se observar, antes de tudo, que a plausibilidade do presenteartigo se mostra sobretudo pelo fato de a autora em questáo ser, noBrasil, urna das pioneiras em tal abordagem psicológica, produzindo,ao longo de sua trajetoria académica, diversas pesquisas importantespara a renovagáo do pensamento psicológico neste pais. A obra emquestáo parece ser fruto maduro de suas reflexóes e acuradaspesquisas nesta área da reflexáo da psicología, o que assinala,consequentemente, o seu lugar de destaque na literatura dapsicología com bases fenomenológico-existenciais.

2 A crise dos supósitos metafísicos e o horizontehermenéutico de A existencia para além do sujeito.

O livro que ora vem a lume - A existencia para além do sujeito -possui o mérito de ser introdutório. É de admirar, entretanto, que istoseja um mérito, pois, como sabido, é lugar-comum considerar todaintrodugáo urna facilitagáo, o que, em um primeiro momento, pareceser sinal de pedantismo, urna vez que aparenta julgar e condenar oleitor a ser aquele que por si só é incapaz de interpretar universossemánticos dotados de certa complexidade. Isto também implica emconsiderar o (a) autor (a) da obra como aquele (a) que é dotado (a)de capacidades intelectuais superiores as do leitor, o que fornece aele (a) certa superioridade na relagáo com o tema em questáo, secomparado (a) com aquele (a) que o (a) le. Por outro lado, a lógicamercadológica, na ansia de venda a todo custo, ansia esta quecorresponde á dinámica inerente ao capitalismo, inscreveu na"literatura académica", em grande parte, o selo da "introdugáo".Livros introdutórios sao quase sempre garantía de venda e deacumulo de capital. Isto transformaría A existencia para além dosujeito em fruto do oportunismo da autora e da editora, ambosávidos por vendagem a qualquer prego. A despeito destes significadosligados ao termo "introdugáo", o caráter introdutório aqui assinalado

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possui certa peculiaridade. Trata-se do significado que emerge dotermo latino introducere, raiz do verbo portugués introduzir, qualseja, iancar para dentro de ou enviar para o interior de... Mas, paradentro de que Feijoo nos langa? O subtítulo do livro nos dá umapista: "A crise da subjetividade moderna e suas repercussóes para apossibilidade de uma clínica psicológica com fundamentosfenomenológico-existenciais". O livro nos envia, entáo, para ouniverso semántico da crise da subjetividade e, a partir dele, desvelao horizonte hermeneutico de uma nova possibilidade de realizagao daclínica psicológica. Ora, cabe neste momento perguntar: por que aautora fala de uma tal crise da subjetividade? Até que ponto estacrise é condigáo de possibilidade de uma nova prática clínica napsicología contemporánea? Por que a abordagem fenomenológico-existencial aparece, para Feijoo, como "linha de fuga" da crise dasubjetividade? Como se dá esta linha de fuga? Será que é possível"fugir" da subjetividade?Se Feijoo pensa a crise da subjetividade como condigáo depossibilidade da génese de novas possibilidades da prática clínica empsicología, é porque ela concebe o termo crise a partir de doissentidos co-pertencentes. Por um lado, a crise mencionada assinalacerta derrocada do paradigma da subjetividade pertencente átradigáo. Como derrocada, a crise nada mais é que a dissolugáo dopoder de estruturagáo do horizonte hermeneutico a partir do qualalgo assim como a subjetividade possuía forga de persuasáo noOcidente. Por outro lado, tal derrocada descortina outro horizonteinterpretativo que nao somente desafia o pensamento, comoesclarece o lugar de onde a subjetividade auriu suas forgas. Nestesentido, está em jogo o significado áureo do verbo grego krinéin, asaber, discernir. Todo discernimento se perfaz por meio davisualizagáo ou esclarecimento do que está efetivamente em jogo.Por meio desta clareza, a decisáo pode ser tomada. No caso da criseassinalada por Feijoo, ela leva ao aclaramento da subjetividade, ámedida que ilumina sua condigáo de possibilidade e assinala suasinsuficiencias. Ao mesmo tempo, esta visualizagáo abre o campo parauma tomada de posigáo por parte da prática clínica. A crise, portanto,nao é degenerativa somente, mas, sobretudo, regenerativa,porquanto inscreve novas possibilidades na psicología outroraobscurecidas pela absolutizagáo da subjetividade moderna.Entretanto, a crise referida nao é somente um ínterim que precede airrupgáo de um novo modelo explicativo do homem e da totalidade doreal. O que Feijoo chama de crise da subjetividade, que possuirepercussóes diretas e radicáis na psicología, é signo da crise domodo mesmo como se consolidaram e emergiram os modelosexplicativos da tradigáo. Com tal crise, ganha clareza o modoocidental de posicionamento teórico-prático dos comportamentos emgeral e do mundo como um todo. Por ser um livro "introdutório", A

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existencia para além do sujeito nos insere no cerne da crise ocidental.Na introdugáo do livro, Feijoo assinala, de diversos modos e por meioda mengáo a varias correntes de pensamento, que a crise dasubjetividade se identifica com a crise da substancializagáo do eu, ouseja, dito de modo mais radical, a crise refere-se antes de tudo ámetafísica da presenga (Cf. FEIJOO, 2011, p. 11-24). Ainda que taisnogoes possuam uma complexidade que nao cabe aqui ser analisada,elas deixam vir á baila a originariedade do horizonte hermenéuticoque sustenta a fala de Feijoo. Nao se trata de um livro que tem acrise da subjetividade como tema privilegiado de pesquisa. Antes, aobra assume a crise como condigáo transcendental - já que aparececomo condigáo de possibilidade - de sua fala, o que significa dizerque Feijoo aquiesce ao desafio de (re) pensar a psicología clínica apartir de um horizonte interpretativo - e de conceitos ai nascidos -que irrompe justamente desta crise. Cabe, entáo, perguntar: de quecrise se trata? Que horizonte se abre por intermedio déla?Pode-se afirmar que o pensamento contemporáneo, que aqui deveser identificado com aquele que nasce em meados do século XIXsobretudo com Kierkegaard e Nietzsche, é essencialmente marcadopor uma crise de raízes ontológicas e nao somente moráis, ainda quenao se deva desconsiderar o problema moral que ai se forma. Trata-se de uma crise mais profunda que aquela que tornou-seúltimamente lugar-comum na mass media. Por causa déla as demaiscrises sao somente signos e nao causas. A crise referida diz respeitoá dissolugao dos esteios meta-empíricos que sempre sustentaram osdiscursos mais variados no Ocidente, além da dissolugao do carátermesmo destes discursos, que sempre se determinaram como meta-narrativas muito peculiares. O Ocidente sempre produziu discursosdos mais variados sustentados por instancias ontológicas imunes aodevir, o que significa dizer que o Ocidente sempre foi debitário dealgum tipo de metafísica da presenca. Alguma presenga constante, ouseja, previamente dada fornecia a base para a inteligibilidade dosmúltiplos fenómenos que compóem o real. Por isso, antes devisualizar o que quer que seja, o pensamento ocidental contava coma vigencia já per-feita (isto é, previamente constituida) de umainstancia ontológica que garantisse o caráter multifacetado dos entesem geral. Por ser condigáo de possibilidade de todo devir possível epor garantir a inteligibilidade do todo, tal instancia foi identificadacom a nogáo de fundamento. Como fundamento, ela é suposta, ouseja, sub-posta, no sentido de que, antes de nos voltarmos para aefetividade de um fenómeno, já posicionamos e concebemos algocomo subjacente ao fenómeno em questáo. Esta st/6-posigáo(suposigáo) nada mais faz que assinalar a presenga previamentedada - por isso, uma presenga constante - de um supósito. Emoutras palavras, o pensamento ocidental sempre se caracterizou porcontar com uma instancia ontológica sub-jacente como fundamento

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dos entes em geral. O que subjaz pode ser dito em latim subjectum(sujeito), que se identifica inteiramente com a nogáo também latinade substantia (o subjacente). Como tal instancia ontologicamenteestá posicionada "para além" do devir e da singularidade dosfenómenos, os discursos que sempre pretenderam dar conta déla secaracterizaram por ser dotados de universalidade e por pretenderemsubsumir (subjugar) o múltiplo por meio do uno que com ele nao seidentifica. Devido ao fato de pretender se estruturar por meio de umdeslocamento do múltiplo em diregáo ao uno ou de urna saída dodevir em diregáo ao imutável, o discurso que sempre visou descrevero supósito dos entes é caracterizado a um só tempo como meta-narrativa metafísica. Pode-se dizer entáo que o pensamentoocidental, desde a sua aurora até o seu ocaso, determinou-se pelassucessivas tentativas de descrever a "subjetividade" dos fenómenos,para que estes pudessem ser fundamentados e tivessem asseguradasua inteligibilidade derradeira. Por isso, o Ocidente sempre supós umcorte ontologico no real, que os gregos (sobretudo Platao) chamaramde chorismós. A cisáo do real funda urna compreensáo binaria domundo, onde diversas oposigóes sao possíveis enquanto saoconsideradas variagóes do mesmo tema: as dicotomías metafísicassempre reproduziram e reinscreveram a relacaofundamento/fundado, sendo que o primeiro dos polos foi consideradoo substrato ontologico condicionador e justificador do segundo.Considerou-se tal polo como previamente constituido - por isso o seucaráter substantivado. Ora, se a crise que nos assola diz respeito áestruturagáo das meta-narrativas que vieram estruturando oOcidente, entáo, o que está em jogo nela é a derrocada do modomesmo como o Ocidente compreendeu o real até entáo. Comoentendé-la?

Nietzsche assinalou a crise que nos acomete com a famosa expressáo"Deus está morto". Apesar de a morte de Deus aparecer em diversaspáginas significativas de sua obra, a passagem mais conhecida,presente no aforismo 125 de A gaia ciencia, diz expressamente que acausa mortis de Deus é deicídio. Deus foi assassinado nao por umhomem, mas pelo homem ocidental na modernidade de sua historia:"Para onde foi Deus?, gritou ele, *já Ihes direi! Nos o matamos -voces e eu'. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso?Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu aesponja para apagar o horizonte? Que fizemos nos, ao desatar a térrado seu sol?" (NIETZSCHE, 2002, § 125). Deus morreu assassinadopor nos. Nao se trata de um grito a mais no coro dos ateísmosocidentais, que nada mais sao que um tipo de teísmo invertido paridono seio da modernidade. Como percebeu Heidegger: "O dito 'Deusmorreu' significa: o mundo supra-sensível está sem forga atuante. Elenao irradia nenhuma vida" (HEIDEGGER, 2002, p. 251). A morte deDeus é a imagem nietzschiana para caracterizar a crise da metafísica

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enquanto meta-narrativa que descreve hipóstases ontológicas quefuncionam como fundamento último dos entes em geral. O homemocidental, devido ao desdobramento de sua historia, assassinou apossibilidade de acessar estas hipóstases e de perpetuar o tipo deuniversalidade inerente as meta-narrativas que daí emergiam. Distodecorre a inviabilidade da manutengáo das subjetividades que sempreestruturaram as cosmovisóes ocidentais. Se foi dito que a obra deFeijoo nasce de um determinado aquiescimento á crise pela qual oOcidente passa e se dissemos também que esta crise possui umduplo registro - a saber, crise como dissolugáo da metafísica e dasmeta-narrativas que Ihe serviam de suporte e crise comoregeneragáo do pensamento, nao mais marcado pela tentativa dedescrever hipóstases ontológicas -, deve-se inquirir como Feijoomovimenta-se nesta crise. Até que ponto A existencia para além dosujeito é urna resposta a esta crise no ámbito da psicologia?

3 Da dissolugáo das hipóstases metafísicas á necessidade dadestruicao hermenéutica: a apropriacao da caráter históricodo real

Com a crise das hipóstases ontológicas e das meta-narrativas queintentaram descrevé-las, o Ocidente se deparou com, pelo menos,dois elementos que passaram a determinar essencialmente oscaminhos do pensamento em geral. O primeiro deles é a inviabilidadede se sustentar o que se pode denominar de caráter especular daverdade. A verdade de algum modo sempre foi entendida como umespelho (speculum) que reflete o ente tal qual ele em si mesmo é.Em sua Questao disputada sobre a verdade (De veritate), Tomás deAquino afirma ser a verdade "conveniencia do ente ao intelecto"(2002, p. 149). O ente convém ao intelecto, á medida que o que eleé (sua esséncia) é assimilável pelo intelecto humano, que, por poderapreender ou apropriar-se da quididade do ente, "de certo modo étodas as coisas" (hoc autem est anima, quae quodammodo estomnia) (Ibidem, p. 147). Por isso a famosa definigáo da verdadecomo "a adequagáo da coisa e do intelecto" (Ibidem, p. 149). Veritasest adaequatio intellectus et res - eis a fórmula clássica que assinalao caráter especular da verdade. A verdade é ai a pretensáo de odiscurso espelhar inteiramente o que o ente é em si mesmo.Independentemente do modo como se pensou a relagáo entreintellectus e res, a questao é que a verdade que daí emerge sempresupós dizer o "em si" do ente, o que indica urna pré-compreensáoontológica de que o real em si mesmo é estruturado por algum tipode hipóstase, seja a da coisa objetivamente dada ou a consciénciarepresentadora. Se Deus morreu, entáo, a verdade nao podecaracterizar-se por ser especular. Nao há "em si" apartado das

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relagoes que formam de algum modo o horizonte de aparigáo dosentes para o homem. Em outros termos: o em-si é de algum modopara-si (Cf. CASANOVA, 2006, Introdugáo). Consequentemente, ospolos da relagáo nao geram a relagáo, mas, antes, sao gerados porela, ou seja, a relatio é ontologicamente "anterior" aos relata. Sementrar neste momento nos pormenores fenomenológicos da ideia derelagáo - que na fenomenología em geral se identifica com a nogáode intencionalidade -, deve-se observar que um outro elementodesafiador invade o pensamento contemporáneo, a saber, a ideia dehistoria. Com a derrocada das hipóstases metafísicas, o pensamentose vé as voltas com o caráter histórico do real. Se a morte de Deuspode conjugar-se com a desubstancializagao do real, entáo, ela abreas portas para pensar seu caráter verbal. Acaba-se, entáo, aquelapretensáo denunciada por Nietzsche de todo filósofo clássico: "Elesacreditam que desistoricizar urna coisa, torná-la urna sub specieaeterni, construir a partir déla urna múmia, é urna forma de honrá-la.Tudo o que os filósofos tiveram ñas máos nos últimos milenios forammúmias conceituais; nada de efetivamente vital veio de suas máos"(NIETZSCHE, 2000, p. 25). Pensamento e historia estáocongenitamente relacionados, o que significa dizer que todo conceitonasce condicionado por horizontes históricos. Pode-se destacar aiduas grandes implicagóes para o pensamento.A primeira implicagao refere-se ao fato de que a desubstancializagaodo real engendra a historicizagáo da condigáo humana e da totalidadedo ente. Nao somos nada para além do desdobramento do nosso ser,o que significa dizer que somos verbos conjugados no gerundio. Naosendo formados por quaisquer hipóstases ontológicas, somos o queestamos sendo. Nosso ser é dotado de urna "elasticidade ontológica"congénita. Por outro lado, nao somos mónadas autossuficientescerradas em si, que se relacionariam acidentalmente com a totalidadedo mundo. A unidade com a totalidade sempre já aconteceu, pois ocaráter relacional do real ácima mencionado nao nos permite pensarem qualquer solipsismo humano. Consequentemente, o elementohistórico que nos estrutura também determina a totalidade do enteque se articula essencialmente conosco. Entretanto, esta historicidadenao se identifica com a ideia ainda em voga de que viver épaulatinamente dissolver-se até o colapso da existencia presente nofalecimento do vívente humano. Neste último sentido, a historia seriacomposta pela evaporagáo de instantes diversos que de algum modose relacionaram conosco um dia. O que fomos nao teria relagáoessencial com o que somos, a nao ser enquanto causa eficiente, oque significa dizer que nosso passado seria externo a nos mesmos.Ora, a gerundizagáo do real subverte justamente esta ideia dehistoria. Somos por meio do passado que ainda é vigente em nossoser. O passado nao se despede do homem. Em sua caracterizagáooriginaria, é o passado que precede seus passos, como Heidegger

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assinalou no parágrafo 6 de Ser e tempo (Cf. HEIDEGGER, 2006, §6). Por isso, o passado nao é algo que temos, mas aquilo que somos.Isto gera a segunda implicagáo para o pensamento, qual seja, anecessidade de assumir a tradigáo da qual ele sempre faz parte. Todopensamento é tradicional por esséncia. É tradicional no sentido deque é o passado que fornece a base de sustentagáo de suasinvestidas, servindo de condigao de possibilidade para sua realizagao.Vale lembrar que o verbo latino tradere significa legar, transmitir. Opensamento é tradicional porque ele sempre se perfaz por meio dolegado do passado que o condiciona. Neste sentido, a assungáo dacrise da metafísica ocidental engendra o desafio de se pensarhistóricamente. Como disse Karl Marx, na abertura de seu Os 18bruma rio de Luís Bona parte:

Os homens fazem sua própria historia, mas nao fazem comoquerem; nao a fazem sob circunstancias de sua escolha esim sob aquela com que se defrontam diretamente, legadase transmitidas pelo passado. A tradigáo de todas as geragoesmortas oprime como um pesadelo o cerebro dos vivos. Éjustamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e as coisas, em criar algo que jamáis existiu,precisamente nesses períodos de crise revolucionaria, que oshomens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritosdo passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritosde guerra e as roupagens, a fim de apresentar-se nessalinguagem emprestada (MARX, 1988, p. 7).

Por um lado, o pensamento deve assumir a historia da qual faz parte.De outro modo, ele nao pode ter a pretensáo de preservar o caráterespecular da verdade, retratando de modo mais "fiel" o que o realhipostasiadamente é em si mesmo. Deste modo, o diálogo com atradigáo - que é inevitável - deve assumir um novo horizontehermenéutico, que nao preserve o modo metafísico de inquirigáo dosentes. É justamente isto que é realizado por Feijoo em A existenciapara além do sujeito. A obra se estrutura através de um diálogo coma tradigáo e de urna renovagáo no horizonte de tematizagáo dapsicología. É por isso que ela apropria-se de Husserl e Heidegger eassume o procedimento metodológico destrutivo deste último. Porque esta escolha? Até onde um procedimento intitulado "destruigáo"pode favorecer a produgáo de um discurso "positivo" renovador paraa psicología? A resposta a esta questáo necessita de umesclarecimento previo do arcabougo conceitual em que se move olivro de Feijoo.

4 O esteio fenomenológico-existencial de Feijoo

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A "positividade" presente no livro de Feijoo depende diretamente desua apropriagáo dos pensamentos de Edmund Husserl e MartinHeidegger. Sao estes filósofos que fornecem o caráter positivo detodo exercício "destrutivo" que atravessa a obra. Ambos aparecemsobretudo no primeiro capítulo do livro - "Da consciéncia intencionalem Husserl á desconstrugáo da subjetividade em Heidegger" - comodesveladores de um outro horizonte hermenéutico diferenciado dametafísica da tradigáo. Importa á Feijoo a apropriagáo criativa deelementos fenomenológico-existenciais possibilitados por estesautores para encaminhar sua reinterpretagáo da clínica psicológica.No que diz respeito a Husserl, Feijoo destaca sua contribuigáo ácritica da atitude natural, á desconstrugáo das hipóstasespsicológicas, sua ideia de intencionalidade e a reconstrugáo do euenquanto síntese de vivencias intencionáis (Cf. FEIJOO, 2011, p. 25-34). Como se sabe, Husserl empreende uma critica veemente áatitude natural do homem, que concebe os entes em geral á luz doque se pode chamar de caráter empírico. Cotidianamente,entendemos serem os entes dotados de propriedades previamenteconstituidas, sejam estes entes humanos ou nao. Esta posigáoontológica tornou-se normativa no Ocidente, determinando o modomesmo como as ciencias e a filosofía interpretam o real. Com oadvento das ciencias humanas e com a tematizagáo da subjetividadehumana, as ciencias acabaram por reificar o psiquismo humano,mediante uma abordagem explicativo-causal dos seus processosinternos. Com isto, tornou-se comum o posicionamento de hipótesesinvestigativas como veículos de confirmagáo ou rechagamento deteorías explicativas dos processos psíquicos. A crítica husserlianacoloca em xeque justamente o pressuposto ontológico do caráterempírico dos entes em geral como sentido originario de seu ser. Naohá originariamente empiricidade alguma nos entes. Um simples copoque vemos nao é dotado de propriedades previamente definidas ehipostasiadamente presentes. Isto, para Husserl, já é fruto doolvidamento da dinámica imánente da consciéncia e a fuga outranscendentalizagáo desta mesma imanéncia. Por isso a necessidadede empreender uma "redugáo fenomenologica" (HUSSERL, 1989, p.25), entendida como recondugao do conhecimento ao topos onde umfenómeno vem a ser o que ele é. Como afirmou Husserl: "o genuinosentido do principio é a exortagáo constante a permanecer junto dascoisas que aquí, na crítica do conhecimento, estáo em questáo, e naomisturar os problemas aqui presentes com outros completamentediversos" (Ibidem, p. 26). As "coisas" se identificam em Husserl comos fenómenos e estes só podem ser apreendidos no seu campo deaparigáo, que nada mais é que o seu campo intencional. O cerne,portanto, do pensamento husserliano é justamente o conceito deintencionalidade e é ele o centro da tematizagáo de Feijoo, no queconcerne a Husserl, em seu livro. Por intencionalidade Husserl

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entende o fato de toda consciencia já ser sempre consciencia de...Isto indica, primeiramente, que os fenómenos psíquicos saoestruturados de modo nao posicionador. Nossa consciencia já sempreestá aberta para correlatos que ela mesma nao "inventa". Estecaráter de abertura marca a consciencia com um elemento extático.Consequentemente, nao existe consciencia antes da relagáo onde umdeterminado fenómeno se dá. Um campo de aparigáo, portanto, jásempre se interpós condicionando o aparecimento do fenómeno e daprópria consciencia humana. Tal campo é intencional porque elepossui urna dinámica própria, que nao é determinada pelo sujeitocognoscente e é por causa de sua dinámica que apreendemos umente de um determinado modo de ser e nao de outro. Se Husserlcoloca como principio "permanecer junto das coisas", as coisas emquestáo se confundem com o campo intencional que determina umfenómeno como sendo o que é. Isto confere a todo ato de conscienciao caráter da intencionalidade. A consciencia, portanto, é sempretranscendente, caso a transcendencia seja compreendida como ex-posigáo aos campos intencionáis onde se determinam os fenómenos.Como afirma Feijoo: "Para a fenomenología de Husserl, o psiquismonao possui nenhuma determinagáo previa, nem mesmo um eusubstancial. A consciencia é, para este filósofo, transcendente, nuncase retém em si mesma, mas se vé projetada por seus próprios atospara o campo dos objetos correlatos" (FEIJOO, 2011, p. 31). Istoretira a pretensáo de se considerar os entes por meio de categoríasuniversais que desconsiderem a singularidade dos camposintencionáis onde os fenómenos se constituem. Nao se podeconsiderar um ente sagrado do mesmo modo como se considera umobjeto científico qualquer. Isto é desconsiderar seu campointencional. Estes campos, por sua vez, nao sao inventados pelasubjetividade humana. Quando se dáo, nos neles nos movemossegundo o que eles sao. Disto emerge um novo modo decompreensáo do "eu". O "eu fenomenología)" do qual fala Feijoo écomposto por "vivencias intencionáis" (Ibidem, p. 33). Sempropriedades ontologicas previamente dadas, o eu nada mais é quesíntese de vivencias, vivencias estas que caracterizam odesdobramento da consciencia nos campos intencionáis onde ela semove. Isto desconstrói qualquer pretensáo de substancializagáo dainterioridade humana e qualquer possibilidade de explicá-la por meiode teorías baseadas na ideia de causalidade. Em outras palavras:Feijoo encontra em Husserl o primeiro aliado para se pensar um eudestituido de empiricidade.

Por outro lado, como assinala o título do livro - A existencia paraalém do sujeito -, Feijoo encontra no conceito de existencia o cerneda condigáo humana, suspendendo, como fizera Heidegger, a própriaconsciencia intencional de matriz husserliana. Por isso, nao é á toaque Heidegger aparece como principal aliado da autora em seu

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projeto de renovagáo da clínica psicológica. Feijoo foca-se em algunsdos principáis operadores conceituais da ontologia fundamental deHeidegger. Em toda sua abordagem deste pensador, na primeira fasede sua obra, o que está em jogo é o esclarecimento da dinámicafinita da existencia do ser-aí humano. Por isso, a existencia é oconceito-chave da apropriagáo que Feijoo realiza da analíticaexistencial de Heidegger. Como se sabe, o conceito heideggeriano deexistencia, ao contrario do que pode parecer, nada tem a ver com,por exemplo, a ideia tomista de actus essendi (ato de ser). Nao indicao simples fato de que algo é, existe, está factivelmente presente.Antes, somente um ente existe: o ente que nos mesmos somos, oser-aí. Por isso a sentenga um tanto escandalosa, repetida quatrovezes em Ser e tempo: "A esséncia do ser-aí é a sua existencia"(HEIDEGGER, 2006, § 9). Apropriando-se da ideia escolástico-cristade que em Deus existencia e esséncia sao urna só e mesma coisa,Heidegger transpóe esta identificagáo para o ser-aí, este ente que,para ser, deve a cada vez relacionar-se compreensivamente com seuser (Cf. ídem). Neste sentido, o ser-aí nao possui urna esséncia quecongrega diversas propriedades comuns a outros entes de suaespecie. Antes disto, sua esséncia é existencia, enquanto existirsignifica ek-sistir, ser-arremessado-para-fora-de-si, jogado emdiregáo ao horizonte histórico-mundano de realizagáo de si. Comodisse Heidegger em Conceitos fundamentáis da metafísica (Mundo-Finitude-Solidáo): "O ente que chamamos ser-aí é o ente de umgénero originariamente próprio, um ente que irrompe para ser. Desteente, dizemos que ele existe, isto é, ex-sistit; que ele é na essénciade seu ser um movimento para fora de si mesmo, sem, porém,abandonar a si" (HEIDEGGER, 2003, § 75). A ipseidade que é anossa, portanto, nao possui identidades absolutas. Nosso "si mesmo"se conquista performaticamente, o que significa dizer que nossaexistencia é temporal - tempus est homo (Cf. HEDEGGER, 2006, §65). Se a existencia subtrai do ser-aí propriedades ontológicaspreviamente dadas, ela o marca com o selo da nadidade, ao mesmotempo que o obriga a ter de conquistar-se para ser quem é (Cf.Ibidem, § 9 e 31). Somos, em outras palavras, poder-ser. O quesomos é resultado do desdobramento de possibilidades de ser, queconformam relativamente a nadidade que nos constituí. Poder-ser enadidade (ou negatividade) se identificam, exigindo que a assungáode possibilidades de ser engendre certa configuragáo ontológica emum ente marcado pela destituigao de qualquer propriedade "empírica"(no sentido ácima visto na fenomenologia husserliana).Por sermos o nascer e o morrer de nossas possibilidades de ser,somos moríais. Em outras palavras: a finitude determinaessencialmente o ser-aí que somos. Tal finitude nao indica privagáo,por oposigáo á plenitude ontológica da infinitude divina. A finitudeaparece por meio da mortalidade que é a nossa. Segundo Heidegger,

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nao morremos porque falecemos. A morte nao é, em sentidooriginario, o colapso da vida. Antes, a morte só se dá verbalmente,no morrer. Por isso, ela só pode ser urna possibilidade de ser do ser-ai. Enquanto possibilidade, a morte já determina o ser-aí enquantohorizonte existencial mais próprio de ser si mesmo (Cf. HEIDEGGER,2006, § 53). Em outras palavras: a morte, enquanto possibilidade deser, é antecipada pelo ser-aí, fornecendo a ele um horizonte peculiarpara sua existencia. Neste sentido, a morte é a possibilidade maisprópria do ser-aí. É que ela destranca cada possibilidade de ser emsua transparencia ontológica, isto é, enquanto táo-somentepossibilidade de ser. Isto equivale a dizer que a partir do horizonte damortalidade o ser-aí apropria-se do caráter finito de suaspossibilidades, ao mesmo tempo que conquista a inteireza de seu ser.Inteireza nao significa completude. Isto o ser-aí, por ser poder-ser,nao pode ser. Entretanto, ele pode ser inteiramente segundo suacondigáo de poder-ser. É isto que se desvela a partir da mortalidadedo existir. Por isso, a finitude identifica-se originariamente com oespago próprio de realizagáo da singularidade do ser-aí. Ser /7/7-itosignifica, deste modo, ser dentro do limite (fim) de realizagáo de seuser mais próprio (Cf. Ibidem, §§ 58-62). Mortal, o ser-aí épropriamente temporal. Por isso, ele é segundo o viver e morrer desuas possibilidades, que se atualizam por meio da diversidade deseus comportamentos (Cf. FEIJOO, 2011, p. 39-44).Após Feijoo explicitar em linhas gerais a relagáo entre ser-aí, poder-ser e finitude (mortalidade), sua atengáo se direciona para astonalidades afetivas do ser-aí. Estas, nao sendo mogóes subjetivas ouafecgóes da alma, nao sao apéndices da condigáo humana, quepoderiam ser extirpadas, para que o intelecto agisse de modo maislivre para atingir o mundo de modo mais objetivo. Antes, astonalidades afetivas sao responsáveis por desvelar o ente natotalidade para o ser-aí. Justamente por ser ek-sistente, o ser-aí naose relaciona com a totalidade que o mundo é senáo por intermediodas tonalidades afetivas. Elas, a um só tempo, apresentam como oser-aí está e como a totalidade do ente se desvelou para ele (Cf.HEIDEGGER, 2006, § 29). Como todo mundo em que o ser-aí é nao éabsoluto, pertence a ele o caráter histórico. Neste sentido, Feijoo sedá conta de um elemento importante na obra heideggeriana, que é ocaráter histórico-epocal de algumas tonalidades afetivas específicas.Elas sao tonalidades privilegiadas, urna vez que permitem vislumbraro mundo em que estamos e o modo como no mais das vezes nele nosencontramos desempenhando nossa existencia. Disto depende todaprática clínica, pois somente entendendo a relagáo entre ser-aí,finitude e mundo histórico pode-se compreender a especificidade dascrises existenciais de ser-aí, que justificam a pertinencia da clínicaterapéutica. Com a elucidagáo das tonalidades afetivas, Feijooconquista o solo hermenéutico para sua reinterpretagáo das práticas

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clínicas. Ela parte, portanto, do pressuposto de que o ente que somosé um poder-ser afetivamente (dispositivamente) articulado com omundo histórico do qual faz parte, tendo que dar conta de suafinitude constitutiva. Justamente este solo identifica-se com a ideiade urna existencia para além do sujeito. A partir disto, Feijoo entendeo conceito moderno de sujeito, debitário da nogáo de subjectum datradigáo metafísica, como urna concepgáo teórica do ente que somosque emerge da alienagáo de nossa condigáo mais própria. Esta baseconceitual fornece a Feijoo o horizonte necessário para oempreendimento de sua desconstrugáo da prática clínica inerente átradigáo.

5 A desmoralizacao da psicología e a desconstrugáo do caráterconfessional de suas práticas clínicas na obra de Feijoo:consideracóes fináis

A desconstrugáo de Feijoo identifica-se inteiramente com a nogáo dedestruigáo presente no parágrafo 6 de Seré tempo. Deve-se observarentretanto que, apesar da autora nao dedicar qualquer capítulo átematizagáo explícita da destruigáo, seu pensamento, desde aintrodugáo até a conclusáo, se constrói por meio de urna lidadestrutiva com a tradigáo filosófico-psicológica, sobretudo no queconcerne á prática clínica. Neste sentido, cabe perguntar: o que seentende por destruigáo? Se dissemos anteriormente que o livro deFeijoo possui um elemento claramente "positivo", como pode umtermo aparentemente "negativo" - destruigáo - relacionar-se comesta positividade? Primeiramente deve ser observado que adestruigáo refere-se á imbricagáo já assinalada entre pensamento ehistoria. O legado assumido pelo pensamento diz respeito aestruturas conceituais hipostasiadas ou hipostasiantes. No nossocaso, pensamos sempre enredados em urna malha conceitualdebitaría de pré-compreensóes ontologicas que pensam o ser do realcomo supósito ou presenga constante, que serve de fundamentometafísico dos entes em geral. Isto gera o perigo dedesconsiderarmos as raízes dos conceitos que legamos e levarmosadiante tal alienagáo, ao produzirmos novos conceitos desconectadosdo lastro existencial de onde provém. Como afirmou Nietzsche: "Osconceitos filosóficos individuáis nao sao algo fortuito e que sedesenvolve por si, mas crescem em relagáo e em parentesco um como outro; embora surjam de modo aparentemente repentino earbitrario na historia do pensamento, nao deixam de pertencer a umsistema (...)" (NIETZSCHE, 2005, § 20). O caráter sistemático dosconceitos, ao qual Nietzsche se refere, diz respeito áinterdependencia histórica de onde ele emergem. Se a nossa historiase identifica com a historia da metafísica, há sempre o perigo de

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reproduzirmos a tendencia de almejar descrever, por meio de meta-narrativas metafísicas, os supósitos dos entes, o que, á luz da mortede Deus, é inviável e, por isso, indesejável. A destruigaoheideggeriana nasce da necessidade de o pensamento assumir olegado conceitual que o condiciona, porém sem repetir o gestometafísico que determinou este mesmo legado.Para dar conta da destruigao, Heidegger assume o desafio de buscaras "certidoes de nascimento" (HEIDEGGER, 2006, § 6) das ontologiasda tradigao. A destruigao, portanto, é primeiramente urna elucidagáodo "lugar" de onde nasceram os conceitos. Este lugar nada mais éque a estrutura existencial do ser-aí. No caso da metafísica, suacondigáo de possibilidade, ao menos na época de Ser e tempo, foipensada por Heidegger como presente no modo improprio derealizagáo existencial do ser-aí, modo este para o qual os entesaparecem como dotados de propriedades previamente dadas, o queforma o horizonte de inteligibilidade metafísico dos mesmos. Com oexercício da destruigao, Heidegger reinscreve os conceitos da tradigaona estrutura do ser-aí, resignificando-os. Assim, nao ficamos presosaos encurtamentos da tradigao e podemos nos apropriarcriativamente de seus elementos sem reproduzir o gesto metafísicoque inicialmente os engendrou. Destruir é, portanto, desvelar asbases existenciais dos fenómenos, aclarando o "hoje" (ídem) em quese pensa, sem se deixar levar pelo modo mesmo como a tradigaoperguntou pelo ser dos entes em geral. Isto proporciona certaliberdade para o pensamento, urna vez que o libera para urna visadafenomenológica dos campos (intencionáis) onde os pensamentos datradigao irromperam, o que favorece á superagao dos encurtamentoslegados históricamente pela filosofía, além de permitir reconstruir atradigao, percebendo, a um só tempo, os limites de seu modo dequestionamento e apropriando-se criativamente de seus conceitos.Por um lado, Feijoo leva adiante a destruigao heideggeriana aoassinalar a inviabilidade de perpetuar a subjetividade egóica datradigao (Cf. FEIJOO, 2011, Introdugáo). Tal subjetividade, pormotivos já expostos, nao dá conta do lastro existencial que determinaa condigáo ontológica do ser-aí. Ao mesmo tempo, o diagnóstico deFeijoo quanto a esta subjetividade nao é outro senáo o fato de queela nasce alienadamente, pois ela autonomizou-se de suas bases.Entretanto, a apropriagáo criativa implícita em seu exercíciodestrutivo (ou desconstrutivo) mostra-se na apropriagáo da práticaclínica. Com base na Daseinsanalyse, Feijoo reinscreve a práticaclínica ñas bases fenomenológico-existenciais que sustentam ostranstornos psicológicos em geral (Ibidem, p 57-87). Justamente istoinjeta novas possibilidades na clínica e, consequentemente, novosdesafios para a psicología. Deve-se aqui destacar somente doiselementos da proposta de Feijoo á clínica explícita ou tácitamente

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presentes em A existencia para além do sujeito. Urna passagem daintrodugáo do livro permite-nos assinalá-los:

(...) Tanto a Psicanálise quanto o Behaviorismo partem deteorías que mapeiam a subjetividade ou estabelecem as leisa partir das quais a subjetividade (comportamento) seconstituí, encontrando em seguida elementos psíquicos quecompoem essa subjetividade e que determinam o seu modode funcionamento. Cabe ao especialista psi dominar, por suavez, tal subjetividade e, assim, saber como fazer paraadaptar o homem ou reduzir suas tensoes.Assim, o especialista em Psicologia acaba por construir ummodelo teórico, seja dedutivo ou empírico, que retrata todo ofuncionamento psíquico ñas suas referencias de normalidadee desvio. A partir destas elaboragoes complexas, entao, eleconstroi teorías e técnicas, que vao garantir nao só o dominiodo funcionamento psíquico, mas também o manejo doprofissional para obtengao de resultados "positivos" (FEIJOO,2011, p. 19).

De acordó com Feijoo, as práticas clínicas na psicologia semprepressupuseram a normatividade de modelos teóricos comoposicionadores do modo de aparigáo do ser humano. Tanto apsicanálise quanto as teorías comportamentalistas pressupóem quetodo ser humano seja táo-somente um caso particular de suasteorías, seja porque está de acordó ou em desacordó com elas. Trata-se, portanto, de urna característica que positiva o ser-aí que somos,subtraindo-lhe seu caráter de poder-ser e a dramaticidade que estecaráter impóe ao seu percurso existencial. Por isso, a terapia naoenxerga o ser-aí em tudo que vé, pois vé somente a adequagáo ouinadequagáo de certos comportamentos em relagáo ao seu arcabougoconceitual. Isto é signo da presenga do caráter especular da verdade,que justifica toda prática terapéutica da psicologia da tradigao. Sendoespecular, a verdade das psicologías hodiernas pretende dizer o que éo psiquismo humano como tal e no todo, explicando seufuncionamento e produzindo criterios a priori para identificar sua retaatuagáo. Por isso, todo ser humano é a réplica deste modeloexplicativo. Como réplica, pode ou nao funcionar segundo sua maisplena condigáo. Se está em desacordó com tal modelo, a verdade quebaliza tal teoría proporciona a justificativa necessária para oempreendimento de práticas corretivas. O terapeuta, possuidor daverdade, é aquele que sabe o que o outro necessita para sereintegrar na ordem da qual fugiu. Esta ordem identifica-se com obem do ser humano, segundo a compreensáo previa do modeloexplicativo em questáo. Neste sentido, em nome deste bem atua oterapeuta, que é o "funcionario da verdade". Isto assinala o carátermoral de toda prática terapéutica. Em nome do bem, isto é, daplenitude do ser humano expressa na verdade teórica de um certo

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modelo explicativo, atua o terapeuta. Sua agáo, portanto, é semprecorretiva e assim o é porque está legitimada pelo caráter especularda verdade, que possui a pretensáo de dizer o que é o psiquismo "emsi" mesmo. Se Feijoo destaca esta característica da prática clínica naoé para corroborá-la, mas para "destruí-la". Disto advém o segundoelemento presente (tácitamente) na crítica de Feijoo á prática clínicapresente na tradigáo, a saber, seu caráter confessional."Cabe ao especialista psi dominar, por sua vez, tal subjetividade e,assim, saber como fazer para adaptar o homem ou reduzir suastensóes." Com esta afirmagáo, Feijoo denuncia a prática confessionalinerente á clínica. Basta pensar na psicanálise para entender o que aiestá em jogo. A prática psicanalítica, tanto freudiana quanto(sobretudo) lacaniana, parte do pressuposto de que o terapeutadomina o psiquismo humano com a pluralidade de elementos teóricosque fazem parte de sua formagáo. Ao mesmo tempo, o analisando"sabe" que é o terapeuta que "sabe" qual o seu problema, porqueconhece o funcionamento de seu psiquismo, que é somente umexemplar do psiquismo enquanto tal. Consequentemente, oanalisando supóe que o terapeuta possua a chave para entender oque Ihe é obscuro: seu inconsciente, que só aparece para aquele quepossui as "chaves" teóricas para "abri-lo". Em última instancia, oanalisado eré que somente o analista pode saber algo sobre urnadimensáo sua que de algum modo Ihe é alienada. As palavras, entáo,sao o veículo para que o terapeuta saiba qual "chave" melhor seadéqua á "fechadura" em questáo. A palavra, portanto, é sempre umsimples aceno para que o terapeuta possa agir e, de algum modo,reinscrever no analisando a verdade de si mesmo - que é a verdadedo modelo explicativo do terapeuta - da qual ele mesmo se alienou epara a qual ele nao sabe o caminho de volta, pois nao possui a"chave" teórica para entender a si mesmo. Isto assinala a presengada confissao na clínica. No fundo, é urna remodelagáo das práticasconfessionais cristas, com a diferenga de que a confissao clínica émais perigosa que as religiosas. Vejamos.

Confiten é o termo latino que retrata um exercício peculiar daconfissao. Antes de significar a auto-acusagáo do ser humano peranteo juiz divino, a confissao foi, inicialmente, o reconhecimento dafragilidade humana e a disposigáo para que o homem sereencontrasse consigo por intermedio de sua abertura para a fontedivina da qual ele mesmo provém. Deus nao é ai o acusador, mas afonte de libertagao através de sua agáo misericordiosa. É justamenteisto que se vé ñas Confissóes de Santo Agostinho. No inicio do livroIX, que, dentre outras coisas, tematiza o tempo e sua relagáo com aeternidade, Agostinho diz:

Por isso patenteamos o nosso amor para convosco,confessando-vos as nossas miserias e as vossas

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misericordias a fim de que ponhais termo á obra já comegadada nossa libertagao e que sejamos felizes em Vos, cessandode ser miseráveis em nos. Por isso nos chamastes para quefóssemos pobres de espirito e mansos, para quechorássemos tendo fome e sede de justiga, para quefóssemos misericordiosos, puros e pacíficos.Já vos narrei muitas coisas segundo me foi possível esegundo o desejo de minina alma, já que fostes o primeiro aexigir de mim que me confessasse a Vos, meu Senhor e meuDeus, "porque sois bom e a vossa misericordia é eterna"(AGOSTINHO, 2011, p. 283).

A confissao, como o texto ácima deixa claro, é o exercício deautorreconhecimento do homem perante a fonte de sentido realizadorde si mesmo: Deus. Por isso, toda fala humana a Deus nao é ummeio de informagáo daquilo que ele (Deus) ignora. A finalidade de sefalar a Deus nao é outra senáo " excitar o meu afeto para convosco"(ídem). Como Deus é simultáneamente transcendente emisericordioso, toda confissao nao se assegura de Deus, maspossibilita langar aquele que se confessa ñas máos do misterio divinoe, nesta entrega, o homem reconquista sua ipseidade de modo naodefinitivo (Cf. FILHO, 2009, p. 129-208). Neste sentido, a confissaoconta com a verdade da graga divina, que de modo algum pode serassegurada pelo homem de fé. Há um drama, portanto, no cerne daprática confessional neste momento do cristianismo, que em seguidasofreria urna radical alteragáo com o sacramento da confissao,orientado pela figura da sacerdote. Com este, a confissao passou aser o discurso do réu confesso em busca das medidas corretivas queo possibilitassem ser salvo. O sacerdote, por sua vez, tornou-se oagenciador das verdades teológico-morais que deveriam mediatizar oresgate do pecador e o preparar para a graga salvífica de Deus.Comegava a entrar em cena as verdades especulares quenecessitavam da presenga de um especialista (clérigo) paramanipulá-la corretivamente. Entretanto, a finalidade desta prática eraa salvagáo da alma, o que dependía da agáo gratuita e graciosa deDeus, que nao se reduzia á figura do sacerdote. Sempre pairava adúvida em relagáo ao fato de se Deus confirmaría efetivamente asmedidas sacerdotais, pois Deus mesmo, na condigáo de ser absoluto,poderia sempre nao se adequar por inteiro as praticas humanas. Naoé por acaso que a Reforma Protestante, no século XVI, colocou¡mediatamente em xeque a validade do modo como se praticava osacramento da confissao. Para a Reforma, tal prática nao levaríaradicalmente a serio a liberdade da graga divina. Com a clínicapsicológica, criticada por Feijoo, a dinámica corretiva e o aspectoespecular da verdade retornam á cena ocidental, sem, entretanto,salvaguardar o caráter de misterio da instancia curativa, como se

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pensava em relagáo a Deus, o que a faz, como afirmado ácima, maisperigosa.A confissao moderna inerente á clínica preserva a figura dosacerdote, porém descarta o misterio divino. Agora, osacerdote/terapeuta detém os instrumentos de salvagáo,instrumentos estes que nao possuem liberdade, como a gragasalvífica de Deus pensada pelo cristianismo, urna vez que se reduzemao conhecimento do confessor (terapeuta). Se o perdáo divinosempre foi um misterio, o "perdáo clínico" só é misterioso para oanalisando, que desconhece aquele instrumental. Assim, está ñasmáos destes sacerdotes modernos a condenagáo ou a salvagáo dodrama humano, pois eles sao os donos dos meios de libertagao e dosconhecimentos das perversóes humanas. A verdade outroraidentificada com Deus agora é nada mais nada menos que osmodelos explicativos do funcionamento do psiquismo humano. Porisso, ela tem dono. Resta aos demais se curvarem perante ela eserem modelados e moralizados pelos terapeutas. Assim, na terceirae última parte de A existencia para além do sujeito, Feijoo registra,ao descrever a situagáo existencial de um homem ficticiamentechamado de Paulo, que geralmente o "paciente" vai á clínicaesperando a objetivagáo dos diagnósticos do terapeuta. Deste modo,no enquadramento psicopatológico, ele sente-se confortável com aidentidade que ele acredita possuir ao ouvir do terapeuta qualenfermidade psíquica o determina (Cf. FEIJOO, 2011, p. 134-136).Isto indica que, na prática clínica, o sistema de sujeigao do homem jáfoi assimilado por inteiro. Vamos á terapia esperando que nos digam

- ou nos fagam saber - o que somos e por que assim o somos.Encontramos relativo conforto com esta prática porque de algummodo acreditamos que saltamos por sobre o caráter indeterminado eindeterminável do nosso ser-aí que é sempre poder-ser. Assim,entregamos nossa existencia para que decidam por nos o nosso ser,dando crédito as teorías que, a servigo de explicagóes cabais donosso psiquismo, subtrai o lastro ontológico que nos determina, lastroeste que torna a existencia um exercício de conquista e reconquistade si e nao a busca por identificagáo do nosso ser com algumaabstraía natureza (morta) humana.Ao inscrever a existencia, com sua dinámica performática e "elástica",no cerne da clínica, Feijoo nao define de urna vez por todas o modocomo se realiza a clínica, mesmo que ela tenha, na última parte dolivro, apresentado alguns exemplos de praticas clínicas com enfoquefenomenológico-existencial. O que ela faz é sobretudo apropriar-sedesse espago - a terapia - nao para responder os enigmas daexistencia humana, mas para proporcionar um lugar onde é possível- e nao necessário - o acontecimento de transformagóes existenciais.Estas nao sao causadas pelo terapeuta, mas somente favorecidaspela sua participagáo em um espago (éthos) em que ele nao é o

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protagonista, mas um dos personagens. Isto significa dizer que oterapeuta e a terapia sao elementos de um jogo que abre as portaspara a simples possibilidade do acontecimento da reinvengáo de si.Enquanto salvaguardador desta simples possibilidade, o terapeutaatinge sua riqueza, mesmo que se mova na precariedade assinaladapela falta de modelos teóricos que expliquem o ser humano. Tarefaque exige um novo aprendizado: esquecer o lugar e fungáo dosacerdote/terapeuta, para conquistar a sabedoria da docta ignorantiadaqueles que, ao lado do outro, participam favoravelmente de suatravessia existencial, sem langar máo de ideias universais de homeme de suas aplicagoes corretivo-morais na existencia alheia. Nestesentido, Feijoo assume a crise da subjetividade para pensar asuperagao da prática confessional da clínica. Por isso, o livro deFeijoo, intelectual que apresenta grande familiaridade com opensamento fenomenológico-existencial, além de linguagem clara erigor metodológico, langa á psicología grandes desafios. Esta é agrande "positividade" desta obra que tem como autora urna daspioneiras e principáis pesquisadoras brasileiras da psicología combases fenomenológico-existenciais, obra que nao visa aniquilar pormeio de seus exercícios de destruigáo da tradigáo a possibilidade daclínica, mas langa-lhe novos horizontes. Basta saber se há a coragempara se pensar a existencia para além do sujeito (supósitosmetafísicos) e, assim, entrar na senda dos enigmas existenciais e naodas respostas cabais. Alea jacta est - "a sorte está langada".

Referencias

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Alexandre Marques Cabra IDa crise do sujeito á superagao da confissao clínica

. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer, 2006.MARX, K. "Os 18 brumario de Luís Bonaparte". In: Marx. Colegáo Ospensadores. Sao Paulo: Abril Cultural, 1988.NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal - Preludio a urna Filosofía doFuturo. Trad. de Paulo César de Souza. Sao Paulo: Companhia dasLetras, 1999.

. Crepúsculo dos ídolos ou como filosofar com omartelo. Trad. de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2000.

. A gaia ciencia. Trad. de Paulo César de Souza. Sao Paulo:Companhia das Letras, 2003.

Enderece» para correspondenciaAlexandre Marques CabralRúa Barao de Piracinunga, 62 ( IFEN)Enderego eletrónico: [email protected]

Recebidoem: 30/03/2012Reformulado em: 24/07/2012Aceito para publicagao em: 25/07/2012Acompanhamento do processo editorial: Ana Maria López Calvo de Feijoo

Notas* Doutorado em filosofía na UERJ. Vinculagao institucional: Colegio Federal PedroI I , Instituto Metodista Bennett e Instituto de Psicologia fenomenológico-existencial.

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ARTIGOS

A clínica como poiética

Clinic as a poietic

Mónica Botelho Alvim*Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMOUm dos temas fundamentáis na clínica diz respeito á produgao de sentido.Quando Merleau-Ponty enfatiza a nogao de carne, propoe urna especie depassividade do eu ao campo, a um ser bruto que comporta eu e outro,cultura, historicidade, temporalidade. Afirma a necessidade de passar daerlebnisse (vivencia) á stiftung (instituigao), colocando acento num tipo deprodugao de sentido que é génese espontánea, diferenciagao, criagao apartir da diferenga. Neste trabalho discutimos a clínica da estalt-terapia emdiálogo com essas propostas e as questoes contemporáneas, para propor aclínica como lugar de criagao, que visa permitir o nascimento espontáneo dosentido como fala falante e desviante; a génese do sentido como instituigaoque nos garante o pertencimento com o outro a um mesmo mundo. É nessesentido que podemos pensar em urna ética da criagao na diferenga - urnaclínica como poiética.Palavras-chave: Gestalt-terapia, Merleau-Ponty, Instituigao, sicologíaclínica, Corpo.

ABSTRACTA key tríeme of trie clinic relates to trie production of meaning. WhenMerleau-Ponty emphasizes the notion of flesh, proposes a kind of passivityof the self to the field, a brute being who holds self and other, culture,history, temporality. Affirms the need to move from Erlebnisse (experience)to Stiftung (institution), placing emphasis on a kind of sense produced byspontaneous génesis, differentiation, creation from the difference. Wediscuss the clinical gestalt therapy in dialogue with these proposals andcontemporary issues, to propose the clinic as a place of creation,designed toallow spontaneous birth of meaning as deviant speech; the génesis of thesense as an institution guarantees belonging with the other to the sameworld. In this sense we can think of an ethics of creation from the difference- clinic as a poieticKeywords: GestaIt-Therapy, Merleau-Ponty, institution, clinical psychology,body.

1 Introdugao

Marginal é quem escreve a margem,deixando branca a página

para que a paisagem passe

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicologia | Rio de Janeiro | v. 12 | n. 3 |p. 1007-1023) 2012

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e deixe tudo claro a sua passagem

Paulo Leminski

A poesía de Leminski nos faz um convite. Escrever á margemdeixando a página em branco para a passagem da paisagem. BarryStevens, gestalt-terapeuta, eternizou a imagem de um terapeutamarginal - aquele que escreve á margem - no título "Nao apresse orio, ele corre sozinho". O que está implicado nessa imagem? Ficar ámargem do rio que corre, escrever á margem, deixar a paisagempassar ou o rio correr. Esperar. Respeitar o ritmo. Nao apressar.Deixar espago em branco. Nao preencher.O convite de ambos é para um trabalho - do terapeuta e do poeta -que confiando na vida (como vir-a-ser), concebe o fluxo e o vaziocomo espago-tempo de poder ser. Nesse trabalho, o olhar que admirae espera que algo se faga, possa ser, exige abertura e náo-fixagáo,presenga e náo-representagáo.Está em jogo aqui o tema da produgáo de sentido, tema fundamentalna clínica, um espago de possibilidade de ressignificagáo daexistencia. Compreendo a clínica como um campo de experiencia como outro que faz brotar sentidos a partir da expressáo e do diálogo.Espago de instituigao que vejo, aproximando-me do ponto de vista deMerleau-Ponty, como um processo de nascimento, "operagáo que éao mesmo tempo recuperagáo e superagáo de significagóes anteriorese apelo a novas criagoes de sentido" (DUPOND, 2010, p. 38). Umprocesso reversível entre o arqueológico e o teleológico, passado efuturo, um ecoando no outro, aqui-agora.

2 Experiencia e expressáo

A expressáo é gesticulagáo corporal, de acordó com Merleau-Ponty.Longe de ser a colocagáo no mundo como objetividade de algo jápronto no interior como subjetividade, a expressáo envolve ummovimento reversível de sair de si e entrar em si, movimento ek-stático, "ímpeto ou arrebatamento de nosso corpo em diregáo a algoque, mesmo nao diferindo de nossa própria temporalidade, nao nosfaculta coincidir conosco, exigindo de nos, a cada experiencia, umnovo recomego" (MÜLLER, 2001, p. 285). Merleau-Ponty, nos rastrosde Husserl, entende que é o corpo sensível que nos dá o sentido dapossibilidade, do Ich cann (eu posso). Propóe a experiencia comoexpressáo e fala, gesticul-agáo corporal em situagáo com o mundo,síntese temporal, trabalho do corpo, praxis que é génese de sentido,urna praktognosia. O sentido se faz enquanto expressáo. AssimMerleau-Ponty (1994) define o que chama "milagre da expressáo" (p.268): fazer a significagáo existir como coisa no mundo, presenga,

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emblema, corpo (p. 247). A potencia de expressáo, ele afirma, é bemconhecida na arte. "A expressáo estética confere a existencia em siáquilo que exprime, instala-o na natureza como urna coisa percebidaacessível a todos (...) a operagáo expressiva realiza ou efetua asignificagáo e nao se limita a traduzi-la" (op.cit., p.248).É também na diregáo da experiencia como expressáo que LygiaClark1 busca aproximar arte e vida. Trabalha para transformar oespago da obra de arte em um espago orgánico expressional.Convidando o espectador a participar ativamente da obra, transverteo espago da arte em um espago-tempo. Redireciona as relagóes doespectador com a obra de arte de um lugar de contemplagáo paraoutro de um ato corporal, ou seja, síntese temporal realizada pelocorpo: a experiencia expressiva, ato corporal que instituí um espago-tempo, faz a obra de arte. Marginal, a artista deixa em branco oespago, entregando ao participante, antes espectador, a autoría, opoder-ser.Definindo a psicología como o estudo da operagáo da fronteira decontato no campo organismo/ambiente, a Gestalt-Terapia enfatiza aexperiencia, operagáo criadora e expressiva diante da tensáo dadiferenga com o ambiente. Ao definir self como um sistema decontatos, promove um duplo movimento do eu: deslocado do interiordo psiquismo para o campo, ele é descentralizado; perdendo oestatuto de pura representagáo, o eu, insubstancial, é compreendidocomo um processo de desdobramento temporal, espontaneidadeexpressiva e criadora.Considerando a neurose um estado de distanciamento do corpo e daexperiencia, dicotomizagáo mente-corpo e corpo-mundo que implicaem fixagáo, rigidez de formas e impossibilidade de criar, a gestalt-terapia propóe urna clínica que visa restituir plasticidade e fluidez naformagáo de formas, retomar o livre fluxo de awareness. Definida porRobine (2006) como conhecimento ¡mediato e implícito do campo, aawareness é experiencia temporal que envolve sentir, excitamento eformagáo de gestalten. Dimensáo pré-reflexiva, o sentir é pathos deabertura, entrega ao campo e ao diferente que me afeta, convoca eanima, fazendo nascer um excitamento e um movimento corporalespontáneamente orientado ao futuro que se avizinha e se liga aopassado, fundo habitual que sustenta a formagáo de gestalt. Dessemodo, a Gestalt-terapia, menos que urna teoría da personalidade éurna teoría da criagáo e expressáo, urna terapia da formagáo deformas: movimento do presente para o futuro que nao prescinde dopassado, agáo- atividade, paixáo - passividade (pathos).

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3 Corpo e intercorporeidade

A fenomenología de Husserl em sua última fase, tal comocompreendida por Merleau-Ponty e transmitida em seus cursos sobrea natureza (MERLEAU-PONTY, 2000n), afirma o corpo comooriginario. O mundo das idealizagoes é construido sobre um mundopré-reflexivo em que o papel do corpo é o de operar urna síntese detransigáo que permita compreender o mundo de dentro dele, numarelagáo com as coisas do mundo que se dé pelos movimentos docorpo que avanga e recua, dá voltas, reúne perspectivas. "Euorganizo com o meu corpo urna compreensáo do mundo", afirmaMerleau-Ponty (2000n, p. 122). Tal compreensáo nao é dada por urnaconsciéncia reflexiva, mas é sentimento de poder (possibilidade) dadopela insergáo em um mesmo campo, "campo onde se localizamminhas sensagoes" (MERLEAU-PONTY, 2000n, p. 122).O corpo é excitável, capacidade de sentir nao como reagáo, mascomo co-presenga com as coisas. O sentir localiza-se, assim, nocorpo-mundo, nesse campo ou situagáo aqui-agora. Tal consciéncia,dada pelo corpo, é "escorregadia, o sentimento de um poder"(op.cit). É na relagáo com outrem que me completo como existenciaobjetiva, que passo de tal consciéncia escorregadia, desse sentimentode poder, a urna concretude da realizagáo daquilo que apenas sinto. Évendo o outro ver o que vejo, movendo-se, como eu, em diregáo aalgo, numa operagáo que, antes de reflexiva é estesiológica, quesurge um eu como concretude no espago e no tempo. Husserl, talcomo afirma Merleau-Ponty (2000n, p. 125) propóe assim que aEinfülung (empatia) é urna operagáo corporal, "(...) a posigáo de umsujeito estesiológico. Eu nao projeto no corpo de outrem um Eupensó, mas apercebo o corpo como percipiente antes de apercebé-locomo pensante".

Ao escolher o termo organismo e nao sujeito ou pessoa, a Gestalt-Terapia marca o lugar do corpo na experiencia no mundo. É nessesentido que podemos falar de organismo como totalidade mente-corpo imbricada no mundo, numa relagáo que nao tem produto ouprodutor, atividade ou passividade absolutas, que Merleau-Ponty(2000n) denominou naturante-naturado e a Gestalt-terapia refere-se, em sua teoría do self, como modo medio de funcionamento2. Ométodo da Gestalt-Terapia propóe concentrar-se na estruturaconcreta da situagáo para restituir o brilho e o vigor da figura débil. Oque significa urna figura débil? Que nao há in-corporagáo, o fluxo deawareness está impedido e a excitagáo perdida como diregáo emoviment-agáo. O terapeuta busca estabelecer urna relagáo com asituagáo a partir de seu corpo e de sua presenga, assumindo aposigáo de um sujeito estesiológico, convidando, assim, o cliente elemesmo a voltar-se para o corpo. Busca resgatar a relagáo de co-presenga. A espontaneidade do terapeuta distingue a Gestalt-Terapia,

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indicando que a relagáo terapéutica solicita, sobretudo, urna presengaengajada que permita um encontró que seja experiencia estética docampo, um campo de presenga.Merleau-Ponty, na última fase de seu trabalho, deixa o ponto de vistade um corpo-sujeito, para enfatizar a nogáo de carne, propondoassim urna especie de passividade do eu ao campo, a um ser brutoque comporta eu e outro, cultura, historicidade, temporalidade. Ofilósofo critica a crenga em urna subjetividade transparente a simesma e um caráter constituinte da consciéncia e propóe um campoprimordial, urna indiferenciagáo original de onde brota o sentido, oser bruto, anterior a qualquer diferenciagáo em termos desubjetividade. Trata-se de urna dimensáo sensível e passível apenasde compreensáo corporal e de ser compartilhada por meio daexperiencia intercorporal.Referimo-nos em Gestalt-Terapia a um id da situagáo (PERLS;HEFFERLINE; GOODMAN, 1997; ROBINE, 2006; ALVIM, 2007).Compreendo, a partir desse construto, que estamos voltados para adimensáo sensível e intercorporal do processo de contato que, nasituagáo terapéutica, dá indicios da necessidade em dominancia. Afonte do excitamento está no contato. Nao está em algumaprofundeza do eu, tampouco no estímulo do ambiente, mas nasituagáo, nessa imbricagáo, entrecruzamento que conecta eu e outro,visível e invisível, singularidade e universalidade, fato e essénciaconfigurando urna estrutura, Ser em estado bruto (MERLEAU-PONTY,2000). O trabalho psicoterápico, em nossa perspectiva, deve partir daexigencia de sentido dada no diálogo e no contato, experiencia dealteridade que é ao mesmo tempo diferenga e identidade. Essediálogo é, na perspectiva de Merleau-Ponty, intercorporeidade. Aocontrario de um diálogo que se dé em torno de urna reflexáo, buscade constituigáo de sentido por urna consciéncia ativa, é um trabalhode instituigáo. Modo medio, passividade-atividade, co-presenga,precisa dar-se inter corpos, partindo do id da situagáo, ou seja, issoque está aqui-agora, em estado bruto, em processo de diferenciagáo,visível em processo de fazer-se, emergindo de um fundo (carne) queé invisível, todavía presente e sensível.Concebendo entáo o corpo como experiencia originaria, falamos decorpos vivos, vibrando diante do outro, movimentando a carne(MERLEAU-PONTY, 2000) que é também mundo. Carne, quetrémula, nos sustenta como um fundo no qual estamos apoiados e doqual brotamos como diferenga. Partimos desse ponto para pensar noprimeiro de alguns cenários necessários para compor nossaconstrugáo neste texto.

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3.1 Cenário 1- Do corpo no mundo contemporáneo

Como estáo nossos corpos no mundo contemporáneo? Menosvibrantes: dormentes, an-estesiados, ou seja, sem estesis oumovimento. Menos totalidade: cindidos, tornados objetos submetidosá racionalidade ela própria moldada e controlada por padroesexternos. Menos imbricados no mundo: fechados em nos comopartes-extra-partes, mais e mais naturados, objetos feitos de fora,produzidos em serie nos espelhos das academias, ñas vitrines damoda, no jogo das imagens reais ou virtuais, que cooptam ebanalizam a invengáo transformando a criagáo em produtoserializado, serial-killers dos corpos vibrantes. Uma especie de morteem vida.Como fazer frente a esse tipo de vida morta?A morte de Cara de cávalo, um bandido do morro da Mangueira, emmeados dos anos 60, movimentou Helio Oiticica na invengáo de umaobra-homenagem, um de seus bólides, que nomeou Cara de cávalo.O mergulho na comunidade da Mangueira atraiu seu olhar para umapoética da ludicidade e da alegría do corpo que danga, da construgáocoletiva, da liberdade lúdica que implica o corpo-no-mundo-com-o-outro. Diante da revolta do próprio artista com a desigualdade sociale os falsos valores "que pregam o bem-estar, a vida em familia, masque só funcionam para uma pequeña minoría" (OITICICA, 1986, p.82), o bordáo que ecoava dele era "Seja marginal, seja herói". Oheroísmo do marginal está em praticar uma "antimoral" (op.cit),situar-se á margem. A obra de Oiticica é um elogio ao herói solitarioe morto por sua radical e trágica náo-submissáo á ordem instituida.Na obra-homenagem de Helio, há uma denuncia contra a miseria, ainjustiga social, a repressáo. E uma ode á subversáo. "Estáo comoque justificadas todas as revoltas individuáis contra valores e padroesestabelecidos", afirma (OITICICA, 1986, p. 81). O artista expressavana homenagem a Cara de cávalo sua crenga absoluta na adesáo doestético e do ético pela cola da criagáo e da transgressáo. No limiteda auto-destruigáo, estamos diante da morte como conseqüéncia(trágica) de uma radical tentativa de afirmagao de vida.Dialeticamente opostas, uma vida morta e uma morte viva nosconvidam a pensar uma psicología a servigo da restituigáo da vida.Que reacenda os corpos, quase sempre mortos-vivos encenando atragedia da imagem simulacro. Uma psicología que restitua o que háde heroico na transgressáo. Que convide ao diálogo e ao coletivocomo instancia legítima de vida. Vida que cria, transgride e élegitimada nos olhares outros do coletivo.

A poesía, a terapia, a arte e a filosofía aqui trazidas, convergem naénfase na experiencia expressiva, na diregáo ao ámbito de um euposso. Baseados na compreensáo de que a criagáo é experiéncia-corpo, trabalho de produgáo de sentidos, instituigáo, propóem um

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tipo de diálogo - do escritor com o leitor, do participante com a obra,do cliente com o terapeuta - que seja "invengáo comum de verdade"(DUPOND, 2010, p. 31), processo que ultrapasse a alternativa entrepassividade e atividade, fato e esséncia, natureza e cultura.Tal diálogo envolve gesticulagáo corporal, expressáo e linguagem,fala falante, palavras e gestos de um que convocam o outro pelasdiscrepancias, lacunas, desvíos e diferengas. Processos dedescentramento e criagáo articulados por um diálogo intercorporal,como unidade básica da vida que se faz e refaz. Ao voltarmo-nospara a ampliagáo da capacidade de awareness, estamos baseados naproposta de que o fenómeno originario é a experiencia, tal comocompreende Merleau-Ponty em seus últimos escritos, quandoradicaliza a idéia de que as esséncias estáo subordinadas áexperiencia. Esséncias e fatos sao inseparáveis, a experiencia comovariagáo e a esséncia como invariante sao dimensóes que nao sepode separar. Para Merleau-Ponty, tal como afirma Dupond (2010, p.25), "todo fato é internamente estruturado ou armado por urnaesséncia selvagem, regra invisível da visibilidade, da generalidade oudo sentido".Na neurose a experiencia está soterrada pelos conceitos e idéias,falsas esséncias. O corpo, anestesiado e encouragado (Wilhem Reich),docilizado e feito máquina (Michel Foucault), seja autómato ousintomático, expressa e torna visível tensóes e conflitos envolvidosñas relagóes com o mundo sócio-histórico. Na neurose há umimpedimento do fluxo espontáneo do excitamento, em fungáo dessesconflitos.Na situagáo terapéutica visamos, entáo, concentrarmo-nos no corposensível e nos sinais do excitamento que aponta para a diregáodaquilo que representa vitalidade, sinais que dáo indicios danecessidade dominante, da forga de vida, da esséncia, do sentido deser. Aquilo que, de modo neurótico, está impedido, mas que nao estámorto.No morto-vivo, decerto, ainda há vida, ainda que como um rasgo ouponto, débil sinal que, muitas vezes como derradeira tentativa, levaalguém a buscar a terapia. Reconhecer esse sinal, gesticulagáomínima, imagem quase toda borrada, requer um olhar aberto,distraídamente atento, que seja nao intelectualidade, mas experienciaestética, atitude que aqui chamamos marginal, atitude de espera,certa lentidáo.Diante da situagáo contemporánea pergunto se isso seria suficiente.Pergunto sobre a existencia, no contexto atual, de fatores limitantesou condicionantes da possibilidade de responder á exigencia ek-stática de um novo recomego. Urna prática psicológica, compreendidaem nossa perspectiva, se constrói e reconstrói em urna via de máodupla, no mundo, precisa ser um tipo de praxis que produza gnose.Faz-se necessário dirigir nosso olhar para o mundo em sua dimensáo

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sócio-histórica para prosseguir em nossa reflexáo. Tragemos, entáoalguns outros cenários.

3.2 Cenário 2: da psicología tal como é vista no mundocontemporáneo

Em nossos tempos a psicología está afirmada como ciencia e praxis.No imaginario social o psicólogo ocupa lugares distintos, dos quaisdestaco dois: o daquele que escuta, acolhe e compreende; e o doespecialista que sabe. O primeiro ocupa o lugar que se tornou vaziono mundo da solidáo e do individualismo onde ninguém escutaninguém; o segundo corresponde á demanda pelo saber científico eobjetivo de alguém que sabe o que eu nao sei e va i me curar.Os dois lugares nao sao excludentes e refletem um modo de pensarcontemporáneo construido ao longo do desenvolvimento dapsicología. O primeiro reflete um modo de estar no mundo marcadopor individualismo, onipoténcia e auto-referencia que gera ummovimento centrípeto na busca de urna subjetividade transparente asi mesma. O segundo lugar do psicólogo reflete a predominancia deum tipo de lógica mecanicista e explicativo-causal, um pensamentoanalítico que diante do sofrimento busca causas, origens,explicagoes, esperando encontrar em um tipo de análise genético-constitutiva a cura para o sofrimento. Ambos conduzem ao individuoe ao psiquismo como instancias legítimas do tratamento psicológico.Mais que afirmada como praxis, há, em certas carnadas da sociedade,urna psicologizagáo da existencia. Jacó-Vilela e Rodrigues (2004)discutem a divisáo histórica da psicología em duas vertentes: urnaque compreende a psicología necessariamente intrincada com o sociale a vertente hegemónica, a psicológica, que acentúa o individuo e apsyché e que, no máximo, incluí a sociedade como coadjuvante. Paraessa vertente, "o social pode, em síntese, influenciar o psicológico,mas nao o produz nem o fundamenta" (op.cit., p.217). As autorasdiscutem urna historiografía da psicología no Brasil, mostrando que aorigem dos "estudos sobre o homem" é marcada por discursosmédicos que, "a posteriori seráo reconhecidos como psicológicos"(op.cit., p.219). O modelo médico cientificista e da especializagáo sepropaga na psicología desenvolvida ao longo do século XX, afirmandoo individuo, seja na dimensáo da interioridade, da consciéncia, doinconsciente, ou mesmo do comportamento (op.cit). Fato é que opsiquismo está na base e é o foco do trabalho clínico. A clínica incluías relagóes com o outro e com a cultura na constituigáo dopsiquismo, mas o tratamento é, via de regra, dirigido para o ámbitode urna dinámica intrapsíquica.

Vasconcelos (2009, p. 44) corrobora esta idéia quando discute ascaracterísticas hegemónicas do modelo clínico liberal: "énfase noatendimento individual,(...) elaboragáo psicológica sustentada nos

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códigos culturáis e lingüísticos das élites letradas da sociedade (...) efoco praticamente exclusivo nos processos psíquicos".

3.3 Cenário 3: da psicología em movimento

Urna parte da psicología, por sua vez, movimenta-se para fora, ummovimento ex-céntrico e ek-stático, atendendo á exigencia derecomego e percebendo que o risco de reduzir o sofrimento aointrapsíquico é de transformar o espago da psicoterapia em outraforma de sofrimento. Diálogos e movimentos interdisciplinaresapontam urna tendencia náo-psicologizante, que nao considerapossível, tampouco suficiente, urna psicología sem sociología,antropología, historia, ciencia política.Há um descompasso entre a demanda instrumental que se faz áPsicología e esse projeto em progressáo. Para compreender e superarisso por meio de novas instituigóes de sentido para a praxis daclínica, faz-se necessário, entre outras coisas, refletir sobre omomento histórico da passagem do século XX ao século XXI. Já se foia primeira década do novo século. A crise do capitalismo globalizadonos póe diante de um novo estado de coisas. Diante dos desafios querepresentam as novas (e reedigóes das velhas) formas de relagóes,subjetivagáo e sofrimento no mundo contemporáneo, a psicologíaclínica tem sido convocada a repensar seu projeto (BIRMAN, 1999;FONSECA; ENGELMAN, 2004; ANDRADE; MORATO, 2004; DUTRA,2004; COSTA; BRANDÁO, 2005; ALVIM, 2009).Muito se tem discutido sobre o tema e sobre a necessidade de pensarmodelos clínicos ampliados na psicología. Algumas propostascentram-se no corpo e nos afetos. Franco e Galavote (2010) fazemreferencia a algumas délas: A Clínica Ampliada (CAMPOS; AMARAL,2007; CUNHA, 2005); Clínica Peripatética (LANCETTI, 2006); Clínicado Desvio - Klinamen (BENEVIDES; PASSOS, 2001), Clínica do CsO(MERHY, 2007). De acordó com os autores essas sao algumas dassugestóes de um ampio mosaico de propostas que tem por objetivonao apenas a discussáo, mas, sobretudo, urna praxis voltada para ocuidado em saúde. Os autores propóem a Clínica dos Afetos:"Pensamos assim que a clínica do olhar deve compor com a dosafetos operando sobre as diversas dimensoes do corpo e produzindoao mesmo tempo a intervengáo sobre os órgáos, e um processointenso de subjetivagáo pelos afetos" (FRANCO; GALAVOTE, 2010).

3.4 Cenário 4: da Gestalt-terapia

Na formulagáo da Gestalt-terapia que nasce em 1951 houve acolaboragáo de um grupo de pensadores de diversas disciplinas:psicanálise, psicología da gestalt, sociología, estudos orientáis,medicina, educagáo. Inaugura-se na psicología um pensamento que

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considera o campo organismo/ambiente o ponto de partida e o focoda psicoterapia. Dirigidos pelo interesse e foco na estruturaorganismo-ambiente, esse grupo formulou compreensóes queabrangiam e enfatizavam o embate entre as forgas sociais e omovimento centrífugo do organismo em diregáo á regulagáo.

Em toda e qualquer investigagao biológica, psicológica ousociológica temos de partir da interagao entre o organismo eseu ambiente. Nao tem sentido falar, por exemplo, de umanimal que respira sem considerar o ar e o oxigénio comoparte da definigao deste (...)• O significado da raivacompreende um obstáculo frustrante; o significado doraciocinio compreende problemas de prática. Denominemosesse interagir entre organismo e ambiente em qualquerfungao o 'campo organismo/ambiente', e lembremo-nos deque qualquer que seja a maneira pela qual teorizamos sobreimpulsos, instintos etc., estamos nos referindo sempre a essecampo interacional e nao a um animal ¡solado (PERLS;HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 42).

Quando dizemos que self é contato, que nos fazemos e refazemos apartir do campo organismo ambiente, estamos considerando nao umsujeito psíquico, mas urna totalidade estrutural com dimensóes"sócio-culturais, animáis e físicas" (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN,1997). O que equivale as tres ordens da estrutura, tal como propostopor Merleau-Ponty: ordem física, vital e humana ou simbólica.Se falamos de um campo sócio-cultural, animal e físico a partir doqual há produgáo de um ajustamento criador, podemos tomar comoreferencia a idéia de que o que fago (espontaneidade motora) temurna dimensáo de ajustamento e outra de criagáo alimentadas porurna dimensáo física (materialidade) outra animal (vitalidade,instintos, pulsóes ou hábitos?) e outra sócio-cultural (capacidadesimbólica, representagóes, ideáis sociais, crengas, moral)entrelagadas de modo complexo. Está em jogo urna proposta depsicoterapia fundada na complexa imbricagáo de natureza e cultura.Quando propóe que no processo de contato o sistema self decontatos funciona no modo medio, indica urna posigáo filosófica eepistemológica que postula - encontrando-se com as propostas deMerleau-Ponty-, que a produgáo de sentidos seja instituigáo, nogáoque implica o surgimento de algo que referenciará experienciasulteriores. Ao contrario de um sentido que surge da minhainterioridade ou subjetividade como constituigáo, a instituigáo é umsentido que me aparece por meio de urna situagáo - tempo-espacial- que produz um movimento, apela ao futuro, ao porvir. "O tempo éo modelo da instituigáo: passividade-atividade, ele continua"(MERLEAU-PONTY, 2003, p. 5). A partir de seu aspectounlversalizante, continua o filósofo, instituigáo sao "eventos-matrizes,abertura de um campo histórico que tem unidade" (op.cit., p.44).

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O método clínico da Gestalt-Terapia se desenvolveu em torno docontato como movimento de desdobramento temporal - ajustamentocriador diante da diferenga. Como discutimos, visa, partindo dasituagáo psicoterápica, ampliar a capacidade de awareness (sentir,excitamento e formagáo de gestalten) propondo abertura e entregaao campo (sentir) para que o excitamento flua de acordó com ocampo ou situagáo de interagáo (forgas presentes), haja um trabalhocriador e instituinte que permita a formagáo de gestalten no campo.

Na perspectiva da gestalt-terapia, nao somos frutos dedeterminagoes externas ou sociais, tampouco dedeterminagoes psíquicas, mas nos fazemos e refazemos apartir do campo organismo-ambiente, imbricados no mundocom as coisas e os outros, sendo parte de situagoesconcretas e sócio-históricas. É a partir dessa condigaosituada e intersubjetiva que criamos sentidos, significamos eressignificamos nossa existencia e o mundo (ALVIM, 2C .0).

Importa-nos aqui ressaltar que a Gestalt-Terapia visa á totalidadeorganismo-ambiente, concebendo um eu que se faz e refaz narelagáo. Visa o corpo e o encontró com a necessidade mais genuínanaquele campo, parte da singularidade expressa naquela situagáo,garantindo a possibilidade da diferenga.Ao pensar em urna clínica poiética, pretendemos provocar umdiálogo, um deslocamento e a busca de novos sentidos. Queremosdizer com isso que buscamos um pensar sobre a clínica que nao serestrinja á gestalt-terapia, tampouco ao espago do consultorio ou áclínica tradicional. Que nao seja disciplinar na própria psicología. Queassuma a nogáo de clínica como Klinamen, ou seja, desvio dediregáo. Que se possa expandir para as comunidades humanas emtodas as suas dimensóes e singularidades.

4 Elementos para urna clínica poiética

Para o desenvolvimento da proposta de urna clínica como poiéticaaqui delineada, coloca-se como requisito e fundamento encará-lacomo ethos - tal como significava na Grecia antiga a natureza - lugarde acolhida, morada, abrigo, onde nos sintamos con-fiantes diante dooutro diferente e a ele unidos por urna aisthesis, dada na experienciada intercorporeidade, ou seja, do "sentir com" (ALVIM, 2011).Colocam-se entáo algumas dimensóes elementares para nossaproposta:1- a proposta de escrever á margem visa, na dimensáo ethos daclínica, á abertura de espago, acolhimento que se faz primeiro noesvaziamento dos sentidos para que, daí, seja exigida a experienciada criagáo e de ser;

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2- a tomada do corpo como sentir e co-presenga permite aexperiencia do "eu posso"; a experiencia do outro é urna operagáoempática corporal e sensível que permite a completude de urnaconsciéncia de ser aqui-agora.3- O corpo como sentir e co-presenga permite, na experienciaempática da aisthesis, urna segunda abertura de espago para aexperiencia do "eu posso";4- o poder do "eu posso" nao é um poder constituinte, masinstituinte, ou seja,

a instituigao oferece um sentido alargado para o queMerleau-Ponty denominou "eu posso" na fenomenología dapercepgao: "relagao com o espago-tempo valorados, emsuma, como capacidade para o novo, o genérico, o particulare o universal. Donde a insistencia de Merleau-Ponty de que omodo de ser da instituigao nao é o de um fazer eficaz oueficiente fundado numa relagao entre meios e fins e numaescolha, mas é urna operagáo simbólica ou um ato, que podeser designado como nascimento, entendido como instituigaode um porvir (Chauí, 2009, p.31).

5- Trata-se de urna praxis que permita o nascimento espontáneo dosentido como instituigao - atividade que ao mesmo tempo retoma opassado e exige um futuro -, fala que urna vez proferida se faz ser,criatura, presenga inexorável que, sedimentada na historia e nacultura, nos garante o pertencimento com o outro a um mesmomundo.O apelo ao poiético que aqui fazemos nos dá a pensar o terapeuta

como aquele que instiga a fala falante. O que remete á diferenga. Écom esse horizonte que tomamos a nogáo de "desajustamentocriador" (Alvim, 2007), como um tipo de intervengáo psicoterápicaque visa introduzir na situagáo urna novidade que lance terapeuta eparticipante ao ámbito do invisível, ao espago deserto dasrepresentagóes, ao vazio fértil de significagóes. É diante do vazio quese vislumbra adiante a possibilidade, quando se vive a experiencia do"eu posso", vivencia que alimenta a agáo criadora e transgressora. Ovazio aqui discutido nao tem significado psicológico, nao é urna faltanesse sentido. Como propóe Dupond (2010) a partir de Merleau-Ponty, "sao ocos que se produzem quando se deslocam asdiscrepancias de significado" (p.31).As tarefas do desajustamento criador se inspiram na arte moderna:descentrar o olho e desnaturalizar a percepgao. Descentrar o olhoque é sempre seduzido pelas facilidades da paisagem conhecida, daimagem fotográfica, como disse Merleau-Ponty. As representagóes eteses científicas podem ser urna bela e sedutora paisagem,entretanto, fixam o nosso olhar, impedem o exercício da crítica,fazem adormecer o corpo e os sentidos. Desnaturalizar a percepgao éconvidar ao trabalho perceptivo, passar ao terreno do desconhecido,

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do imprevisível que, partindo das entranhas da carne, nos obriga aum engajamento no mundo para significá-lo. Inspirados nosmovimentos de vanguarda da arte moderna, fizemos, naqueletrabalho (Alvim, 2007), urna imagem metafórica do terapeuta comoum personagem daquela vanguarda, que aqui retomamos.Consideramos o terapeuta um moderno inveterado. "Educador" dossentidos para que se produza o novo, o diferente, a fala falante, suamúsica, as vezes, é atonal e provoca desagrado. Seu trabalhoenvolve a dimensáo satánica da experiencia e da reorganizagáo dapercepgáo. É aquele que busca o descentramento como forma deafirmar a existencia. Karl (1998, p. 18) adverte que o satánico daexperiencia tende a ser associado á decadencia e á podridáo.Acreditamos, ao contrario, que a demonizagáo é um processo belo evital. A agáo de produgáo do contraditório a partir do desajustamentocriador aciona os sentidos, a corporeidade e remete á experienciaestética. Ao considerar o espago da psicoterapia como um campo deexperiencia, espago expressivo e instaurador de significados, estamosno ámbito da experiencia estética. Transformar a existencia emobjeto estético significa reconciliar o autor com sua própria obra, queagora pode ser vista em outra perspectiva, permitindo criagáo ereconciliagáo com si mesmo no mundo. Até mesmo - e quase sempreo é - quando essa reconciliagáo é transgressora: provoca choques etransgride o que está dado.O sentido ético de tal postura clínicaO desajustamento criador propóe a frustragáo do modo fixado derealizar a experiencia e o suporte para a criagáo de novos modos deexperienciar o contato. Se o terapeuta trabalha nessa perspectiva,está implicado na situagáo e entáo precisa, ele próprio, saberenfrentar o sertáo desconhecido, ajustar-se criativamente asnovidades, abrir máo do controle. De acordó com seu estilo, saberá omelhor modo de experimentar a experimentagáo. De acordó comcada cliente, em cada situagáo.Sem perder-se de vista, sem sair, ele próprio, da situagáo buscandoseguranga neurótica na técnica. O grande mal acontece quando asituagáo terapéutica representa, para o terapeuta, um "estado deemergencia crónico de baixo grau" (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN,2007, p. 123). Entáo ele poderá tender á busca de urna falsaseguranga. Miller (2002) define comprometimento como ficar com aexperiencia presente. Para ele, isso transcende um principio técnicoou um método, mas é "principio estético de transformagáo" e"posigáo ética" (p. 113).Corroboro sua posigáo, pois pensó que quando a Gestalt-Terapiapropóe ficar com a experiencia e com a expressáo singular do cliente,ela assume urna posigáo ética oferecendo o espago do ser e daexperiencia do outro. Tal posigáo é também corajosa: ao mesmotempo em que o terapeuta deseja que o cliente vivencie sua

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espontaneidade e se abra criativamente para a novidade e odesconhecido, ele próprio abre máo do "controle" da situagáo, selangando também para o ámbito do desconhecido.

5 Consideragóes Fináis

Ao discutir o contra-efeito que o artista moderno amarga ao exercerseu papel de vanguarda, Karl (1998) faz referencia ao incómodo dogrande público com a música de Schoenberg: "A inclinagáo do públicofavorecía claramente o neoclassicismo de Stravinsky, assimilável, ese manifestava contra a atonalidade e os 12 tons de Schoenberg,inaceitáveis para os ouvidos" (p. 18).Os contra-efeitos que atingem nossa imagem diante do grandepúblico sao uma questáo essencial para pensarmos na psicologíacontemporánea e na demanda que a ela é dirigida. Os riscos dapsicología psicologizante, da demanda instrumental feita a ela, secolocam também para nos, que comungamos perspectivasexistenciais e fenomenológicas em psicología. Para escapar de umapsicología psicologizante, de uma demanda instrumental, precisamosda crítica permanente. A complexidade das forgas políticas, dadapelas transformagóes do modo de produgáo capitalista, requer doterapeuta uma capacidade crítica da cultura e da sociedade, assimcomo de sua própria praxis. Nesta perspectiva, se faz indispensáveluma postura á margem e que sustente os contra-efeitos. Faz-seigualmente necessario um diálogo interdisciplinar que possa propiciarpráticas transdisciplinares, um movimento que avance do paradigmada simplicidade, tal como propóe Edgar Morin e que possa avangarpara a complexidade, retomando os primordios de uma prática clínicaainda nao atingida pela miopía da especializagáo. Para lidar comalgumas forgas invisíveis, instituigóes e sedimentagóes do mundocontemporáneo que agem como forgas agenciadoras de subjetividade(GUATTARI, 1992) é preciso levar a nogáo de situagáo as últimasconsequéncias, nos perguntando até que ponto, permanecendofechados em nossos consultorios e abordagens, concreta oumetafóricamente falando, temos condigóes de integrar em nossodiálogo movimentos vibrantes que, como navalha na carne, possaminstituir.

Na vida midiática do ano de 2011 o mesmo jogo de imagens que nosmata em serie, nos atinge em dois flancos: de um lado com a arteviva e transgressora de uma Amy Whinehouse (que poderia ser JanisJoplin, Cássia Eller, Elis Regina) nos sentimos inspirados econfirmados em nossa dimensáo poiética. De outro, sua morte trágicareafirma, de modo novo, o heroísmo de Cara de cávalo, quando langano mundo, como instituigáo, um grito da dor pungente de todos nos,dimensáo universal e invisível, carne do mundo atravessada e

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sangrando, exigindo, implorando por novas criagoes de sentido quepossam retomar e ecoar sentidos para a vida.Apelo que brota da angustia, a po-ética na clínica consiste emnascimento, génese do sentido como fala falante e desviante. Comum movimento de zigue-zague, a clínica nao anda em linha reta, nemconcebe cada um andando na sua linha, mas, ao contrario, é co-presenga e co-afetagáo que instituí e garante o pertencimento a ummesmo mundo. A po-ética é, assim, forga mobilizadora que, diantedo abismo, nos impulsiona á aventura de voar.

Referencias

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Enderece» para correspondenciaMónica Botelho AlvimAv. Pasteur, 250 - Pavilhao Nilton Campos. Campus da Praia Vermelha,Cep. 22.290-240, Rio de Janeiro - RJ, BrasilEnderego eletrónico: [email protected]

Recebido em: 09/11/2011Aceito para publicagao em: 11/10/2012Acompanhamento do processo editorial: Ana Maria Lopes Calvo de Feijoo

Notas*Doutora em Psicología - Universidade de Brasilia - UnB.1Artista brasileira que fez parte do movimento neoconcreto no Rio de Janeiro(1959) e que exerceu um papel importante na formulagao de concepgoesinstituintes para a arte contemporánea, como a participagao do espectador e aimplicagao do corpo do espago da arte.

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Mónica Botelho AlvimA clínica como poietica

2O termo é utilizado na GestaIt-Terapia para indicar um tipo de relagao sujeito-mundo que funciona em um modo medio, ou seja, nem ativo, nem passivo. Provémda lingüística, de um modo verbal medio que desapareceu da maior parte daslínguas, onde sobrevivem apenas os modos verbais ativo e passivo. Ver Perls,Hefferline e Goodman (1997) , Robine (2006) e Alvim (2007).

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ARTIGOS

Historia e reflexáo sobre as políticas de saúde mentalno Brasil e no Rio Grande do Sul

History and reflection on the mental health policies in Braziland the Rio Grande do Sul

Miriam Thais Guterres Dias*Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, Rio Grande doSul, Brasil

RESUMOO presente trabalho analisa a constituigao da política de saúde mental noBrasil e no estado do Rio Grande do Sul, contextualizada na trajetória daspolíticas de saúde no Brasil, com suas conexoes com o sistema económico,político e social do país, na perspectiva teórica dialético-crítico. O momentohistórico analisado foi entre o Imperio e o final do século XX, período designificativas transformagóes na modelagem das políticas sociais,decorrentes das mudangas ocorridas no papel do Estado. A análise teóricaconsiderará os movimentos presentes ñas articulagoes entre o campo doconhecimento e o campo económico e político, determinado a constituir econsolidar um estado nacional e desenvolvimentista. Quadros e síntesesapresentarao os acontecimentos mais relevantes nos períodos analisados,para melhor contextualizagao e análise dos mesmos.Palavras-chave: Historia da saúde mental, Políticas de saúde mental,Brasil, Rio Grande do Sul.

ABSTRACTThe present work analyzes the constitution of mental health care policy inBrazil and in the state of Rio Grande do Sul. It will evalúate the trajectory ofthe mental health care policies in Brazil, with its connections to thecountry's economic, politic and social system, in theory perspectivedialectical-critic. For that, it will be studied the period comprised from theEmpire until the end of the 20th century, a period of significant changes inthe mould of social policies, caused by modifications occurred in the role ofthe State. Henee, the theoretical analysis will take into account the actionspresented in the articulations between the technical knowledge and theeconomic and politic field in order to construct and consolídate a nationaland developmental state. Synthesis charts will present the most relevantevents occurred in the evaluated period in order to better understand andanalyze them.Keywords: History of mental health care politics, Mental health carepolicies, Brazil, Rio Grande do Sul.

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicologia | Rio de Janeiro | v. 12 | n. 3 |p. 1024-1045) 2012

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Miriam Triáis Guterres DiasHist. e reflex. sobre as políticas de saúde mental no Brasil e no Rio Grande do Sul

1 Introdugao

A constituigáo da política de saúde mental no Brasil e no estado doRio Grande do Sul, contextualizada na trajetória das políticas desaúde no Brasil, com suas conexóes com o sistema económico,político e social vigente tem relevancia por possibilitar conhecimentoe reflexóes sempre necessários para produgáo e avaliagáo de políticassociais. O período histórico analisado foi o discorrido entre o Imperioe o final do século XX, com suas significativas modelagens daspolíticas sociais decorrentes do papel do Estado brasileiro, compondoa produgáo de doutoramento em Servigo Social.As políticas públicas sociais sao constituidas a partir de umdeterminado modo de a sociedade conceber e explicar fenómenossociais para que a agáo pública se efetive com seus dispositivos legáise de gestáo. A política setorial da saúde e sua especificidade de saúdemental foram gestadas no teor, ritmo e tempo característicos daformagáo e consolidagáo do Estado brasileiro ao longo do século XX,particularidades que as moldam com feigóes dinámicas econtraditórias.O interesse em analisar a política de saúde mental brasileira está nofato de que esta passou por urna revisáo crítica ao modelohegemónico existente até meados dos anos 1980. Sua perspectivacontemporánea é fruto do movimento da reforma psiquiátrica,concebida no bojo da Reforma Sanitaria e instalada no contexto dodebate sobre a Reforma do Estado no Brasil nos anos 1990. Entende-se como reforma psiquiátrica o processo de reversáo do modomanicomial e hospitalocéntrico de lidar com o fenómeno dotranstorno mental e do sofrimento psíquico, com a centralidade dacidadania dos sujeitos, estes inseridos numa histórica e determinadasociedade (DÍAS, 2007).Desde entáo, um conjunto de reivindicagóes, legislagóes e adogáo denovas modalidades de atengáo em saúde mental vém sendoimplantadas, tanto pela agáo de agentes sociais como pelo Estado. Aprocessualidade dos movimentos contraditórios em diferentesestágios da vida social traduz-se na historicidade, categoría analíticacentral neste estudo. As mudangas ñas sociedades sao permanentes,sendo importante verificar os rumos que estas provocam em relagáoa determinados aspectos de interesse á sociedade.O artigo está organizado em momentos que procuram demarcar atrajetória das políticas de saúde mental no Brasil e no Rio Grande doSul nos contextos e eventos mais relevantes em quinze décadas,inseridas ñas respectivas políticas de saúde, cujo criterio foi ascaracterísticas do Estado brasileiro. Assim, os marcadores escolhidosforam: Do Imperio á República Velha; o Governo Provisorio,Constitucionalista e Estado Novo; Período Desenvolvimentista, da

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Ditadura Militar e da Nova República ao final do século XX, comquadros sínteses ilustrativos dos acontecimentos mais relevantes.

2 Do Imperio á República Velha

As políticas de saúde e de saúde mental nasceram sob a égide dafilantropía e da preocupagáo com as condigoes necessárias para areprodugáo da forga de trabalho, e nao na perspectiva dos direitos edos cuidados dignos aos individuos. A política social do tipo residual(PEREIRA, 2002) foi a marca do período do Imperio até a década1930 no Brasil, quando a assisténcia á saúde da populagáo em geralera realizada pelas instituigóes hospitalares vinculadas a entidadesreligiosas.0 modelo clássico de atengáo em saúde mental foi a construgáo emanutengáo de grandes asilos psiquiátricos que demonstraram suaincapacidade de tratar e de respeitar os direitos dos portadores detranstorno mental. Esta também foi a trajetória do HospitalPsiquiátrico Sao Pedro, no estado do Rio Grande do Sul, que por maisde um século centralizou o atendimento em saúde mental. O Quadro1 apresenta urna síntese deste período.

Quadro 1 - Síntese da Trajetória das Políticas de Saúde e SaúdeMental no Brasil e no Rio Grande do Sul - Imperio e República Velha.ANO ACONTECIMENTOS

1852 Inauguragáo do Hospicio Dom Pedro I I , Rio de Janeiro, RJ.

1860 Casa de Saúde Doutor Eiras, primeira instituigáo psiquiátricaprivada do país, Rio de Janeiro, RJ.

1884 Inauguragáo do Hospicio Sao Pedro, Porto Alegre, RS.

1903 Lei Federal de Assisténcia aos Alienados, n 1.132, de 22/12/1903.Reorganiza a assisténcia aos alienados.

1919 Primeira Lei de protegáo aos Acidentes de Trabalho.

1921 Lei Carlos Chagas, ampliagáo dos servigos de saúde pela agáoestatal.

1923

Lei Eloy Chaves - previdencia social para ferroviarios e portuarios,através da criagáo das Caixas de Aposentadorias e Pensóes -CAPs.Promulgagáo do Código Sanitario.Criada a Liga Brasileira de Higiene Mental, no Rio de Janeiro.Io Congresso Brasileiro de Higiene.

1924 Decreto 3.356 governo RS, intendentes municipais entre asautoridades competentes para requisitarem a internagáo depacientes no Hospital Sao Pedro.

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1926 Hospital Psiquiátrico Espirita de Porto Alegre, privado filantrópico.

1929 Congresso de Higiene e Hospitais, na cidade de Rio Grande, RS,discute a criagáo de Anexos Psiquiátricos nos hospitais gerais dasprincipáis cidades do RS.

Fontes: OMS, 1955; FARIA, 1981; FEE, 1983; CERQUEIRA, 1984;COSTA, 1986; COSTA, 1989; DELGADO, 1994; GUIMARÁES eTAVARES, 1994; PAULIN; TURATO, 2004; HOCHMAN, 2005;FIOCRUZ, 2005; RAMOS, GEREMIAS, 2006.

A institucionalizagáo do tratamento dos doentes mentáis foi uma dasobrigagoes das Santas Casas de Misericordia, decorrente do caráterde assisténcia social destas organizagóes. A Santa Casa de PortoAlegre iniciou suas atividades em 1826, com o recolhimento dosdoentes mentáis da entáo Provincia de Sao Pedro, denunciando aogoverno seus sucessivos prejuízos financeiros e desgaste na suaimagem filantrópica, ao nao conseguir prestar um servigo adequadoaos pacientes (WADI, 2002).A mobilizagáo realizada pela Santa Casa provocou o governo aassumir diretamente uma agáo de atendimento em saúde mental,com a criagáo do Hospicio Sao Pedro que iniciou suas atividades em1884, renomeado como Hospital Psiquiátrico Sao Pedro em 1961.No cenário de eclosáo da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e danecessidade de redefinir a composigáo da forga de trabalho emdecorréncia do encerramento do ciclo do trabalho escravo, base damáo de obra da época, fez-se necessária a adogáo de estrategiaspara a reprodugáo das condigóes de vida das classes trabalhadoras,que emergiam com a instalagáo do modo de produgáo capitalista nosprimordios de sua fase industrial. Estas classes iráo demandar asprimeiras agóes estatais no setor de saúde brasileiro (COSTA, 1986),a partir de um conjunto de medidas com o apoio do círculo intelectualmédico-sanitario, para a preservagáo da saúde da forga de trabalho eno controle e erradicagáo de um conjunto de doengas transmissíveisque subjugava a saúde da populagáo.A principal énfase na saúde pública naquele momento era osaneamento, motivo que levou o círculo médico-sanitario a defendera inclusáo da carreira médica neste campo. Esta legitimidade podeser medida pela criagáo dos Congressos Brasileiros de Higiene, noano de 1924 (HOCHMAN, 2005), que por varias décadasinfluenciaram o pensamento técnico e político na saúde públicabrasileira.O pensamento sanitarista foi constituido na concepgáo higienista,assentado num conjunto de práticas sanitarias para erradicar doengastransmissíveis que afetam as condigóes de saúde. Articulado a ele,esteve presente a concepgáo da eugenia, referente ao "estudo dosfatores socialmente controláveis que podem elevar ou rebaixar as

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qualidades raciais das geragóes futuras, tanto física comomentalmente" (COSTA, 1989).A eugenia se constituiu em um movimento intelectual quecorrespondeu a varios interesses, como sanear os aglomeradosurbanos e rurais e imprimir novos comportamentos sociais paradebelar os efeitos da miscigenagáo racial, considerada um risco socialpela élite conservadora (STANCIK, 2004). Deste modo, houve aaproximagáo histórica entre a eugenia e o higienismo na conformagáoda saúde pública brasileira, influenciando sua expressáo na saúdemental de modo hegemónico, representado pela Liga Brasileira deHigiene Mental, fundada em 1923, bem como na criagáo de hospitaise colonias-agrícolas públicas para pessoas com transtornos mentáis,tuberculose ou hanseníase.Os médicos psiquiatras da época passaram a defender a prevengáoeugénica como o instrumento mais rápido e eficaz para sanar asituagáo de degradagáo moral e social causada por "vicios, ociosidadee miscigenagáo racial do povo brasileiro" (COSTA, 1989). A categoríaassistencialismo também esteve presente neste processo deinstitucionalizagáo da saúde mental como política de governo,marcando até a atualidade a fungao social dos hospitais psiquiátricos.Até meados do século XIX, "o trabalho e as instituigóes de saúderepousavam em tres pilares: a medicina liberal, as medidas coletivasde prevengáo e higiene e o assistencialismo" (MÉDICI, 1995).No Rio Grande do Sul, o ingresso de pacientes no Hospicio Sao Pedroatendía também as necessidades públicas, pois os IntendentesMunicipais foram autorizados a requisitarem internagáo psiquiátrica,através de ato do executivo estadual. É interessante constatar quejanaquela época surgía a proposta de incluir hospitais gerais noatendimento em saúde mental, pois no Congresso de Higiene eHospitais da cidade de Rio Grande, em 1929, foi proposta a criagáode anexos psiquiátricos nos hospitais das principáis cidades doEstado, como forma de reduzir o número de internos no Sao Pedro(GODOY, 1955).Ao fim da República Velha (1889-1930), o Estado impulsionou acriagáo de mecanismos para responder as demandas do mundo dotrabalho, tais como: legislagáo sobre acidentes de trabalho;ampliagáo dos servigos de saúde pela agáo estatal; promulgagáo doprimeiro Código Sanitario; e instalagao da previdencia social privada,que originaram o sistema de previdencia social e da medicinaprevidenciária pública no país.O período histórico subsequente terá a marca da preméncia dodesenvolvimento industrial numa conformagáo política de ampliagáodo poder central federal que orientará os estados na adogáo daspolíticas económicas e sociais. Novos ordenamentos na organizagáosocial erigidos com a Revolugáo de 1930 sao realizados, para

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responder as demandas sociais e garantir urna unidade nacional noprojeto de industrializagáo.

3 O Governo Provisorio, Constitucionalista e Estado Novo

O cenário internacional de crise económica no final dos anos ] doséculo XX repercutiu no Brasil e influenciou na alteragáo do modeloeconómico, até entáo sob a hegemonía do setor agroexportadorcafeeiro. Desencadeou urna desarticulagáo das forgas políticas eeconómicas vigentes, criando as condigóes para o Estado brasileiroassumir a centralidade na condugáo do processo produtivo e político(FLEURY, 1994).A Revolugáo de 1930 inicia entáo um novo ciclo económico ereconfigura o papel do Estado brasileiro, demarcado com a ascensáode Getúlio Vargas como presidente em tres momentos particulares:Governo Provisorio (1930-1934), Constitucionalista (1934-1937) eEstado Novo (1937-1945). No ámbito económico, foi o período depassagem para a economía urbano-industrial e consequente declíniodo poder oligárquico, hegemonico na República Velha.O Estado se orienta pela modernizagáo do estilo de vida dapopulagáo, e adota a política de atender as massas populares comofonte de legitimagáo e de poder, bem como o estilo intervencionistana economía e ñas políticas sociais (SAES, 1999; PEREIRA, 2002).Urna síntese deste período está no Quadro 2.

Quadro 2 - Síntese da Trajetória das Políticas de Saúde e SaúdeMental no Brasil e no Rio Grande do Sul - Governo Provisorio,Constitucionalista e Estado Novo (1930-1945)

ANO ACONTECIMENTOS1930 Criagáo do Ministerio da Educagáo e Saúde Pública.

1931 Clínica Olivé Leite, hospital psiquiátrico privado em Pelotas, RS.

1933Criagáo dos Institutos de Aposentadorias e Pensóes - IAP's, queinstituí a política de assisténcia médica previdenciária, destinada agrupos de trabalhadores urbanos mais organizados.Clínica Sao José, hospital psiquiátrico privado em Porto Alegre, RS.

1934 Lei n°. 24.559, que dispóe sobre a Assisténcia e Protegáo á Pessoa eaos Bens dos Psicópatas.

1935 Secretaria de Educagáo e Saúde Pública , no RS.

1937Reforma do Ministerio, que passa a se denominar Ministerio daEducagáo e Saúde.

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Lei criando as Conferencias Nacionais de Saúde e de Educagáo.

1941Criagáo dos servigos nacionais de saúde: Doengas Mentáis,Organizagáo Sanitaria, Organizagáo Hospitalar, Lepra, Tuberculose,Febre Amarela, Peste, Fiscalizagáo da Medicina, Propaganda eEducagáo Sanitaria, do Cáncer e da Crianga.

1942 Lei obrigando a notificagáo de doengas profissionais provocadas porsubstancias tóxicas, utilizadas ñas industrias e por condigóesambientáis inadequadas á saúde.

Fontes: OMS, 1955; FEE, 1983; FARIA, 1981; CERQUEIRA, 1984;COSTA, 1986; COSTA, 1989; DELGADO, 1994; GUIMARÁES eTAVARES, 1994; PEREIRA, 2002; HOCHMAN, 2005; FIOCRUZ, 2005;RAMOS, GEREMIAS, 2006.

A regulamentagáo de medidas de protegáo social é do "tipomeritocrático-particularista, com fortes marcas corporativas eclientelistas na consagragáo de privilegios e na concessáo debeneficios" (DRAIBE, 1993), gerando as condigóes favoráveis para ofortalecimento do Estado através de um aparato governamentalunificado em todo o territorio nacional.A criagáo do Ministerio da Educagáo e Saúde Pública reflete aestrategia campanhista vigente na época, com o mecanismo daprevengáo sendo privilegiado para combater doengas, e para tanto, éimprescindível a educagáo. Concomitante, o governo fortaleceu apolítica de saúde ancorada na assisténcia médica previdenciária,destinada a grupos de trabalhadores urbanos mais organizados,através da criagáo dos Institutos de Aposentadorias e Pensóes (IAPs)via a unificagáo das CAPs, e no solo gaucho, a Secretaria de Educagáoe Saúde Pública em 1935.A criagáo dos IAPs mantém a prestagáo da assisténcia médicadependente da contribuigáo dos trabalhadores, confirmando aconcepgáo predominante de que a saúde individual nao era dacompetencia da área de saúde pública, como expressa GustavoCapanema, sanitarista e ministro da saúde e educagáo por um longoperíodo: "O caso individual só interessa á saúde pública se puderafetar a coletividade, se for capaz de por a coletividade em perigo"(HOCHMAN, 2005). A responsabilidad da saúde pública estavadiretamente vinculada á fungáo estatal para evitar riscos ácoletividade.Nesta lógica está o fundamento da aprovagáo do Decreto sobre aassisténcia e protegáo á pessoa e aos bens dos psicópatas. O artigo1.° define que esta assisténcia pretende "concorrer para a realizagáoda higiene em geral e da profilaxia das psicopatías em especial"(DELGADO, 1992), expressando e materializando o escopo da higienemental. No artigo 4.° está a definigáo dos estabelecimentos

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psiquiátricos, e entre estes, os de assisténcia social relacionado aofenómeno do transtorno mental num país marcado pela desigualdadesocial, e com a presenga significativa de organizagoes privadasfilantrópicas a quem a sociedade delegou a tarefa de ¡solar e segregara pobreza.No Rio Grande do Sul, o diretor do hospital Sao Pedro, JacinthoGodoy, realiza um conjunto de obras na instituigáo, instala servigosambulatoriais e cria condigóes para carreiras profissionais sedesenvolverem: médico psiquiatra, Escola de Enfermagem e oServigo de Assisténcia Social. O fenómeno da superlotagáo era amarca da instituigáo, que cumpria sua fungáo social de depositarioestadual de todo tipo de indesejados e pobres da sociedade. Acapacidade do hospital era de 477 pacientes, mas no período chegoua abrigar 1.800 pessoas.

4 Período Desenvolvimentista

O desfecho da Segunda Guerra Mundial marca no Brasil o inicio doperíodo desenvolvimentista (1946-1964), "projeto de superagáo dosubdesenvolvimento através da industrializagáo integral, por meio deplanejamento e decidido apoio estatal" (BIELSCHOWSKI, 2004, p.33). O setor saúde é considerado estratégico para o desenvolvimentoeconómico, sendo um dos quatro pilares do Plano SALTE, saúde,alimentos, transporte e energía, precondigáo ao aumento daprodugáo e da riqueza social (FEE, 1983). Confirmando, assim, aconcepgáo de saúde presente na génese de sua constituigáo depolítica pública no Brasil, como fundamental na reprodugáo dascondigóes de vida das classes trabalhadoras e um setor consideradorentável pelos agentes económicos. Urna síntese deste período estáno Quadro 3.

Quadro 3 - Síntese da Trajetória das Políticas de Saúde e SaúdeMental no Brasil e no Rio Grande do Sul - Período Desenvolvimentista(1945 - 1964)ANO ACONTECIMENTOS1946 Decreto Lei n°. 8.550 autorizou o Servigo Nacional de Doengas

Mentáis a realizar convenios com governos estaduais para aconstrugáo de hospitais psiquiátricos.

1948 Sanatorio Psiquiátrico Espirita, privado conveniado em Pelotas, RS.1949 Hospital Psiquiátrico Maria Vicenga F. Lopes, privado conveniado

em Rio Grande, RS.

1950Plano SALTE - Saúde, Alimentos, Transportes e Energía. LeiFederal n°. 196, de 1948, aprovado através da Lei n°. 1.102.

1953 Criagáo do Ministerio da Saúde.

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1954Criagáo do Laboratorio Central de Controle de Drogas eMedicamentos, pelo incremento da industria farmacéutica:antibióticos e psicofármacos.OMS - Legislagáo em Materia de Assisténcia Psiquiátrica -Comissáo de Especialistas em Saúde Mental.

1960 Leí Orgánica da Previdencia Social.Clínica Pinel, hospital psiquiátrico privado conveniado, PortoAlegre, RS.

1961 Decreto n°. 49.974 instituí o Código Nacional de Saúde.

1963Decreto n°. 52.464 - Normas Técnicas Especiáis para a Orientagáo,Organizagáo, Funcionamento e Fiscalizagáo das Instituigóes deAssisténcia Médico-Social, sob a responsabilidade do Ministerio daSaúde.

Fontes: COSTA, 1989; GUIMARAES e TAVARES, 1994; PAULIN eTURATO, 2004; HOCHMAN, 2005.

Neste período, os Estados Unidos da América passaram a exercerinfluencia hegemónica sobre o mundo capitalista, possibilitando adifusáo e expansáo do seu modelo assistencial hospitalocéntrico dealta tecnología e da prática especializada (ALMEIDA, 1997). Estaorientagáo influenciou a saúde mental no Brasil, com o governopromulgando o Decreto Lei n°. 8.550 que estimula a construgáo dehospitais psiquiátricos pelos governos estaduais, na óptica deconsolidar "[...] a política macro-hospitalar pública como o principalinstrumento de intervengáo sobre a doenga mental" (PAULIN;TURATO, 2004).Esta política aumentou o número de hospitais e da populagáoinstitucionalizada: "em 1950 existiam 0,41 internados por 1.000habitantes; 0,82 em 1970. Enquanto a populagáo geral aumentou82% em 20 anos, a populagáo do hospital psiquiátrico aumentou213%, apesar do advento dos psicotrópicos" (CERQUEIRA, 1984).Este quadro de valorizagao da hospitalizagao psiquiátrica como eixoda política pública de saúde mental será urna tónica no Brasil pelasdécadas subsequentes.A urbanizagáo, fenómeno que na América Latina foi consequente damudanga acelerada da base produtiva de agrário-exportadora paraurbano-industrial, também colaborou para o aumento da populagáonos hospitais psiquiátricos. Aos grupos populacionais que naoconseguiram ingressar neste novo padráo de produgáo, um doslugares destinados foram os hospitais psiquiátricos. Em 1950,existiam 24.234 leitos psiquiátricos, passando para 34.550 leitos em1955 (ALVES et al, 1992; COSTA, 2002).A saúde mental no Rio Grande do Sul teve urna expressivavisibilidade, tanto por agóes realizadas no Hospital Psiquiátrico SaoPedro, quanto na política setorial. A higiene mental e a assisténcia

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psiquiátrica mereceram capítulo especial no Código Estadual deSaúde (1962), pois as psicoses passaram a ter notificagáoobrigatória. Varios convenios foram firmados entre o Ministerio daSaúde e a Secretaria Estadual visando o incremento de construgáo ereformas em hospitais psiquiátricos, e urna política de expansáodestes estabelecimentos, com a construgáo de tres hospitaispsiquiátricos privados.Neste período houve urna proliferagáo de referenciais teóricosincorporados no HPSP, como a psicanálise, a ambientoterapia e aformagáo multiprofissional na forma de residencia, assim como otrabalho e a expressáo artística como propostas terapéuticas (DÍAS,2007).No ámbito internacional, a Organizagáo Mundial da Saúde (OMS,1955) analisou as legislagóes em saúde mental em diversos países,constatando a énfase nos aspectos jurídicos em detrimento doscuidados em saúde. Entre outras diretrizes, foi estabelecida anecessidade de serem criadas normas para orientagáo técnica doatendimento hospitalar psiquiátrico, referendando o modelo depolítica de saúde mental centrado nesta instituigáo.A reorganizagáo da previdencia social pela promulgagáo da LeiOrgánica da Previdencia Social dinamizou este modelo, pois aassisténcia médica previdenciária passa a ser urna resposta do Estadoá classe assalariada, que perdía capacidade de consumo devido adeteriorizagáo nos valores do salario mínimo na época. Oentendimento é de que a perda salarial se compensa pela assisténciamédica, pois "as sequelas poderáo ser tratadas médicamente, asepidemias combatidas, a tuberculose e o desequilibrio emocionaltratados" (IAMAMOTO; CARVALHO, 1988, p. 248).As primeiras críticas aos hospitais psiquiátricos surgem no períodopós-Segunda Guerra Mundial, a partir da experiencia de médicos eenfermeiros que foram prisioneiros dos campos de concentragáonazistas. Inicia-se, assim, um questionamento sobre a participagáodestes profissionais em instituigóes psiquiátricas, que se baseiam emdiscriminagóes táo desumanas como as que eles haviam padecido(TUÑON; ABUDARA, 1988).O setor saúde segué permeado pela disputa por legitimidade entre osdois blocos existentes: a saúde pública, com seu modelocampanhista, e a atengáo médica previdenciária, de cunho curativistae privado. Um ampio debate nacional sobre o papel do Estado naimplantagáo de um efetivo sistema de saúde se realiza, com suagrande expressáo na 3a Conferencia Nacional de Saúde (1963),quando o Ministerio da Saúde propós a criagáo de um Plano Nacionalde Saúde e a Municipalizagáo dos servigos de saúde no Brasil.Contudo, esta possibilidade de significativa mudanga no modo deatengáo á saúde no país vai ser postergada por algumas décadas.

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5 Período da Ditadura militar

Como consequéncia do Golpe Militar de 1964 e instalagáo da ditadurano Brasil, a ausencia de debate e de fortalecimento das vontadespolíticas nos níveis regionais e locáis, aliada á implantagáo dereformas institucionais, afetou a saúde pública e a medicinaprevidenciária existente. Urna síntese deste período está presenteQuadro 4.

Quadro 4 - Síntese da Trajetória das Políticas de Saúde e SaúdeMental no Brasil e no Rio Grande do Sul - Período da Ditadura Militar(1964 - 1985)ANO ACONTECIMENTOS1964 Decreto n°. 16.722, para a criagáo de Ambulatorios em Saúde

Mental em 18 municipios do estado do RS.1966 Instituto Nacional de Previdencia Social - INPS, substituindo os

antigos Institutos de Aposentadoria e Pensóes por categorías detrabalhadores.

1967 Campanha Nacional de Saúde Mental - Ministerio da Saúde,Decreto n°. 60.252.

1972OPAS e Ministerio da Saúde assinam "Acordó para a execugáo deum Programa de Saúde Mental no Brasil".Lei n°. 6.503, Estado do RS - Código Sanitario - dispóe sobre apromogáo, protegáo e recuperagáo da Saúde Pública. Título I I I , daPromogáo e Recuperagáo da Saúde, consta o Capítulo I I , daAssisténcia Social e Psiquiátrica.Clínica Psiquiátrica Prof. Paulo Guedes, em Caxias do Sul, RS.Privada e contratada.Manual de Servigo, valorizando a psiquiatría de comunidade paraa assisténcia extra-hospitalar. Resolugáo n°. 304 do INPS.

1973 Programa de Setorizagáo no HPSP e Programa de Interiorizagáoda saúde mental no RS. Pela primeira vez o Programa de SaúdeMental é incluido entre as prioridades da Secretaria Estadual daSaúde do RS.Criagáo do Ambulatorio Central de Psiquiatría (Central dePsiquiatría), em Porto Alegre, RS. Atendimento estadual em eemergencia - triagem - ambulatorio.Criagáo do Ministerio da Previdencia e Assisténcia Social

1974Ministerio da Saúde estabelece o sistemaregionalizado de saúde mental. Portaría n°. 32.

hierarquizado e

OMS - Comité de especialistas em saúde mental, em outubro -Genebra.

1975Lei 6.229 cria o Sistema Nacional de Saúde, estabelecendo oscampos institucionais da saúde coletiva e da saúde individual.

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Programa de Interiorizagáo das Agóes de Saúde e Saneamento -PIASS.Clínica Psiquiátrica Santa Tecla, no municipio de Canoas, RS -privada.

1976 Criagao do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde - CEBES.

Adotada pela Assembleia Mundial de Saúde da OrganizagáoMundial da Saúde - OMS, a meta de Saúde para Todos no ano2000, na IV Reuniáo Especial de Ministros da Saúde das Américas.

1977 Instituto Nacional da Assisténcia Médica da Previdencia SocialINAMPS.Criagáo do Plano Nacional Integrado de Saúde Mental.Io Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental, SaoPaulo.Criagáo da Associagáo Brasileira de Pós-Graduagáo em SaúdeColetiva, Abrasco.3o Congresso Mineiro de Psiquiatría, presenga de Franco Basagliae Robert Castel.

1980 2o Encontró Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, emSalvador.

1982 Inamps. Portaría n.° 3.108, de 21 de dezembro.1983 Implantagáo das Agóes Integradas de Saúde, AIS.

Fontes: FARIA, 1981; FEE, 1983; COSTA, 1986; COSTA, 1989;DELGADO, 1994; GUIMARÁES; TAVARES, 1994; AMARANTE, 1995a;HOCHMAN, 2005; FIOCRUZ, 2005; RAMOS, GEREMIAS, 2006.

O Estado reorganiza sua estrutura de protegáo social, intensificandosua centralizagáo e sua fungáo de busca de coesáo social através deoferta de servigos de saúde á populagáo. A criagáo do InstitutoNacional de Previdencia Social (INPS), em 1966, unificou os institutosexistentes e excluiu os trabalhadores da participagáo direta na suaadministragáo.O Ministerio da Assisténcia e Previdencia Social é criado, com atuagáovoltada principalmente para o atendimento médico-assistencialindividualizada, visando organizar e ampliar os beneficios sociais coma incorporagáo de segmentos populacionais á previdencia social.Possibilitou o crescimento quantitativo da oferta de servigos e dainstalagáo de unidades assistenciais de saúde com o financiamento dofundo previdenciário.Destaca-se também a criagáo do INAMPS com sede em cada estadobrasileiro, inviabilizando a condugáo descentralizada de políticassociais ñas esferas estaduais de governo (NORONHA; LEVCOVITZ,1994). Estas iniciativas incrementaram a privatizagáo no setor dasaúde, tendencia histórica na realidade sanitaria brasileira.As Agóes Integradas de Saúde implantadas foram resultantes doordenamento na política de saúde, cujos graus de centralizagáo e

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crise na capacidade de oferta de servigos, visaram alcangar níveis dearticulagáo institucional que viabilizassem agóes mais eficientes eeficazes, e produziram "um deslocamento relativo de recursosfinanceiros da Previdencia para o setor público prestador de servigosde saúde e promoveram urna integragáo das agóes setoriais"(MERHY; QUEIROZ, 1993, p. 6).Na política de saúde mental destaca-se o estímulo da política públicapara a criagáo e organizagáo de servigos ambulatoriais. No estadogaucho o Decreto n°. 16.722 criam Ambulatorios em Saúde Mentalem 18 municipios, seguindo urna lógica de regionalizagáo e densidadedemográfica (RIO GRANDE DO SUL, 1964). Esta iniciativa estimulou acriagáo de um conjunto de ambulatorios no estado, tanto no ámbitoestatal quanto no privado, que por muito tempo se constituíram comoum modo de atendimento associado ao tratamento hospitalar.No ámbito federal, é promulgado o Decreto n°. 60.252 que cria aCampanha Nacional de Saúde Mental no ámbito do Ministerio daSaúde. As suas finalidades e objetivos estáo fundamentados ñasconcepgóes campanhistas e da higiene mental, visando resolver odéficit de hospitais psiquiátricos, apontando a ampliagáo edistribuigáo de ambulatorios de saúde mental no país, com o fim de"diminuir a necessidade de internagáo e assegurar a assisténciaterapéutica sem afastar pacientes de seu ambiente social e familiar"(BRASIL, 1968).Durante o governo Geisel (1974 a 1979), a coalizáo política doregime militar passou por urna crise económica e de legitimidade, aprimeira gerada pela desestabilizagáo no mercado internacional dopetróleo em 1973, que colaborou para o fim do período de milagreeconómico brasileiro, levando ao aumento da divida externa paracustear a ampliagáo das importagóes.O Programa de Interiorizagáo das Agóes de Saúde e Saneamento foiproposto, inspirado ñas recomendagóes da Conferencia de Alma-Ata,de que os cuidados primarios de saúde integrem os sistemas desaúde dos países. Esta agáo propiciou o incremento da oferta deservigos ambulatoriais básicos á populagáo excluida do acesso aequipamentos sociais (NORONHA; LEVCOVITZ, 1994) como urnaforma também de contrabalangar o grau de privatizagáo daassisténcia médica expandida pela criagáo do Instituto Nacional deAssisténcia Médica da Previdencia Social (INAMPS). O Plano Integradode Saúde Mental (1978) foi estabelecido, prevendo a formagáo dasprimeiras equipes multiprofissionais de saúde mental ñascoordenagóes estaduais de saúde, e a formagáo de médicosgeneralistas para atender ao público da saúde mental.O efeito no estado do Rio Grande do Sul foi a realizagáo do programade setorizagáo no Hospital Psiquiátrico Sao Pedro (HPSP), em 1973,quando os seus internos foram agrupados conforme sua regiáo noestado, substituindo o criterio adotado até entáo de distribuigáo dos

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pacientes em unidades de atendimento por diagnóstico psiquiátrico.O objetivo destas agóes foi reduzir o número de internos no hospital,integrando as agóes das equipes de saúde das regionais da Secretariada Saúde com as das unidades de internagáo do HPSP, de modo afacilitar a localizagáo dos familiares e/ou responsáveis pelos pacientesinstitucionalizados e propiciar o retorno destes na ocasiáo de alta(DÍAS, 2007).O programa de setorizagáo no HPSP foi resultado concreto de urnainiciativa de organizagáo estatal da política de saúde mental naépoca, pois pela primeira vez foi formada urna instancia responsávelpelo planejamento e gestáo das agóes na área: a Equipe Central deSaúde Mental na Secretaria de Saúde criada em 1972. Esta dirigiuum conjunto de agóes na condugáo de mudangas requeridas,considerando que o programa de saúde mental foi incluido entre asprioridades de governo na área da saúde (FARIA, 1981).Pode-se considerar que o programa de setorizagáo foi um processode desospitalizagáo no HPSP, pois sua realizagáo associada áqualificagáo de profissionais na lógica da regionalizagáo resultou nadiminuigáo de pacientes no HPSP, passando de 5.000 a 1.915internados no final deste período. Ou seja, houve a transferencia daresponsabilidade do Estado para a sociedade em "cuidar" destaspessoas, sem nenhuma política pública de suporte para tal medida.O Código Sanitario no estado do Rio Grande do Sul, sancionado em1972, anunciava a realizagáo de convenios com instituigóespsiquiátricas privadas e o estímulo á organizagáo de novasinstituigóes públicas ou privadas para a assisténcia psiquiátrica esocial as pessoas com transtorno mental e sua familia. O consolidadona lei refletia o momento histórico de forte investimento no setor desaúde mental, considerando que a oferta de servigos de saúde,financiados pela previdencia social, foi urna relevante estrategia derelagáo entre o governo militar e a sociedade. Ao longo do tempo, umconjunto de casas do tipo pensóes particulares foram criadas parasuprir a fungáo social até entáo do HPSP.

Em 1971 já existiam no Brasil 80.000 leitos psiquiátricos no Brasil(ALVES et al., 1992; COSTA, 2002). O fenómeno da superlotagáocontinuava no Hospital Psiquiátrico Sao Pedro e as características econdigóes de sua populagáo institucionalizada eram as seguintes:61,7% dos pacientes na faixa etária mais produtiva, de 25 a 55 anosde idade; 63,7% sem necessidade de internagáo; 73,4% sem vínculoprevidenciário; 55,5% eram mulheres; 42,3% com mais de 10 anosde internagáo, e 39% deles sem familia localizada, ou seja, o retratoda exclusáo e segregagáo, reforgando a fungáo social dos hospitaispsiquiátricos (DÍAS, 2007).Este cenário da política de saúde mental produziu críticas e propostasde mudangas na década posterior. "[...] o sistema socioeconómicodetermina as modalidades de tratamento em diferentes níveis. No

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momento brasileiro atual, a estes pacientes de nivel socioeconómicobaixo a sociedade só reserva a modalidade asilo" (CONTEL, 1981).O Inamps, responsável pelo pagamento das internagoes, faz em 1982um diagnóstico das internagóes psiquiátricas no Brasil, concluindoque estas cresceram 15% ao ano desde a década de 1970, comindicagóes desnecessárias, manipulagóes de diagnósticos para fins deampliagáo de prazos de internagáo e uso do expediente de dar altaseguida de ¡mediata reinternagáo. A Portaría n°. 3.108 foi langadapara regular mudangas no modelo assistencial em saúde mental,calcadas nos seguintes principios: a) ser predominantemente extra-hospitalar, b) ser exercida por equipe multidisciplinar, c) incluir-senuma estrategia de atengáo primaria de saúde, d) utilizar recursosintermediarios entre o ambulatorio e a internagáo integral, comohospital-dia, hospital-noite, pré-internagáo, pensáo e oficinaprotegidas, e) restringir a internagáo aos casos estritamentenecessários, f) promover a implantagáo progressiva de pequeñasunidades psiquiátricas em hospitais gerais (BRASIL, 1982).As medidas, ácima relacionadas, foram instituidas num contextoparticular na historia brasileira, na conjuntura de crise económica epolítica do ciclo ditatorial que anunciava sinais de desgaste. Ogoverno comegou a ceder no seu autoritarismo e teve inicio aorganizagáo de entidades sindicáis, o retorno do pluripartidarismo evitória da oposigáo ñas eleigóes diretas para governadores em 1982,com grandes mobilizagóes de variados movimentos sociais lutandopor temas relacionados as condigóes de vida.

A inflagáo marcou índices alarmantes (em 1980, 110%, em 1983,200%), o analfabetismo chegou a 25% dos habitantes, e o acessoaos servigos de saúde estava prejudicado pela discriminagáoexistente entre os segurados, cujos servigos tinham maior volume deinvestimento e, mesmo assim, insuficientes. Os demais eramdependentes da oferta de precarios servigos estatais, com ínfimoinvestimento, e da filantropía, responsável principal pela oferta deservigos hospitalares (GUIMARÁES; TAVARES, 1994).Este é um quadro sintético do último governo militar, que teve atarefa histórica de iniciar o processo de democratizagáo no país, coma populagáo brasileira organizada em varias forgas sociais e políticascriticando e propondo mudangas nos rumos da Nagáo. O movimentopelas Diretas Já e a luta por urna Constituinte Livre e Soberanademonstraram o novo cenário de participagáo popular sob o auspicioda cidadania.Assim, a partir da metade dos anos 1980 até a última década doséculo XX, o país viveu um importante processo de mudanga nocampo político, com o fim da ditadura militar e a instauragáo doregime democrático. Neste cenário o campo da saúde e da saúdemental iniciam urna profunda crítica e análise da sua política,iniciando debates e mobilizagóes que se expressaráo nos

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denominados movimentos da reforma sanitaria e reformapsiquiátrica, sob as liderangas do CEBES, Abrasco e trabalhadores dasaúde mental, respectivamente.

6 Período da Nova República ao final do século XX

O período da Nova República inicia com a transigáo democrática,através do restabelecimento de eleigoes diretas em todo o territorionacional e a convocagáo de urna nova constituigáo, com o fim defundar um novo consenso político e social para o país após o fim dociclo ditatorial. O desafio na área económica era a contengáo dainflagáo, e para tanto varios planos foram implementados, cujasconsequéncias repercutem em alguns setores até os dias atuais,como se destaca no Quadro 5, síntese dos acontecimentos noperíodo.

Quadro 5 - Síntese da Trajetória das Políticas de Saúde e SaúdeMental no Brasil e no Rio Grande do Sul no Período da Nova Repúblicaao final do século XX (1985 - 1999)ANO ACONTECIMENTOS

Congresso de Bauru, dos Trabalhadores de Saúde Mental, SP.

19868a Conferencia Nacional de Saúde, de 17 a 21 de margo.Ia Conferencia Internacional sobre Promogáo da Saúde (OMS),Ottawa, Canadá.Criagáo do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde - SUDS

1987 Ia Conferencia Nacional de Saúde Mental, Rio de Janeiro, 25 a 28de julho.Io Curso de Aperfeigoamento em Saúde Mental, Porto Alegre, RS.Nova Constituigáo Federal

1988"Nossa Casa", Sao Lourengo do Sul, Io servigo de saúde mentalsubstitutivo RS.I Simposio Internacional de Saúde Mental Comunitaria - SISMEC -repensando a saúde mental, em Santa Maria, RS, participantes doBrasil, Uruguai e Argentina.

1989 Transferencia do Inamps para o Ministerio da SaúdeDeclaragáo de Caracas - OPAS.

1990 I e II Encontró Nacional dos Usuarios e Familiares da LutaAntimanicomial, realizados em Sao Paulo e Rio de Janeiro.

1991 ONU - Resolugáo n°. 119. Declaragáo sobre A Protegáo de PessoasAcometidas de Transtorno Mental e a Melhoria da Assisténcia áSaúde MentalCriagáo Fórum Gaucho de Saúde Mental, RS.

1992 Ia Conferencia Estadual de Saúde Mental, de 03 a 06 de junho,em Tramandaí.Leí da Reforma Psiquiátrica no Rio Grande do Sul, 07 de agosto.

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2a Conferencia Nacional de Saúde Mental, Brasilia, 01 a 04 dedezembro.I Encontró Nacional da Luta Antimanicomial, Salvador, Bahía.

1993Carta de Direitos dos Usuarios e Familiares de Servigos de SaúdeMental - Produzida pelos participantes do I I I Encontró Nacional dosUsuarios e Familiares da Luta Antimanicomial, realizado emSantos/SP, em Dezembro.Carta Instituinte Sao Pedro Cidadáo - Conselho Estadual deSaúde, RS

1995 II Encontró Nacional da luta Antimanicomial, Belo Horizonte, MinasGerais.

1996 IV Encontró Nacional de Usuarios e Familiares do Movimento daLuta Antimanicomial, abril, em Franco da Rocha, SP.

1997 I I I Encontró Nacional da Luta Antimanicomial, Porto Alegre, RioGrande do Sul.

1999 V Encontró Nacional de Usuarios e Familiares do Movimento daLuta Antimanicomial, 11 a 13 dezembro, em Betim, MGIV Encontró Nacional da Luta Antimanicomial, em ParipueiraAlagoas.

Fontes: RUSCHEL, PECCIN, 1990; QUINTO NETO, 1992; PINOS,1993; HIRDES, KANTORSKI, 2003; FAGUNDES, 2006.

Em relagáo ao setor saúde, o governo anunciou a crise económica esua incapacidade de financiá-la, intensificando o debate nosmovimentos sociais, ñas categorías profissionais e no campoacadémico, comprometidos com mudangas sociais. Denunciaram ascondigóes de saúde da populagáo e propuseram alternativas para aconstrugáo de urna nova política de saúde efetivamente democrática,tendo como componentes essenciais a descentralizagáo, auniversalizagáo, participagáo da populagáo e a unificagáo no setor.A 8a Conferencia Nacional de Saúde com o tema "Democracia éSaúde" representou um dos acontecimentos mais significativos desedimentagáo das propostas que vinham sendo construidas e deencaminhamento para urna legitimidade social e política na área dasaúde. As diretrizes desta Conferencia sao resultantes da produgáocrítica sobre o setor saúde, onde diferentes forgas sociais construíramo movimento da Reforma Sanitaria, entendido como "um processo detransformagáo da norma legal e do aparelho institucional [...], cujaexpressáo material se concretiza na busca do direito universal ásaúde e na criagáo de um sistema único de servigos sob a égide doEstado" (TEIXEIRA, 1989, p. 39).Esta concepgao foi legitimada na Constituigao Federal de 1988, basepara a Lei Orgánica da Saúde - Sistema Único de Saúde - SUS, naforma das Leis Federáis 8.080/90 e 8.142/90. O significado ¡novadordo movimento da reforma sanitaria foi sua proposta de ruptura com a

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forma histórica de constituigáo da política de saúde no Brasil:centralizadora, autoritaria, privativista, hospitalocéntrica,meritocrática e residual. No processo de histórico de constituigáo doSUS no país, um esforgo relevante de mudanga foi a implantagáo doSistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), cujasdiretrizes estavam alicergadas nos principios constituidos pelomovimento da Reforma Sanitaria, como universalizagáo,integralidade, regionalizagáo e descentralizagáo das agóes de saúde.Estes principios foram orientadores da política de saúde mental nestaépoca no estado do Rio Grande do Sul, situagáo possível pelacomposigáo política constituida no governo no período. A gestáo tevea marca de assumir politicamente a defesa dos preceitos da reformapsiquiátrica, numa crítica ao modelo hospitalocéntrico e manicomialadotado até entáo. As estrategias na condugáo da política de saúdemental foram de redistribuigáo do poder, resgate da cidadania dapessoa com sofrimento psíquico e com transtorno mental, bem comosocializagáo do saber.No ámbito internacional, a Organizagáo Pan-americana da Saúde(OPAS,1990), realiza urna avaligáo da situagáo da atengáo em saúdemental na regiáo, e constata frequentes desrespeitos aos direitos dosseus usuarios, concluindo e recomendando que a assisténcia deve serde base comunitaria e nao mais centrada no modelohospitalocéntrico, orientagóes emanadas da Declaragáo de Caracas.Estes pressupostos sobre o modo de pensar a saúde mental marcousignificativamente a historia do setor no estado do Rio Grande do Sul,imprimindo um debate participativo, com a estrategia principal daformagáo e qualificagáo profissional (FAGUNDES, 2006). Produziuurna articulagáo entre o movimento social de luta pela reformapsiquiátrica e o Conselho Estadual de Saúde, que elaboraram eaprovaram a Carta Instituinte Sao Pedro Cidadáo, projetos para atransformagáo do HPSP.A gestáo do Hospital Psiquiátrico Sao Pedro sintonizou com omovimento pela transformagáo da instituigáo, que tornou-se públicadurante a realizagáo da VII Semana de Estudos, com o tema "Porurna Sociedade sem Manicomios", com a divulgagáo dos direitos daspessoas com transtorno mentáis, expressivas manifestagóes nasociedade local, ampia repercussáo pela mídia da época e adesáo deforgas políticas gauchas. Esta possibilidade histórica produziu e foiproduzida pelo movimento gaucho de saúde mental, defensor da lutaantimanicomial e autor da lei de reforma psiquiátrica, aprovada em1992 no estado.Contudo, o último decenio do século XX no Brasil vai representar ummomento histórico eivado de contradigóes. A conquista do direito daescolha livre de seus governantes e a construgáo de um consensomínimo sobre direitos sociais a serem efetivados ocorreram nocontexto de ajuste económico e de reforma das estruturas do Estado,

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implicando na retragáo do financiamento das políticas sociais e noagravamento das históricas desigualdades sociais.Constata-se que o principio da universalizagáo está cindido, com aspolíticas de saúde optando pelos mais pobres para terem acesso, eassim a nogáo de direito pleno está desconstituída. Contudo, estasituagáo é resultante da histórica insergáo dos interesses privados nosetor, que disputam com os anseios da populagáo em ter seusdireitos sociais garantidos, realidade que a sociedade brasileira vemmediando ao longo de sua historia política e económica.

7 Consideragóes Fináis

A análise realizada no período de quinze décadas revelou mudangassignificativas na concepgáo e na gestáo do sistema de saúde, com ainstalagáo da descentralizagáo do ámbito federal para o estadual.Pode-se dizer que foi urna época revolucionaria quanto á mudanga deconcepgáo sobre a forma da atengáo na saúde mental, marcando apassagem para urna nova perspectiva pautada na nogáo de cidadaniadas pessoas com transtorno mental.Os pressupostos que fundamentaram a análise do setor saúde foramo papel do Estado na formulagáo das políticas públicas, estasdemandadas ora pelos agentes económicos, ora por mobilizagóes deatores orgánicos na sociedade. Considerou também a históricafragmentagáo entre saúde coletiva e atendimento médicoindividualizado, assinalando seus componentes intrínsecos como osanitarismo, o higienismo, a eugenia e a visáo assistencialista, ouseja, negadora de direitos, que permanecem ainda presentes ñaspolíticas atuais da saúde e saúde mental.A política de saúde tem urna amplitude que extrapola o próprio setor,pois desde o seu nascimento na primeira República está no cerne dosdebates e da constituigáo das políticas sociais desenvolvidas peloEstado brasileiro. É considerada estratégica no desenvolvimentoeconómico e social do país e no ámbito mundial, evidenciado pelasdiferentes formas de orientagáo através dos organismos multilaterais.Pode-se dizer que estas orientagóes marcam as políticas de saúde,como a énfase ora na hospitalizagáo, ora na atengáo primaria, comdestaque na saúde mental. Estas características váo fundar econstituir as políticas de saúde e saúde mental no Brasil,determinando suas formas no século vinte e um, quando osprocessos de reforma do Estado se consolidam.Desafios relevantes existem para a efetiva realizagáo da reformapsiquiátrica no país, pois, pela natureza contraditória dos processoshistóricos, já estáo incorporados um conjunto de dispositivos legáiscomo a Lei de Reforma Psiquiátrica do Rio Grande do Sul (1992) e aLei Federal de Saúde Mental (2001) no mesmo tempo de ajuste

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estrutural, retragáo do Estado nos seus deveres constitucionais, eampliagáo da privatizagáo das políticas sociais. Mas, esta realidadecoexiste com forgas sociais dispostas a produzir meios e espagos paraavangos possíveis.

Referencias

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Enderezo para correspondenciaMiriam Thais Guterres DiasRúa Ramiro Barcelos, 2600, sala 300 B - 3o andar. Bairro Santa Cecilia, PortoAlegre - RS. CEP 90035-003Enderego eletrónico: [email protected]

Recebido em: 24/11/2011Reformulado em: 02/12/2012Aceito para publicagao em: 10/12/2012Acó m pan ha mentó do processo editorial: Ana Maria Jaco Vilela

Notas*Professora Doutora em Servigo Social; Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS), Instituto de Psicología - Departamento de Psicología Social e Institucional- Curso de Servigo Social.

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ARTIGOS

A experiencia de autores judeus da psicologíasobreviventes do holocausto

The Experience of Psychology Jews Authors HolocaustSurvivors

Milena Callegari Cosentino*Universidade de Sao Paulo - USP, Sao Paulo, Sao Paulo, Brasil

Marina Massimi**Universidade de Sao Paulo - USP, Sao Paulo, Sao Paulo, Brasil

RESUMOO objetivo desta pesquisa foi o de abordar o tema "trauma e memoria" naliteratura de autores judeus da Psicología, que viveram na Europa noperíodo da Segunda Guerra Mundial/Holocausto e analisar possíveisrepercussoes do trauma em suas vidas e teorías. O trauma psicológico érelacionado á vida de todo ser humano e tem merecido maior atengao dediversas disciplinas. Violencia, catástrofes e más condigoes de vida afetam avida de muitos direta e indiretamente. Os autores escolhidos foram KurtLewin, Viktor Frankl e Bruno Bettelheim. Utilizou-se o métodohistoriográfico, específicamente da área de historia da psicología. Osresultados apontaram que a situagao traumática vivida modificou a maneira

s se posicionarem na teoria elaborada e na vida. Nos relatosencontram-se recursos pessoais, de teor psicológico e cultural, utilizadospara vivenciar ou superar o trauma. Em suma, existe urna significativarelagao dos estudos por eles realizados com a vivencia do trauma.Palavras-chave: trauma psicológico, Holocausto, Kurt Lewin, Viktor Frankl,Bruno Bettelheim.

ABSTRACTThe aims of this research were: to approach the theme "trauma andmemory" in Psychology author's literature, who were Jews and lived inEurope at Second World War and Holocaust period, and to analyze thepossible trauma's influence in their lives and theory. The psychologicaltrauma is related to the life of every human and has received increasingattention from various disciplines. Violence, disasters and poor livingconditions affect many people directly and indirectly. The authors chosenwere Kurt Lewin, Viktor Frankl and Bruno Bettelheim. The method utilized ishistoriographyc, of history psychology área. The results indicated that livedtraumatic situation changed the way they elabórate themselves in thedeveloped theory and life. In those author's reports and articles,psychological, cultural and their own resources were used to experience andovereóme trauma; in conclusión, there is a significant relationship betweentheir studies and the trauma 's experience. (CNPq/CAPES/FAPESP)Keywords: psychological trauma, Holocaust, Kurt Lewin, Viktor Frankl,Bruno Bettelheim.

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicologia | Rio de Janeiro | v. 12 | n. 3 |p. 1046-1062) 2012

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Milena Callegari Cosentino, Marina MassimiA experiencia de autores judeus da psicología sobreviventes do holocausto

1 Introdugao

Tomamos como principal objetivo deste trabalho verificar, naliteratura PSI, o tema trauma e memoria, a fim de analisar aspossíveis repercussóes da vivencia traumática na vida de autoresjudeus, os quais participaram de situagoes potencialmentetraumáticas. Trabalhamos específicamente com tres autores daPsicología (científica e filosófica), os quais viveram na Europa noséculo XX, em que ocorreram diversas situagóes traumáticas demaneira geral, especialmente no que se refere a Segunda GuerraMundial e o holocausto, sao eles: Viktor Frankl, Kurt Lewin e BrunoBetthelheim.Este trabalho é de caráter historiográfico e, portanto, alocado naárea de historia da psicología. Entre as possibilidades de se estudar ahistoria da psicología científica ou moderna, Massimi, Campos eBrozek (1996) descrevem cinco abordagens:

1. a abordagem biográfica: baseada na reconstrugao dahistoria de vida dos cientistas;2. a abordagem descritiva e analítica: baseada nareconstrugao dos acontecímentos históricos a partir dolevantamento de fontes primarias e na busca dacompreensao de cada elemento do fato histórico no seio deseu contexto de produgao;3. a abordagem quantitativa: que aplica a análisehistoriométrica á literatura psicológica;4. a abordagem da historia social: que enfatiza a primaziados fatores sociais para explicar a evolugao da psicologíacientífica e5. o enfoque sociopsicológico, que busca combinar a primeirae a quarta abordagens (p. 43).

O presente trabalho se trata do estudo de autores judeuscontemporáneos da psicología, os quais sofreram com o Holocausto.Assim, busca-se um enfoque sociológico atentando para a vida dosautores e também para a produgao teórica dos mesmos na psicología.Nao é feito um estudo nem urna reconstrugao da biografía dosautores, mas considera-se que os acontecimentos e fatores sociais daépoca da Segunda Guerra Mundial influenciaram de alguma forma emsuas vidas, publicagóes e teorías científicas.De acordó com Wertheimer (1998), realizar a pesquisa histórica empsicología faz-se necessário para redescubrir grandes ideias dopassado; concentrar ñas questóes realmente fundamentáis e nostemas que originaram a disciplina da psicología; e auxiliar naintegragáo e organizagáo de um campo ampio e diversificado. Para oautor, adotar urna perspectiva histórica aponta maturidade e permiteaos pesquisadores em psicología reconhecer quais sao os fatores

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externos á ciencia que podem estar influenciando a prática doscientistas.Realizamos leituras, recortes e análises de relatos e/ou amostrasautobiográficas de Kurt Lewin, Viktor Frankl e Bruno Bettelheim,judeus e teóricos da Psicología que viveram no período da SegundaGuerra Mundial, sendo dois deles vítimas dos campos deconcentragáo nazistas. Os principáis livros estudados para aapreensáo deste conteúdo foram: "Em busca de sentido: umpsicólogo no campo de concentragáo" (FRANKL, 1977/1991); "APsicología do Sentido da Vida" (Frankl, autora: XAUSA, 1986);"Problemas de Dinámica de Grupo" (LEWIN, 1948); "Dinámica egénese dos grupos" (Lewin, autor: MAILHIOT, 1991) e "O CoragáoInformado: autonomía na era da massificagáo" (BETTELHEIM,1985/1988).Estes autores viveram situagáo traumática: ou foram presos oufugiram e, consequentemente, as suas obras surgiram a partir desuas próprias experiencias, com forte influencia desta vivenciatraumática. De alguma forma eles modificaram seu modo de pensarpela experiencia traumática, mudaram suas perspectivas, ou, no casode Viktor Frankl, a experiencia possibilitou que ele confirmasse ateoría elaborada anteriormente.Além disso, realizamos um recorte temporal, ou seja, optou-se porestudar os autores que viveram no período da Segunda GuerraMundial. No entanto, é interessante observar que Sigmund Freud(1856-1939), muito embora tenha escrito alguns textos no final desua vida, nos quais se percebe a influencia do momento histórico emque vivia(quando se mudou para a Inglaterra, período da perseguigáonazista aos judeus), a sua principal produgáo foi em um períodoanterior a essa experiencia, haja vista que Freud faleceu no inicio daSegunda Guerra Mundial, e o fato de ter sido perseguido nao alteroua teoría que havia elaborado.De inicio sao apresentados os relatos mais detalhados extraídos daobra de cada um dos autores estudados, e mais adiante algumascaracterísticas comuns na vida e na obra dos mesmos. Vale anteciparque todos eles nasceram na Europa, eram procedentes de familiasjudias e estavam na Europa no período antecedente á SegundaGuerra Mundial, sofrendo com a perseguigáo anti-semita.

2 Consideracóes sobre o trauma psíquicoO trauma psíquico tem merecido urna atengáo cada vez maior dasmais diversas disciplinas, urna vez que desastres, violencia,catástrofes e más condigóes de vida afetam a vida de muitos direta eindiretamente, gragas á rapidez de informagáo. Os diagnósticos deTranstorno de Stress Pós-Traumático estáo cada vez mais freqüentes,

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sendo que as características da vida atual no Ocidente sao propiciaspara que traumas ocorram (RUDGE, 2009).

3 Algumas Definicóes de Trauma em Psicología

Um evento traumático pode ser definido como urna situagáo em quehá experiencias relacionadas á morte ou perigo de morte, lesóessignificativas ou risco para a integridade do individuo que o vivenciae/ou de outras pessoas, quando a resposta da vítima envolve medointenso, horror ou sensagáo de impotencia (GUERREIRO; BRITO;BAPTISTA; GALVÁO, 2007).A partir disso, tem-se que o trauma psicológico se dá pelo impactocrítico e extremo causado por um estressor no funcionamentopsicológico ou biológico de um individuo. Alguns exemplos comuns deeventos traumáticos para individuos e/ou familias sao situagoes decombate, raptos, atos de terrorismo, desastres naturais e humanos,homicidios, assaltos, violencia física e sexual, acidentes de viagáo edoengas com risco de morte (GUERREIRO et al, 2007).Diante de situagóes de elevada carga emocional, através demecanismos de regressáo, o funcionamento racional tende a sersubstituido pelo funcionamento emocional (GUERREIRO et al, 2007).Ao que se pode observar, os comportamentos consideradosadequados ao espago e ao contexto social, sao alterados paracomportamentos associados á desorientagáo no tempo e no espago,incapacidade para articular palavras ou frases complexas, choro, oucomportamentos orientados para a sobrevivencia.No Dicionário de Psicología da APA (VANDERBOS, 2010), o trauma édefinido como:

Evento no qual urna pessoa testemunha ou vivencia urnaameaga a sua própria vida ou seguranga física ou a de outrose experimenta medo, terror ou impotencia. O eventotambém pode causar dissociagao, confusao e a perda dasensagáo de seguranga. Eventos traumáticos desafiam avisao de mundo de um individuo como um lugar justo,seguro e previsível. Traumas causados por comportamentohumano (p. ex., estupro, assalto, acidentes tóxicos)comumente tém mais impacto psicológico do que aquelescausados pela natureza (p. ex., terremotos) (p. 992).

Já o trauma psíquico é urna "experiencia que inflige daño á psique,frequentemente de natureza duradoura. Exemplos sao: estupro eabuso de changa" (VANDERBOS, 2010, p. 993).De acordó com CANEPA & CAMPOS (2003), Freud já falava sobretrauma de choque antes mesmo de outros autores: "Trauma é o

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resultado de urna ruptura da protegao contra as excitagoes do mundoexterior". Freud ainda dizia:

Descrevemos como "traumáticas" quaisquer excitagoesprovindas de fora que sejam suficientemente poderosas paraatravessar o escudo protetor. Parece-me que o conceito detrauma implica necessariamente numa conexao desse tipo,com urna ruptura numa barreira sob outros aspectos eficazcontra os estímulos. Um acontecimento (externo) como umtrauma está destinado a provocar um disturbio em grandeescala no funcionamento da energía do organismo e acolocar em movimento todas as medidas defensivas possíveis(FREUD, 1920, p. 40).

Assim, para Freud, o trauma seria "urna brecha na barreira protetoracontra a estimulagáo levando a sentimentos avassaladores deimpotencia", ou seja, urna quebra da auto-regulagáo criativa e perdada resiliéncia do sistema nervoso (FREUD, 1919-1920, apud CANEPA;CAMPOS, 2003).Para Charcot, o trauma é um choque acompanhado de emogóesintensas e seus efeitos sao ainda maiores em situagóes deesgotamento, quando o sistema nervoso estiver fragilizado pordoengas ou outros fatores da vida (RUDGE, 2009).Já Winnicott aborda o trauma na vida do individuo desde sua tenrainfancia, isto é, quando bebé e, para ele, o que se entende portrauma depende do momento em que a crianga está no seu processode crescimento, um crescimento que vai da dependencia absoluta emdiregáo á independencia relativa, da primeira infancia paramaturidade plena. Ou seja, deve-se considerar os diversos sentidosdo que se entende por trauma, referindo cada um deles a urna etapado processo de amadurecimento (FULGENCIO, 2004). Winnicottacrescenta:

Um trauma é aquilo contra o que um individuo nao possuidefesa organizada, de maneira que um estado de confusaosobrevém, seguido talvez por urna reorganizagao de defesas,defesas de um tipo mais primitivo do que as que eramsuficientemente boas antes da ocorréncia do trauma.(WINNICOTT, 1970b, p. 259; tr. p. 201 apud FULGENCIO,2004, p. 264)

Jaspers evidencia que há urna repercussáo do acontecimentotraumático na vida do individuo devido á repetigáo e somagáo dasvivencias dessa situagáo, mesmo que os fatos de perturbagáo játenham desaparecido:

O conceito de Reagao Patológica tem urna partecompreensível (vivencia e conteúdo), urna parte causal(alteragao no extraconsciente) e urna parte de prognóstico

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(esta alteragao é passageira). Ainda que possa ser anulada amomentánea transposigao em um estado anormal (emespecial depois do desaparecí mentó dos fatos deperturbagao) produzindo-se a cura em seguida, existe semdúvida urna repercussao gragas á estreita ligagao da vivenciae personalidade pela repetigao e somagao das vivencias...(JASPERS, 1977, apud FERREIRA-SANTOS et al, 2006, p. 2)

Nao se pode ignorar que o trauma vivido pode gerar conseqüénciasnegativas na vida do individuo e de seus descendentes, como medo,depressáo, entre outras, por levar a crer que, como ocorreu asituagáo traumática vivenciada, sempre haverá possibilidades deacontecer algo semelhante novamente. Por outro lado, urnaexperiencia traumática pode produzir efeitos positivos na vida doindividuo, urna vez que este se encontra diante da possibilidade dedesenvolver a capacidade de enfrentamento, de comegar de novo,construir urna "nova historia" a partir de determinado momento desua vida. Além disso,

as representagoes do trauma para o sujeito vao variarconforme o destino que ele dé a essa experiencia. Á falta desentido que preside o impacto do trauma geralmente seresponde com a tentativa de construir narrativas que tornemo acontecimento menos gratuito (RUDGE, 2009, p. 67).

4 Os Judeus e o Holocausto

Vale ressaltar que exemplos de diversas possibilidades deposicionamentos nao sao encontrados apenas ñas existenciasindividuáis, mas também na historia e na memoria dos povos. Dentreeles, o povo judeu apresenta urna historia marcada por perseguigóese vivencias potencialmente traumáticas: tiveram 430 anos comoescravos no Egito (séc.XX a séc.XVI a.C), ficaram cativos na Assíria(séc. VIII a.C), estiveram 70 anos no cativeiro Babilónico (séc.VIa.C), ficaram sob o dominio dos Imperios Persa, Grego e Romano(do séc.V a.C. ao séc.I d.C), sofreram a Diáspora (séc.I d.C), oHolocausto (séc.XX d.C), entre outras perseguigóes e prisóes.A Segunda Guerra Mundial (1939-1945), juntamente com oHolocausto, é um evento histórico que marcou a vida de muitasfamilias, judias ou nao. De acordó com Feldmann (2001), já em 1933o terror conduzido pelo Estado alemáo nazista era crescente: astropas de choque nazistas batiam nos judeus na rúa a ponto deprecisarem ser levados para os hospitais; obrigaram os professoresjudeus a interromper suas atividades; colocavam placas ñas casaspara provar que ali nao morava nenhum judeu; os médicos e osadvogados judeus perdiam seus clientes; ñas lojas as pessoascolocavam placas dizendo que os judeus nao eram bem-vindos ali e

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até mesmo brinquedos para changas tinham o nome de "forajudeus!"O Holocausto mobilizou a sociedade da época e o mais profundo davida judia, e até mesmo a religiáo judaica. Para se ter urna idéia,antes deste acontecimento, viviam na Polonia cerca de tres milhóesde judeus, dos quais restaram apenas cerca de seis mil. Nos demaispaíses da Europa as proporgoes sao mais ou menos semelhantes(BARRERA, 2005).Mais específicamente, cerca de sete milhóes e meio de pessoasperderam a dignidade e a vida nos campos de concentragáo, sendo amaioria judeus, mas também negros, ciganos, homossexuais,comunistas e portadores de doenga mental. Estima-se que tenhamsido mortos entre 5,1 e seis milhóes de judeus na Segunda GuerraMundial, o que representava 60% da populagáo judaica na época. Osque eram condenados sofriam torturas, eram obrigados a fazertrabalhos forgados e acabavam morrendo por fome ou doenga(GEOCITIES).De acordó com Halbwachs (1968/2006), "Augusto Comte observouque o equilibrio mental resulta em boa parte e antes de mais nada,no fato de que os objetos materiais com os quais estamos em contatodiario nao mudam ou mudam pouco e nos oferecem urna imagem depermanencia e estabilidade" (p. 155), ou seja, o fato de muitosjudeus terem sido presos em campos de concentragáo nazistas podeter interferindo no equilibrio mental ou na personalidade deles, vistoque foi urna mudanga brusca em suas vidas, ambientes e rotinas. Oautor acrescenta que:

quando algum acontecimento também obriga a que nostransportemos a um novo ambiente materia, antes que a eletenhamos nos adaptado, atravessamos um período deincerteza, como se houvéssemos deixado para tras toda anossa personalidade: tanto isso é verdade, que as imagenshabituáis do mundo exterior sao partes inseparáveis donosso eu (HALBWACHS, 2006, p. 155).

5 O pertencer e a Obra: A Influencia Cultural na Obra deautores judeus

De modo geral, o fato da historia do povo judeu ter sido marcada porguerras e perseguigóes fez com que algumas característicaspassassem a fazer parte de sua cultura, como a rememoragáo emfestas das perseguigóes e dos "livramentos", a grande quantia depublicagóes referentes ao Holocausto e outras publicagóes dasdiversas áreas da ciencia de autores judeus, que carregam de algumaforma a influencia cultural da qual eles participam.

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No campo das Humanidades também há urna grande quantia deautores judeus. Por exemplo, Sigmund Freud (1856-1939), escreveuem "O mal-estar na civilizagáo" (1930) para descrever a inatainclinagáo humana para a agressividade: "O Demonio seria a melhorsaída como desculpa para Deus; desta maneira, ele estaríadesempenhando o mesmo papel, como agente de descargaeconómica, que o judeu desempenha no mundo ideal ariano" (p.124). Neste mesmo texto, ao explicar sobre "narcisismo daspequeñas diferengas", Freud disse:

Com respeito a isso, o povo judeu, espalhado por toda parte,prestou os mais úteis servigos as civilizagoes dos países queos acolheram; infelizmente, porém, todos os massacres dejudeus na Idade Media nao bastaram para tornar o períodomais pacífico e mais seguro para seus semelhantes cristaos(FREUD, 1930, p. 119)

Este autor, de tradigáo familiar judia, utilizava da cultura e docontexto dos quais fazia parte para explicar sua idéia ou teoría,mesmo nao seguindo o judaismo enquanto religiáo. Ele nao serestringía apenas ao acontecimento contemporáneo a sua época, masrecorría a outros momentos da historia de seu povo.Em "Freud, leitor da Biblia", Pfrimmer (1994) evidencia que a obra deFreud é repleta de citagóes bíblicas. Há cerca de quatrocentascitagóes, que na maioria das vezes aparecem de forma espontánea esem introdugao, parecendo fazer parte de sua bagagem cultural, seintegrando no próprio texto. Além disso, Freud se identificava comalguns personagens bíblicos, por exemplo, José e Moisés.Estes exemplos mostram a relagáo de Freud com o Judaismo e asEscrituras, urna vez que, mesmo se dizendo ateu, ele apresentavaurna influencia cultural, por sua formagáo enquanto judeu.

Outro exemplo é Edith Stein (1891-1942): filósofa, assistentede Husserl e especialista na Fenomenología da Psicologia. Diante deum momento de mudangas sociais e dos acontecimentos referentesao nazismo, Stein, assim como outros judeus alemáes, foi levada arefletir sobre si e seu destino e diante dessas reflexóes propós expore defender a idéia do judaismo contra as falsificagóes que muitosfaziam (STEIN, 1985). Ou seja, em um momento de crise, Stein sevoltou para a cultura de seus antepassados e, conseqüentemente, asua, havendo um resgate de memorias e tradigóes.Antes de ser presa, Stein escreveu um diario contando como era avida de urna familia judia, no intuito de mostrar a importancia e ovalor deste povo, diante das perseguigóes nazistas. Os judeusalemáes de forma geral também tiveram urna experiencia coletivahistórica, em que alguns se voltaram para as origens e tradigóes deseu povo.

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Milena Callegari Cosentino, Marina MassimiA experiencia de autores judeus da psicología sobreviventes do holocausto

Ainda dentro das Humanidades, na área da Sociología, MauriceHalbwachs (1877-1945), sociólogo durkheimiano e autor do livro "AMemoria Coletiva" também era judeu. Ele apresentava sua visáoteórica baseado também em sua experiencia cultural, uma vez quepara ele nao é possível desvincular o individuo de seu grupo depertenga. Na introdugáo desta obra, Michel Alexandre escreveu queeste livro foi publicado a partir dos papéis deixados por Halbwachs, oque traz fragmentos da grande obra que ele projetava sobre o tempo.As relagóes da memoria e da sociedade haviam se tornado o centro ea baliza do seu pensamento. O autor foi preso pela Gestapo em 1944e morto no campo de concentragáo de Buchenwald em 1945.

Poderá parecer simbólico que um dos homens maisempenhados em definir a idéia do homem enquanto pessoadistinta das coisas, o que traz condenagao radical doinstrumento humano, do material humano, tenha passadopelo inferno dos campos de concentragáo, onde sociedade eindividuo sao negados e eliminados! (J.-MICHEL ALEXANDRE,In: HALBWACHS, 1986, p. 23)

6 Resultados

6.1 Viktor Frankl: Em Busca de Sentido.

Viktor E. Frankl (1905-1997) nasceu em Viena, pertencia a umafamilia judia e foi educado dentro da tradigáo judaica; seus pais eramprocedentes da Tchecoslováquia. Ainda jovem, teve contato com apsicanálise e aos 16 anos deu sua primeira palestra sobre "o sentidoda vida". Em 1926 utilizou pela primeira vez o termo "Logoterapia".Em 1927 organizou centros de ajuda psicológica para jovens carentesde Viena. Especializou-se em neurología nos anos de 1931 e 1932 eno período de 1933 a 1936 dirigiu o setor de mulheres suicidas nohospital psiquiátrico de Viena (XAUSA, 1986).Em 1938 a Austria foi ocupada por Hitler, e Frankl desistiu de ir paraos Estados Unidos, pois seus pais eram idosos (XAUSA, 1986). Emdezembro de 1941 se casou e logo após, em 1942, ele, a esposa etoda a familia foram levados para campos de concentragáo. Suaesperanga sempre foi reencontrá-los, porém somente ele sobreviveu.

6.2 Kurk Lewin: Problemas de Dinámica de Grupo.

Kurt Levin (1890-1947) nasceu em Mogilno, na Prússia. Eraprocedente de uma familia judia. Em 1933 foi obrigado pelos nazistasa deixar a Alemanha em 24 horas, pagando um resgate para nao serpreso em um campo de concentragáo. Após imigrar para os EstadosUnidos, Lewin já de pronto dedicou sua atengáo á psicología de seu

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próprio grupo étnico, uma vez que as experiencias que teve naAlemanha o traumatizaram sob muitos aspectos. Por ser judeu,sofreu discriminagoes, injustigas, vexames, ostracismo, entre outrassituagóes. Assim, procurou compreender e encontrar umainterpretagáo científica para o que sofreu (MAILHIOT, 1991).

Comegou explicando a "psicologia das minorías judias"(MAILHIOT, 1991, p. 29), entáo elaborou a "psicologia dos gruposminoritarios" (idem), foi levado a repensar e a redefinir "queproblemas constituem o centro da exploragáo e da experimentagáoda psicologia social?" (idem), o que resultou em sua obra "A dinámicados grupos" (idem). Os temas mais recurrentes em seu livro sao:Problemas de Mudanga Cultural; Conflitos em Grupos Primarios;Conflitos Intergrupais e a Participagáo no Grupo: ProblemasPsicológicos e Sociológicos de um Grupo Minoritario; Em face doPerigo; A Educagáo da Crianga Judaica; O Odio a Si Mesmo Entre osJudeus e Pesquisa de Agáo e Problemas de Minoría (LEWIN, 1948).

6.3 Bruno Bettelheim: O Coracao Informado

Bettelheim (1903-1990) nasceu em Viena. Era de familia judia epsicólogo. Em 1938 foi detido pelos nazistas e enviado ao campo deconcentragáo de Dachau e depois a Buchenwald. Depois de um anomudou-se para os Estados Unidos, trabalhando como investigador,psicólogo e professor.Bettelheim (1985) apresentou suas idéias sobre a condigáo dohomem na sociedade moderna de massa e sobre o impactopsicológico das tendencias totalitarias. Em uma tentativa de esbogaruma coeréncia interna ele incluiu um pouco de sua biografía eenfatizou que

para neutralizar o impacto debilitador da sociedade demassa, a obra de um homem deve-se impregnar de suapersonalidade (...) sua opgao de trabalho (...) devemanifestar diretamente a maneira pela qual este homembusca sua auto-realizagao em nosso mundo [e] os resultadosda obra (...) devem refletir os objetivos que ele próprio temna vida (BETTELHEIM, 1985, p. 11 e 12).

6.4 Recursos Utilizados Pelos Autores para Superar o Traumae Teorías Elaboradas

A teoría elaborada pelos autores foi uma resposta histórica dada aosofrimento vivenciado, mas, ao mesmo tempo, eles chegaram aelementos sobre o humano e sobre a dinámica do sofrimento, dotrauma e a dinámica da participagáo na historia, o que é um passonovo para a Psicologia, uma vez que nao se restringe apenas aquelemomento histórico.

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6.4.1 Víctor Frankl

Para Frankl o período vivido no campo de concentragáo foi como oexperimentum crucis para suas idéias psicoterapéuticas (ROEHE,2005). Ao se referir a esse tempo e a sua sobrevivencia ele usavaurna frase de Nietzsche, a qual repetiu em muitas de suaspublicagoes: "quem tem por que viver agüenta quase todo como"(FRANKL, 1991, p. 75). Ali, Frankl perdeu seu manuscrito em quehavia delineado os principios da Logoterapia ("Terceira EscolaVienense de Psicoterapia") e, a principio, deu por encerrada toda asua vida intelectual.No entanto, podem-se evidenciar alguns recursos pessoais utilizadospor Frankl para enfrentar as situagoes adversas do campo deconcentragáo, como, por exemplo, pensar no futuro e se enxergar emum momento posterior dando palestras sobre sua experiencia. Domesmo modo, o refugio no passado também era urna forma deesquecer-se por um momento da situagáo atual de sofrimento elembrar-se de experiencias agradáveis. O humor também foi umrecurso utilizado por Frankl, urna vez que Ihe possibilitava colocar-seácima das situagóes que estava vivendo. Por isso, combinou com umamigo de fazerem pelo menos urna piada por dia (FRANKL, 1991).Encontrar sentido no sofrimento e até mesmo na morte o fortalecía ase posicionar diante das adversidades, buscando urna realizagáointerna de valores. Frankl apontou que o sofrimento faz parte davida, assim como o destino e a morte. Assinala que a liberdadeespiritual do homem se baseia no fato de sempre, e em toda parte, apessoa se colocar "diante da decisáo de transformar a sua situagáode mero sofrimento numa realizagáo interna de valores" (FRANKL,1991, p. 68), urna vez que "o sofrimento de certo modo deixa de sersofrimento no instante que encontra um sentido" (FRANKL, 1991, p.101). Assim, a pessoa tem a liberdade de escolher suas agóes aoinvés de simplesmente entregar-se e reproduzir o que as situagóespropiciam.A partir de sua experiencia, Frankl desenvolveu teorías e conceitoscomo, por exemplo, os "Valores de atitude", que surgem quando apessoa está diante de urna situagáo limite de sofrimento inevitável.Com isso, enfatizava a importancia do individuo se posicionar deforma a encontrar sentido ñas dificuldades, urna vez que a busca desentido é a principal forga motivadora no ser humano (FRANKL,1991). Para Frankl, o homem é insubstituível e tem urnaresponsabilidade por sua vida e pela continuidade da vida e aLogoterapia vé na responsabilidade a esséncia da existencia humana,confrontando com a finitude da vida e com o caráter irrevogável doque a pessoa faz da vida e de si mesma.

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Deste modo, o sentido da vida sempre se modifica, mas jamáis deixade existir e pode ser afirmado de tres formas diferentes: 1. Criandoum trabalho ou praticando urna agáo, 2. Experimentando algo ouencontrando alguém e 3. Pela atitude que a pessoa toma em relagáoao sofrimento inevitável, transformando a tragedia pessoal em triunfo(FRANKL, 1991).Por fim, na Tese do Otimismo Trágico (pós-escrito em 1984), Franklafirmou a possibilidade de a pessoa ser e permanecer otimista apesarda tríade trágica (dor, culpa e morte). Apresentou um otimismodiante da tragedia, tendo em vista o potencial humano detransformar o sofrimento numa conquista e numa realizagáo humana,extrair da culpa a oportunidade de mudar a si mesmo para melhor efazer da transitoriedade da vida um incentivo para realizar agóesresponsáveis.

6.4.2 Kurt Lewin

K. Lewin foi um autor importante da Psicología social associada adinámica de grupos. Ele utilizou sua experiencia enquanto judeu paratentar entender do ponto de vista psicológico o individuo associado aseu grupo de pertenga e elaborou sua teoría a partir de suasvivencias. Ao mesmo tempo, sua teoría o auxiliou a enxergar oproblema da minoría judaica.Lewin priorizava o estudo do tema do individuo no grupo, bem comoda percepgáo que o mesmo tem dos fatos e da realidade. Para Lewin,a percepgáo que a pessoa tem dos acontecimentos é central para amaneira como ela organiza sua experiencia e "o grupo a que pertenceo individuo constituí a base de suas percepgóes, agóes e sentimentos"(ALLPORT, G. W. In: LEWIN, 1948, p. 7).Deste modo, é a base do grupo social que dá ao individuo suaconfiguragáo. A partir disso, Lewin discute a relagáo individuo-grupo etoda tensáo que ser parte de um grupo representa.O grupo é o solo, o territorio no qual o individuo se mantém, é o meioque o individuo participa e o espago de vida do mesmo. Um dosobjetivos vitáis da pessoa é atingir ou manter determinada posigáoou status dentro do grupo. E a dinámica de valores e regras do grupoao mesmo tempo que liberta, aprisiona (LEWIN, 1948).Lewin (1948) sentía urna "necessidade de agáo na vida judaica" (p.174) daquele momento em que os judeus estavam sendo destinadosá tortura e destruigáo, pelo avango do nazismo e fascismo. Istoporque, para ele, nao havia indicios que a paz surgiría naturalmentenos anos seguintes e, portanto, era necessário que os judeuspensassem e agissem sobre aquela situagáo. Lewin afirmou que eranecessário tratar o problema judeu científicamente como um caso deminoría desprivilegiada, sendo que toda minoría desprivilegiada émantida por urna maioria privilegiada.

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Os problemas de minorías na verdade também sao problemas demaiorias e um grupo é considerado minoría psicológica quando seudestino coletivo depende da boa vontade de outro grupo. O grupominoritario pode tanto tentar ser aceito e se incorporar ao grupomajoritário, como também se afastar e excluir, preservando suascaracterísticas distintas. Um dos meios estratégicos para oaperfeigoamento das relagoes intergrupais é a elevagáo do amorpróprio dos grupos minoritarios (LEWIN, 1948).A partir disso pode-se compreender o odio a si mesmo entre osjudeus: é difícil para a pessoa se identificar como parte de um grupo,porque ao mesmo tempo que integra determinado grupo, faz partede outros também. Assim, a mesma pode apresentar dificuldade parase definir enquanto individuo e ter um recorte de sua personalidade,por pertencer a diferentes grupos.Além disso, pertencer ao grupo judeu implicava muitas vezes emsituagóes ou experiencias desagradáveis na sociedade. Portanto, énecessário que haja urna reeducagáo quando um individuo ou grupo"está fora de passo em relagáo á sociedade em geral" (LEWIN, 1948,p. 72). Para tanto, deve haver urna mudanga na estrutura cognitiva,aceitagáo de novos valores e urna agáo motora. Esta "reeducagáo sóinfluencia a conduta quando o novo sistema de valores e crengasdomina a percepgáo do individuo" (LEWIN, 1948, p. 84) e a aceitagáodesse novo sistema é ligada á aceitagáo de um grupo específico, deum determinado papel e/ou de urna fonte definida de autoridadecomo novos pontos de referencia.

6.4.3 Bruno Bettelheim

Bettelheim escreveu "O Coragáo Informado" (1985) a partir de suaexperiencia e pode perceber a influencia do Estado totalitario ñassociedades de modo geral, o que compromete a autonomía e apreservagáo da personalidade do individuo. Sua obra tem um caráterabrangente: a partir da observagáo específica da realidade doscampos de concentragáo e do Estado Hitlerista, ele pode ampliar esteolhar para as sociedades contemporáneas de massa, tematizando aperda da autonomía e da espontaneidade das pessoas, na medida emque se acomodam ao que é oferecido ou "imposto" por estasociedade, em troca de prazer e consumo.Bettelheim pretendía entender este processo do ponto de vistapsicológico e esta busca de conhecimento funcionava como urnadefesa espontánea contra o impacto de urna situagáo extrema, emque ele usava de seus recursos (formagáo e educagáo específica)para defender-se de urna receada desintegragáo de personalidade.Seu principal cuidado no período que estava nos campos deconcentragáo era proteger seu eu interior de forma que, se algum dia

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viesse a recuperar a liberdade, ele voltasse a ser a mesma pessoaque era quando a perdeu (BETTELHEIM, 1985).Com sua experiencia nos campos de concentragáo percebeu que omeio pode provocar transformagóes rápidas e profundas napersonalidade do individuo. A partir disso, Bettelheim buscava alertaras pessoas acerca da ocorréncia dos mecanismos dedespersonalizagáo na relagáo com o meio, pois os campos deconcentragáo desenvolveram ao extremo técnicas para retirar dosujeito a iniciativa e levá-lo á perda da identidade, mas existemtécnicas semelhantes, em menor grau, ñas sociedades de massacontemporáneas (BETTELHEIM, 1985).Para ele, o homem moderno sofre com a incapacidade de escolherentre renunciar a liberdade e o individualismo ou desistir dosconfortos materiais da tecnología moderna e a seguranga de urnasociedade de massa coletiva. O ser humano vai se acostumado comas imposigóes do sistema e perde a reagáo espontánea diante darealidade e quanto mais precisa conter a espontaneidade ao reagir,mais fraca ela se torna, pelo desuso (BETTELHEIM, 1985).Desta forma, a sociedade interfere na liberdade interna e externa doindividuo, ameagando sua autonomia. Sujeitar-se ao estadototalitario pode acarretar urna desintegragáo do que antes parecíaurna personalidade bem integrada, além de um regresso a muitoscomportamentos infantis, de obediencia, dependencia e submissáo.Ao mesmo tempo, a personalidade pode se romper sob a pressáo doEstado quando o individuo tenta resistir. O objetivo do Estadototalitario é acabar com a individualidade e liberdade de agáo, o focodeixa de ser o individuo e este e o grupo sao forgados a mergulharnuma "massa geral maleável" (BETTELHEIM, 1985, 211). Os sujeitosem urna sociedade totalitaria sao despersonalizados e nao há maislugar para interesses pessoais.A partir de sua experiencia e das análises desta obra, o autoresperava ajudar as pessoas a decidir qual mudanga desejariamoperar em sua personalidade com o fim de se amoldarem melhor asexigencias moráis e emocionáis, para poderem suportar as pressóesde urna sociedade de massa, ou seja, que aprendessem comoinformar o coragao em beneficio da autonomia (BETTELHEIM, 1985).

7 Conclusao: Aprendendo e ensinado com a experiencia

As experiencias e teorías dos autores apresentadas anteriormenteestáo relacionadas com o fato de pertencerem ao povo judeu e teremsofrido de alguma forma perseguigao no período da Segunda GuerraMundial por pertencerem a este grupo. Ao considerar o contextosócio-histórico-cultural dos mesmos, sao evidentes as influencias dos

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fatores externos sobre suas teorías científicas (WERTHEIMER, 1998;MASSIMI; CAMPOS; BROZEK, 1996).Além disso, de alguma forma os autores sofreram trauma, poisenfrentaram perigo de morte, tiveram a vida e a segurangaameagadas, ficando impotentes diante das situagóes encaradas(GUERREIRO et al, 2007; VANDERBOS, 2010).Os tres autores se refugiaram nos Estados Unidos. Frankl eBettelheim foram presos campos de concentragao, diferentemente deLewin que fugiu para os Estados Unidos antes de ser preso. Ali elestiveram liberdade para desenvolver suas teorías e suas obras forambaseadas na reflexáo acerca do que sofreram nesse período, a deFrankl e Bettelheim em suas experiencias no campo de concentragaoe a de Lewin na vivencia dos preconceitos e no ostracismo, quecaracterizaram aquele momento da historia na Europa.Mesmo tendo essa liberdade para desenvolverem suas teorías e"recomegarem" a vida, é importante considerar que todos elestiveram que se adaptar a um novo contexto, urna nova realidade esociedade.Lewin procurou compreender e abordar a vivencia do seu sofrimentoe do seu povo á luz da Psicologia Científica, visto que seu grupoétnico vivia em urna permanente inseguranga na época pelasvariagóes do clima político e o avango do nazismo na Europa. Paraele, o grupo a que o individuo pertence constituí a base daspercepgóes, agóes e sentimentos, ou seja, é a base do grupo socialque dá a configuragáo do individuo (LEWIN, 1948).Já Frankl, da experiencia que teve no campo de concentragao derivoua importancia da busca de sentido como fator essencial para asobrevivencia. Com base nisto, formulou sua teoría psicológicabaseando-se no fato de que a busca de sentido é a principal forgamotivadora no ser humano. Portanto, afirmou que sempre existe apossibilidade do ser humano encontrar sentido ñas dificuldades, nosofrimento e até na morte, considerando a liberdade e aresponsabilidade da pessoa por suas agóes (FRANKL, 1991).Rudge (2009) aponta que as representagóes do trauma variamconforme o destino que a pessoa dé á experiencia vivenciada. Mesmodeparando-se com situagóes difíceis de serem enfrentadas, osautores encontraram algum sentido em suas vivencias e inclusiveproduziram teorías ou reafirmaram as teorías pré-existentes a partirde tais experiencias. De acordó com Betthelheim (1991), estetrabalho de elaboragáo possibilitou que sua personalidade nao sedesintegrasse, maniendo sua individualidade e autonomía, mesmonum contexto profundamente ameagador.

De modo geral pode-se concluir que nos relatos e obras destesautores encontram-se tematizados os recursos pessoais, psicológicose culturáis que eles usaram para vivenciar ou superar o trauma.Todos eles enfrentaram o seu momento histórico de forma nao

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alienada, tiveram urna posigáo ativa e tentaram indicar meios parasuperar os desafios presentes no mundo contemporáneo.

Referencias

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Enderece» para correspondenciaMilena Callegari CosentinoCampos da Universidade de Sao PauloFaculdade de Filosofía Ciencias e LetrasAv. Bandeirantes, 3900. CEP: 14040-901. Ribeirao Preto, SP, BrasilEnderego eletrónico: [email protected] MassimiCampos da Universidade de Sao PauloFaculdade de Filosofía Ciencias e LetrasAv. Bandeirantes, 3900. CEP: 14040-901. Ribeirao Preto, SP, BrasilEnderego eletrónico: [email protected]

Recebidoem: 18/01/2012Reformulado em: 03/09/2012Aceito para publicagao em: 27/11/2012Acó m pan ha mentó do processo editorial: Ana Maria Jaco Vilela

Notas*Psicóloga, Mestranda em Psicología pela Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letrasde Ribeirao Preto.**Professora Titular da Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letras de Ribeirao Preto.Departamento de Psicología.

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COMUNICACÁO DE PESQUISA

Urna historia da Abordagem Centrada na Pessoa noBrasil

A history of the Person Centered Approach in Brazil

Alexandre Trzan-Ávila*Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,Brasil

Ana María Jacó-Vilela**Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

RESUMOO objetivo deste trabalho é construir um relato histórico da emergencia daAbordagem Centrada na Pessoa no Brasil (ACP), visando responder asseguintes perguntas: como esta abordagem chega ao Brasil; com quemchega; como se desenvolve; quais influencias de ámbito nacional estaabordagem recebe. Estas questoes se fazem pertinentes pela constatagaoque a ACP entra no Brasil em urna época atravessada por movimentoslibertarios, como a contracultura, movimentos de minoria, antipsiquiatria eas batalhas pela democracia no Brasil. A ACP é urna das primeiras vertentesda Psicología Humanista e deve sua sistematizagao ao psicólogo norte-americano Carl Rogers, que aponta para urna perspectiva de homem e dasrelagoes humanas e valoriza a potencia de desenvolvimento do ser humano.O presente trabalho utiliza o método historiográfico, que consiste em umprocesso de reconstrugao da historia.Palavras-chave: Historia da Psicología, Abordagem Centrada na Pessoa,Historiografía.

ABSTRACTThe objective of this study is to develop a historical account of theemergence of Person-Centered Approach in Brazil (PCA), to answer thefollowing questions: how this approach arrives at Brazil, with whom itcomes, how does it develop and which nationwide influences does thisapproach receive. These issues become relevant due to the fact that the PCAenters Brazil at a time crossed by liberation movements, such as thecounterculture, minority movements, anti-psychiatry and the struggles fordemocracy in Brazil. The PCA, first currents of the Humanist Psychology,owes its systematization to the American psychologist Carl Rogers, whopoints to a view of man and of human relations, who valúes the power ofhuman development. This paper uses the historiographical method, whichconsists in a process of reconstructing the history.Keywords: History of Psychology, Person Centered Approach,Historiography.

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicologia | Rio de Janeiro | v. 12 | n. 3 |p. 1063-1069) 2012

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Alexandre Trzan-Ávila, Ana Maria Jacó-VilelaUma historia da Abordagem Centrada na Pessoa no Brasil

Este trabalho pretende estabelecer um quadro histórico do períodoem que ocorreu a emergencia e o desenvolvimento da AbordagemCentrada na Pessoa no Brasil. Como afirma Rodrigues (2004), "todosaber seria ideológico, por refletir a infra-estrutura económica dasociedade". E nao pretende ser uma análise em termos de influenciase muito menos quer explicar um movimento a partir de outrosautores, antecessores ou contemporáneos, para assinalaroriginalidades ou celebrar precursores.Um dos motivos que me impulsionaram na construgao deste projetofoi a minha curiosidade frente á vida, em seu aspecto relacionado áminha formagáo profissional. Ressalto que ao longo de minhaformagáo como psicólogo, esta nao encerrada pela conclusáo dagraduagáo, continuamente fui apresentado a teorías, modelos dehomem, reflexóes sócio-culturais, e de todo este percurso optei poralguns caminhos e nestes me aprofundei. Por exemplo, a minhaformagáo na Abordagem Centrada na Pessoa, uma das vertentesmais importantes da Psicología Humanista, na qual passei a atuarclínicamente, sem, porém, deixar de questionar que influenciasdeterminaram o modelo de homem, dotado de potencialidades para ocrescimento, livre-arbítrio, auto-determinagáo e digno de confianga, eas relagóes interpessoais preconizadas por esta teoría.É sabido que esta abordagem teve seu crescimento principalmenteentre as décadas de 1950 e 1970, época fortemente marcada pelaGuerra Fria, Revolugóes Chinesa e Cubana, Guerra do Vietná e, noBrasil, pelo Golpe Militar de 64 e o AI5, além de movimentos como oda contracultura, oriundo do solo norte-americano, entre muitosoutros movimentos, como os movimentos feminista e Gay, ambosoriundos também dos Estados Unidos. Pergunto, entáo: esta teoríafaria sentido somente no contexto sócio-histórico onde sedesenvolveu? O solo americano e suas idéias pragmáticas deram a"cara" que a ACP tem no Brasil? Ou a ACP no Brasil é negra, é india,é branca, é mista?Jacó-Vilela (2004) aponta para a necessidade de articular ascondigóes brasileiras de momentos históricos pontuais, com osurgimento e crescimento de determinadas teorías e abordagenspsicológicas. Ela afirma a "impossibilidade de se pensar os saberes epráticas "psi" de forma ¡solada e autónoma, independentemente dascondigóes em que emerge, estabilizase e floresce". (p. 94)O principal e quase único trabalho sobre a historia da ACP é umapesquisa realizada por Márcia Tassinari, sócia fundadora do Centro dePsicología da Pessoa, instituigao criada há mais de 35 anos no Rio deJaneiro. Realizada entre os anos de 1990 e 1997, nesta pesquisaTassinari já apontava para a escassa produgáo teórica sobre ocontexto sócio-político da ACP no Brasil: "Vale ressaltar que poucosautores destacam questóes relativas ao contexto socio-político-

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Alexandre Trzan-Ávila, Ana Maria Jacó-VilelaUrna historia da Abordagem Centrada na Pessoa no Brasil

cultural táo diferente das raízes do pensamento de Rogers" (2010, p.48).Conhecer a historia da teoría que embasa o próprio trabalhopossibilita saber de onde se está falando, permite avahar o quanto osatravessamentos políticos e sociais que acompanharam a criagáo eevolugáo deste pensar o homem e suas relagoes influenciaramdiretamente o modelo de homem, a visáo de mundo e sociedade queconstituem este saber. Portanto compreender como urna teoría seconstituí e seus pressupostos permite avahar a construgáo e a própriaaplicagáo de urna teoría, buscando compreender a quem serve e omodo como a mesma pode ser aplicada em contextos determinados.Os questionamentos apontados anteriormente sao de fundamentalimportancia dado que: diversas graduagóes, pós-graduagóes eespecializagóes oferecem disciplinas, e fomentam a elaboragáo demonografías, dissertagóes, teses e artigos científicos e a existencia deinstituigóes formadoras, conforme pode ser visto no sitio daAssociagáo Paulista da Abordagem Centrada na Pessoa(<http//: www.apacp.org.br>).A partir do quadro ácima exposto, entender-se que registrar ahistoria da ACP no Brasil é urna tarefa que se justifica dada a suaacolhida e o grande contingente de profissionais que atuam nestereferencial teórico.Quanto á definigáo do método da pesquisa, conforme orienta Sá(2007), o principal objetivo em urna pesquisa histórica é fazeremergir a extrema riqueza e complexidade da memoria comofenómeno psicossocial. Portanto, entre os métodos possíveis deserem utilizados nesta pesquisa será adotada a metodología dahistoriografía, por se tratar de um processo de reconstrugáo ereconstituigáo da historia.O método historiográfico consiste em um processo de reconstrugáoda historia. Neste processo o pesquisador tem um papel fundamental,por que além de buscar informagóes, é ele quem irá narrar o fatohistórico, sendo assim produtor de conhecimento ao criar eestabelecer significados. Este trabalho se insere em urna proposta dahistoriografía da psicología que, segundo Brozek e Massimi (1998),"comega com o relato de algum fato, contextúa/izado em seucontexto temporal e espacial. Tratase, porém de um relato que naoapenas narra o fato, mas também busca explica-lo".A reconstrugáo da memoria histórica pretendida a ser concluida nadissertagáo de mestrado comporta duas modalidades, a saber:"memoria histórica documental" e "memoria social oral". A primeiraserá a pesquisa e análise de documentos e a segunda será o relatooral instrumentalizado por entrevistas. Pretende-se que em umprimeiro momento, seja realizada a investigagáo bibliográfica defontes primarias como atas, materias de jomáis etc, bem como decomentadores e teses, livros, artigos e outros documentos.

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Alexandre Trzan-Ávila, Ana Maria Jacó-VilelaUrna historia da Abordagem Centrada na Pessoa no Brasil

A pesquisa das condigoes culturáis e económico-sociais do Brasil naépoca em questáo será feita através da obra de estudiosos da historiado Brasil, iniciando-se na década de 1960, momento em queatravessávamos urna ¡mensa crise económica com inflagáo muitoalta. Neste cenário rompe o golpe militar de 1964, justificado comoprevengáo a urna ameaga comunista (ANSARA, 2008). A partir daí, oque se presenciou foram os setores populares e democráticos do paíspagando um prego muito elevado pela resistencia oferecida aosMilitares.Vale lembrar que no cenário internacional cresce o horror norte-americano ao comunismo, especialmente em razáo da RevolugáoCubana (1959), á Guerra do Vietná (1959 a 1975) e pelaintensificagáo da Guerra Fria, período que compreendeu o final daSegunda Guerra Mundial (1945) e o fim da Uniáo Soviética (1991)juntamente com a queda do Muro de Berlim na Alemanha, confutoque envolvía os Estados Unidos e a Uniáo Soviética e suas zonas deinfluencia, separando o mundo em dois blocos (BLAINEY, 2009).É também neste período que se desenvolve, em solo americano, acontracultura, um movimento que tem seu auge na década de 1960,quando teve lugar urna forma de mobilizagáo e contestagáo social,onde jovens com um espirito mais libertario, afinados com urnacultura alternativa ou hippie (que se opunha radicalmente aotrabalho, ao patriotismo, ao nacionalismo e á ascensáo social), focadaprincipalmente na transformagáo da sociedade defendem urnamudanga de atitude, protestando contra a Guerra do Vietná, omachismo, a discriminagáo racial, visando a construgáo de novoscañáis de expressáo para o individuo. A contracultura questionavavalores centráis da cultura ocidental. Posteriormente, a contraculturadesenvolveu-se na Europa e América Latina. No Brasil fez-se presenteprincipalmente nos anos 1970 e inicio dos 1980, conforme apontaAlmeida (2009).Emerge também nos EUA a Psicología Humanista e um psicólogobrasileiro que contribuiu para expansáo desta psicología no Brasil,Rogério Buys (2010), esclarece: "o termo "humanismo" surgiu noRenascimento no final do século XIV e denominaba tanto um aspectoliterario, os escritores clássicos, quanto um viés filosófico,preocupándose com o valor do homem e a tentativa de compreendé-lo em seu mundo" (p. 339).A Psicología Humanista, que nao é urna filosofía nem mesmo urnateoría, é mais bem explicada como um movimento inicialmenteorganizado pelo psicólogo norte-americano Abraham Maslow nadécada de 1950, que organizou urna lista com nomes e enderegos depsicólogos que, em sua prática diaria, encontravam-se descontentescom os modelos de homem e práticas psicoterápicas predominantesna época. Após diversos encontros e trocas de experiencias entreestes psicólogos e os demais interessados, foi fundada em 1961 a

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Revista de Psicología Humanista. Com seu sucesso, criou-se aAssociagáo Americana de Psicología Humanista, em 1963. Hoje apsicología humanista se mostra uma forga firmemente estabelecida ereconhecida no panorama da psicología mundial.A Psicología Humanista se caracteriza por ser uma Psicología dohomem como um todo, com o seu inconsciente, consciente,condicionamentos e todo o resto, mas levando em conta ácima detudo as características do homem que o distinguem dos animáis e dasmáquinas (BOAINAIN, 1998). É uma Psicología atenta ao crescimentoe á promogáo da Saúde, em detrimento dos modelos deterministas ecausáis. Ela considera a importancia das influencias provenientes doambiente, do passado ou do inconsciente, porém leva em conta olivre-arbítrio, a responsabilidade e a intencionalidade comocaracterísticas intrínsecas á condigáo humana (TRZAN-ÁVILA, 2007).Dentro deste movimento destaca-se o psicólogo norte-americano CarlRogers que foi um dos principáis colaboradores desta nova forga emPsicología, criando uma de suas ramificagóes, atualmentedenominada de Abordagem Centrada na Pessoa. Esta caracteriza aúltima fase de seus trabalhos e sustenta uma determinadaperspectiva de homem e das relagóes humanas. Esta teoría e suaevolugáo ocorreram a partir da própria prática de psicoterapiarealizada por Rogers, ou seja, é uma teoría que se adequou aohomem e nao o homem a esta (ROGERS, 1983). Partindo dapsicoterapia, Rogers e seus colaboradores ampliaram a atuagáo daACP para a educagáo, a saúde hospitalar, as organizagóes etc.A proposta inicial de Rogers foi estabelecer as condigóes necessáriase suficientes para que se produzam mudangas terapéuticas dapersonalidade do cliente, isto é, definir as condigóes cuja presengafavorega o processo de mudanga, para que o homem possa viver demaneira mais integrada, com menos conflitos internos, seguindo emdiregáo a comportamentos mais maduros. Segundo Rogers, as tresatitudes do terapeuta em relagáo ao seu cliente sao: congruencia,consideragao positiva incondicional e empatia (ROGERS, 1988).Partindo inicialmente das informagóes levantadas por Tassinari(2010) sobre a emergencia e constituigáo da ACP no Brasil,apresentam-se os seguintes indicativos, dentre eles que a brasileiraMariana Alvim, talvez tenha sido a primeira pessoa a trazer as idéiasde Carl Rogers para o Brasil, ela o conheceu em 1945, em Chicago,quando foi estudar instituigóes nos EUA que trabalhavam commenores delinqüentes. Aprendeu o que na época denominava-se"entrevista náo-diretiva". Em 1947, Mariana foi chamada paraorganizar o Instituto de Selegáo e Orientagáo Profissional (ISOP) noRio de Janeiro, quando passou a usar efetivamente a "técnica náo-diretiva".

Uma das primeiras agóes de institucionalizagáo da Abordagem noBrasil foi á criagáo do Servigo de Aconselhamento Psicológico (SAP)

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da Universidade do Estado de Sao Paulo (USP), na década de 1960,sob a coordenagáo de Oswaldo de Barros Santos, com o apoio de suaex-aluna Rachel Rosenberg. Era um servigo com base teóricaancorada no pensamento rogeriano. Já na década de 70 foi criado oCentro de Desenvolvimento da Pessoa no Instituto Sedes Sapientiae,por iniciativa também da psicóloga Rachel Rosenberg.Em 1963 a ACP se fez presente no Primeiro Curso de Psicología daUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que contemplou seusalunos com seminarios e os professores com treinamento sobre aTeoría Centrada no Cliente. Vale ressaltar que o primeiro Grupo deFormagáo de Psicoterapeutas nesta abordagem foi coordenado porAntonio Luiz Costa, no final da década de 60 também em MG. Por suavez no Rio de Janeiro é fundado o Centro de Psicología da Pessoa em1975, este um dos núcleos mais antigos do Brasil que continua ematividade através de cursos de formagáo, atendimento psicoterápico eorganizagáo de eventos.Portanto espero concluir esta pesquisa apontando para os principáisaspectos do contexto histórico-social brasileiro onde ocorreu aemergencia e desenvolvimento da Abordagem Centrada na Pessoa.Finalmente, espero que este trabalho sirva de modelo para urnareflexáo voltada aos profissionais da área, os quais venham adotareste referencial teórico.

Referencias

ALMEIDA, M. I. M.; NAVES, S. C. "Por que nao?" - rupturas econtinuidades da contracultura. Sao Paulo, Ed. 7 letras. 2009.ANSARA, S. Memoria Política, Repressáo e Ditadura no Brasil.Curitiba, Juruá Editora, 2008.ASSOCIAgÁO PAULISTA DA ACP. Disponível em:<www.apacp.com.br>. Acesso em: 26 set. 2010.BLAINEY, G. Urna breve historia do mundo. Sao Paulo, EditoraFundamento, 2009.BOAINAIN, E. Tornar-se transpessoal. Sao Paulo, SummusEditorial, 1998 .BROZEK, J; MASSIMI, M. (Orgs.). Historiografía da piscologiamoderna. Sao Paulo, Edigóes Loyola/Unimarco. 1998.BUYS, R. C. A psicología humanista. In: JACÓ-VILELA, A. M.;FERREIRA, A. A. L; PORTUGAL, F. T. (Orgs.). Historia dapsicología: Rumos e Percussos. Rio de Janeiro, Ñau Editora. 2010,p. 339-348.JACÓ-VILELA, A. M. Análise Inicial da Produgáo escrita em Psicologíano Brasil. In: JACÓ-VILELA, A. M.; MANCEBO, D. (Orgs.). Psicologíasocial: abordagens sócio-históricas e desafios contemporáneos. Riode Janeiro, EdUERJ. 2004, p.93-109.

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Alexandre Trzan-Ávila, Ana Maria Jacó-VilelaUrna historia da Abordagem Centrada na Pessoa no Brasil

RODRIGUES, H. de B. C. Sobre as Historias das Práticas Grupais:exploragóes quanto a um intrincado problema. In: JACÓ-VILELA, A.M; MANCEBO, D. (Orgs.)- Psicología social: abordagens sócio-históricas e desafios contemporáneos. Rio de Janeiro, EdUERJ. 2004,p.113-168.ROGERS, C. R. Um jeito de ser. Sao Paulo, E.P.U., 1983.

. Tornar-se pessoa. Sao Paulo, Martins Fontes, 1988.SÁ, C. P. Psicología Social da Memoria: sobre memorias históricas ememorias geracionais. In: JACÓ-VILELA, A. M.; SATO, L. (Orgs.).Diálogos em psicología social. Porto Alegre, Editora Evangraf.2007, p. 53-61.TRZAN-ÁVILA, A. A Abordagem Centrada na Pessoa e oProcesso Terapéutico. 2007. 49 f.Monografia (Graduagáo emPsicología) - Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro.CARRENHO, E; TASSINARI, M; PINTO, M. A. DA S.Praticando aabordagem centrada na pessoa. Sao Paulo, Carrenho Editorial.2010.

Enderezo para correspondenciaAlexandre Trzan-ÁvilaCLIO-PSYCHÉ - Programa de Estudos e Pesquisas em Historia da PsicologíaUniversidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Rúa Sao FrancsicoXavier, 524, 10° andar, bloco F, sala 10120.Endereco eletrónico: [email protected] Maria Jacó-VilelaCLIO-PSYCHÉ - Programa de Estudos e Pesquisas em Historia da PsicologíaUniversidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Rúa Sao FrancsicoXavier, 524, 10° andar, bloco F, sala 10120. Tel: (0xx21) 2334-0830Enderego eletrónico: [email protected]

Recebido em: 11/11/2011Reformulado em: 02/07/2012Aceito para publicagao em: 02/07/2012Acompan ha mentó do processo editorial: Ana Maria López Calvo de Feijoo

Notas*Mestrando do Programa de Pós-Graduagao em Psicología Social (PPGPS) daUniversidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro - Brasil. Graduadoem Psicología pela Universidade Veiga de Almeida.**Professora Associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio deJaneiro - Brasil.

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RESENHA

Resenha do livro A existencia para aiém do su jeito

Book review A existencia para a/ém do sujeito

Roberto S. Kahlmeyer-Mertens*Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,Brasil

FEIJOO, A. M. L. C. A existencia para além do sujeito - A crise dasubjetividade moderna e suas repercussóes para a possibilidade deurna clínica psicológica com fundamentos fenomenológico-existenciais. Rio de Janeiro: Edigoes IFEN; Via Verita, 2011. 207p.

No Brasil, embora tradugóes dos representantes da psicologíafenomenológico-existencial já fossem encontradas desde os anos1970, os primeiros impulsos para o estudo da daseinanalise só seriamidentificados no final da década de 1980 e, diga-se a bem daverdade, estes esforgos apenas recrudesceriam no decenio seguinte,precisamente quando pesquisadores académicos se engajaram nosestudos sistemáticos desse filáo, tanto em ámbito teórico, quantoclínico. Entre os nomes responsáveis pela difusáo dessas ideias epráticas, se destaca o de Ana Maria López Calvo de Feijoo. Na cenaatual, quando os estudos brasileiros de daseinanalise comegam a darmostras de sua maturidade, o mais novo livro de Ana Maria Feijootestemunha o estado da arte que urna psicología clínica comperspectiva fenomenológico-existencial vem galgando.Sob o título de A existencia para além do sujeito, a obra comunica os

saldos de urna pesquisa que tomou para si as tarefas de tematizar: a)o estatuto da subjetividade moderna enquanto pressupostofundamental na elaboragáo de parte significativa das clínicaspsicológicas em vigor; b) os termos da crítica que urna abordagemfenomenológica volvería a este modelo de subjetividade que (talcomo tradicionalmente pensada) embotaría aspectos fenomenais dopsiquismo e, finalmente, c) o procedimento clínico que reelabora arelagáo entre o analista e o analisando, a partir de urnafenomenologia existencial.Em seu horizonte mais próprio, o livro nao só estabelece hábilmenteo diálogo com filósofos ligados á fenomenologia, ocupantes de postosdecisivos no pensamento contemporáneo (Husserl e Heidegger),

ISSN 1808-4281Estudos e Pesquisas em Psicologia | Rio de Janeiro | v. 12 | n. 3 |p. 1070-1077) 2012

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Roberto S. Kahlmeyer-MertensResenha do livro A existencia para além do sujeito

quanto também assume por interlocutores psicoterapeutas que selangaram ao projeto de apropriar atitude e método fenomenológicosem prol da clínica psicológica (Binswanger, Boss). Enquanto estesfornecem esteios que estruturam o livro, a articulagáo com outrospensadores (Kierkegaard, Nietzsche, Dilthey, Jaspers e Sartre), queconfrontaram a questáo abstraía dos universais pensando problemasauténticamente filosóficos no ámbito da existencia, contribuí para aconsistencia expositiva e para a fundamentagáo da praxis em questáono trabalho.As qualidades da obra já sao ressaltadas por Roberto Novaes de Sána distinta apresentagáo que dedica ao livro. Neste aparato crítico,vemos o professor atestar que urna clínica fenomenológica nao devepretender se realizar por meio do exclusivo acumulo de conteúdospositivos que dirigiriam novas práticas psicológicas partindo dadesconsideragáo das possibilidades que a existencia conjuga. Éapoiado nessa evidencia que o autor avalia: "este oportuno livro deAna Maria Feijoo nao oferece a tutela de urna nova teoría psicológica,convida-nos para a experiencia própria daquelas possibilidades" (SÁ,2011, p. 9). A observancia a esta premissa é responsável pelaestruturagáo de A existencia para além do sujeito, como veremos apartir daqui.A introdugáo, mais do que esclarecer os propósitos e a estruturagáoda obra, que a autora assume e das quais parte para suainvestigagáo. Quanto ao seu posicionamento previo, a autora sabe,que com a crise da subjetividade moderna, nao resta mais espagopara urna psicología, urna psicoterapia e urna psicopatologia queainda partam da concepgáo de um sujeito nuclear, tal comopropugnado por Descartes, tampouco um adérente, comovislumbrado por Kant. Nesses dois casos, a figura de urnasubjetividade pensada segundo determinagóes metafísicas naoapenas incorre na hipostasia de um sujeito apartado do mundo e desuas vivencias, quanto cria a fissura que resulta em urna serie dedualismos insolúveis: sujeito-objeto, interior-exterior, homem-mundo... A clareza quanto a este ponto - e quanto á necessidade deurna psicología clínica que se faga para além da ideia de um sujeitoinstituido - é o que se expressa na seguinte passagem do texto deFeijoo (2011):

Pensar na elaboragao de urna clínica psicológica a partir daausencia de determinagoes psíquicas e da total e radicalinseparabilidade entre homem e mundo significa nao maisdicotomizar interioridade e exterioridade, universal esingular, mente e corpo, assim como compreender que oacontecimento da existencia nao se dá senao num espago deimanéncia que Ihe é cooriginário. (p. 11)

O trecho citado deixa nítido o quanto é decisivo e fundamental

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escapar da pressuposigáo de um psiquismo que promove dicotomías.Desse modo, a citagáo denota, ainda, o quanto é urgente o que aautora chamará de "psicología sem psiquismo". (FEIJOO, 2012, p.60)Falar de urna psicología que nao se ocupe de determinagoessubjetivas, nao significa, entretanto, abdicar do psiquismo enquantoquestáo temática para se debrugar sobre a materialidade de umorganismo que reage a estímulos. A tentativa de estabelecer urnapsicología sem psique, nos termos em que a autora trata, mais teriade superagáo das concepgóes de sujeito firmadas na tradigáo, do quede desconsideragáo das mesmas. Para que isso acontega, Feijoodetermina o plano de pesquisa a ser levado a efeito:

Para podermos pensar de maneira consistente em urnaclínica psicológica, que prescinda da suposigao a nosso verdogmática da estrutura e do funcionamento do psíquico,teremos, antes de tudo, que pensar como a nogao dopsiquismo enquanto subjetividade se desenrolou. (...) Poresse motivo é que tentaremos mostrar a principio em quemedida o sujeito tal como foi pensado ñas filosofías dasubjetividade acabou por definir e determinar o modo como apsicología e as clínicas daí derivadas se estabeleceram.Assim, para esclarecer a relagao entre a psicología e asfilosofías da subjetividade, iniciaremos o nosso percurso nolivro por urna reconstrugao dotada de caráter introdutórioque descreve sucintamente essa relagao. Em seguida, nodesenrolar desta proposta, trataremos de re-enraizar asubjetividade em urna estrutura mais originaria e maisampia, avahando os efeitos desse re-enraizamento para aspossibilidades em jogo na psicología clínica. (FEIJOO, 2011,p. 12-13)

O trecho ácima (que fizemos questáo de anotar) nao é só indicativodo itinerario seguido pelo trabalho, ele anuncia que a pesquisa, alémde se ocupar de materia fenomenológica, também se elabora comprocedimentos coerentes a urna fenomenología-hermenéutica.Pensada nesta chave, para compreendermos a existencia para alémdo sujeito, como anuncia o título da obra, dependeríamos dareconstrugao da génese e do desenvolvimento do psiquismo comosubjetividade; da apresentagáo de como este conceito é revisado porfenomenólogos e daseinanalistas, e da descrigáo fenomenológica decomo o psiquismo pode ser abordado pela daseinanálise urna vez re-enraizado no ámbito da existencia do ser-aí (Dasein). Esses passostraduzem a atitude fenomenológica que acompanha a tematizagáopresente nos tres capítulos do livro.Nomeado "Da consciéncia intencional em Husserl á desconstrugáo dasubjetividade moderna em Heidegger", o primeiro capítulo constituíurna elegante introdugáo á fenomenología com énfase no tema dasubjetividade. Trata-se de um tópico certamente útil para se

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conhecer elementos da filosofía dos dois referidos pensadores,justamente por trazer uma apresentagáo sobre a fenomenologíahusserliana, as posigoes críticas que este toma em relagáo ápsicología de sua época e os conceitos fundamentáis dafenomenología (como é o caso da consciéncia intencional, ego, etc.).Também uma apresentagáo sumaria do projeto desconstrucionista deHeidegger é ali encontrado. Com isso, a autora nos permite entender,de maneira refinada e igualmente didática, a experiencia em jogo noser-aí humano, no seu caráter de poder-ser e em sua finitude.O ponto alto deste capítulo inicial é atingido com a apresentagáo daschamadas tonalidades afetivas fundamentáis (ainda no que concernea Heidegger). Estas tonalidades afetivas, em geral, sao modos comos quais o ser-aí já sempre se encontra no mundo, modos de ser queafinam seu existir aos projetos mundanos de sentidos e significados.As mesmas sao ditas fundamentáis quando descerram o horizonte domundo, de modo evidenciar o caráter de possibilidade do ser-aí,fenómeno que, na maior parte das vezes, acarreta um quadro críticona existencia mediana do ser-aí, ou, dizendo com Feijoo, "astonalidades afetivas fundamentáis caracterizam-se, portanto, porconta da crise radical a que elas dáo voz" (FEIJOO, 2012, p. 44).Entre as tonalidades afetivas mencionadas pela autora: o éxtase, ohorror, a retengáo, o pudor, a admiragáo, a angustia, o tedio e otemor, apenas as tres últimas sao puntualmente abordadas no livro.Assim, a angustia é indicada como existencial que nos libera para onosso poder-ser mais próprio; o tedio é apontado como afecgáo que,nos confrontando radicalmente com nossa negatividade existencial,revela o caráter intolerável do cotidiano e o ritmo deste que noscondiciona; por fim, o temor é tido como a tonalidade mais próxima áangustia, mas, ao contrario desta, ele possuiria um objetodeterminado, deste modo, teme-se sempre a algo. Temor, nestasemántica existencial, seria o "páthos que nos fala sobre apossibilidade de que se perca a compostura, o prumo, possibilidadeessa que pressupóe uma medida, um métron para as agóescotidianas." (FEIJOO, 2012, p. 53)

A nosso ver, a tematizagáo das referidas tonalidades afetivasfundamentáis cumpre uma tarefa de esclarecimento ao passo em quemostram que tais disposigóes - especialmente a angustia -, noámbito da fenomenologia-existencial de Heidegger, nao podem sertratadas pelas designagóes genéricas de "depressáo" ou "altaansiedade". Se interpretadas deste modo, estaríamos diante demeros transtornos de ánimo ou de humores deteriorados, fenómenosque, ao contrario dos que vimos, sao existenciários e, portanto,ónticos.Terminando o primeiro capítulo (que nao deixa de possuir um papelpropedéutico na economía da obra), o segundo "A clínica psicológicae suas determinagóes existenciais", inicia com a introdugáo dos tres

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grandes pilares da daseinanalise, seriam eles: a fenomenología comacento ontológico, tal como formulada por Heidegger; a analíticaexistencial, no tocante a nogoes de ser-aí, poder-ser, liberdade efinitude; a visada hermenéutico-fenomenológica sobre a facticidade,que além de abordar o modo de encontrar-se-em de um ser-no-mundo afinado pelas já aludidas tonalidades afetivas, tambémfornece o modus operandi para a daseinanalise.Apontando Ludwig Binswanger e Medard Boss como legítimosrepresentantes desta modalidade clínica, a autora prossegueoferecendo a nogáo diferenciada de "análise" que estesdaseinanalistas possuíam. Coincidindo com a definigáo dada porHeidegger nos Seminarios de Zollikon, Binswanger e Boss tambéminterpretam o analisar como um "resolver", um "solucionar". Destemodo, o procedimento analítico em jogo na daseinanalise teria mais aver com o "tecer e destecer da trama da existencia que articulamos apartir do horizonte fático sedimentado em que nos encontramos"(FEIJOO, 2012, p. 59), do que com o esforgo de, se servindo depressupostos teórico-metodológicos, mapear a psique em busca depadróes patológicos identificáveis que, urna vez qualificados erotulados, garantiriam precisáo e eficacia a urna determinadapsicoterapia.Ao lermos o tópico relativo á Binswanger, passamos a conhecer asobjegóes que o terapeuta faz a modalidades clínicas que aindaincorreriam em determinismos e instrumentalismos típicos dasciencias naturais. Por outro lado, conhecemos a proposta do autor deurna clínica psicológica nao teorizante que, abdicando depressupostos e marcos teóricos, se volta ao fenómeno tal como ele semanifesta na singularidade de cada paciente.Repleto de relatos de casos clínicos, o presente tópico nos permiteentender como a temática heideggeriana da constituigáo daexistencia em seu transcender é apropriada por Binswanger em prolda daseinanalise. Deparamo-nos, mesmo, com afirmativas quetestemunham a abordagem diferenciada da daseinanalise comBinswanger quando (ao abordar o que comumente é qualificado, porexemplo, como neurose) este explica a patología como um projetorestrito ao campo fenomenal do ser-aí ou, dizendo de modo maisclaro: "um modo encurtado de projegáo do campo existencial."(FEIJOO, 2012, p. 71) Um posicionamento como este nos instiga apensar sobre o modo de atuagáo da daseinanalise e o estatuto deconceitos-chave do pensamento binswangeriano, como o cuidado, oamor, e a confianga entre analista e analisando no interior da mesma.No substancial tópico dedicado a Boss, o leitor encontra um apanhadogeral de suas ideias. Ali, Feijoo também ressalta muitas apropriagóesque o daseinanalista faz do pensamento de Heidegger, além dosconceitos ¡novadores que cria em beneficio de urna clínicafenomenológico-existencial: seria o caso da "angustia vital", do

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"sentimento de culpa", do "ser-doente" e da "libertagáopsicoterápica".3 Expondo que o terapeuta suígo sustenta ainseparabilidade do orgánico e do psíquico; questiona a histeria comoproduto de perturbagoes funcionáis, e especula sobre o caráterhereditario de certas psicopatologias (como se presenciaría no casoda paciente Sra. K.), o texto de Feijoo faz com que seu leitor seinterrogue sobre vestigios de uma visada psicofísica presente naclínica de Boss, suspeita que se reforga em algumas das citagóesdaquele pensador na seleta que o capítulo oferece.O saldo mais positivo deste subtópico, entretanto, está ñas reflexóesreservadas ao conceito de amor (tema, alias, recurrente emBinswanger). Ali, o potencial terapéutico desta tonalidade afetivafundamental é abordado, e ressaltada sua influencia na interfaceanalista-analisando. Apoiada em Boss, Feijoo chega mesmo a mostrarque uma clínica psicológica (neste caso a daseinanalítica) pautada emelementos como o amor, a paciencia e a calma poderia, segundoBoss, substituir a prática do aconselhamento psicoterápico, no qual oterapeuta acaba por tomar o paciente em sua tutela, obstruindo ocaminho de sua singularizagáo, o que, por si só, já contradiz a atitudehermenéutico-fenomenológica implícita na daseinanálise.Esse segundo capítulo termina com uma serie de consideragóes sobrea daseinanálise que sao absolutamente indispensáveis para seentender como, em vista de Heidegger, Binswanger e Boss, se dariauma tal clínica. Prova disso é o que se tem quando, ao referendar osconceitos de ser-aí, intencionalidade e campo fenomenal, Feijooremata o tópico sintetizando o que interpreta como objetivo de umadaseinanálise:

A tarefa de uma clínica fenomenológica consiste, assim, emquebrar o aglomerado de vivencias que se dao na mistura decampos intencionáis e que provocam a quebra do fluxo doeu. E, com isto, possibilitar que o instante e lugar doacontecimento se déem. Levamos aqui o analisando aaperceber-se das suas vivencias próprias e a colocar-sediante do campo intencional em que o fenómeno se constituí.(FEIJOO, 2011, p. 86)

Se na introdugáo e nos dois primeiros capítulos se identificava umcaráter expositivo na tematizagáo do "método", dos objetos e temasda psicología fenomenológica, observa-se no capítulo terceiro umamodulagáo do discurso. Nao apenas uma adequagáo ao vocabulario(neste caso, mais próximo aos representantes das ciencias psi), mastambém na descrigáo e análise das falas (ficticias)4 potencialmenteescutadas em sessóes de psicoterapia. Este tom (até entáo apenaspresente ñas citagóes dos daseinanalistas com que a autora seocupou) passa, a partir de agora, a dar a tónica deste terceiro eúltimo capítulo.

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Ilustrativo de como urna daseinanálise pode se operar, a "análisefenomenológica de discursos clínicos" anunciada no título dá corpo aotópico que em muito se vale da experiencia da psicoterapeuta,remontando, inclusive, a outras pesquisas de Feijoo declaradas nabibliografía do livro. Deste modo, ñas próximas 113 páginas queintegram este extenso capítulo final (mais da metade da obra),encontramos consideragóes autorais acerca da clínica psicológicainfantil, ñas quais se vé como os filósofos da existencia dialogampolémicamente com classificagóes diagnósticas próprias as cienciasda era da técnica. Também contamos com notas sobre a aplicagáo dométodo fenomenológico na construgáo das investigagóes sobre o serda crianga; detalhamentos sobre a angustia, antecipagáo da finitude,atmosfera afetiva do temor e da coragem e, por fim, achegas sobre aclínica psicológica e a afinagao provocada pelo tedio.Em urna recensáo crítica como a nossa, nao poderia faltar a indicagáode que a obra apresenta precisao terminológica e conceitual; clarezañas exposigóes (sem que isso dissolva a densidade da obra); rigormetodológico e atengáo clínica, qualidades apenas verificáveis emurna pesquisa cujo autor possua um inequívoco dominio conteudísticoapenas conquistado mediante a conjugagao das praticas de pesquisae da clínica. A existencia para além do sujeito, editado na "ColegáoPsicología em Foco" sob o selo da Via Verita - em co-edigáo comEdigóes IFEN -, é um título original que enriquece a literatura dadaseinanálise e serve com proveito a psicólogos e estudiosos defilosofía interessados ñas intercessóes entre a psicología clínica e afenomenología.

Referencias

HEIDEGGER, M. Seminarios de Zollikon. Trad. ARNHOLD, G.;PRADO, M. F. A. Petrópolis: Vozes, 2001.BISNWANGER, L. Tres formas da existencia malograda. Rio deJaneiro: Zahar, 1977.BOSS, M. Angustia, culpa e libertacao. Trad. B. Spanoudis. SaoPaulo: Duas Cidades, 1975.

. Na noite passada eu sonhei... Trad. George Schlesinger.Sao Paulo: Summus, 1979.RICHARDSON, W. J. Humanismo e psicología existencial. In:GREENING, T. C. Psicología existencial-humanista. Trad. E.Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. p. 167-184.SÁ, R. N. Apresentagáo In: FEIJOO. A. M. L. C. A existencia paraalém do sujeito - A crise da subjetividade moderna e suasrepercussóes para a possibilidade de urna clínica psicológica comfundamentos fenomenológico-existenciais. Rio de Janeiro: EdigóesIFEN; Via Verita, 2011. p. 7-9.

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Enderece» para correspondenciaRoberto S. Kahlmeyer-MertensRúa Sao Francisco Xavier, 524, Pavilhao - Joao Lyra Filho, 9 andar, Bloco F,sala 9037, Maracaná, Rio de Janeiro, RJ - Cep: 20550-013Enderego eletrónico: [email protected]

Recebidoem: 28/09/2012Aceito para publicagao em: 18/10/2012Acó m pan ha mentó do processo editorial: Ana Maria López Calvo de Feijoo

Notas*Doutor em filosofía pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Membroefetivo da Sociedade Brasileira de Fenomenología - SBF^f . Bibliografía.2Ideia latente na psicologia empírica de escolas como o estruturalismo de Titchner,o funcionalismo de James e o comportamentalismo com Watson e Skinner.3Veja-se mais a este respeito em Boss. Cf. Bibliografía.4Em nota ao terceiro capítulo, a autora diz que os relatos sao ficticios, estabelecidosa partir de sua experiencia como psicoterapeuta (FEIJOO, 2011, p. 89).

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