Pertencer Clarice Conto

2
5/21/2018 PertencerClariceConto-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/pertencer-clarice-conto 1/2 Pertencer Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou. Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade oi a de pertencer. !or motivos que aqui n"o importam, eu de algum modo devia estar sentindo que n"o pertencia a nada e a ninguém. #asci de graça. $e no berço e%perimentei esta ome humana, ela continua a me acompanhar pela vida aora, como se osse um destino. & ponto de meu coraç"o se contrair de inveja e desejo quando vejo uma reira: ela pertence a 'eus. (%atamente porque é t"o orte em mim a ome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. $ou, sim. )uito pobre. $* tenho um corpo e uma alma. ( preciso de mais do que isso. +om o tempo, sobretudo os ltimos anos, perdi o jeito de ser gente. #"o sei mais como se é. ( uma espécie toda nova de solid"o de n"o pertencer começou a me invadir como heras num muro. $e meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que ent"o nunca iz parte de clubes ou de associaçes/ !orque n"o é isso que eu chamo de pertencer. 0 que eu queria, e n"o  posso, é por e%emplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar 1quilo que eu pertenço. )esmo minhas alegrias, como s"o solitárias 1s vezes. ( uma alegria solitária pode se tornar patética. 2 como icar com um presente todo embrulhado em papel eneitado de presente nas m"os - e n"o ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o3 #"o querendo me ver em situaçes patéticas e, por uma espécie de contenç"o, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos. !ertencer n"o vem apenas de ser raca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais orte. )uitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha pr*pria orça - eu quero pertencer para que minha orça n"o seja intil e ortiique uma pessoa ou uma coisa. 4uase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensaç"o de precisar pertencer. !or motivos que nem minha m"e nem meu pai podiam controlar, eu nasci e iquei apenas: nascida. #o entanto ui preparada para ser dada 1 luz de um modo t"o bonito. )inha m"e já estava doente, e, por uma superstiç"o bastante espalhada, acreditava-se que ter um ilho curava uma mulher de uma doença. (nt"o ui deliberadamente criada: com amor e esperança. $* que n"o curei minha m"e. ( sinto até hoje essa carga de culpa: izeram-me para uma miss"o determinada e eu alhei. +omo se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. $ei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em v"o e t5-los tra6do na grande esperança. )as eu, eu n"o me perd7o. 4uereria que simplesmente se tivesse eito um milagre: eu nascer e curar minha m"e. (nt"o, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha m"e. (u nem podia coniar a alguém essa espécie de solid"o de n"o pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da uga que por vergonha n"o podia ser conhecido.  & vida me ez de vez em quando pertencer, como se osse para me dar a medida do que eu perco n"o pertencendo. ( ent"o eu soube: pertencer é viver. (%perimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe s7rego os ltimos goles de água de um cantil. ( depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho3 Clarice Lispector 

Transcript of Pertencer Clarice Conto

Pertencer

Um amigo meu, mdico, assegurou-me que desde o bero a criana sente o ambiente, a criana quer: nela o ser humano, no bero mesmo, j comeou.Tenho certeza de que no bero a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui no importam, eu de algum modo devia estar sentindo que no pertencia a nada e a ningum. Nasci de graa.Se no bero experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu corao se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.Exatamente porque to forte em mim a fome de me dar a algo ou a algum, que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. S tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso.Com o tempo, sobretudo os ltimos anos, perdi o jeito de ser gente. No sei mais como se . E uma espcie toda nova de "solido de no pertencer" comeou a me invadir como heras num muro.Se meu desejo mais antigo o de pertencer, por que ento nunca fiz parte de clubes ou de associaes? Porque no isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e no posso, por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar quilo que eu perteno. Mesmo minhas alegrias, como so solitrias s vezes. E uma alegria solitria pode se tornar pattica. como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mos - e no ter a quem dizer: tome, seu, abra-o! No querendo me ver em situaes patticas e, por uma espcie de conteno, evitando o tom de tragdia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.Pertencer no vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a algum mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha prpria fora - eu quero pertencer para que minha fora no seja intil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.Quase consigo me visualizar no bero, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensao de precisar pertencer. Por motivos que nem minha me nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.No entanto fui preparada para ser dada luz de um modo to bonito. Minha me j estava doente, e, por uma superstio bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doena. Ento fui deliberadamente criada: com amor e esperana. S que no curei minha me. E sinto at hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma misso determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vo e t-los trado na grande esperana.Mas eu, eu no me perdo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha me. Ento, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha me. Eu nem podia confiar a algum essa espcie de solido de no pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha no podia ser conhecido.

A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco no pertencendo. E ento eu soube: pertencer viver. Experimentei-o com a sede de quem est no deserto e bebe sfrego os ltimos goles de gua de um cantil. E depois a sede volta e no deserto mesmo que caminho!Clarice Lispector