O que todo revolucionário deve saber sobre a repressão

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BIBLIOTECA GALEGA DE MARXISMO-LENINISMO 7 O que todo revolucionário deve saber sobre a repressom Victor Serge Segunda ediçom

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Livro de Victor Serge

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BIBLIOTECA GALEGA DE MARXISMO-LENINISMO7

O que todo revolucionáriodeve saber sobre a repressom

Victor Serge

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O que todo revolucionário deve saber sobre a repressomColecçom Documentos e Textos Políticos nº 10

Edita: Abrente EditoraCosta do Vedor 47, rés-do-chao, 15.703 Compostela (Galiza)Telefone: 616 868 [email protected]

Primeira Ediçom:Junho de 2000Segunda Ediçom: Abril de 2009

Imprime: Tórculo Artes GráficasTiragem: 500 exemplares

Data de impressom: Abril de 2009Impresso em papel reciclado

Depósito Legal:

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BIBLIOTECA GALEGA DE MARXISMO-LENINISMO Nº 7

O que todo revolucionáriodeve saber sobre a repressom

Victor Serge

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Índice

0. INTRODUÇOM .........................................................................................................5

1. A OKHRANA RUSSA ..............................................................................................7I. O polícia. A sua especial apresentaçom ........................................................................7II. A vigiláncia exterior .........................................................................................................7III. Os arcanos da provocaçom ..............................................................................................8IV. Instrutivo sobre recrutamento e serviço de agentes provocadores .......................................9V. Umha monografia da provocaçom em Moscovo (1912) .................................................10VI. Expedientes de agentes provocadores .......................................................................11VII. Um espectro. Umha página de história .......................................................................13VIII. Malinovsky ........................................................................................................15IX. A mentalidade do provocador, a provocaçom e o partido comunista ......................................15X. A provocaçom, arma de dous gumes ..................................................................................16XI. Os delatores russos no estrangeiro. O senhor Raymond Recouly ......................................18XII. Os gabinetes pretos e a polícia internacional ............................................................18XIII. Os criptogramas. De novo o gabinete preto ............................................................20XIV. Síntese informativa. O método das gráficas ............................................................21XV Antropometria, filiaçom... e liquidaçom .......................................................................22XVI. Estudo científico do movimento revolucionário ............................................................22XVII, A protecçom da pessoa do czar ..................................................................................23XVIII. O que custa umha execuçom ..................................................................................23XIX. Conclusom. Por quê é que resulta invencível a revoluçom .................................................24E os provocadores? ........................................................................................................26

2. O PROBLEMA DA ILEGALIDADE ..................................................................................31 I. Nunca ser ingénuo ........................................................................................................31II. Experiência de posguerra: nom se deixar surpreender .................................................32III. Os limites da acçom revolucionária legal .......................................................................33IV. Polícias privadas ........................................................................................................33V. Conclusons ...................................................................................................................34

3. CONSELHOS SINGELOS AO MILITANTE .......................................................................35I. Seguir os passos ........................................................................................................35II. A correspondência e os apontamentos .......................................................................36O caderno ...................................................................................................................36As cartas ...................................................................................................................36III. Conduta geral ........................................................................................................36IV. Entre companheiros ........................................................................................................36V. Em caso de detençom .............................................................................................38VI. Frente a juízes e polícias .............................................................................................38VII. Talento ...................................................................................................................38VIII. Umha recomendaçom fundamental .......................................................................38

4. O PROBLEMA DA REPRESSOM REVOLUCIONÁRIA .................................................39I. Metralhadora, máquina de escrever, ou...? .......................................................................39II. A experiência de duas revoluçons ..................................................................................40III. O terror durou séculos .............................................................................................42IV. De Gallifet a Mussolini .............................................................................................43V. Lei burguesa e lei proletária .............................................................................................44VI. Os dous sistemas. Combater os efeitos ou remontar às causas? ......................................45VII. A violência económica: por fame ..................................................................................46VIII. A eliminaçom. Erros e abusos. Controlo .......................................................................47IX. Repressom e provocaçom .............................................................................................48X. Quando é eficaz a repressom? ..................................................................................48XI. Consciência do risco e consciência do fim .......................................................................49

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0. Introduçom

A vitória da revoluçom na Rússia pujo em maos dos revolucionários todo o mecanismo da polícia política mais moderna, mais poderosa e experimentada, forjada em mais de cinqüenta anos de luita contra as elites de um grande povo.

Conhecer os métodos e os procedimentos desta polícia interessa para já a todo militante: a defesa capitalista emprega em toda a parte os mesmos meios; todas as polícias, de resto solidárias, se assemelham.

Essa ciência da luita revolucionária, que os russos adquirírom em mais de meio século de esforços e sacrifícios imensos, os militantes dos países onde actualmente se desenvolve a acçom deverám assimilá-la um lapso muito mais curto, dadas as circunstáncias criadas pola guerra, polas vitórias do proletariado russo e polas derrotas do proletariado internacional: crises do capitalismo mundial, nascimento da Internacional Comunista, desenvolvimento repentino da consciência de classe na burguesia; fascismo, ditaduras militares, terror branco, leis iníquas. Isto cumpre desde já. Se se tiver um bom conhecimento dos meios de que dispom o inimigo, as perdas poderám ser menores. Resulta portanto preciso, para um fim prático, estudar bem o instrumento principal de toda reacçom e de toda repressom: essa máquina de afogar revoltas chamada polícia. Nós atingimo-lo, porque a arma aperfeiçoada que forjou a autocracia para defender a sua existência –a Okhrana (a Defensiva), ou Segurança Geral do Império Russo–, caiu nas nossas maos.

Este estudo, para ser realizado a fundo, o qual seria muito útil, exigiria um tempo de que o autor nom dispom. As páginas que se seguem nom pretendem supri-lo. Bastarám, espero, para pôr sobre aviso os camaradas e para fazer-lhes evidente umha importante verdade que me comoveu desde a primeira visita aos arquivos da polícia russa: a de que nom há força no mundo capaz de conter a maré revolucionária quando esta ascende, e que todas as polícias, nom importa o seu maquiavelismo, a

sua ciência e os seus crimes, som quase totalmente impotentes.

O presente trabalho, publicado pola primeira vez no Boletim comunista de Novembro de 1921, foi completado cuidadosamente. Os problemas teóricos e práticos que o estudo do mecanismo de um polícia nom deixam de suscitar na mente do leitor operário, qualquer que for a sua formaçom política, som examinados em dous novos ensaios: Os conselhos ao militante, de cuja utilidade, nom obstante o seu evidente simplismo, a experiência nom permite duvidar, gizam as regras primordiais da defesa operária contra a vigiláncia, a delaçom e a provocaçom.

Desde a guerra e a Revoluçom de Outubro, a classe operária nom pode conformar-se com realizar umha tarefa apenas negativa, destrutora. Abriu-se a era das guerras civis. Seja a sua actualidade algo quotidiano, ou esteja adiada “por anos”, nom é menos certo que na maioria dos partidos comunistas se apresentam desde agora as múltiplas questons da tomada do poder. A princípios de 1923, a ordem capitalista da Europa semelhava gozar de umha estabilidade capaz de descoroçoar os impacientes. No entanto, a ocupaçom “pacifista” do Ruhr, a fins de ano, fazia pairar sobre a Alemanha, tremendamente real, o espectro da revoluçom.

De outra parte, toda a acçom tendente para a destruiçom das instituiçons capitalista necessita ser complementada com umha preparaçom, embora seja teórica, da obra criadora do amanhá. “O espírito destrutor –dizia Bakunine– é ao mesmo tempo espírito criador”. Este grande pensamento, cuja interpretaçom literal, infelizmente, alucionou alguns revoltosos, acaba de se converter numha verdade prática. O mesmo espírito da luita classista leva hoje os comunistas a destruírem e a criarem simultaneamente. De igual jeito que o antimilitarismo actual precisa de ser complementado pola preparaçom do Exército Vermelho, o problema da repressom colocado pola polícia e a justiça burguesas tem um aspecto positivo

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de grande importáncia. Julguei conveniente defini-lo em traços grossos. Devemos conhecer os meios do inimigo; devemos conhecer também a nossa tarefa em toda a sua extensom.

Victor Serge, Março de 1925

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1. A Okhrana russa

I. O polícia. A sua especial apresentaçomA Okhrana sucedeu, em 1881, a famosa 3ª Secçom

do Ministério do Interior. Mas nom se desenvolveu verdadeiramente até a partir de 1900, data em que foi chefiada por umha nova geraçom de gendarmes. Os velhos oficiais de gendarmaria, nomeadamente de graus superiores, julgárom contrário à honra militar dedicarem-se a determinados quefazeres policiais. A nova promoçom passou por alto aqueles escrúpulos e começou a organizar cientificamente a polícia secreta, a provocaçom, a delaçom e a traiçom nos partidos revolucionários. Dela surgirám homens eruditos e talentosos, como aquele coronel Spiridovich, quem nos deixará umha volumosa História do partido socialista-revolucionário e umha História do partido socialdemocrata.

O recrutamento, a instruçom e o treino profissional realizavam-se com cuidados muito especiais. Na Direcçom Geral, cada quem tinha a sua ficha, documento completíssimo em que mesmo se acham pormenores engraçados. Carácter, grau de escolaridade, inteligência, anos de serviço, todo está lá apontado com um entuito prático. Um oficial, por exemplo, é qualificado como “limitado” –bom para os empregos subalternos, sempre que for tratado com rigor–, e outro assinalado como “inclinado a cortejar as damas”.

Entre as muitas perguntas do questionário, saliento estas: “Conhece os estatutos e programas dos partidos? De quais?” E deparo com que o nosso amigo cortejador de damas “conhece bem as ideias socialistas-revolucionárias e anarquistas –regularmente as do partido social-democrata– e superficialmente as do Partido Socialista Polaco.”Há aqui toda umha erudiçom sabiamente escalonada. Mas continuemos o exame da mesma ficha. O nosso polícia “Seguiu o curso de história do movimento

revolucionário?”, “Em quantos e em quais partidos há agentes secretos?”, Intelectuais?, Operários?. Facilmente se percebe que, para formar os seus pesquisadores, a Okhrana organizava cursos em que se estudava cada partido, as suas origens, o seu programa, os seus métodos e até a biografia dos seus militantes conhecidos.

Apontemos cá que esta gendarmaria russa, treinada para os fins mais delicados da polícia política, nom tinha nada em comum com as gendarmaria dos países da Europa ocidental. O seu equivalente tem-no nas polícias secretas de todos os estados capitalistas.

II. A vigiláncia exteriorPor princípio, toda vigiláncia é exterior. Trata-se

sempre de seguir o indivíduo, de conhecer as suas actividades a os seus movimentos, os seus contactos, e a seguir de penetrar nas suas intençons. Estes serviços também estám desenvolvidos em todas as polícias e a organizaçom russa porporciona-nos, sem qualquer dúvida, o protótipo de todos os serviços semelhantes.

Os agentes russos (de vigiláncia exterior) pertenciam, igual que os “agentes secretos”, na realidade delatores e provocadores, à Okhrana ou Segurança Política. Faziam parte do serviço de investigaçons, que somente podia deter alguém por um mês; em geral, o serviço de investigaçons costumava passar os seus detidos à Direcçom da gendarmaria, a qual continuava a instruçom.

O serviço de vigiláncia exterior era o mais singelo. Os seus abundantes agentes, dos quais possuímos as fotografias de identidade, pagos com 50 rublos por mês, tinham por única tarefa espiar a pessoa que lhes era indicada de hora en hora, de dia

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e de noite, sem qualquer interrupçom. Nom deviam saber, de partida, nem o seu nome nem o fim de tal espionagem, sem dúvida para precaver qualquer torpeza ou umha traiçom. A pessoa vigiada recebia umha alcunha: o Loiro, A Patroa, Vladímir, o Cocheiro, etc. Topamos estas alcunhas encabeçando informes diários, em volumosos in-fólios, que continham os informes consignados polos agentes. Os informes som de umha minuciosa exactidom e nom devem conter lacunas. O texto acha-se redigido mais ou menos como se segue:

Em 17 de Abril, às 9.54 horas da manhá, a Ama saiu da sua casa, pujo duas cartas no marco do correio da esquina da rua Pushkin; entrou em vários armazéns do bulevar X; entrou às 10.30 no número 30 da rua Z, saiu às 11 e 20, etc.

Nos casos mais sérios, dous agentes espiavam a mesma pessoa sem se conhecerem, sendo confrontados e complementados os seus informes.

Estes informes diários eram remetidos à gendarmaraia para serem analisados por especialistas. Estes funcionários pesquisadores de cámara de umha perigosa perspicácia, elaboravam quadros sinópticos para resunir as actividades e os movimentos da pessoa, o número das suas visitas, a sua regularidade, duraçom, etc.;em certas partes, estes esquemas permitiam valorizar a importáncia das relaçons de um militante e a sua provável influência.

O polícia Zubátov, quem contra 1905 tratou de poderar-se do movimento operário dos grandes centros, criando neles sindicatos, levou a espionagem ao seu mais alto grau de perfeiçom. As suas brigadas especiais podiam seguir um homem por toda a Rússia, inclusive por toda a Europa, deslocando-se atrás dele de cidade em cidade ou de país em país. Os agentes secretos, de resto, nom deviam poupar gastos. O cartom de viáticos de um deles, relativo ao mês de Janeiro de 1905, mostra-nos umha cifra de despesas gerais que se elevava a 637.350 rublos. Para imaginarmos a quantidade do crédito de que gozava um simples delator, bastará com lembrarmos que, por esta época, um estudante vivia facilmente com 25 rublos por mês. Contra 1911, aparece o costume de enviar agentes secretos ao estrangeiro para vigiar os emigrados e para ligar com as polícias europeias. Os delatores da sua majestade imperial estivérom à vontade em todas as capitais do mundo.

A Okhrana tinha a particular missom de procurar e vigiar constantemente determinados revolucionários, considerados como os mais perigosos, nomeadamente os terroristas ou os membros do partido socialista-revolucionário que praticavam o terrorismo. Os seus agentes deviam levar sempre consigo colecçons de fotografias formadas por 50 a 70 retratos, entre os quais, ao chou, reconhecemos Savinkov, o defunto Nathanson, Argunov, Avkséntiev (ai!), Karein, Ovsiánikov, Vera Figner, Pechkova (a senhora Gorki), Fabrikant. Também estavam à sua disposiçom reproduçons do retrato de Marx, pois a presença deste retrato num quarto ou num livro constituía um indício.

Um detalhe porreiro: a vigiláncia exterior nom se exercia somente sobre os inimigos do antigo regime. Temos no nosso poder agendas que testemunham que as actividades e os movimentos dos ministros do império nom escapavam à vigiláncia da polícia. Umha Agenda de controlo das conversas telefónicas do Ministério de Guerra, em 1916, mostra-nos, por exemplo, quantas vezes por dia diferentes personagens da corte perguntárom pola precária saúde da senhora Sujomlinov!

III. Os arcanos da provocaçomOs mecanismos mais importantes da polícia russa

era seguramente a sua “agência secreta”, nome decente do serviço de provocaçom, cujas origens remontam para as primeiras luitas revolucionárias e que adquiriu um desenvolvimento extraordinário após a revoluçom de 1905.

Polícias (ditos oficiais de gendarmaria) preparados especialmente, instruídos e seleccionados, ocupavam-se do recrutamento dos agentes provocadores. Os seus maiores ou menores êxitos nesse domínio eram tomados em conta para qualificá-los e fazê-los ascender. Precisos instrutivos estabeleciam até os menores detalhes das suas relaçons com os colaboradores secretos. Especialistas altamente retribuídos reuniam, afinal, todas as informaçons proporcionadas polos provocadores, estudavam-nas, ordenavam-nas e arquivavam-nas em expedientes.

Nos prédios da Okhrana (Fontanka 16, Petrogrado) havia um quarto secreto ao qual só entravam o director da polícia e o funcionário encarregado de classificar as peças. Era o local da agência secreta. Continha fundamentalmente a prateleira com as fichas dos provocadores, em que topamos mais de 35.000 nomes. Na maioria dos casos, o nome

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do “agente secreto” achava-se substituído por um pseudónimo por motivos de precauçom, o qual motivou que a identificaçom de muitos destes miseráveis, ao cair os expedientes completos, depois do triunfo da revoluçom, em maos dos camaradas, fosse particularmente difícil. O nome do provocador nom devia ser conhecido mais que polo director da Okhrana e polo oficial encarregado de manter com ele relaçons permanentes. Os mesmos recibos que os provocadores assinavam cada fim de mês, cobrados tam normal e pacificamente como os recibos dos restantes funcionários, por somas que iam de 3, 10, 15 rublos mensais até 150 ou 200 como máximo, nom contenhem polo regular mais do que um pseudónimo. Mas a administraçom, desconfiando dos seus agentes e zelosa de que os oficiais de gendarmaria nom inventassem colaboradores imaginários, procedia muito freqüentemente a minuciosas pesquisas para revisar os diferentes ramos da organizaçom. Um inspector provisto de largos poderes investigava pessoalmente os colaboradores secretos, entrevistava-os à livre escolha e despedia-os ou aumentava-lhes o soldo. Acrescentemos que os seus informes eram cuidadosamente verificados –tanto quanto era possível– uns mediante outros.

IV. Instrutivo sobre recrutamento e serviço de agentes provocadores

Vejamos a seguir um documento que podemos considerar como o abecê da provocaçom. Trata-se do Instrutivo relativo à agência secreta. Folheto de 27 páginas mecanografadas em pequeno formato. O nosso exemplar (o número 35), trai, aliás, na parte superior estas três advertências: “Muito secreto”, “Uso confidencial”, “Secreto profissional”. Que insistência em recomendar mistério! Aginha se há de compreender porquê.

Este documento, que denotava conhecimentos psicológicos e práticos, espírito meticulosamente previsor, umha muito curiosa mistura de cinismo e de hipocrisia moral oficial, há de insteressar um dia aos psicólogos. Começa com indicaçons gerais:

A Segurança Política deve tender para destruir o movimento revolucionário no momento da sua maior actividade e nom desviar o seu trabalho dedicando-se a empresas menores.

De maneira que o princípio é: deixar desenvolver o movimento para a seguir liquidá-lo melhor.

Os agentes secretos receberám um trato fixo, proporcional aos serviços emprestados.

A segurança deve:Evitar com o maior cuidado entregar os seus

colaboradores. Com esse fim, nom detê-los nem deixá-los em liberdade mais do que quando outros membros de igual importáncia pertencentes à mesma organizaçom revolucionária puderem ser detidos ou libertados.

A Segurança deve:Facilitar aos seus colaboradores que ganhem a

confiança dos militantes.

Continua um capítulo dedicado ao recrutamento.O recrutamento de agentes secretos deve ser a

constante preocupaçom do director de Investigaçons e dos seus colaboradores. Nom devem desaproveitar nengumha oportunidade, embora apresente poucas hipóteses de conseguir agentes...

Esta tarefa é extremamente delicada. Cumpre, para poder efectivá-la, ligar com os detidos políticos...

Deverám ser considerados como propensos a ingressar no serviço os revolucionários fracos de carácter, os agravados polo partido, os que viverem na miséria, os evadidos de lugares de deportaçom ou os pendentes de ser deportados.

O Instrutivo recomenda estudar “com cuidado” as fraquezas do indivíduo e aproveitá-las; conversar com os seus amigos e parentes, etc.; multiplicar “constantemente os contactos com os operários, com as testemunhas, com os pais, etc., sem nunca perder de vista o objectivo...”.

Estranha duplicidade da alma humana! Traduzo literalmente três desconcertantes linhas:

Podemos utilizar os serviços de revolucionários que se acharem na miséria que, sem renunciarem às suas convicçons, aceitarem entregar informaçons por necessidade...

Entom, havia-os? Mas continuemos.

Colocar delatores junto dos detidos é umha excelente utilidade.

Cuando umha pessoa semelhar madura para entrar no serviço –quer dizer, quando se tratar, por exemplo, de um revolucionário moralmente destruído, atribulado, desorientado porventura polos seus próprios fracassos–, deverám acrescentar-se à

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sua causa outras acusaçons piores para tê-lo melhor agarrado.

Capturar todo o grupo a que pertence e conduzir a pessoa em questom perante o director da polícia; ter motivos graves para o acusar, reservando no entanto a hipótese de o libertar ao mesmo tempo que os outros revolucionários encarcerados, sem provocar barulho.

Interrogar a pessoa numha entrevista pessoal. Tirar vantagem, para convencê-lo, de disputas entre os grupos, de erros de militantes, de cousas que firam o seu amor próprio.

Enxerga-se, a ler estas linhas, o polícia paternal que tem piedade da sorte da sorte da sua vítima:

Claro, enquanto você irá a trabalhos forçados polas suas ideias, o seu camarada X, quem lhas fijo boas, viverá de medo graças a você. O que quer? Justos pagam por pecadores!

Isto pode resultar se se tratar de um fraco, ou de alguém sobre quem pesam anos de deportaçom...

Tanto quanto for possível, ter muitos colaboradores em cada organizaçom.

A Segurança deve ser a que dirija os seus colaboradores e nom ser dirigida por eles.

Os agentes secretos nom deverám conhecer nunca as informaçons proporcionadas polos seus colegas.

E eis um fragmento que Maquiavelo nom teria desaprovado:

Um colaborador nosso que trabalha em postos de segunda numha organizaçom revolucionária pode ascender nesta com apenas serem arrestados militantes de maior importáncia.

Manter o absoluto segredo da provocaçom é, naturalmente, um dos maiores cuidados da polícia.

O agente jura guardar segredo absoluto; ao entrar no serviço nom deve modificar em nada os seus costumes habituais.

Os relacionamentos com ele som rodeadas de preocupaçons dificilmente superáveis. Podem ser atribuídas entrevistas a colaboradores dignos de

toda a confiança. Terám lugar em apartamentos clandestinos, compostos por várias peças que nom tenham comunicaçom directa entre si, onde, em caso de necessidade, se poda isolar diferentes visitantes. O encarregado da casa deve ser um empregado civil. Nunca poderá receber visistas pessoais. Também nom deverá conhecer os agentes secretos nem falar-lhes. Estará na obriga de abrir pessoalmente, verificando que antes da sua saída nom haja ninguém nas escadas. As entrevistas terám lugar em quartos fechados. Nom deverám descuidar-se papéis comprometedores. Terá-se cuidado de nom sentar nengum visitante perto de janelas ou espelhos. À mínima suspeita, mudar de apartamento.

O provocador nom poderá, em nengum caso, apresentar-se na Segurança. Nom poderá empreender nengumha missom de importáncia sem o consentimento do seu chefe.

Os contactos fam-se por meio de senhas convenidas com antecedência. A correspondência remeterá-se a endereços convencionais.

As cartas dos colaboradores secretos devem estar escritas com escrita irreconhecível e nom conterám mais do que expressons correntes. Servir-se de papel e de envelopes que estejam de acordo com o nível social do destinatário. Empregar tinta simpática. O colaborador deposita ele próprio as suas cartas. Quando as recebe, está obrigado a queimá-las após tê-las lido. Os endereços convencionais nom devem anotar-se nunca.

Um problema grave era o de liberar um agente secreto arrestado entre os que ele entregara. A este respeito, o instrutivo nom recomenda empregar o recurso da evasom, pois:

As evasons chamam a atençom dos revolucionários. Previamente à liquidaçom de qualquer organizaçom, consultar os agentes secretos em torno das pessoas que deverám deixar-se em liberdade, por forma a nom atraiçoar os nossos meios de informaçom.

V. Umha monografia da provocaçom em Moscovo (1912)

Umha outra peça escolhida nos arquivos da provocaçom ajudará-nos a abranger a extensom que esta atinge. Trata-se de umha espécie de monografia da provocaçom em Moscovo, em 1912. É o informe de um alto funcionário, o senhor Vissariánov, quem tinha sido comissionado naquele ano para fazer

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umha viagem de inspecçom à agência secreta de Moscovo.

O senhor Vissariánov cumpriu a sua missom de 1º de Abril a 22 do mesmo mês. O seu informe constitui um grosso caderno mecanografado. Consagra a cada provocador, assinalado, é claro, polo seu seudónimo, umha notícia pormenorizadíssima. Há algumhas bem curiosas.

Em 6 de Abril de 1912, havia em Moscovo 55 agentes provocadores oficialmente em funçons. Repartiam-se como se segue:

Socialistas revolucionários, 17; social-democra-tas, 20; anarquistas, 3; estudantes (movimento das escolas), 11; instituiçons filantrópicas, etc., 2; sociedades científicas, 1; zemstvos, 1. Aliás, “a agência secreta de Moscovo controla também a imprensa, os outubristas (partido K. D. constitucional-democrático), os agentes de Búrtzev, os arménios, a extrema direita e os jesuitas”.

Os colaboradores eram caracterizados em relatórios bastantes concisos.

Partido Social-demócrata. Fracçom bolchevique. Portnói (o Alfaiate), torneiro em madeira, inteli gente. Em serviço desde 1910. Recebe 100 rublos por mês. Colaborador muito bem informa do. Será candidato à Duma. Participou na conferência bolchevique de Praga. De 5 militan tes enviados desde a Rússia a esta conferência, 3 fôrom detidos...

De resto, no que à conferência bolchevique de Praga di respeito, o nosso alto funcionário de polícia congratulava-se polos resultados atingidos polos agentes secretos. Alguns conseguiram infiltrar-se no Comité Central, e um deles, um delator, foi comissionado polo partido para introduzir literatura na Rússia. “Assim temos todo o aparelho de propaganda”, verifica o nosso polícia.

Aqui é que se impom um parêntese. Sim, eles tinham nas maos, nesse momento, o aparelho de propaganda bolchevique. Mas, a eficácia desta propaganda diminuiu? A palabra escrita de Lenine perdeu algo do seu valor ao ter passado para as maos dos delatores? A palabra revolucionária tem a sua força em si própria, apenas precisa de ser escuitada. Nom importa quem a transmitir. O êxito da Okhrana teria sido verdadeiramente decisivo se tivesse conseguido impedir as organizaçons

bolcheviques de acederem à literatura procedente do estrangeiro. Mas nom podia fazê-lo mais do que em certa medida, a risco de desmascarar os seus quadros.

VI. Expedientes de agentes provocadoresO que é que é um agente provocador? Possuímos

milhares de expedientes onde achamos umha documentaçom abundante sobre as pessoas e as actividades destes miseráveis. Demos umha olhadela em alguns:

Expediente 378. Júlia Oréstovna Serova (de alcunha Pravdivy [a Verídica] e Uliánova). A umha pergunta do ministro sobre a folha de serviço desta colaboradora despedida (por estar “queimada”), o director da polícia responde enumerando os seus excelentes trabalhos. A carta tem quatro longas páginas. Eu resumo-a, masa em termos quase que textuais:

Julia Oréstovna Serova foi empregada, de Setembro de 1907 a 1910, na vigiláncia das organizaçons social-democratas. Ocupava postos relativamente importantes no partido, e por isso pudo render-nos grandes serviços, quer em Petersburgo, quer em províncias. Toda umha série de arrestos foi conseguida graças às suas informaçons.

Em Setembro de 1907 fijo arrestar o deputado da Duma, Sergio Saltykov.

Em finais de Abril de 1908 fijo arrestar 4 militantes: Rikov, Noguin, Gregório e Kamenev.

Em 9 de Março de 1908, fijo arrestar umha assembleia completa do partido.

Em outono de 1908, fijo arrestar o membro do Comité Central Inocente Dubrobsky.

Em Fevereiro de 1909, fijo comisar os materiais de umha oficina tipográfica clandestina e tomar o gabinete de passaportes do partido.

Em 1º de Março de 1905, fijo arrestar todo o Comité de Petersburgo.

Contribuiu, aliás, para arrestar um bando de expropriadores (Maio de 1907), para comisar remessas de literatura e especiamente o transporte de literatura ilegal por Vilna. Em 1908, tivo-nos ao tanto de todas as reunions do Comité Central e indicou

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a composiçom dos comités. Em 1909, participou numha conferência do partido no estrangeiro, da qual nos informou. Em 1909, controlou as actividades de Aléxis Ríkov.

Essa era a sua bela folha de serviços. Mas a Serova terminou por “queimar-se”. O seu marido, deputado da Duma, declarou nos diários da capital que já nom a considerava a sua mulher. Isto foi conpreendido. Como já nom podia emprestar serviços, os seus superiores hierárquicos agradecêrom-lhe a colaboraçom. Caiu na miséria. O expediente está cheio de cartas que remetia para o director da Segurança: protestos de fidelidade, recordaçons dos serviços emprestados, pedidos de ajuda.

Nom conheço nada mais aflitivo do que estas cartas escritas com letra nervosa e apertada de intelectual. A “provocadora desocupada”, como ela própria se qualificada em algum lugar, semelha encurralada, fustigada pola miséria, numha total desintegraçom moral. Cumpre subsistir. Nom sabe fazer nada com as maos. O seu desleixo interior impede-lhe achar umha soluçom, um trabalho simples e razoável.

Em 16 de Agosto de 1912, escreve para o director da polícia:

Os meus filhos, dos quais o primogénito tem 5 anos, carecem de roupas e de sapatos. Carecemos de mobília. Eu estou mal vestida de mais para poder topar um emprego. Se o senhor nom me der auxílio, verei-me abocada ao suicídio...

Concedemo-lhe 150 rublos.

Em 17 de Setembro, noutra carta, à qual se junta umha missiva para o seu marido, que o director da polícia decide enviar polos correios:

O senhor vai ver, na última carta que escrevo para o meu marido, que em vésperas de acabar com a minha vida ainda nego ter servido à polícia. Decidim acabar. Nom é comédia, nem efectismo. Já nom me sinto capaz de recomeçar a vida.

No entanto, a Serova nom se matará ainda. Alguns dias mais tarde denuncia um anciao senhor que esconde armas. As cartas formam um grosso volume. Eis umha, comovedora: umhas poucas linhas de despedida para o homem que fora seu marido.

Com freqüência tenho sido culpável a respeito de ti. Inclusive até agora nom che tinha escrito.

Mas esquece o mau e lembra só a nossa vida em comum, o nosso trabalho em comum, e perdoa-me. Deixo a vida. Estou cansada. Sinto que muitas cousas rompêrom dentro de mim. Nom poderia maldizer ninguém; mas, raios partam os camaradas!

Onde começa, nestas cartas, a sinceridade? Onde é que acaba o fingimento? Nom se sabe. Estamos à frente de umha alma complexa, malvada, dolorosa, suja, prostituída, despida.

No entanto, a Segurança nom foi surda aos seus chamados. Cada umha das cartas da Serova leva no verso a resoluçom do director, manuscrita polo chefe de serviços: “Enviem-se-lhe 250 rublos”, “Destinem-se-lhe 50 rublos”. A velha colaboradora anuncia a morte de um dos seus filhos. “Verifique-se”, escreve o director. Logo a seguir, pedirá que se lhe facilite umha máquina de escrever para aprender mecanografia. A Segurança nom tem máquinas disponíveis. Afinal, as suas cartas tornam mais e mais prementes.

Em nome dos meus filhos –escreve em 14 de Dezembro— escrevo-lhe com báguas e sangue. Conceda-me um derradeiro socorro de 300 rublos. Com isso bastará-me.

Concede-se-lhe, em troca de que deixe Petrogrado. Ao todo, em 1911, a Serova recebe 743 rublos em três remessas; em 1912, 788 rubos em seis remessas. Naquela altura, isto era considerável.

A seguir de um derradeiro socorro enviado em Fevereiro de 1914, a Serva recebe um pequeno emprego na administraçom dos caminhos de ferro. Aginha há de perdê-lo por vigarizar pequenas quantidades de dinheiro aos seus companheiros de trabalho. Aponta-se no seu expediente: “culpada por extorsom”. Já nom merece nengumha confiança”. Sob o nome de Petrova consegue, no entanto, entrar ao serviço da polícia do caminhos de ferro onde, descoberta, é despedida. Em 1915 ainda solicita um emprego como delatora. Em 28 de Janeiro de 1917, em vésperas da revoluçom, esta anciá secretária de um comité revolucionário escrevia à “Sua excelência, o senhor Director da Polícia”, lembrava-lhe os seus bons e leais serviços e propunha-lhe informá-lo da actividade do partido social-democrata, em que podia fazer entrar o seu segundo marido.

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Em vésperas dos grandes acontecimentos que se sentem vir, sofro por nom poder ser-vos de utilidade.

Expediente 383. Osipov, Nicolái Nicoláievich Veretsky, filho de um pope1. Estudante. Colaborador secreto desde 1903, para vigiar a organizaçom social-democrata e a juventude das escolas de Pavlograd.

Enviado a Petersburgo polo partido em 1905, com a missom de introduzir armas na Finlándia, apresenta-se imediatamente à direcçom da polícia para receber instruçons.

Ao suspeitar dele os seus companheiros, é arrestado, fica 3 meses na secçom secreta da Okhrana e consegue ser enviado ao estrangeiros com o fim de se “reabilitar aos olhos dos militantes”.

Cito textualmente a conclusom de um informe:Veretsky semelha ser um homem inteligente e

culto, de umha grande modéstia, consciencioso e honesto; digamos em eu favor que a maior parte dos seus honorários (150 rublos) os dedica aos seus anciaos pais.

Em 1915, este excelente jovem retira-se do serviço e recebe ainda doze ordenados mensais de 75 rublos.

Expediente 317. O Doente. Vladímir Ivánovich Lorberg. Operário. Escreve torpemente. Trabalha numha fábrica e recebe 10 rublos por mês. Um proletário da provocaçom.

Expediente 81. Serguéi Vasilievich Práotsev, filho de um membro da Nardnaia Volia, gava-se de ter crescido num meio revolucionário e de possuir vastos e úteis relacionamentos.

Possuímos milhares de expedientes semelhantes.

Porque a baixeza e miséria de certas almas humanas som insondáveis.

Ainda nom nos temos ocupado dos expedientes de dous colaboradores secretos cujos nomes diremos. Devem, no entanto, ser ser mencionados aqui como casos típicos: um intelectual valioso, um tribuno.

1 Pope: sacerdote ortodoxo russo. (Nota da Abrente Editora).

Stanislaw Brozozowski, escritor polaco de aprecíavel talento, respeitado pola juventude, autor de ensaios críticos sobre Kant, Zola, Mijailovsky, Avenarius, “heraldo do socialismo, no qual via a mais profunda síntese do espírito humano e do que quereria fazer um sistema filosófico que abrangesse a natureza e a sociedade” (Naprzod, 5 de Maio de 1908), autor do romance revolucionário A chama, recrutado pola Okhrana de Varsóvia polos seus relacionamentos com os meios revolucionários e “progressistas”, com honorários mensais de 150 rublos.

O pope Gapón, alma de todo o movimento operário de Petersburgo e Moscovo antes da revoluçom de 1905; organizador da manifestaçom operária de Janeiro de 1905, ensangrentada sob as janelas do Palácio de Inverno polas descargas de fusilaria dirgidas sobre umha multidom suplicante encabeçada por dous padres que portavam em alto o retrato do czar; o pope Gapón, verdadeira encarnaçom de um momento da Revoluçom Russa, acabou por vender-se à Okhrana e, convito do delito de provocaçom, foi enforcado polo socialista-revolucionário Ruthemberg.

VII. Um espectro. Umha página de históriaAinda hoje, estám longe de terem sido

identificados todos os agentes provocadores da Okhrana cujos expedientes possuímos.

Nom se passa um mês sem que os tribunais revolucionáros da Uniom Soviética julguem alguns destes homens. Som encontrados, identificados por acaso. Em 1924, um miserável apareceu ante nós, voltando de um passado de cinqüenta anos, como num acesso de náusea, e era um perfeito espectro. Este espectro evocava umha página de história, e intercalamo-la aqui apenas para projectar nestas páginas de lama um bocado da luz do heroísmo revolucionário.

Este agente provocador tinha rendido 37 anos dos bons serviços (de 1880 a 1917) e, já anciao encanecido, safou-se durante sete anos das pesquisas da Cheka.

Por volta de 1879, o estudante de 20 anos Okladsky, revolucionário desde os 15, membro do partido da Narodnaia Volia [A Vontade do Povo], terrorista, preparou com Jeliabov um atentado contra o czar Alexandre II. O comboio imperial devia saltar. Passou sobre as minas sem estorvo.

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O aparelho infernal funcionou. Acidente fortuito? Tal se julgou. Porém, 16 revolucionários, entre eles Okladsky, devêrom responder polo “crime”. Okladsky foi condenado à morte. Começava a sua brilhante carreira? Tinha começado já? A clemência do imperador condece-lhe a vida, em troca da prisom perpétua.

Aí começa, em todo o caso, a série de inapreciáveis serviços que Okladsky haveria de render à polícia do czar. Na longa listagem de revolucionários que entregará, há quatro dos nomes mais formosos da nossa história. Baránnikov, Jeliabov, Trigoni, Vera Figner. Desses quatro, a única que sobrevive é Vera Nicoláievna Figner. Passou vinte anos na fortaleza de Schulusselburg. Baránnikov morreu. Trigoni, depois de ter sofrido vinte anos em Schlusselburg e passado quatro de exílio em Shajalin, viu antes de morrer, em 1917, o derrubamento da autocracia. Jeliabov morreu no patíbulo.

Estes valentes pertenciam à Narodnaia Volia, primeiro partido revolucionário russo que, antes do nascimento do movimento proletário, tinha declarado a guerra à autocracia. O seu programa propunha umha revoluçom liberal, cujo cumprimento teria significado para a Rússia um progresso imenso. Numha época em que nengumha outra acçom era possível, serviu-se do terrorismo, golpeando sem cessar o czarismo enlouquecido por momentos, e decapitado em 1º de Março de 1881. Na luita desta presa de heróis contra toda a velha sociedade poderosamente armada criárom-se os costumes, as tradiçons, as mentalidades que, perpetuadas polo proletariado, haveriam de temperar numerosas geraçons para a vitória de Outubro de 1917. De todos estes heróis, Alexandr Jeliabov foi porventura o maior, e rendeu sem dúvida os maiores serviços ao partido que tinha contribuido para fundar. Denunciado por Okladsky, é detido em 27 de Fevereiro de 1881, num departamento da Perspectiva Nevsky, em companhia de um jovem advogado de Odessa, Triboni, membro também do misterioso Comité Executivo da Narodnaia Volia. Dous dias mais tarde, as bombas do partido despedaçavam Alexandre II numha rua de Sam Petersburgo. No seguinte dia, as autoridades judiciárias recebiam de Jeliabov umha carta assombrosa, desde a prisom de Pedro e Paulo. Rara vez juízes e monarca recebiam pancada semelhante. Rara vez qualquer chefe do partido saberia cumprir com tal firmeza os seu derradeiro dever. A carta dizia:

Se o novo soberano, recebendo o cetro de maos

da revoluçom, projecta ter consideraçom polos regicidas ao antigo modo; se projecta executar Rissakov, seria umha irritante injustiça conceder-me a vida a mim, que por tantas vezes tenho atentado contra a vida de Alexandre II e a quem só um azar impediu participar na sua execuçom. Sinto-me muito inquieto pensando que o governo poderia condere maior preço à justiça formal do que à justiça real e enfeitar a coroa do novo mocarca com o cadáver de um jovem herói, somente por causa da falta de provas formais contra mim que som um veterano da revoluçom.

Com todas as forças da minha alma protesto contra esta iniquidade.

Só a cobardia do governo poderia explicar que nom se levantasse duas forcas em lugar de umha.

O novo czar Alexandre III fijo alçar sei forcas para os regicidas. O derradeiro momento, umha jovem, Jesy Helfman, que estava grávida, foi perdoada. Jeliabov morreu junto da sua companheira Sofia Peróvskaya, junto de Rissakov (que tinha optado pola defecçom inutilmente), junto de Mijailov e junto do químico Kibalchich. Mijailov sofreu três vezes o suplício. Duas vezes, a corda do carrasco rompeu. Duas vezes caiu Mijailov, coberto polo seus sudário e encapuzado, para erguer-se por si próprio.

O provocador Okladsky, entretanto, continuava os seus serviços. Entre a generosa juventude que incansavelmente “ia ao povo”, à pobreza, à prisom, ao exílio, à morte para abrir o caminho da revoluçom, era fácil dar pancadas ocultas! Logo que chegou a Kiev, Okladsky entrega a Vera Nikoláievana Figner ao polícia Sudeikin. Mais tarde erve Tbilise como um profissional da traiçom, perito na arte de se relacionar com os melhores homens, de receber as esperadas gratificaçons.

Em 1889, a Segurança imperial chama-o a Sam Petersburgo. O ministro Durnovo, purificando Okladsky de todo o passado indigno, converte-o no “honorável cidadao” Petrovsky, sempre revolucionário, é claro, e confidente de revolucionários. Haveria de continuar “em actividade” até a revoluçom de Março de 1917. Até 1924, conseguiu fazer-se passar por um pacífico habitante de Petrogrado. Mais tarde, fechado em Leninegrado, na mesma prisom onde muitas das suas vítimas esperárom a morte, aceitou escrever a confissom da sua vida até o ano 1890.

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Para além dessa data, o velho agente provocador nom quijo dizer palavra. Nom consentiu em falar de um passado do qual quase que ninguém dos revolucionários sobrevivia, mas que ele povoou mortos e mártires.

O tribunal revolucionário de Leninegrado julga Okladsky na primeira quinzena de Janeiro de 1925. A revoluçom nom se vinga. Este espectro pertencia a um passado remoto de mais e morto de mais. O processo, dirigido por veteranos da revoluçom, semelhava um debate científico de história e de psicologia. Era o estudo do mais lastimoso dos documentos humanos. Okladsky foi condenado a dez anos de prisom.

VIII. MalinovskyDemoremos ainda um bocadinho num caso

de provocaçom dos que a história do movimento revolucionário conheceu tantos: a provocaçom de um chefe de partido. Eis a enigmática figura de Malinovsky2.

Umha manhá de 1918, o terrível ano que se seguiu à Revoluçom de Outubro: guerra civil, requisiçons rurais, sabotagens técnicas, complots, sublevaçom dos checos, intervençons estrangeiras, paz nojenta (segundo a definiçom de Lenine) de Brest-Litovsk, duas tentativas de assassinato contra Vladímir Ilich. Umha manhá de aquele ano, um homem apresentou-se tranquilamente ao comandante do Smolny (Soviet de Petrogrado) e dixo-lhe:

-Som o provocador Malinovsky. Rogo-lhe que me arreste.

O humor tem lugar em toda a tragédia. Impávido, o comandante do Smolny fijo pôr na porta aquele inoportuno.

-A mim ninguém me manda, nem é o meu trabalho arrestá-lo!

-Entom, faga-me conduzir ao comité do partido.

E no comité reconhecerá-se com assombro o homem mais execrável, o mais deprezível do partido. Será arrestado. A sua carreira, em duas palavras, é esta:

Anverso: um adolescente difícil, três condenas por roubo. Muito dotado, muito activo, militante de

2 Os socialistas-revolucionários da boa época do partido tivérom Azev, cuja actividade foi talvez mais ampla e singular ainda do que nos tempos de Malinovsky. Consulte-se ao respeito o livro de Jean Longet, Terroristes et policiers.

diversas organizaçons, tam apreciado que em 1910 é-lhe oferecida a incorporaçom ao Comité Central do Partido Operário Social-Democrata Russo, e durante a conferência bolchevique de Praga (1912) ingressa ao CC efectivamente. Em fins do mesmo ano, é deputado bolchevique na IV Duma do Império. Em 1913, é presidente do grupo parlamentário bolchevique.

Reverso: delator da Okhrana (Ernesto, depois o Alfaiate) desde 1907. A partir de 1910, honorários de 100 rublos mensais (principesco). O ex chefe da polícia Beletsky, di: “Malinovsky era o orgulho da Segurança, que o preparava para ser um dos chefes do partido. “Fijo arrestar grupos de bolcheviques em Moscovo, Tula, etc. Entre à polícia Miliutin, Noguin, Maria Smidóvich, Staline, Sverdlov. Denuncia à Okhrana os arquivos secretos do partido. É elito na Duma com a ajuda tam discreta como eficaz da polícia...

Desmascarado, recebe do Ministério do Interior umha forte recompensa e desaparece. Sobrevém a guerra. Feito prisioneiro em combate, recomeça a sua militáncia no campo de concentraçom. Volta afinal para a Rússia, para declarar ao tribunal revolucionário: “Fagam-me fusilar!” Revela ter sofrido enormemente com a sua existência dual; nom ter comprrendido realmente a revoluçom mais do que serodiamente; ter-se deixado ganhar pola ambiçom e o espírito de aventura. Krylenko refuta despiedadamente que esta argumentaçom fosse sincera. “O aventureiro joga a sua derradeira carta!”

Umha revoluçom nom pode deter-se a decifrar enigmas psicológicos. Nom pode arriscar-se a ser vigarizada mais umha vez por um jogador turbulento e apaixonado. O tribunal revolucionário emitiu o veredito reclamado a um tempo polo acusador e o arguido. Na mesma noite, poucas horas mais tarde, Malinovsky, quando atravesseva um solitário pátio do Kremlin, recebeu subrepticiamente umha bala na nuca.

IX. A mentalidade do provocador, a provocaçom e o partido comunista

Aqui colase-nos o problema da psicologia do provocador. Psicologia morbosa, seguramente, mas que nom deve surpreender-nos mais do devido. Temos visto, no Instrutivo da Okhrana, que pessoas é que “trabalha” a polícia e por que meios. Umha Serova, considerada fraca de carácter, vive dificilmente, milita

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com valor. É arrestada. Bruscamente arrancada do seu meio, sente-se perdida. Os trabalhos forçados esperam-na, talvez a forca. Bem poderia dizer umha palavra, umha só palavra, sobre alguém que, precisamente, a magoou... Vacila. Basta-lhe um instante de cobardia; ou porventura haja cobardia de mais no fundo do ser humano. O mais terrível é que, doravante, nom poderá recusar-se a colaborar mais. Decorrido um tempo, afará-se às vantagens materiais desta odiosa situaçom, até por no segredo da sua actividade sentir-se perfeitamente segura.

Mas nom há só estes agentes secretos por cobardia: há, e som muito mais perigosos, os diletantes, aventureiros que nom acreditam em nada, a sentirem fastio polo ideal que serviam até havia pouco, agarrados polo perigo, pola intriga, pola conspiraçom, por um complicado jogo em que fam troça de todo o mundo. Podem ter talento, agir num papel quase indecifrável. Tal semelha ter sido o Malinovsky. A literatura russa que se seguiu à derrota de 1905 oferece-nos muitos casos psicológicos de umha perversom semelhante. O revolucionário ilegal –nomeadamente o terrorista— adquere um tempero no carácter, umha vontade, um valor, um amor ao perigo terríveis. Se entom, ao influxo de pequenas experiências pessoais –fracassos, decepçons, extravios intelectuais— ou pola derrota temporal do movimento, chega a perder o seu idealismo, em que pode se converter? Se de verdade for forte, fugirá à neurastenia e ao suicídio; mas também é provável que venha a se converter num aventureiro sem fé, ao qual todos os meios lhe parecerám bons para atingir os seus fins pessoais. E a provocaçom é um meio que, de ser-lhe proposto, de certeza tentará.

Todos os movimentos de massas que abrangem milhares e milhares de homens arrastam escórias semelhantes. Nom deve assombrar-nos. A acçom de semelhantes parasitas nom tem mais do que um ínfimo poder sobre o vigor e a saúde moral do proletariado. Achamos que, quanto mais proletário for o movimento revolucionário, quer dizer, netamente, energicamente comunista, menos lhe ham ser perigosos os agentes provocadores. Existirám provavelmente enquanto houver luita social. Mas som individualidades às quais o hábito do trabalho e do pensamento colectivo, da disciplina estrita, da acçom calculada polas massas e inspirada por umha teoria científica da situaçom social, oferece escassas possibilidades de façanhas. Nada mais contrário ao aventureirismo pequeno ou grande, com efeito, do que a acçom ampla, séria,

profunda e metódica de um grande partido marxista revolucionário, inclusive ilegal. A ilegalidade comunista nom é a dos carbonari, a preparaçom comunista da insurreiçom nom é a dos blanquistas. Os carbonari e os blanquistas eram umha presa de conspiradores, dirigidos por alguns idealistas inteligentes e enérgicos. Um partido comunista, inclusive numericamente fraco, representa sempre, pola sua ideologia, a classe operária. Encarna a consciência de classe de centenas de milhares ou de milhons de homens. O seu papel é imenso, já que é o do cérebro de um sistema nervoso, mas inseparável das aspiraçons, das necessidades, da actividade do proletariado inteiro, de maneira que os desígnios individuais, quando nom se ajustarem às necessidades do partido, ou o que é igual, ao proletariado3, perdem muita da sua importáncia.

Neste senso, o partido comunista é, entre todas as organizaçons revolucionárias que a história tem produzido até hoje, a menos vulnerável aos embates da provocaçom.

X. A provocaçom, arma de dous gumesAlguns expedientes especiais contenhem as

ofertas de serviço dirigidas à polícia. Folheei ao acaso um tomo de correspondência com o estrangeiro, onde se pode ver sucessivamente um “súbdito dinamarquês possuidor de instruçom superior” e um “estudante saído de boa família” solicitar emprego na polícia secreta da sua majestade o czar da Rússia...

As múltiplas ajudas monetárias concedidas a Serova, dam fé da atençom da polícia no que di respeito aos seus servidores, inclusive os reformados. A administraçom nom punha na lista negra mais que os agentes surpreendidos em flagrante delito de fraude ou de extorsom. Qualificados de “chantagistas”, e inscritos nas listas negras, perdiam todo o direito ao reconhecimento do Estado.

Os outros, em troca, podiam obter todo. Prórrogas ou dispensas do serviço militar, perdons, amnistias, favores diversos após condenas oficiais, pensons temporárias ou de viagem, todo, inclusivamente favores do mesmo czar. Viu-se o czar conceder a velhos provocadores nomes e apelidos nobres. O apelido e o nome tinham, segundo o rito ortodoxo, valor religioso; o chefe espiritual da igreja russa infringia assim as leis

3 Polo contrário, as iniciativas individuais ou colectivas acordes com as necessidades e as aspiraçons do partido –quer dizer, do proletariado— adquerem aí a sua máxima eficácia.

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da mesma religiom. Todo era pouco para gratificar um bom delator!

A provocaçom acabou por converter-se em toda umha instituiçom. A cifra completa de pessoas que ao longo de vinte anos de movimento revolucionário rendêrom serviços à polícia pode variar entre os 35 e os 40 mil. Estima-se que a metade deles, mais ou menos, foi desmascarada. Alguns milhares de antigos delatores e provocadores sobrevivem ainda hoje impunemente na mesma Rússia, pois a sua identificaçom ainda nom foi possível. Entre esta multidom havia homens de valor e inclusive alguns que desempenhárom um papel importante no movimento revolucionário.

À cabeça do partido socialista-revolucionário e da sua organizaçom de choque, achava-se, por volta de 1909, o engenheiro Evno Azev, quem, a partir de 1890, assinava com o seu nome os informes da polícia. Azev foi um dos organizadores da execuçom do grande duque Sérgio, da do ministro Plehve e de muitos outros. Era ele quem dirigia, antes de enviá-los à morte, heróis tais como Kaliáev e Egor Sazónov4.

No Comité Central bolchevique, encabeçando a sua fracçom na Duma, achava-se, como vimos, o agente secreto Malinovsky.

A provocaçom, ao atingir semelhante dimensom, convertia-se também num perigo para o regime que servia e sobretodo para os homens desse regime. Sabe-se, por exemplo, que um dos mais altos funcionários do Ministério do Interior, o polícia Rachkovsky, conheceu e aprovou os projectos de execuçom de Plehve e do grande duque Sérgio. Stolypin5, perfeitamente inteirado dos casos, fazia-se acompanhar nas suas saídas polo chefe da polícia Guerásimov, umha vez que julgava a sua presença como umha garantia contra os atentados cometidos por instigaçom dos provocadores. Stolypin foi, porém, morto polo anarquista Bagrof, que tinha

4 I. Kaliáev executou, por ordem do partido socialista revolucionário, o grande duque Sérgio (Moscovo, 1905), e foi enforcado. Egor Sazónov executou, por sua vez, no mesmo ano, em Sam Petersburgo, o presidente do conselho Plehve. Condenado à morte, perdoado, enviado a trabalhos forçados, amnistiado, suicidou-se no cárcere de Akatuí, poucos meses antes de concluir a sua condena, para protestar polo maltratao que recebiam os seus companheiros detidos. Estes dous homens de grande beleza moral, deixárom na Rússia um profundo recordo.5 Stolypin, chefe de governo do czar no período de reacçom implacável que se seguiu à revoluçom de 1905, dedicou-se a consolidar o regime por meio de umha repressom sistemática e de reformas agrárias.

pertencido à polícia.

A provocaçom, apesar de todo, prosperava ainda no momento de a revoluçom estalar. Os agentes provocadores recebêrom a sua derradeira mensalidade em finais de Fevereiro de 1917, umha semana antes da derrocada da autocracia.

Revolucionários abnegados vírom-se tentados a servir-se da provocaçom. Petrov, socialista-revolucionário, quem deixara umhas memórias de um intenso dramatismo, entrou à Okhrana para combatê-la melhor. Feito prisioneiro e tendo experimentado um primeiro rejeitamento por parte do director da polícia, finge ter dado em doido para conseguir ser enviado para um assilo donde a evasom fosse possível, logrando tal, e volta, já livre, para oferecer os seus serviços. Mas –convencido logo de que tinha chegado longe de mais e de que atraiçoava ao seu pesar, Petrov suicida-se depois de ter executado o coronel Kárpov (1909).

O maximalista6 Salomom Ryss (Mortimer), organizador de um grupo terrorista extremamente audaz (1906-07), chega a zombar da Segurança, da qual se tinha convertido em colaborador secreto. O caso de Salomom Ryss constitui umha excepçom digna de ser mencionada, quase que inacreditável, que nom se explicaria mais que polos muito particulares hábitos da Okhrana após a revoluçom de 1905. Por via de regra, é impossível zombar da polícia; é impossível para um revolucionário penetrar nos seus segredos. O agente secreto de mais confiança nom tem relaçom mais do que com um ou dous polícias, dos quais nada se pode tirar, mas aos quais, no entanto, som úteis até as menores palavras e incluso as mentiras que se lhes digam, que som esclarecidas no mesmo dia7.

O desenvolvimento da provocaçom, de outra parte, induziu por vezes a Okhrana para tecer complicadas intrigas em que amiúde nom pudo dizer a última palavra. Foi assim que, em 1907, tornou necessário para os seus desígnios fazer com que o

6 Pouco numerosos, os maximalistas, dissidentes do partido socialista-revolucionário, aos quais reprochavam a corrupçom dos seus chefes e a ideologia oportunista, fôrom principalmente, embora com teorias tam radicais como fantasiosas, terroristas intrépidos. Ainda existe umha presa deles, enredada com os socialistas-revolucionários de esquerda.7 Salomón Ryss pagaraia cara a sua audácia. Arrestado no sul da Rússia, depois de algumhas acçons arriscadas,tivo que se defender, frente aos juízes, da terrível suspeita dos seus companheiros de luita, rejeitou “reemprender o serviço” na Okhrana e, condenado à morte, morreu como revolucionário.

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mesmo Ryss se evadisse. Para tal, o director da polícia nom duvida em chegar mesmo ao crime. Cumprindo instruçons, dous gendarmes organizárom a fugida do revolucionário. O inquérito judiciário, torpemente conduzido, revelou a sua participaçom. Levados a conselho de guerra e degradados oficialmente polos seus superiores, fôrom condenados a trabalhos forçados.

XI. Os delatores russos no estrangeiro. O senhor Raymond Recouly

Naturalmente, as ramificaçons da Okhrana estendiam-se até o estrangeiro. Os seus arquivos incluiam informaçons relativas à grande quantidade de pessoas que moravam naquela altura para além das fronteiras do Império e que inclusive nunca tinham estado na Rússia. Recém chegado à Rússia pola primeira vez em 1919, topei umha série de cadastros sobre a minha pessoa. A polícia russa seguia com a maior atençom as actividades dos revolucionários no estrangeiros. No que di respeito aos anarquistas russos Troianovsky e Kirichek, capturados durante a guerra de Paris, topei volumosos expedientes. A resenha dos interrogatórios decorridos no Palácio de Justiça de Paris, estava completa. De resto, russos ou estrangeiros, os anarquistas estavam totalmente vigiados em toda a parte, a cargo da Okhrana, que para tal objectivo mantinha umha correspondência constante com os serviços de segurança de Londres, Roma, Berlim, etc.

Em todas as capitais importantes morava permanentemente um chefe de polícia russo. Durante a guerra, M. Krassílnikov, oficialmente conselheiro da Embaixada, desempenhava este delicado posto em Paris.

No momento de estalar a revoluçom na Rússia, uns quinze agentes provocadores trabalhavam em Paris entre os diferentes grupos de emigrados russos. Aquando o derradeiro embaixador do derradeiro czar tivo de entregar a legaçom para um sucessor nomeado polo governo provisório, umha comissom integrada por altos personagens da colónia de emigrados em Paris encarregou-se de estudar os papéis do senhor Krassílnikov. Sem dificuldade, identificárom os agentes secretos. Achárom, entre outras surpresas, que um membro da imprensa francesa, patriota de bom tom, aparecia na rue de Grenelle em qualidade de delator e espiom. Tratava-se do senhor Raymond Recouly, redactor naquela altura do Le Fígaro, onde se ocupava da política exterior. Na sua oculta colaboraçom com o senhor

Krassílnikov, Recouly, seguindo os imperativos assinalados aos confidentes, trocara o seu nome polo pseudónimo pouco literário de Ratmir. Ofício de cam, nome de cam.

Ratmir informava a Okhrana sobre os seus colegas da imprensa francesa. No Le Fígaro e outros lugares levava a política da Okhrana. Recebeia 500 francos por mês. As suas actividades som notórias. Acham-se completas, impresas, polos vistos desde 1918, em Paris, num volumoso informe do senhor Agafonov, membro da comissom pesquisadora dos emigrados parisinos em torno da provocaçom russa em França. Os membros desta comissom –alguns deles devem morar ainda em Paris, nom esquecêrom, por certo, o Ratmir-Recouly. De outra parte, René Marchand publicou, em 1924, em L’Humanité, as provas tiradas de arquivos da Okhrana de Petrogrado, sobre a actividade policial do senhor Recouly. Este senhor limitou-se a lançar um desmentido que ninguém acreditou; nem foi repelido polos seus colegas8. E isto é explicável. O seu caso, dada a corrupçom da imprensa por parte dos governos estrangeiros, é correntíssimo.

XII. Os gabinetes pretos e a polícia internacional

Krassílnikov também tinha às suas ordens toda umha equipa de detectives, delatores, imprecisos assalariados que tratavam dos trabalhos menores, tais como a vigiláncia da correspondência dos revolucionários (gabinetes pretos privados, etc.).

Em 1913-14 (e nom creio que até a revoluçom sofresse modificaçons de relevo), a agência secreta da Okhrana em França era dirigida praticamente por certo Bittard-Monin, quem recebia 1.000 francos mensais. Dos recibos que por honorários assinavam os seus agentes tomei os nomes destes e os seus lugares de residência. A sua publicaçom talvez nom seja excessivamente útil. Ei-los:

Agentes secretos da polícia no estrangeiro, sitos sob a direcçom de Bittard-Monin (Paris): E. Invernitzi (Calvi, Córsega), Henri Durin (Génova), Sambaine (Paris), A. o R. Sauvard (Cannes), Vogt (Menton), Berthold (Paris), Fon taine (Cap Martin), Henri Neuhaus (Cap Martin), Vincení Vizardelli (Grenoble), Barthes (Sam Re mo), Ch. Delangle (Sam Remo), Georges Cousso net (Cap Martin), O. Rougeaux (Menton), E. Levéque (Cap Martin),

8 O senhor Raymond Recouly destila ainda nos jornais burgueses o seu esclarecido patriotismo... O dinheiro nom tem cheiro.

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Fontana (Cap Martin), Artur Frumento (Alassis), Sustrov o Surjánov y David (Paris), Dussosois (Cap Martin), R. Gottlieb (Nice), Roselli (Zurique), señora G. Richard (Paris), Jean Abersoid (Londres), J. Bint (Cannes), -Karl Voltz (Berlim), meninha Drouchot, senhora Tiercelin, senhora Fagon, Jollivet, Rivet.

Três pessoas tinham umha pensom da agência russa de Paris. A viúva Farse (ou Farsa?), a viúva Rigo (ou Rigault?) e N. N. Chachnikov.

A presença temporária de numerosos agentes em Cap Martin ou noutras localidades de menor importáncia explica-se pola necessidade de delaçons. Todos estes agentes nom tinham dificuldade em se deslocarem.

Tinham conseguido organizar na Europa toda um maravilhoso gabinete preto e privado. Em Petrogrado possuímos maços de cópias de cartas trocadas entre Paris e Nice, Roma e Genebra, Berlim e Londres, etc. Toda a correspondência de Savinkov e de Chernov, no momento em que ambos moravam em França, foi conservada nos arquivos da polícia de Petrogrado. Correspondência entre Haase e Dan9 também foi interceptada, como muitas outras. Como? O empregado de guarda, o carteiro ou simplesmente um empregado dos correios, sem dúvida retribuidos generosamente, retinham durante algumhas horas, o tempo preciso para copiá-las, as cartas dirigidas às pessoas vigiadas. As cópias faziam-nas amiúde pessoas que nom conheciam a língua empregada polos autores das cartas; torpezas, de resto insignificantes, assim o evidenciam. Traziam também copiado o carimbo de expediçom e o endereço. Eram remetidas a Petrogrado com a maior rapidez.

Naturalmente, a polícia russa no estrangeiro

9 Haase, líder da social-democracia alemá, morto em 1919 por um tolo; Dan, menchevique russo.

colaborava com as polícias locais10. Enquanto os agentes provocadores, desconhecidos por todos, faziam o seu papel de revolucionários, à sua volta operavam os detectives de Krassílnikov, ignorados oficialmente, mas na verdade encorajados e ajudados. Pormenores típicos mostram de que natureza é que era a ajuda que lhes emprestavam as autoridades francesas. O agente Francesco Leone, que tinha estado em relaçons com Búrtzev11, tinha consentido entregar-lhe por dinheiro alguns segredos do senhor Bittard-Monin. O seu colega, Fontana, de quem figera roubar a fotografia, fere-o de umha bengalada num café perto da Gare de Lyon (Paris, 28 de Junho de 1913). Detido o agressor e tendo-se-lhe topado dous cartons de agente da Segurança francesa e um revólver, foi enviado à esquadra sob a quádrupla acusaçom de “usurpaçom de funçons, posse de armas proibidas, golpes e feridas e ameaças de morte”. Vinte e quatro horas depois era deixado em liberdade por intervençom de Krassílnikov, após ter-se desmentido oficialmente a sua qualidade de 10 A colaboraçom estreita é quase que a regra entre as polícias dos Estados capitalistas, de jeito que em certo senso poderia-se falar em polícia internacional. No relativo aos inícios da colaboraçom entre a Okhrana czarista e a Segurança da III República francesa, acharám-se curiosas e pormenorizadas páginas num velho livro de Ernest Daudet, Histoire diplomatique de l’alliance franco-russe, 1894. Aí verá-se como os senhores Freyssinet, Ribot, Constant, na altura ministros, combinam com o embaixador da Rússia, Morenheim, a detençom de um grupo de nihilistas, organizado, de resto, polo delator Landesen (quem, mais tarde, sob o nome de Harting, fijo carreira de diplomata em França, recebendo a Legiom de Honra). Um outro livro, nom menos esquecido, L’alliance franco-russe, de Jules Hansen, confirma esta versom. Afinal, o antigo chefe da Segurança, Goron, relata nas suas memórias que o prefeito de Paris pediu ao chefe da polícia russa em Paris (Rachkovsky) a colaboraçom dos seus agentes para o controlo de certos emigrados (citado por V. Búrtzev). Apontemos estas confissons, apesar da sua velhice: estám assinadas por homens dos quais nom cabe a suspeita de quererem caluniar o governo francês. Refiramo-nos aos factos muito mais recentes que, infelizmente, nom tivérom a resonáncia que deveriam nem sequer na imprensa operária. Em Fevereiro de 1922, Nicolau Fort, um dos supostos assassinos do ministro espanhol Dato e da sua companheira Joaquina Concepción, foi entregue pola polícia alemá à polícia espanhola, por meio da polícia francesa. A transferência dos extraditados realiza-se no maior dos segredos. O governo espanhol pagou à polícia berlinesa umha quantiosa soma. Em 1925, durante o governo Henriot, a gendarmeria e a polícia francesas rejeitavam em diversas oportunidades, na fronteira dos Pireneus, os operários espanhóis encurralados pola polícia de Primo de Rivera.11 Publicista, liberal, Vladímir Búrtzev consagrou-se à história do movimento revolucionário e à luita contra a provocaçom policial. Desmascarou os provocadores Azev, harting-Landesen e a outros muitos. Preconizou o terrorismo individual contra o antigo regime. Após a queda do czarismo, evoluiu rapidamente, como a maioria dos socialistas-revolucionários, os seus companheiros de luita, em direcçom à contrarrevoluçom. Amigo e colaborador de G. Hervé, partidário da intervençom na Rússia, converterá-se em agente de propaganda de Denikin, Kolchak, Wrangel, em Paris.

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agente da Segurança russa. Quanto ao indiscreto Leone, a Embaixada russa obtivo a sua expulsom de França. Umha carta de Krassílnikov relata ao director da Segurança todos estes incidentes e pom-no ao corrente das gestons empreendidas para fazer expulsar o Búrtzev de Itália.

Noutra carta, o mesmo Krassílnikov informa a Okhrana que umha interpelaçom socialista sobre as manobras da polícia russa, em que aparecia envolvido, “nom é já para temer por parte das autoridades francesas. Os parlamentares socialistas tenhem outras ocupaçons nestes momentos”12.

XIII. Os criptogramas. De novo o gabinete preto

Mas, e se os revolucionários empregavam chaves nas suas cartas?

Entom, a Okhrana encomendava a um pesquisador genial que decifrasse a mensagem. E se me certificar que nunca falhou. Este perito excepcional, nomeado Zybin, tinha conquistado tal reputaçom de infalibilidade, que durante a revoluçom de Março... foi poupado. Passou ao serviço do novo governo, que o empregou, acho eu, em contraespionagem.

As mais diversas chaves, segundo parece, podem ser decifradas. Se se empregarem combinaçom geométricas ou aritméticas, o cálculo de possibilidades pode oferecer alguns indícios. Basta um ponto de partida, a menor chave, para decifrar umha mensagem. Para trocar cartas, alguns camaradas serviam-se –di-se-me— de certos livros em que tinham acordado marcar certas páginas. Bom psicologista, Zybin achava os livros e as páginas. “As chaves baseadas em textos de escritores conhecidos, em modelos achegados por manuais das organizaçons revolucionárias, na disposiçom vertical de nomes ou divisas”, nom valem nada, escreve o ex-polícia M. E. Bakai13. As chaves das organizaçons centrais som as mais freqüentemente denunciadas polos provocadores

12 Toda a correspondência deste personagem e dos seus chefes é altamente edificante. Vemos o director da Segurança de Petersburgo assegurar ao senhor Krassílnikov que as autoridades russas desmentirám, em todas as circunstáncias, o seu papel da polícia russa; vemos este estranho conselheiro diplomático título oficial— maquinar, para burlar os inquéritos de Búrtzev, umha intriga prodigiosamente complicada. Um ex agente da Segurança russa no estrangeiro, Jollivet, entra em relaçom com Búrtzev, fai-lhe revelaçons e encarrega-se de vigiar umha pessoa suspeita de provocaçom, mas na verdade vigia o próprio Búrtzev, de quem informa à Okhrana. Delaçom e traiçom em terceiro grau! Um labirinto.13 Byloé, Le passé, Paris, 1908.

ou decifradas a longo prazo, depois de um trabalho minucioso. Bakai julga como as melhores chaves de uso corrente aquelas que podem proceder de textos impressos pouco conhecidos. Zybin figera-se com umha colecçom de gavetas e ficheiros onde se podia achar instantaneamente o nome de todas as cidades da Rússia onde, por exemplo, há certa rua Sam Alexandre; o nome de todas as cidades onde havia estas ou aquelas fábricas ou escolas; as alcunhas e pseudónimos de todas as pessoas suspeitas que moravam no Império, etc. Possuia listagens alfabéticas de estudantes, de marinheiros, de oficiais, etc. Achava-se numha carta, muita inocente em aparência, estas simples palavras: “O Moreninho doi nesta noite à rua Maio”, e mais à frente umha frase relativa a um “estudante de medicina”. Bastava deitar mao a algumhas gavetas para saber se o Moreninho já tinha sido cadastrado, e em que cidade que possuísse umha faculdade de medicina é que havia umha rua Maior. Três ou quatro indícios semelhantes eram já umha hipótese digna de se considerar.

Em toda a correspondência vigiada ou incautada, as menores alusons a determinada pessoa eram trasladadas a fichas,em que certo números remetiam para o texto das cartas. Arquivos inteiros estavam cheios de cartas semelhantes. Três cartas totalmente correntes, provenientes de três militantes espalhados numha regiom e que figeram alusom incidental a um quarto, podiam delatá-lo perfeitamente.

Sublinhemo-lo: o controlo da correspondência por parte dos gabinetes pretos cuja existência é rigorosa e tradicionalmente negada pola polícia, mas sem os quais nom existiria polícia, é de grande importáncia. O correio das pessoas conhecidas ou suspeitas é vigiado por princípio; depois, umha substracçom, praticada ao acaso, intercepta as cartas que levam por fora “entregar a”, aquelas cujos caracteres semelham representar algo acordado, aquelas com algumha palavra que, de algumha maneira, dá nas vistas. A abertura de cartas ao acaso proporciona umha documentaçom tam útil como o controlo da correspondência dos militantes bem conhecidos. Estes, com efeito, tratam de escrever com prudência (embora a única prudência real, a única efectiva, seja nom tratar por carta assuntos relativos à acçom nem sequer indirectamente), enquanto o comum dos membros do partido –os desconhecidos— se esquece das precauçons mais elementares.

A Okhrana fazia três cópias das cartas

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interessantes: umha para a morada da censura, umha outra para a morada da Segurança Geral e umha terceira dirigida à polícia local. A carta chegava ao seu destinatário. Em certos casos –por exemplo, em aqueles em que se figera revelar quimicamente umha tinta simpática— a polícia guardava o original e fazia chegar ao destinatário umha cópia perfeitamente imitada, obra de certo perito que era todo um virtuoso.

Para abrir cartas, seguiam-se procedimentos que variavam segundo a manha dos funcionários: descolá-las com vapor, descolar selos lacrados –que aginha eram repostos, com umha lámina de barbear quente, etc. O mais habitual é que os cantos do envelope nom estejam bem colados. Introduz-se entom pola abertura um aparelho feito de umha varinha metálica, à volta da qual se enrola suavemente a carta, que assim resulta fácil de tirar e de retornar ao envelope sem abri-lo.

As cartas interceptadas nunca eram consignadas à justiça, por forma a nom deitar a menor luz, nem sequer indirecta, sobre o trabalho do gabinete preto. Eram utilizadas na confecçom de informes policiais.

O gabinete de cifrado nom tratava mais que das chaves dos revolucionários. Também coleccionava fotografias de chaves diplomáticas das grandes potências.

XIV. Síntese informativa. O método das gráficas

Até agora, nom examinamos mais do que os mecanismos de observaçom da Segurança russa. Os seus procedimentos som de algumha maneira analíticos. Investiga-se, indaga-se, regista-se. Trate-se de umha organizaçom ou de um militante, os métodos som os mesmos. Ao cabo de certo tempo –que pode ser curtíssimo— a Segurança dispom de certo tipo de dados sobre o adversário:

1) Os da vigiláncia exterior, cujos resultados se resumem em quadros sinópticos, esclarecem as suas actividades e os seus movimentos, os seus hábitos, as suas relaçons, o seu meio, etc.;

2) Os da agência secreta ou os informantes, que declaram sobre as suas ideias, intençons, trabalhos, actividade clandestina;

3) O que se pode obter da leitura atenta de jornais e publicaçons revolucionárias;

4) Os da sua correspondência, ou de correspondência de terceiros com ele, completam o assunto.

O grau de precisom das informaçons conseguidas polos agentes secretos era, naturalmente, variável. A impressom geral que dam os expedientes é, no entanto, de umha exactidom muito grande, nomeadamente os que dim respeito a organizaçons solidamente estabelecidas. Os expedientes policiais contenhem informaçom verbal muito detalhada de cada reuniom secreta, resumos de cada discurso importante, exemplares de cada publicaçom clandestina, mesmo multicopiados14.

Temos já a Segurança em posse de informaçom abundante. O trabalho de observaçom e análise está feito. Segundo o método científico, deve seguir-se entom um trabalho de classificaçom e de síntese.

Os seus resultados expressarám-se em gráficas. Vamos despregar umha.

Títulos: Relaçons de Boris Savinkov. Este quadro, de 40 cm de alto por 70 cm de comprimento, resume, de maneira que se poda abranger de umha olhadela, todos os dados obtidos sobre as relaçons do terrorista.

Ao centro, um rectángulo, em forma de cartom de visita, com o seu nome escrito à mao. Deste rectángulo irradiam linhas que o ligam a pequenos círculos de cor. Via de regra, estes som por seu turno centros donde parte outras linhas que os ligam a outros círculos. E assim por diante. As relaçons, inclusive indirectas, de um homem, podem deste jeito ser captadas ao momento, qualquer que for o nome dos intermediários, conscientes ou nom, que os relacionam com umha dada pessoa. No quadro de relaçons de Savinkov, os círculos vermelhos, que representam as suas relaçons de “luita”, dividem-se em três grupos de nove, oito e seis pessoas, todas consignadas com os seus nomes e apelidos. Os círculos verdes é que representam pessoas com quem tivo ou tem relaçons directas, políticas ou de outro género: aparecem 37; os círculos amarelos representam parentes (som 9); os círculos cor café indicam pessoas relacionadas com os seus amigos e conhecidos... Todo isto em Petrogrado. Outros signos representam as suas relaçons com Kiev. Leamos, por exemplo: B. S. Conhecia Varvara Eduárdovna Varsovskaya, quem conhecia por sua vez 12 pessoas em Petrogrado (nomes, apelidos, etc.) e 5 em Kiev. Bem pode resultar que B. S. nom soubesse nada

14 O expediente de vigiláncia das organizaçons social-democratas, somente para o ano 1912, incluía 250 grossos volumes.

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destas 12 pessoas e destas 5 pessoas. Mas a polícia conhecia melhor do que ele próprio a que novelos era que levavam os fios!

Trata-se de umha organizaçom? Tomemos umha série de quadros de estudo, evidentemente resenhas, de umha organizaçom socialista-revolucionária do governo de Vilna. Os círculos vermelhos formam, aqui e acolá, espécies de constelaçons: entre eles, as linhas entrecruzam-se estranhamente. Decifremos: Vilna. Um círculo vermelho: Ivanov, chamado O Gelo, rua, número, profissom. Umha seta refere-o a Pável (iguais dados). E algumhas setas indicam-nos que em 23 de Fevereiro (de 16 a 17 horas), em 27 (às 21 horas) e em 28 (às 16 horas). Ivanov visitou Pável. Umha outra seta refere-o a Marfa, que o visitou em 27 ao meio-dia. Assim por diante, estas linhas confundem-se como os passos na rua. Este quadro permite seguir, hora por hora, a actividade de umha organizaçom.

XV. Antropometria, filiaçom... e liquidaçomMencionemos aqui um meio acessório, muito

útil, de que a Segurança dispunha: a antropometria (o bertillonnage, do nome do senhor Bertillon, quem inventara o sistema), valiosíssima para os serviços de identificaçom judiciária. De toda a pessoa arrestada fai-se um cadastro antropométrico: é fotografada de diferentes ángulos, frontalmente, de perfil, de pé, sentada; medida com ajuda de instrumentos de precisom (forma e dimensom do cránio, do antebraço, do pé, da mao, etc.), examinada por especialistas que ratificam a sua filiaçom científica (forma do nariz e da orelha, matiz dos olhos, cicatrizes e sinais no corpo). Tomam-se-lhe as impressons digitais: o estudo das mais mínimas sinuosidades da epiderme poderá servir para os fins de estabelecer a sua identidade, quase que indefectivelmente, servindo-se de umha impressom digital, deixada num copo ou no puxador de umha fechadura. Em todas as pesquisas judiciárias, os cadastros antropométricos, classificados por índices característicos, achegam o seu cúmulo de informaçons.

Os mais ínfimos sinais podem ser perigosos. A conformaçom da orelha, o matiz das meninhas do olho, a forma do nariz, podem ser observadas na rua sem dar nas vistas. Estes dados bastarám aginha ao polícia perito para identificar o homem, a despeito das mudanças que tenha feito no seu físico. Umhas letras convencionais transmitirám por telegrama umha filiaçom científica.

Já os principais militantes som perfeitamente conhecidos. A polícia está muito bem inteirada da organizaçom no seu conjunto. Só resta fazer umha síntese, desta vez, em concreto. Fagamos algo formoso e formal! E fam-no. Estes som os quadros e as cores, cuidadosos como trabalhos de arquitectos, artísticos. Os signos som explicados com legendas. Este é um Esquema de organizaçom do partido socialista-revolucionário, que nem os mesmos membros do Comité Central possuem; ou o quadro de organizaçom do Partido Socialista Polaco, do Bund judeu, da propaganda nas fábricas de Petrogrado, etc. Todos os partidos, todos os grupos som estudados a fundo.

Nada platonicamente, por certo! Cá estamos perto da meta. Um elegante desenho mostra-nos o “projecto de liquidaçom da organizaçom social-democrata de Riga”. No topo do Comité Central (4 nomes) e a comissom de propaganda (2 nomes); abaixo, o comité de Riga, em relaçom com 5 grupos, do qual dependem 26 subgrupos. Ao todo, 76 nomes de pessoas para umha trintena de organizaçons. Nom resta mais do que deitar a luva a todo o mundo numha só rusga para extirpar completamente a organizaçom social-democrata de Riga.

XVI. Estudo científico do movimento revolucionário

Terminando o trabalho, os seus autores sentem um legítimo orgulho por conservarem a sua memória. Editam quase com luxo um álbum de fotografias de membros da organizaçom liquidada. Tenho na minha frente um álbum consagrado à liquidaçom do grupo anarquista-comunista “Os Comuneiros”, pola polícia de Moscovo, em Agosto de 1910. Quatro láminas mostram o armamento e a equipa do grupo: seguem-se 18 retratos acompanhados de dados biográficos.

Os materiais, informes, expedientes, gráficas, etc., que até este momento tinham sido utilizado com um intuito prático, imediato, vam ser empregues a partir de agora com um espírito de certa forma científico.

Cada ano, publicava-se um volume a cargo da Okhrana e exclusivamente para os seus funcionários, o qual contém umha completa embora sucinta exposiçom dos principais casos e informes sobre a situaçom actual do movimento revolucionário.

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Volumosos tratados fôrom escritos sobre o movimento revolucionário para instruir as jovens geraçons de gendarmes. De cada partido lê-se a sua história (origem e desenvolvimento), um resumo das suas ideias e programas, umha série de desenhos acompanhados de textos explicativos que proporcionam o esquema da sua organizaçom, as resoluçons das suas assembleias e dados dos seus militantes mais conhecidos. Em resumo, umha monografia breve e completa. A história do movimento anarquista da Rússia será, por exemplo, extraordinariamente difícil de reconstruir por causa da dispersom de homens e grupos, das perdas inauditas que sofrera esse movimento durante a revoluçom e finalmente da sua ulterior desintegraçom. No entanto, temos a sorte de topar, nos arquivos da polícia, um pequeno e excelente volume, detalhadíssimo, onde se acha resumida esta história. Bastará acrescentar algumhas notas e um curto prefácio para entregar ao público um livro do maior interesse.

Sobre os grandes partidos, a Okhrana publicou conscienciosos trabalhos, alguns dos quais seriam dignos de reimprimir-se e que, em conjunto, servirám algumha vez. Sobre o movimento sionista judeu, 156 páginas em grande formato, informe dirigido à direcçom da polícia. A actividade da social-democracia durante a guerra, 102 páginas. Situaçom do partido socialista-revolucionário em 1908, etc. Som alguns dos títulos escolhidos ao acaso dentre os folhetos saídos dos prelos da polícia imperial.

O Departamento da Polícia também editava folhas periódicas de informaçom, para uso dos funcionários superiores.

Para uso do czar, confeccionava-se, em exemplar único, umha espécie de revista manuscrita que aparecia de dez a quinze vezes por ano, em que os mais mínimos incidentes do movimento revolucionário, capturas isoladas, pesquisas bem sucedidas, repressons, eram registados. Nicolau II sabia-o todo, Nicolau II nom desdenhava as informaçons obtidas polos gabinetes pretos. Os informes estám amiúde apontados pola sua mao.

A Okhrana nom vigiava somente os inimigos da autocracia. Considerava-se bom ter na mao os amigos, e sobretodo saber o que pensavam. O gabinete preto estudava muito especialmente as cartas dos altos cargos funcionariais, conselheiros do Estado, ministros, cortesaos, generais, etc. Os

trechos com interesse destas cartas, ordenados por temas e datas, formavam cada semestre um grosso volume mecanografado que liam apenas dous ou três personagens poderosos. A general Z escreve à princesa T... que desaprova a nomeaçom de M. Certo personagem do Conselho Imperial que fai burla do ministro... nos salons. Isto é apontado. Um ministro comenta ao seu jeito umha proposta de lei, um decesso, um discurso, copiado, apontado, a título de “informaçons sobre a opiniom pública”.

XVII. A protecçom da pessoa do czarA protecçom da sacra pessoa do czar exigia um

mecanismo especial. Lim umha trintena de folhetos consagrados à forma de preparar as viagens da sua magestade imperial por terra, por água, por caminho de ferro, de automóvel, no interior, nas ruas, nos campos. Inúmeras regras presidem a organizaçom de cada deslocamento do soberano. Incluso quando durante umha solenidade deve atravessar certas ruas, estuda-se o seu percurso casa por casa, janela por janela, a maneira de saber exactamente que pessoas moram ao longo do percurso e quem os visitam. Planos de todas as casas, de todas as ruas por onde passará o cortejo, som levantados; desenhos das fachadas e com o número de andares, bem como os nomes dos inquilinos, facilitam os aprestos.

Por várias vezes, porém, a vida de Nicolau II estivo em maos dos terroristas, circunstáncias fortuitas é que o salvárom. Nom a Okhrana.

XVIII. O que custa umha execuçomEntre a papelada da polícia czarista abundam

os mais tristes documentos humanos, como já vimos. Embora um bocado fora de tema, acho que devemos consagrar algumhas linhas a umha série de simples recibos de somas miúdas de dinheiro, topadas ao pé de um expediente. Nomeadamente por estes papelzinhos costumarem aparecer após a “liquidaçom” de grupos revolucionários, a engordar ou a pôr fecho aos expedientes já por si volumosos pola vigiláncia e a delaçom. A maneira de epílogo...

Estes documentos mostram-nos quanto é que custava à polícia czarista umha execuçom. Som os recibos assinados por todos aqueles que, directa ou indirectamente, coloboravam com o carrasco,

Despesas da execuçom dos irmaos Modal e Djavat Mustafá Ogli, condenados polo tribunal militar do Cáucasso.

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RublosTransporte dos condenados da fortaleza de Metek

à prisom, aos carroceiros, 4Outras despesas, 4Por ter cavado e tapado duas valas (seis

sepulteiros assinam cada um um recibo de dous rublos, 12

Por ter armado o patíbulo, 4Por vigiar o trabalho, 8Despesas de viagem de um crego (e regresso),

2Ao médico, polo certificado de defunçom, 2Ao carrasco, 50Despesas de viagem do carrasco, 2

Resumindo, nom é caro. O padre e o médico sobretodo, som modestos. O sacerdócio de um e a profissom do outro implicam devoçom pola humanidade, nom é?

Nesta altura pensamos que aqui deveríamos iniciar um capítulo intitulado: “A tortura”. Todas as polícias fam uso mais ou menos freqüente do “interrogatório” medieval. Nos EEUU pratica-se o terrível “3º interrogatório”. Na maioria dos países da Europa, a tortura tem-se generalizado após o recrudescimento da luita de classes a partir da guerra. A Siguranza romena, a Defensa polaca, as polícias alemá, italiana, jugoslava, espanhola, búlgara –algumha nos escapa decerto—usam-na com freqüência. A Okhrana russa tinha-as precedido neste caminho, ainda que com certa moderaçom. Embora se dem casos, inclusive numerosos, de castigos corporais –o knut (chicote) nalgumhas prisons, o tratamento impingido aos seus prisioneiros pola polícia russa antes da revoluçom de 1905 semelha ter sido mais humano do que o que se impinge hoje, em caso de arresto, aos militantes operários de umha dúzia de países da Europa. Após 1905, a Okhrana possuia cámaras de tortura em Varsóvia, Riga, Odessa e, polos vistos, na maioria dos grandes centros urbanos.

XIX. Conclusom. Por quê é que resulta invencível a revoluçom

A polícia devia vê-lo todo, percebê-lo todo, sabê-lo todo, podê-lo todo. O poder e a perfeiçom do seu aparelho semelhava ainda mais terrível porquanto achava recursos insuspeitos nos baixos fundos da alma humana.

Porém, nom pudo impedir nada. Durante meio século defendeu inutilmente a autocracia contra a revoluçom, que cada ano tornava mais forte.

De outra parte, seria errado deixar-se impressionar polo mecanismo aparentemente perfeito da Segurança imperial. É certo que à sua frente se achavam alguns homens inteligentes, alguns técnicos de grande valor profissional; mas toda a maquinaria repousava sobre o trabalho de umha caterva de funcionários ignorantes. Nos informes melhor confeccionados topam-se os mais divertidos disparates. O dinheiro oleava todas as engrenagens da enorme máquina; o ganho é um forte estímulo, mas ineficaz. Nada de grande se fai sem nobre desinteresse. E a autocracia só tinha defensores interessados no seu proveito.

Se após a derrubada de 26 de Março de 1919, ainda fosse necessário demonstrar, com factos tomados da história da Revoluçom Russa, a vaidade dos esforços do director do Departamento da Polícia, podemos citar multidom de argumentos como o que nos oferece o ex-polícia M. E. Bakai, em 1906, após a repressom da primeira revoluçom, quando o chefe da polícia Trusévich reorganizou a Okhrana. As organizaçons revolucionárias de Varsóvia, nomeadamente as do Partido Socialista Polaco15, “suprimírom durante o ano 20 militares, 7 gendarmes, 56 polícias, e ferírom 92; em resumo, pugérom fora de combate 179 agentes da autoridade. Destruírom, aliás, 149 expêndios de álcool da administraçom. Na preparaçom destas acçons participárom centenas de homens que na maioria dos casos continuárom ignorados pola polícia”. M. E. Bakai repara que, nos períodos de auge da revoluçom, os agentes provocadores freqüentemente faziam mutis; mas reapareciam quando ascendia a reacçom. Igual que os corvos nos campos de batalha.

Em 1917, a autocracia ruiu sem que as legions de delatores, provocadores, gendarmes, carrascos, guardas municipais, cosacos, juízes, generais, popes, pudessem desviar o curso inflexível da história. Os informes da Okhrana redigidos polo general Globachev verificam a proximidade da revoluçom e prodigam ao czar advertências inúteis. O mesmo que os mais sábios médicos chamados para assistirem a um moribundo nom podem mais do que constatar, minuto a minuto, os progressos da doença, os omniscientes polícias do Império viam impotentes como o mundo czarista se dirigia para o abismo...

Porque a revoluçom era conseqüência de causas económicas, psicológicas, morais, situadas para além

15 Convertido mais tarde em patriota, governamental e policial. O partido de Pilsudski.

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deles e fora do seu alcance. Estavam condenados a resistir inutilmente e a sucumbir. Porque é a eterna ilusom dos governantes acreditar que podem anular os efeitos sem considerarem as causas, legislar contra a anarquia ou contra o sindicalismo (como nos Estados Unidos), contra o socialismo (como Bismarck fijo na Alemanha), contra o comunismo, como se fai hoje um bocado por toda a parte.

Na verdade, a polícia russa viu-se desbordada. A simpatia instintiva ou consciente da imensa maioria da populaçom estivo com os inimigos do antigo regime. O martírio quotidiano destes suscitava a adesom de alguns e a admiraçom do grande número. Sobre este velho povo cristao exercia umha influênica irresistível a vida dos apóstolos dos propagandistas que, renunciando ao bem-estar e à segurança, defrontavam, para levar o novo evangelho aos miseráveis, a prisom, o exílio siberiano e a morte mesma. Voltavam a ser “o sal da terra”: eram os melhores, os únicos portadores de umha imensa esperança e por isso eram perseguidos.

Tinham do seu lado só a força moral, a das ideias e os sentimentos. A autocracia já nom era um princípio vivo. Ninguém acreditava já na sua necessidade, carecia de ideólogos. A religiom mesma, por boca dos seus pensadores mais sinceros, condenava aquele regime que apenas repousava no emprego sistemático da violência. Os maiores cristaos da Rússia moderna, dujobortzi e tolstosianos, eram anarquistas. Mas umha sociedade que já nom repousava em ideias vivas, aquela em que os princípios fundamentais estám mortos, sobrevive, como muito, pola força da inércia.

Mas na sociedade russa dos últimos anos do antigo regime, as ideias novas –subersivas— tinham conseguido umha força sem contrapeso. Todo o que na classe operária, na pequena burguesia, no exército e na marinha, nas profissons liberais pensava e obrava, era revolucionário, quer dizer, “socialista” de algum jeito. Nom existia umha mediana burguesia satisfeita, como nos países da Europa ocidental. O antigo regime nom era defendido mais que polo clero, a nobreza cortesá, os financeiros, alguns políticos, em resumo, por umha aristocracia ínfima. As ideias revolucionárias achavam terreno favorável em toda a parte. Durante muito tempo, a nobreza e a burguesia entregárom à revoluçom os seus melhores filhos. Quando um militante se ocultava, topava numerosas ajudas espontáneas, desinteressadas, devotas. Quando

um revolucionário era arrestado achava cada vez mais freqüentemente que os soldados encarregados de conduzi-lo simpatizavam com ele e entre os carcereiros quase houvo “camaradas”. Tam certo era isto, que na maioria das prisons resultava fácil comunicar clandestinamente com o exterior. Esta simpatia também facilitava as evasons. Guerchuni, condenado à morte e transferido de umha prisom para outra, encontrou gendarmes que eram “amigos”. Búrtzev, na sua luita contra a provocaçom, achou outrora preciosa colaboraçom num alto funcionário do Ministério do Interior, o senhor Lopujin, por acaso um homem honesto, e um velho polícia, Bakai. Eu conhecim um revolucionário que tinha sido vigiante numha prisom. Os casos de “vigiantes” convertidos polos detidos nom eram raros... quanto ao estado de espírito dos elementos mais atrasados da populaçom –do ponto de vista revolucionário— estes factos som sintomáticos.

E estas nom som mais do que causas aparentes, superficiais, superpostas a outras mais profundas. O poder das ideias, a força moral, a organizaçom e a mentalidade revolucionária nom eram mais do que os resultados de umha situaçom económica cujo desenvolvimento enveredava para a revoluçom. A autocracia russa encarnava o poder de umha aristocracia de grandes terratenentes e de umha oligarquia financeira, submetida a influências estrangeiras estorvadas, de resto, por instituiçons pouco propícias para o desenvolvimento da burguesia. Pouco numerosa, desprovista de influência política, descontenta, a classe média urgana dava os seus filhos, juventude estudantil, intelectuais, para a revoluçom, para umha revoluçom liberal, percebe-se, pois nom queria ver subir o mujik e o operário. A grande burguesia industrial, comerciante, financeira, desejava umha monarquia constitucional “à inglesa” em que, naturalmente, exerceria o poder. Abafada polos impostos, presa nos tempos de paz, na época de prosperidade europeia, de fames periódicas, desmoralizada polo monopólio do vodka, explorada brutalmente por popes, polícias, burocratas e grandes proprietários, a massa rural acolhia com fervor, depois de mais de meio século, os chamados dos revolucionários. “Camponês, toma posse da terra!”. E como esta massa proporcionava ao exército a imensa maioria dos seus efectivos, a carne de canhom de Lyaoyang e Mukden, assim como os carrascos de todas as sublevaçons, o exército, trabalhado polas organizaçons militares dos partidos clandestinos, esse exército mantido na obediência polos conselhos de guerra e polo “governo do soco no focinho” bulia

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de amargura. Umha classe operária ainda jovem, multiplicada tam rapidamente como se desenvolvia a indústria capitalista, privada do elementar direito de falar os seus idiomas próprios, de consciência, de organizaçom de imprensa (direitos que eram desconhecidos polo antigo regime russo), ignorante dos enganos do regime parlamentar, a viver em cortelhos, a receber salários baixos, submetida ao polícia arbitrário, em resumo, colocada face as novas realidades da luita de classes, tomava mais clara consciência dos seus interesses cada dia que se passava. Trinta nacionalidades alógenas, ou vencidas polo Império, privadas do elementar direito a falar as suas línguas, colocadas na impossibilidade de ter umha cultura nacional, russificadas a chicotadas, nom eram mantidas sob o jugo mais que por constantes medidas repressivas. Na Polónia, na Finlándia, na Ucránia, nos países bálticos, no Cáucaso, gestavam-se revoluçons nacionais, prestes a aliarem-se com a revoluçom agrária, a insurreiçom operária, a revoluçom burguesa... A questom judia surgia por todo o lado.

No topo do poder, umha dinastia degenerada rodeada de imbecis. O cabeleireiro Filipe tratava mediante hipnotismo da saúde vacilante do suposto herdeiro. Rasputim tirava e punha ministros desde as suas estáncias privadas. Os generais roubavam ao exército, os grandes dignatários saqueavam o Estado. Enter este poder e a naçom, umha burocracia, inúmera, que vivia principalmente do suborno.

No seio das massas, as organizaçons revolucionárias, amplas e disciplinadas, activas constantemente, possuidoras tanto de umha vasta experiência quanto do prestígio e do apoio de umha magnífica tradiçom... Tais eram as forças profundas que trabalhavam pola revoluçom. E contra elas, na vá esperança de impedir a avalancha, a Okhrana tensava os seus fracos arames farpados!

Nesta deplorável situaçom, a polícia agia sabiamente. Bom. Conseguia, vamos lá dizer, “liquidar” a organizaçom social-democrata de Riga. Setenta capturas decapitavam o movimento na zona. Imaginemos por um momento umha liquidaçom total. Ninguém fugiu. E a seguir?

Para já, estas setenta capturas nom deixavam de ser advertidas. Cada um dos militantes estava em relaçom com polo menos umha dúzia de pessoas. Setecentas pessoas, quando menos, achavam-se repentinamente encaradas com este facto brutal:

a captura de gente honesta e corajosa, cujo crime consistia em querer o bem comum... O processo, as condenas, os dramas privados que implicam, provocavam umha explosom de simpatia e interesse polos revolucionários. Se algum deles atingia fazer ouvir umha voz enérgica desde o banco dos argüidos, pode dizer-se com certeza que a organizaçom, ao conjuro desta voz, renascia das suas cinzas. Era questom de tempo.

De outra parte, o quê fazer com os setenta militantes presos? Nom se podia mais do que fechá-los durante longo tempo ou deportá-los às regions desertas da Sibéria. Bem. Na prisom –ou na Sibéria— acham camaradas, mestres e alunos. Os ócios obrigatórios som dedicados ao estudo, à formaçom teórica das suas ideias. Sofrendo em comum endurecem-se, adquerem tempero, apaixonam-se. Tarde ou cedo, evadidos, amnistiados –graças às greves gerais— ou libertados provisoriamente, reintegram-se na vida social como revolucionários “veteranos” ou “ilegais”, agora muito mais fortes do que nunca. Nom todos, é claro. Alguns ham de morrer no caminho; dolorosa selecçom que tem a sua virtude. E o recordo dos amigos desaparecidos tornará intransigentes os que sobrevivam...

Enfim, umha liquidaçom nunca é total. As preocupaçons dos revolucionários preservarám alguns. Os mesmos interesses da provocaçom exigem serem deixados alguns presos em liberdade. E a má sorte incide no mesmo sentido. Os “fugidos”, embora metidos em situaçons difíceis, acham-se em capacitados para aproveitarem as circunstáncias favoráveis do meio...

A repressom nom se vale, em definitivo, mais que do medo. Mas, basta o medo para anular as necessidades, o anelo de justiça, a inteligência, a razom, o idealismo, todas aquelas forças revolucionárias que exprimem a pujança formidável e profunda dos factores económicos de umha revoluçom? Valendo-se da intimidaçom, os reaccionários esquecem que causárom mais indignaçom, mais ódios, mais sede de martírio do que temor verdadeiro. Nom intimidam mais do que os fracos: exasperam os melhores e temperam a resoluçom dos mais fortes.

E os provocadores?Ao primeiro olhar, podem causar ao movimento

revolucioniário prejuízos terríveis. Mas, de verdade é assim?

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Graças ao seu concurso, a polícia pode, decerto, multiplicar as capturas e as “liquidaçons” de grupos. Em determinadas circunstáncias, pode contrarrestar os mais profundos planos políticos. Pode acabar com militantes valiosos. Os provocadores tenhem sido amiúde provedores directos do carrasco. Todo isso é terrível, certamente. Mas também nom é menos certo que a provocaçom nunca pode anular mais do que indivíduos ou grupos e que é quase impotente contra o movimento revolucionário no seu conjunto.

Vimos como um agente provocador se encarregava de fazer entrar na Rússia (em 1912) propaganda bolchevique; como um outro (Malinovsky) pronunciava na Duma discursos redigidos por Lenine; como um terceiro organizava a execuçom de Plehve. No primeiro caso, o nosso malandro pode entregar à polícia umha quantidade considerável de literatura; no entanto, nom pode, a risco de se queimar de imediato, entregar toda a literatura, inclusive nom poderá mais que entregar umha quantidade muito restrita. Boa ou mamente contribui, pois, à sua difusom. Se um folheto propagandístico for divulgado por um agente secreto ou por um devoto militante, os resultados som sempre os mesmos: o essencial é que seja lido. Se a execuçom de Plehve foi arranjada por Azev ou por Savinkov, nom devemos importar-nos com sabê-lo. Ainda se fosse o resultado da luita entre as camarilhas da polícia, tampouco. O importante é que Plehve desapareça. Os interesses da revoluçom neste caso som muito mais importantes do que os maquiavelismos ínfimos e infames da Okhrana. Quando o agente secreto Malinovsky fai ouvir na Duma a voz de Lenine, o ministro do Interior fazia mal em alegrar-se polo êxito do seu agente a soldo. A importáncia que a palavra de Lenine tem para o país nom pode ser comparada com a que poda ter a voz de um miserável. De jeito que se pode, acho eu, dar do agente provocador duas definiçons que se compensam, mas das quais a segunda é mais significativa.

1) O agente provocador é um falso revolucionário;

2) O agente provocador é um polícia que, sem querer, serve à revoluçom.

Aparenta que a serve. Mas em semelhante ofício om existem as aparências. Propaganda, combate, terrorismo, todo é realidade. Nom se milita a médias ou superficialmente.

Os miseráveis que num momento de cobardia se precipitárom nessa lama, pagárom-no. Recentemente, Máximo Gorki publicou nas suas Consideraçons retrospectivas a curiosa carta de um agente provocador. O homem escrevia mais ou menos isto: “Eu estava consciente da minha infámia, mas também sabia que ela nom podia retardar nem um segundo o triunfo da revoluçom”.

O certo é que a provocaçom torna mais acirrada a luita. Incita o terrorismo, inclusive um terrorismo que os revolucionários prefeririam abster-se de realizar. O que fazer, com efeito, a um traidor? Ninguém pensaria na ideia de perdoá-lo. No duelo entre a polícia e os revolucionários, a provocaçom acrescenta um elemento de intriga, de sofrimento, de ódio, de monosprezo. É mais perigosa para a revoluçom do que a polícia? Eu acho o contrário. Doutros pontos de vista, a provocaçom e a polícia tenhem um interesse imediato em que sempre esteja ameaçado aquilo que é a razom de ser do movimento revolucionário. Em caso de necessidade, antes de renunciar a umha segunda fonte de benefícios, tecem complots eles próprios; é algo já visto. Neste caso, o interesse da polícia está totalmente em contradiçom com o do regime que tem por missom defender. As argalhadas de provocadores de certa envergadura podem ser perigosos mesmo para o próprio Estado. Azev organizaou um atentado contra o czar, atentado que se frustrou unicamente por circunstáncias totalmente fortuitas e imprevistas (o desfalecimento de um dos revolucionários). Nesse instante, o interesse pessoal de Azev –o qual lhe era mais caro, sem dúvida, do que a segurança do Império—exigia umha acçom de muito ruído; pesava sobre ele, no partido socialista-revolucionário, umha suspeita que punha em perigo a sua vida. De outra parte, existiu a dúvida de se os atentados que ele tinha feito possíveis nom serviam os desígnios de algum Fouché. É possível. Mas intrigas semelhantes entre os que detenhem o poder só revelam a gangrena de um regime e contribuem nom pouco para a sua queda.

A provocaçom é muito mais perigosa pola desconfiança que sementa entre os revolucionários. Logo que alguns traidores fôrom desmascarados, a confiança desaparece do seio das organizaçons. É terrível, porque a confiança no partido é a base de toda a força revolucionária. Murmuram-se acusaçons, a seguir dim-se em alta voz, geralmente nom se podem esclarecer. Daí resultam males em certo sentido piores do que os que poderia

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ocasionar a mesma provocaçom. Há que lembrar certos casos lamentáveis: Barbés acusou o heróico Blanqui e Blanqui, apesar dos seus quarenta anos de reclusom, apesar de toda a sua vida exemplar, da sua vida indomável, nunca pudo tirar de acima a infame calúnia. Bakunin também foi acusado. E o quê diremos de vítimas menos conhecidas –e nom por isso menos danadas pola calúnia—: Girier-Lorion, anarquista, é acusado de provocaçom polo deputado “socialista” Delory; para sacudir esta intolerável suspeita, dispara sobre os agentes e morre no presídio. Semelhante resultado tivo o fim de outro valente, anarquista também, na Bélgica: Hartenstein-Sokolov (Processo de Gante, em 1909), a quem toda a imprensa socialista enlamou inobremente e que morreu na prisom... É tradicional: os inimigos da acçom, os cobardes, os cómodos, os oportunistas, gostosos tomam a sua artilharia dos esgotos! A suspeita e a calúnia servem-lhes para desacreditar revolucionários. E assim há de continuar a ser.

Este mal, a suspeita e a desconfiança entre nós, só pode ser limitado e isolado com um grande esforço de vontade. Deve-se impedir –e esta é condiçom prévia de toda luita vitoriosa contra a verdadeira provocaçom, que ao acusar caluniosamente que um militante “fai o jogo”— que ninguém seja acusado à toa, e impedir, aliás, que umha acusaçom formulada contra um revolucionário seja simplesmente aceitada sem discussom. Cada vez que um homem seja sequer rabunhado por umha suspeita, um júri formado por camaradas deverá determinar se se trata de umha acusaçom fundada ou de umha calúnia. Som simples regras que se deverám ter em conta com inflexível rigor se se quiger preservar a saúde moral das organizaçons revolucionárias.

E, de resto, embora fosse perigoso para os indivíduos, nom se deverám sobreestimar as forças do agente provocador: em grande medida, depende também de cada militante se defender eficazmente.

Os revolucionários russos, na sua longa luita contra a polícia do antigo regime, atingiram um conhecimento prático e seguro dos procedimentos e métodos da polícia. Se ela era forte, eles eram mais. Qualquer que for a perfeiçom das gráficas elaboradas polos especialistas da Okhrana sobre a actividade de umha dada organizaçom, pode-se ter certeza de antemao do aparecimento de lacunas. Dificilmente –dizíamos— será completa a “liquidaçom” de um

grupo, porque a força de precauçons, sempre escapará algum. Na tam laboriosa gráfica das relaçons de B. Savinkov faltam, por certo, alguns nomes; e por acaso os mais importantes. Os militantes russos julgavam, com efeito, que a acçom clandestina (ilegal) está sujeita a leis inflexíveis. A cada instante perguntavam-se:

-”Estará isto de acordo com as regras da conspiraçom?”16

O código da conspiraçom tivo na Rússia, entre os grandes inimigos da autocracia e do capital, teóricos e práticos destacados. Estudá-lo a fundo seria de grande utilidade. Deve conter as regras mais singelas, precisamente aquelas que, por causa da sua singeleza, som amiúde esquecidas.

Graças a esta ciência da conspiraçom, os revolucionários pudérom viver ilegalmente nas capitais russas durante meses e anos. Eram capazes de se converterem, segundo o exigisse o caso, em comerciantes viageiros, em cocheiros, em “estrangeiros endinheirados”, em serventes, etc. Em todos estes casos era indispensável que dominassem os seus papéis. Para voar o Palácio de Inverno, o operário Stepan Jalturin estudou durante semanas a vida dos operários que trabalhavam regularmente no palácio17. Kaliáev, para vigiar Plehve em Petrogrado, fijo-se cocheiro. Lenen e Zinóviev, encurralados pola polícia de Kerensky, conseguírom refugiar-se em Petrogrado e somente saíam maquilhados. Lenine foi operário fabril.

A acçom ilegal, no longo prazo, acaba por criar hábitos e umha mentalidade que se pode considerar como a melhor garantia contra os métodos policíacos. Que polícias talentosos, que malandros hábeis poderám comparar-se com os revolucionários seguros de si próprios, circunspectos, reflexivos e corajosos que obedecem umha palavra de ordem comum?

16 Konspirativno?17 O carpinteiro Stepán Jalturin, fundador em 1878 da Uniom Setentrional de Operários Russos, foi um dos verdadeiros precursores do movimento operário russo. Adiantando-se um quarto de século ao seu tempo, concebeu a revoluçom como realizável através da greve geral. Colocado como carpinterio entre o pessoal operário do Palácio de Inverno, dormiu longo tempo sobre um colchom que a pouco e pouco foi enchendo de dinamita... Alexandre II escapou à explosom de 5 de Fevereiro de 1880. Jaulturin foi enforcado dous anos mais tarde, depois de ter executado o procurador Srélnikov, de Kiev. Tinha sido obrigado ao terrorismo por causa da provocaçom policial que assolou a sua agrupaçom operária. É um dos maiores e mais nobres vultos da história da Revoluçom Russa.

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Qualquer que for a perfeiçom dos métodos empregues para vigiar os revolucionários, nom encontrará sempre nos movimentos e nas acçons destes umha incógnita irredutível? Nom aparecerá sempre, nas equaçons mais cuidadosamente elaboradas polo inimigo, um enorme e temível X? Que traidor, delator ou pesquisador sagaz decifrará a inteligência revolucionária? Quem é que medirá o poder da vontade revolucionária?

Quando se tem a favor as leis da história, os interesses do futuro, os requerimentos económicos e morais que conduzem à revoluçom, quando se sabe com certeza o que se quer, e quais som as armas próprias e as do inimigo; quando se elegeu a acçom ilegal; quando há confiança em um mesmo e só se trabalha com aqueles nos quais se tem confiança; quando se sabe que a obra revolucionária exige sacrifícios e que toda devota semente frutificará centuplicada, emtom é-se invencível.

A prova é que os milhares de expedientes da Okhrana, os milhons de cadastros do serviço de informaçom, as maravilhosas gráficas dos seus técnicos, as obras dos seus cientistas, todo este

magnífico arsenal está agora em maos dos comunistas russos. Os polícias, um dia de distúrbios, fugírom entre os berros das massas; os que fôrom apanhados polo pescoço acabárom deitados de vez nos canais de Petrogrado; na sua maioria, os funcionários da Okhrana fôrom fusilados18. Todos os provocadores que pudérom ser indentificados corrêrom o mesmo azar. E um dia, um pouco por ilustrar os camaradas estrangeiros, reunimos numha espécie de museu certo número de peças particularmente curiosas, tomadas dos arquivos secretos da Segurança do Império... A nossa exposiçom realizou-se numha das salas mais belas do Palácio de Inverno; os visitantes podiam dar umha vista de olhos, junto de umha janela situada entre duas colunas de malaquite, o livro de registo da fortaleza de Pedro e de Paulo, a tenebrosa Bastilha do czar, sobre cujos velhos torreons se via, da outra margem do Neva, ondear a bandeira vermelha.

18 A república democrática de Kerensky acreditou poder protegê-los, conseguindo alguns passar ao estrangeiro.

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2. O problema da ilegalidade

I. Nunca ser ingénuoSem umha visom clara deste problema, o

conhecimento dos métodos e procedimentos policiais nom teria nengumha utilidade prática.

O fetichismo da legalidade foi e continua a ser um dos traços característicos do socialismo favorável à colaboraçom de classes. O qual implica a crença na possiblidade de transformar a ordem capitalista sem entrar em conflito com os seus privilegiados. Mas isto, mais do que um indício de um candor pouco compatível com a mentalidade dos políticos, é indício da corrupçom dos líderes. Instalados numha sociedade que fingem combater, recomendam respeito polas regras do jogo. A classe operária nom pode respeitar a legalidade burguesa, nom sendo que ignore o verdadeiro papel do Estado, o carácter enganoso da democracia; em poucas palavras, os princípios básicos da luita de classes.

Se o trabalhador sabe que o Estado é um feixe de instituiçons rumadas à defesa dos interesses dos proprietários contra os nom proprietários, quer dizer, à manutençom da exploraçom do trabalho; que a lei, sempre promulgada polos ricos em contra dos pobres, é aplicada por magistrados invariavelmente tomados da classe dominante; que invariavelmente a lei é aplicada com um rigoroso espírito de classe; que a coerçom –que começa com a pacífica ordem do agente de polícia e termina com um golpe da guilhotina, passando por presídios e penitenciarias, é o exercício sistemático da violência legal contra os explorados; esse trabalhador nom pode já considerar a legalidade mais do que como um facto, do qual se devem conhecer os diversos aspectos, as suas diversas aplicaçons, as armadilhas, as conseqüências –e também as vantagens— das quais deverá tirar partido algumha vez, mas que nom deve ser fente

à sua classe mais do que um obstáculo puramente formal.

É necessário demonstrarmos o carácter antiproletário de toda a legalidade burguesa? Poderia ser. Na nossa desigual luita contra o velho mundo, devem fazer-se umha e outra vez as demonstraçons mais singelas. Baste lembrar brevemente um número de factos bastante conhecidos. Em todos os países, o movimento operário tivo que conquistar, à força de combates prolongados por mais de meio séculos, o direito de associaçom e greve. Este direito ainda nom é reconhecido, na mesma França, aos trabalhadores do Estado e aos das empresas consideradas de utilidade pública (como senom fossem todas!), tais como a do caminho de ferro. Nos conflitos entre o capital e o trabalho, o exército sempre interviu contra o trabalho; nunca contra o capital. Nos tribunais, a defesa dos pobres é pouco menos que impossível, a causa das despesas de qualquer acçom judiciária; na realidade, um operário nom pode nem tentar nem suster um processo. A imensa maioria dos delitos e crimes tem por causa directa a miséria e entra na categoria de atentados à propriedade.

As prisons estám povoadas de umha imensa maioria de pobres. Até a guerra, na Bélgica existia o sufrágio censual: um capitalista, um crego, um oficial, frente a um só advogado que contrapesava os votos de dous ou três trabalhadores, segundo o caso. No momento em que escrevemos trata-se de estabelecer o sufrágio censual em Itália.

Respeitar esta legalidade é cousa de parvos.

Porém, desdenhá-la nom seria menos funesto. As suas vantagens para o movimento operário som tanto mais reais quanto menos ingénuo se for. O direito à existência e à acçom legal é, para as organizaçons do

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proletariado, algo que se deve conquistar e alargar constantemente. Sublinhamo-lo porque a inclinaçom oposta ao fetichismo da legalidade manifesta-se por vezes entre os bons revolucionários, inclinados –por umha espécie de tendência ao menor esforço em política (é mais fácil conspirar que dirigir umha acçom de massas)— a certo desleixo pola acçom legal. Parece-nos que, nos países onde a reacçom ainda nom triunfou destruindo as conquistas democráticas do passado, os trabalhadores deverám defender firmemente a sua situaçom legal, e nos outros países luitar por conquistá-las. Na mesma França, a liberdade de que goza o movimento de operário necessita ser alargada, e será-o só mediante a luita. O direito de associaçom e de greve é ainda negado ou discutido aos funcionários do Estado e a certas categorias de trabalhadores; a liberdade de manifestaçom é muito menor do que nos países anglosaxónicos; as avançadas da defesa operária ainda nom conquistárom a legalidade como na Alemanha ou na Áustria.

II. Experiência de posguerra: nom se deixar surpreender

Durante a guerra viu-se como todos os governos dos países beligerantes substituiam as instituiçons democráticas pola ditadura militar (estado de sítio, supressom prática do direito de greve, prórroga e recesso dos parlamentos, omnipotência dos generais, regime de conselhos de guerra). As necessidades excepcionais da defesa nacional proporcionavam-lhes umha justificaçom plausível. Desde que, ao acabar a guerra, a marulhada vermelha surgida da Rússia desbordou pola Europa toda, quase que todos os estados capitalistas –combatentes desta vez na guerra de classes—, ameaçados polo movimento operário, tratárom como papelinhos inservíveis os textos antes sagrados das suas próprias legislaçons.

Os estados bálticos (Finlándia, Estónia, Lituánia, Letónia) e Polónia, Roménia, Jugoslávia, fraguárom contra a classe operária leis pérfidas nom disfarçadas por nengumha hipocrisia democrática. A Bulgária aperfeiçoou os efeitos da sua legislaçom canalhesca com violências extralegais. Hungria, Itália, Espanha contentárom-se com abolir, no que atinge a operários e camponeses, todo o tipo de legalidade. Mais cultivada, melhor organizada, a Alemanha estabeleceu, sem recorrer a leis de excepçom, um regime que poderíamos chamar de terrorismo

judiciário e policial19. Os Estados Unidos aplicam brutalmente as suas leis sobre o “sindicalismo criminoso”, a sabotagem e... a espionagem!: milhares de operários fôrom detidos em virtude de um espionnage act promulgado durante a guerra contra os súbditos alemáns que moravam nos EEUU.

Nom restam na Europa mais do que os países escandinavos, Inglaterra, França e alguns pequenos países onde o movimento operário goza do benefício da legalidade democrática. Pode-se afirmar, sem temermos ser desmentidos polos acontecimentos, que com a primeira crise social realmente perigosa este benefício lhes há de ser retirado irrestrita e vigorosamente. Indícios muito precisos reclamam a nossa atençom. Em Novembro de 1924, as eleiçons británicas figérom-se sobre a base de umha campanha anticomunista, em que umha falsa carta de Zinóviev, pretendidamente dirigida ao partido laborista inglês e interceptada por um gabinete preto, proporcionava a prova de conviçom principal. Em França tratou-se por várias oportunidades de dissolver a CGT. Se nom nos enganamos, esta dissoluçom chegou a ser formalmente aprovada. Briand, no seu tempo, para romper a greve de caminhos de ferro chegou mesmo a militarizar –ilegalmente— o sector. O clemencismo20 nom pertence a um passado suficientemente longínquo; e Poincaré tem demonstrado, desde a ocupaçom do Ruhr, umha evidente veleidade por imitá-lo.

Ora bem, para um partido revolucionário, deixar-se surpreender por ser posto fora da lei seria tanto como desaparecer. Polo contrário, preparar o funcionamento ilegal é ter a certeza de sobreviver a todas as medidas de repressom. Três exemplos impressionantes, tomados da história recente, ilustram esta verdade.

1. Um grande partido comunista que se deixa surpreender ao ser ilegalizado:

O PC da Jugoslávia, partido de massas, que contava em 1920 com mais de 120 mil membros e com 60 deputados na Skúpchina, é dissolvido em 1921, em cumprimento da Lei de Defesa do Estado. A sua derrota é instantánea e total. Desaparece da cena política21.

19 Umha circular do ministro Jarres prescrevia às autoridades locais, em 1925, o arresto e a perseguiçom de todos os militantes operários revolucionários. Sabe-se que isso implicou a detençom de quase que 7.000 comunistas.20 Por Clemenceaou, o chamado “estadista de ferro”. [E.]21 O PC jugoslavo reorganizou-se na ilegalidade. Conta actualmente com vários milhares de membros.

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2. Um partido comunista que é destruído a médias:

O Partido Comunista italiano estava obrigado, desde antes do ascenso de Mussolini ao poder, a umha existência mais do que semi-ilegal por conseqüência da perseguiçom fascista. A furiosa repressom –4.000 detençons de operários na primeira semana de 1923— nom deu quebrado em nengum momento o PCI, que, polo contrário, fortificado e alargado, passou de ter 10.000 membros em 1923 a quase 30.000 membros em começos de 1925.

3. Um grande partido comunista que nom é surpreendido em absoluto:

Em finais de 1923, apos os aprestos revolucionários de Outubro e da insurreiçom de Hamburgo, o PC alemám é dissolvido polo general Von Seeckt. Provisto desde havia muito de flexíveis organizaçons ilegais, consegue continuar, no entanto, a sua existência normal. O governo deve bem pouco depois reconsiderar umha medida cuja inanidade resulta evidente. O PC alemám sai da ilegalidade com os seus efectivos tam pouco golpeados, que atinge nas eleiçons de 1924 mais de três milhons e meio de votos.

III. Os limites da acçom revolucionária legal

A legalidade, de resto, tem, nas democracias capitalistas mais “avançadas”, limites que o proletariado nom pode respeitar sem se condenar à derrota. A propaganda no exército, necessidade vital, nom é legalmente tolerada. Sem a defecçom de polo menos umha parte do exército, nom há revoluçom vitoriosa. Esta é a lei da história. Em qualquer exército burguês, o partido do proletariado deve fazer nascer e cultivar tradiçons revolucionárias, possuir organizaçons ramificadas, tenazes no trabalho, mais vigilantes do que o inimigo. A mais democrática das legalidades nom aturará em absoluto a existência de comités de acçom onde precisamente som necessários: nos nós ferroviários, nos portos, nos arsenais, nos aeroportos. A mais democrática das legalidades nom aturará a propaganda comunista nas colónias: como prova, a perseguiçom dos militantes hindus e egípcios polas autoridades inglesas; e igualmente o regime de provocaçons policiais instituido polas autoridades francesas na Tunísia. Enfim, nom cumpre dizer que os serviços internacionais de ligaçom devem sempre ser substraídos à curiosidade da espionagem estatal.

Ninguém defendeu com mais firmeza do que Lenine –na época da fundaçom do partido bolchevique russo e mais tarde, durante a fundaçom

dos partidos comunistas europeus— a necessidade da organizaçom revolucionária ilegal. Ninguém combateu mais o fetichismo da legalidade. No II Congresso da Social-demcracia Russa (Bruxelas-Londres, 1903) a divisom de mencheviques e bolcheviques assentou principalmente sobre a questom da organizaçom ilegal. A discussom do primeiro parágrafo dos estatutos foi o motivo.

L. Mártov, quem seria durante 20 anos o líder do mencheviquismo, queria conceder a qualidade de membro do partido a qualquer que emprestasse serviços a este (sob o controlo do partido), quer dizer, na realidade aos simpatizantes, numerosos sobretodo nos meios intelectuais, que nom chegariam a comprometer-se até o ponto de colaborarem na acçom ilegal. Com brusquidade, Lenine defendeu que para pertencer ao partido cumpria “participar no trabalho de umha das suas organizaçons” (ilegais). A discussom semelhava excessivamente pontilhosa. Mas Lenine tinha umha imensa razom. Nom se pode ser a metade ou a terça parte de um revolucionário. O partido da revoluçom deve aproveitar, é certo, qualquer contributo; mas nom pode contentar-se com receber, de parte dos seus membros umha vaga simpatia, discreta, verbal, inactiva. Aqueles que nom consentem em arriscar pola classe operária umha situaçom material privilegiada, nom devem estar em situaçom de exercerem umha influência determinante no interior do partido. A atitude a respeito da ilegalidade foi para Lenine a pedra de toque que lhe serviu para diferenciar os verdadeiros revolucionários dos... outros22.

IV. Polícias privadasDeverá levar-se em conta um outro factor: a

existência de polícias privadas, extralegais, capazes de proporcionarem à burguesia excelentes maos armadas a soldo.

Durante o conflito mundial, os serviços de informaçom da Action Francaise atingírom um notável desempenho como provedores dos conselhos de guerra de Clemenceau. Sabe-se que Marius Plateau estivo à cabeça da polícia privada da Ah. De outra parte, um tal Jean Maxe, compilador e divagador intemperante dos Cahiers de L’antifrance, consagrou-se à espionagem dos movimentos da avançada23.

22 Consulte-se, ao respeito, V. I. Lenine, Que fazer?23 Jean Maxe foi identificado pola revista Les Humbles. É um tal Jean Didier, residente em Paris (XVIIIe). Para dizer a verdade, as suas laboriosas compilaçons sobre “o complot clartista-jedeu-germano-bolchevique” (uf!) e mais semelham lieteratura para malucos do que trabalho policial. Contudo, a burguesia francesa estima-os.

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O que todo revolucionário deve saber sobre a repressom

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É muito pouco provável que todas as funçons reaccionárias inspiradas no fascio italiano possuam serviços de espionagem e de polícia.

Na Alemanha, as forças vitais da reacçom concentram-se, desde o desarme oficial do país, em organizaçons mais do que semi-secretas. A reacçom compreendeu que, inclusive nos partidos secundados polo Estado, a clandestinidade é um recurso precioso. Compreende-se que todas estas organizaçons assumem contra o proletariado mais ou menos as funçons de umha polícia oculta.

Em Itália, o partido fascista nom se contentou com dispor da polícia oficial. Tem os seus próprios serviços de espionagem e contra-espionagem. Por toda a parte espalhou os seus delatores, os seus agentes secretos, os seus provocadores, os seus esbirros. E foi esta mafia, à vez policial e terrorista, a que “suprimiu” a Matteoti, além de muitos outros.

Nos Estados Unidos, a participaçom das polícias privadas nos conflitos entre o capital e o trabalho tomou umhas dimensons temíveis. Os escritórios de célebres detectives privados proporcionavam aos capitalistas delatores discretos, peritos provocadores, riflemen (atiradores de elite), guardas, capatazes e também “militantes de trade unions” prazenteiramente corrompidos. As companhias de detectives Pinkerton, Burns e Thiele possuem 100 escritórios e por volta de 10.000 sucursais; empregam, segundo se di, 135.000 pessoas. O seu orçamento anual calcula-se em 65 milhons de dólares. Estas firmas som as criadoras da espionagem industrial, da espionagem na fábrica, na oficina operária, nos estaleiros, nos escritórios, em todo o lugar onde trabalharem assalariados.

Criárom o protótipo do operário delator24.

Um sistema análogo, denunciado por Upton Sinclair, funciona nas universidades e nas escolas da grande democracia cantada por Walt Whitman.

V. ConclusonsResumindo: o estudo do mecanismo da Okhrana

revela-nos que o fim imediato da polícia é mais conhecer do que reprimir. Conhecer para poder reprimir na hora certa, na medida desejada, se nom totalmente. Face a este sagaz adversário, poderoso e dissimulado, um partido operário carente de organizaçons clandestinas, um partido que nom oculta nada, fai pensar num homem desarmado, sem abrigo, colocado no alvo de um atirador bem parapeitado. A seriedade do trabalho revolucionário nom pode habitar umha casa de cristal. O partido da revoluçom deve organizar-se para evitar o mais possível a vigiláncia inimiga; com o fim de ocultar absolutamente os seus recursos mais importantes; com o fim, nos países ainda democráticos, de nom ficar dependente de um solavanco para a direita da burguesia ou de umha declaraçom de guerra25; com o fim de incutir aos nossos camaradas hábitos de acordo às tais necessidades.

24 Veja-se S. Howard e Robert W. Dunn, “The Labour Spy” (O operário espiom), in The New Republic, Nova Iorque; e o romance, de Upton Sinclair, 100%.25 No sucessivo, nos grandes países capitalistas, toda guerra tenderá para se desdobrar mais cada vez numha guerra de classes interior. A mobilizaçom industrial e o colocar a naçom inteira em estado de guerra precisam do esmagamento prévio do movimento operário revolucionário. Tenho-me dedicado a demonstrar, numha série de artigos sobre a futura guerra, que a mobilizaçom será o estrangulamento, tam repentino quanto possível, do movimento operário. Nom darám resistido o golpe mais do que aqueles partidos, sindicatos e organizaçons que se tiverem preparado. Seria útil examinar a fundo essas questons.

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3. Conselhos singelos ao militante

Os grandes bolcheviques russos qualificam-se com gosto de “revolucionários profissionais”. Esta qualificaçom define perfeitamente todos os verdadeiros artífices da transformaçom social. Exclui da actividade revolucionária o diletantismo, o amadorismo, o desporto, a posse; situa de vez o militante no mundo do trabalho, onde nom se trata de “atitudes”, nem da natureza mais ou menos interessante das tarefas, nem do prazer espiritual e moral de ter ideias “avançadas”. O ofício (ou a profissom) enche a maior parte da vida dos que trabalham. Sabem que é cousa séria, da qual depende o pam quotidiano; sabem também, mais ou menos conscientemente, que deles depende toda a vida social o destino do ser humano.

O ofício de revolucionário exige umha longa aprendizagem, conhecimentos puramente técnicos, amor à tarefa, bem como entendimento da causa, dos fins e dos meios. Se, como é freqüente, se sobrepom a um outro ofício para viver, é o de revolucionário que enche a vida e o outro é apenas algo acessório. A Revoluçom Russa pudo vencer porque em vinte e cinco anos de actividade política tinha formado fortes equipas de revolucionários profissionais, prontos para efectivar umha obra quase que sobre-humana.

Esta experiência e esta verdade deveriam estar presentes sempre no espírito de todo revolucionário digno de tal nome. Na complexidade actual da guerra de classes, necessitam-se anos de esforço para formar um militante, provas, estudo, preparaçom consciente. Todo operário animado polo desejo de nom passar como um ser insignificante entre a massa explorada, senom de servir à sua classe e viver umha vida mais plena participando no combate pola transformaçom social, deverá esforçar-se por ser também, na medida do possível, por pequena que ela for, um revolucionário profissional... E no trabalho de

partido, de sindicato ou de grupo, deverá mostrar-se –é o que agora nos ocupa—suficientemente à espreita da vigiláncia policial, mesmo da invisível, incluso da inofensiva, como semelha ser nos períodos de calmaria, e descobri-la.

As recomendaçons seguintes poderám servir-lhe de muito.

Nom som, por certo, um código completo das regras da clandestinidade, nem sequer da precauçom revolucionária. Nom contenhem nengumha receita sensacional. Som somente regras elementares. O bom senso bastaria em rigor para sugeri-las. Mas, infelizmente, experiências amargas demonstram que a sua enumeraçom nom é supérflua. A imprudência dos revolucionários é sempre o melhor auxiliar da polícia.

I. Seguir os passosA vigiláncia secreta, passo a passo, fundamento de

toda a vigiláncia, é quase sempre fácil de descobrir. Todo militante deverá considerar-se seguido permanentemente; por princípio, nunca deixará de tomar as precauçons precisas para impedir que o sigam. Nas cidades grandes onde o tránsito é intenso, onde os meios de locomoçom som variados, o êxito da polícia deve-se exclusivamente a umha culpável negligência dos camaradas.

As regras mais simples som: nom dirigir-se directamente a onde se vai; dar umha volta por umha rua pouco freqüentada, para assegurar-se de que nom se está a ser seguido; em caso de dúvida, voltar sobre os próprias passos; em caso de advertir que se está a ser seguido, usar um meio de locomoçom e transbordar.

É um bocado difícil “perder” os agentes numha

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cidade pequena; mas ao tornar ostensível, tal vigiláncia perde umha grande parte do seu valor.

Desconfiar da imagem preconcebida do “agente à paisana”. Este tem freqüentemente umha fisionamia bastante característica. Mas o bons polícias sabem adaptar-se à variedade das suas tarefas. O transeunte mais corrente,o operário de mangas de camisa, o vendedor ambulante, o motorista, o soldado, podem ser polícias. Prever a utilizaçom de mulheres, de jovens e de crianças entre eles. Sabemos de umha circular da polícia russa recomendando empregar escolares em missons que os agentes nom poderiam cumprir sem dar nas vistas.

Acautelar-se também da enfadonha teima de ver um delator em todo o vemos passar.

II. A correspondência e os apontamentosEscrever o menos possível. Melhor nom escrever.

Nom tomar apontamentos sobre temas delicados: é preferível memorizar certas cousas e nom apontá-las. Para isso, exercitar-se em reter por procedimentos mnemotécnicos os endereços e particularmente os números das ruas.

O cadernoCaso for preciso, fagam-se apontamentos

inteligíveis só para um próprio. Cada quem inventará procedimentos de abreviaçom, de inversom e de mudança das cifras (24 por 42; 1 significa g, g significa 1, etc.). Pôr, um mesmo, nome às praças, às ruas, etc.; para diminuir as possibilidades de erro, realizar associaçons de ideias (a rua Lenoir26 converterá-se em A Negra; a rua Lepica... em ouriço ou espinha, etc.).

As cartasCom a correspondência, levar em conta os

gabinetes pretos. Dizer o mínimo do que cumpra dizer, esforçando-se por nom ser percebido mais que polo destinatário. Nom mencionar terceiros sem necessidade. Em caso de necessidade, lembrar que um nome é melhor do que um apelido, e que umha inicial sobretodo convencional, é melhor do que um nome.

Variar as designaçons convencionais.

Evitar todas as precisons (de lugar, de trabalho, de data, de carácter, etc.).

26 Em francês, ao pronunciar este apelido, soa como le noir (o negro). [E.]

Saber recorrer, ainda sem entendimento prévio, a estratagemas que sempre deverám ser muito singelos, e trivializar a informaçom. Nom dizer, por exemplo: “o camarada Pedro foi detido”, mas “o tio Peter adoeceu repentinamente”.

Receber a correspondência através de terceiros.

Selar bem as cartas. Nom julgar os selos de cera como garantia absoluta; fazê-los muito finos; os mais grossos som mais fáceis de descolar.

Um bom método consiste em colar a carta por trás da coberta e recobrir a pestana com um elegante selo de cera.

Lembrar sempre:“Dá-me três linhas escritas por um homem e

farei-cho deter”.

Expressom de um axioma familiar de todas as polícias.

III. Conduta geral· Desconfiar dos telefones. Nom há nada mais fácil

de controlar.A conversaçom telefónica entre dous aparelhos

públicos (em cafés, telefones automáticos, estaçons) apresenta menos inconvenientes.

Nom combinar telefone mais do que em termos convencionais.

· Conhecer bem os locais. Caso de necessidade, estudá-los com antecedência num plano. Reparar nas casas, nas passagens, nos lugares públicos (estaçons, museus, cafés, grandes lojas) que tiverem várias saídas.

· Num local público, no comboio, numha visita privada, ter presentes as possibilidades de observaçom e portanto da iluminaçom. Tentar observar bem sem ser observado simultaneamente. É bom sentar de preferência a contra-luz: vê-se bem e a um tempo é-se menos visível. Nom é bom deixar-se ver numha janela.

IV. Entre companheirosTer como princípio que, na actividade ilegal, um

militante nom deve saber mais do que é útil que saiba; e que freqüentemente é perigoso saber ou dar a conhecer mais.

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Quanto menos conhecida for umha tarefa, mais segurança e possibilidades de sucesso oferece.

Acautelar-se do pendor às confidências. Saber calar: calar é um dever com o partido, com a revoluçom.

Saber ignorar voluntariamente aquilo que nom se deve conhecer.

É um erro, que pode chegar a ser grave, confiar ao amigo mais íntimo, à namorada, ao camarada mais seguro, um segredo de partido que nom é indispensável que conheça. Por vezes, é algo que pode daná-los a eles, porque se é responsável polo que se sabe, e essa responsabilidade pode estar carregada de conseqüências.

Nom incomodar-se nem ofender-se polo silêncio de um camarada. Isso nom é índice de falta de confiança, senom mais bem de umha estima fraternal e de umha consciência que deve ser comum do dever revolucionário.

V. Em caso de detençomManter absolutamente o sangue frio. Nom deixar-

se intimidar nem provocar.

Nom responder a nengum interrogatório sem estar assistido por um defensor e antes de ter-se aconselhado com este que, de ser possível, deverá ser um camarada do partido. Ou, no seu defeito, sem ter reflectido suficientemente. Toda a imprensa revolucionária russa publicava outrora, em grandes caracteres, esta constante recomendaçom:

Nom responder a nengum interrogatório sem estar asistido por um defensor e antes de ter-se aconselhado com este que, de ser possível, deverá ser um camarada do partido. Ou, no seu defeito, sem ter reflectido suficientemente. Toda a imprensa revolucionária russa publicava outrora, em grandes caracteres, esta constante recomendaçom:

“Camaradas, nom fagam declaraçons!,Nom digam nada!”Em princípio: nom dizer nada.Explicar-se é perigoso; está-se em maos de

profissionais capazes de tirar partido da menor palavra. Toda “explicaçom” proporcionará-lhes informaçom valiosa.

Mentir é extremamente perigoso; é difícil construir umha história sem defeitos evidentes de mais. É quase impossível improvisá-la.

Nom tratar de fazer-se o mais astuto: a desproporçom de forças é grande de mais.

Os reincidentes escrevem nos muros das prisons esta enérgica recomendaçom que pode ser aproveita da polos revolucionários: “Nom confessar nunca!”

Quando se nega algo, negá-lo sem duvidar. Saber que o adversário é capaz de todo27.

Nom deixar-se surpreender nem desconcertar polo clássico:

- Sabemo-lo todo!

Tal nunca é certo. É um truque impúdico usado por todas as polícias e por todos os juízes de instruçom com todos os detidos.

Nom deixar-se intimidar pola sempiterna ameaça:

- Custará-lhe caro!

As confissons, as más justificaçons, a crença em batotas, os momentos de pánico é que podem custar caros; mas qualquer que for a situaçom de um acusado, umha defesa firme e hermética, construída de muitos silêncios e de poucas afirmaçons e negaçons, sólidas, nom pode mais que melhorá-la.

Nom acreditar em nada: é também um argumento clássico quando se nos di:

- Já sabemos tudo por boca do seu companheiro tal e tal!

Nom acreditar nada, nem mesmo que tratem de o provar. Com uns poucos indícios habilmente reunidos, o inimigo é capaz de fingir um conhecimento profundo das cousas. Inclusive se algum Tal “já o dixo todo”, isto deve ser mais umha razom para redobrar a circunspecçom.

Nom saber ou saber o menos possível sobre aqueles por quem nos estám perguntar.

Nos confrontos: conservar o sangue frio. Nom

27 Quando Egor Sazónov colocou a sua bomba abaixo da carroça de Von Plehve (Petersburgo, 1905), o ministro ficou morto e o terrorista gravemente ferido. Ao transferi-lo para o hospital, o ferido foi rodeado por hábeis delatores, aos quais se deu a ordem de taquigrafar qualquer palavra que pronunciasse durante o seu delírio. Logo que Sazónov recuperou a consciência, foi interrogado com rudeza. Desde a prisom, escreveu para os seus camaradas: “Lembrem que o inimigo é infinitamente vil!” A Okhrana chegou à impudícia de enviar advogados falsos aos argüidos.

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manifestar assombro. Insistamos: nom dizer nada.

Nunca assinar um documento sem tê-lo lido bem e percebido completamente. Perante a menor dúvida, recusar assiná-lo.

Se a acusaçom se basear numha falsidade –o qual é freqüente— nom indignar-se: deixá-la passar antes de combatê-la. Nom fazer nada mais sem ajuda do defensor, que deve ser um camarada.

VI. Frente a juízes e políciasNom ceder à inclinaçom, inculcada pola educaçom

idealista burguesa, de estabeleer ou restabelecer “a verdade”.

No conflito social nom há verdade comum para as classes exploradas e para as classes exploradoras.

Nom há verdade –nem pequena nem grande— impessoal, suprema, imperante que esteja por cima da luita de classes.

Para a classe proprietária, a verdade é um direito: o seu direito a explorar, a espoliar, a legislar, a encurralar os que querem um futuro melhor, a espancar sem piedade os difusores da consciência de classe do proletariado: chama verdade ao engano útil. Verdade científica, dim os seus sociólogos, a eternidade da propriedade individual (abolida polos soviets). Verdade legal é umha irritante falsidade: a igualdade de pobres e ricos ante a lei! Verdade oficial, a imparcialidade da justiça, arma de umha classe contra as outras.

A verdade deles nom é a nossa.

Aos juízes da classe burguesa, o militante nom tem por quê dar-lhes conta dos seus actos nem tem por quê ter respeito a nengumha pretensa verdade. Chega coaccionado frente a eles. Sofre violência. A sua única meta deve ser servir também aqui a classe operária. Por ela, pode falar, fazer do banco dos acusados umha tribuna, se converter de argüido em acusador. Por ela deve saber calar. Ou defender-se inteligentemente para reconquistar com a liberdade as suas possibilidades de acçom.

A verdade nom a devemos mais que aos nossos camaradas, à nossa classe, ao nosso partido.

Frente a juízes e polícias, nom esquecer que som serventes dos ricos, encarregados das mais

mesquinhas tarefas.

Que se som os mais fortes, somos nós entom quem, necessariamente, temos razom contra eles; que eles defendem servilmente umha ordem iníqua, malvada, condenada polo mesmo desenvolvimento histórico, enquanto nós trabalhamos pola única causa nobre do nosso tempo: a transformaçom do mundo pola libertaçom do trabalho.

VII. TalentoA aplicaçom destas poucas regras exige umha

qualidade que todo militante deveria tentar cultivar: a engenhosidade.

... Um camarada chega a umha casa vigiada, vai ao departamento sito no quarto andar. Logo que chega às escadas, três sujeitos de aspecto patibular seguem-no. Vam na mesma direcçom. No segundo andar, o camarada detém-se, bate à porta de um médico e pergunta polas horas de consulta. Os polícias continuam a caminhar e vam embora.

Perseguido numha rua de Petrogado e a ponto de ser apreendido polos seus seguidores, um revolucionário resguarda-se por surpresa no gonzo de umha porta. A brandir na mao um objecto preto. “Cuidado com a bomba!” Os perseguidores fam um gesto de retirada. O perseguido desaparece por um corredor: a casa tem duas saídas. Lisca. A bomba nom era mais do que um chapéu enrolado!

Num país em que toda a literatura comunista é proibida, um livreiro introduz por junto as memórias de John Rockefeller Como me figem milionário a partir da quarta página, o texto é de Lenine: A via da insurreiçom.

VIII. Umha recomendaçom fundamentalAcautelar-se das manias conspiradoras, da posse

de iniciado, dos ares de mistério, de dramatizar os casos simples, da atitude “conspiradora”. A maior virtude de um revolucionário é a singeleza, o desprezo de toda posse, mesmo... “revolucionária”, e nomeadamente conspiradora.

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4. O problema da repressom revolucionária

I. Metralhadora, máquina de escrever, ou...?

O que acha o senhor da metralhadora? Nom prefere umha máquina de escrever ou umha máquina de fotos?

Gente honesta, e que se dedica à sociologia, formulam às vezes, a respeito das realidades da revoluçom, perguntas de tal calibre. Há os que reprovam com lirismo todas as violências, todas as ditaduras, confiados, para atingir o fim da opressom, da miséria, da prostituiçom e da guerra, apenas na intervençom, sobretodo literária, do espírito. A gozar na realidade de um conforto considerável, na sociedade tal qual é, situam-se altaneiramente “por cima do conflito social”. Em lugar da metralhadora, preferem, muito particularmente, a máquina de escrever.

Outros, sem rejeitar a violência, rejeitam formalmente a ditadura. A revoluçom parece-lhes umha libertaçom milagreira. Sonham com umha humanidade que, com só libertar-se dos seus entraves, se faria pacífica e boa. A respeito da história, da verossemelhança, do senso comum e dos seus propósitos, sonham com umha revoluçom, total, nom só idílica, claro, embora sim breve, decisiva, definitiva, com futuros radiantes. “Fresca e alegre”, quereriam acrescentar, pois no fundo muito se assemelha esta concepçom da luita ao mito oficial da “derradeira guerra” imaginada em 1914 polas burguesias aliadas. Nada de época de transiçom; nada de ditadura do proletariado (“Contra todas as ditaduras!”); nada de repressom após a vitória dos trabalhadores; nada de tribunais revolucionários; nada de Cheka, sobretodo, por todos os deuses! Nada de Cheka!; nada de prisons... A entrada com pé firme na livre cidade do comunismo; a aportada imediata, após a tormenta, às Ilhas Afortunadas.

Às metralhetas, estes revolucionários, os nossos irmaos libertários preferem... as grinaldas de rosas, de rosas vermelhas.

Outros, enfim, acreditam que, por enquanto, deve deixar-se o monopólio do uso da metralheta às classes possuidoras, e tentar de induzi-los suavemente, por persuasom, a renunciarem a elas.

Entretanto, estes reformadores padecem penas a fio tentando obter de conferências internacionais a regulamentaçom do uso de disparos de rajada... semelha dividirem-se em duas categorias: os que ao uso da metralheta preferem sinceramente o uso da mesa de discussons; e os que, mais práticos e desapontados, preferem in petio o uso de gases asfixiantes.

Na verdade, ninguém –salvo talvez algum fabricante de armas e muniçons— tem especial predilecçom polo uso da metralheta. Mas a metralheta existe. É umha realidade. Umha vez recebida a ordem de mobilizaçom, cumpre eleger entre estar à frente desta cousa real ou estar atrás dela, entre servir-se da simbólica máquina de matar ou servir-lhe de alvo. Nós preconizamos entre os trabalhadores o uso de umha terceira soluçom: tomar este instrumento de morte e voltá-lo contra os seus fabricantes. Os bolcheviques russos diziam desde 1915: “Transformar a guerra imperialista em guerra civil”.

Todo o que dixemos da metralheta aplica-se ao Estado e ao seu aparelho de dominaçom: prisons, tribunais, polícia, serviços policíacos. A revoluçom nom escolhe as armas. Recolhe do campo ensangrentado as que a história forjou, as que caem das maos da classe dirigente vencida. Ontem à burguesia, para reprimir aos explorados,

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era-lhe necessário um poderoso aparelho coercitivo: agora também um poderos aparelho repressivo serve aos operários e camponeses para vencer a extrema resistência dos possuidores despossuidos, para impedir-lhes tomar o poder, para mantê-los numha constante carência dos seus privilégios. A metralheta nom desaparece: muda de maos. Nom é preferível o arado, por enquanto...

Mas deixemos as metáforas e as analogias simplistas. A característica da metralheta é que nom se modifica, qualquer que for a maneira de usá-la. Se se instalar num museu, amordaçada por um rótulo de cartom; se se empregar inofensivamente em exercícios de academia militar; se, acaçapada num buraco de obus, serve a um camponês de Beauce para perfurar a carne do seu irmao, o cultivador de Wesfalia; se, instalada no limiar de um palácio expropriado, mantém em xeque a contrarrevoluçom, nom se lhe modifica nem um parafuso, nem umha porca.

Ao invés, umha instituiçom é modificada polos homens, e mais ainda, infinitamente mais polas classes que se servem dela. O exército da monarquia feudal francesa de antes da revoluçom de 1789-93, aquele pequeno exército profissional, formado por mercenários a soldo e por pobres diabos recrutados à força, dirigidos por nobres, parece-se muito pouco ao exército que se formou no dia a seguir da revoluçom francesa, aquela naçom em armas, constituida espontaneamente ao chamado da “pátria em perigo”, dirigida por velhos sargentos e por deputados. Igualmente profunda era a diferença entre o exército do antigo regime russo imperial, levado à derrota polo grande duque Nicolau, com a sua casta de oficiais, serviço duramente imposto, regime do “soco nos focinhos”, e o Exército Vermelho organizado polo partido comunista, polo seu grande animador Trotsky, com os seus comissários operários, o seu serviço de propaganda, os seus quotidianos chamados à consciência de classe do soldado, as suas épicas vitórias... igualmente profunda, se nom mais, a diferença entre o Estado burguês destruido de acima para baixo pola Revoluçom Russa de Outubro de 1917, e o Estado proletário edificado sobre o seu entulho. Colocamos o problema da repressom. Veremos que a analogia entre o aparelho repressivo do Estado burguês e o do Estado proletário, é muito mais aparente do que real.

II. A experiência de duas revoluçonsEm meados de Novembro de 1917, os soviets,

que detinham em exclusiva o poder desde havia poucos dias, conseguida em toda a Rússia umha completa vitória insurreccional, vírom abrer-se a era das dificuldades. Continuar a revoluçom resultou cem vezes mais difícil do que custou tomar o poder. Nas grandes cidades nom havia nem serviços públicos nem administraçom que funcionasse. A greve dos técnicos ameaçava com provocar as piores aglomeraçons e com calamidades inúmeras. A água, a electricidade, os mantimentos, podiam faltar aos três dias; a rede de esgotos nom funcionava, e isto fazia temer epidemias; os transportes eram mais precários e o avitualhamento resultava problemático. Os primeiros comissários do povo que chegárom a tomar posse dos ministérios achárom os escritórios vazios, fechados, com as estantes também fechadas, e alguns contínuos hostis e obsequiosos a esperar que os novos chefes figessem romper as gavetas vazias dos secretários... Esta sabotagem da burocracia e dos técnicos, organizada polos capitalistas (os funcionários “em greve” recebiam subsídios de um comité de plutocratas), prolonga-se algumhas semanas com carácter crítico, e meses e incluso anos em forma mais abrandada. Entretanto, a guerra civil acendia lentamente. A revoluçom vitoriosa, pouco inclinada para o derramamento de sangue, mostra aos seus inimigos mais bem umha perigosa indulgência. Livres sob palavra (esse foi o caso do general Krasnov) ou ignorados, os oficiais czaristas agrupavam-se apressadamente no sul, formando os primeiros núcleos dos exércitos de Kornilov, de Alexéiev, de Krasnov, de Denikin, de Wrangel. A generosidade da jovem república soviética havia-lhe de custar, durante anos, rios de sangue. Algum dia os historiadores perguntarám a si próprios e os teóricos comunistas indubitavelmente fariam bem antecipando-se aos trabalhos dos historiadores, se a Rússia vermelha nom poderia ter poupado umha parte dos horrores da guerra civil e do duplo terror branco e vermelho, com um maior rigor nos seus inícios, com umha ditadura que se tivesse esforçado em reduzir sem trégua as classes inimigas à impotência mediante medidas de segurança pública, incluso às classes que pareciam passivas. Este era, semelha, o pensamento de Lenine, quem se empenhou em muito boa hora a combater as vacilaçons e ambigüidades, quer na repressom, quer noutros assuntos. Esta era a concepçom de Trotsky, concretizada nalgumhas ordens draconianas ao Exército Vermelho e no Terrorismo e comunismo. É o que Robespierre dizia ante a Convençom, em 16 de Janeiro de 1792: “A clemência que contemporiza com os tiranos é bárbara”. A conclusom teórica que

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nos parece se deve tirar da experiência russa é que, nos seus inícios, umha revoluçom nom pode ser nem clemente nem indulgente, senom mais bem dura. Na guerra de classes deve-se golpear duro, antingir vitórias decisivas, para nom se ter que reconquistar constantemente, sempre com novos riscos e sacrifícios, o mesmo terreno.

Entre Outubro e Novembro de 1917, a justiça revolucionária só efectivou 22 execuçons capitais, as principais de inimigos públicos. A Comissom extraordinária para a repressom da contrarrevoluçom e da especulaçom, por abreviatura Cheka, foi fundada em 7 de Dezembro, em razom de actividades cada vez mais atrevidas do inimigo interior. Qual era a situaçom nesse momento? A grandes riscos: as embaixadas e as missons militares dos aliados som permanentemente focos de conspiraçom. Os contrarrevolucionários de todo o cariz encontram nelas fôlegos, subsídios, armas, direcçom política. Os industriais colocados sob controlo operário ou despossuídos sabotam a produçom, conjuntamente com os técnicos. Todas as ferramentas, as matérias primas, as existências, os segredos laborais, todo o que se podia esconder, escondia-se; todo o que se podia voar, voava-se. O sindicato de transportes e a cooperativa dirigida polos mencheviques acentuárom com a sua resistência os obstáculos para o avitualhamento. A especulaçom agrava a escasseza, o ágio agrava a inflaçom. Os cadetes –democratas constitucionais— burgueses, conspiram; os socialistas-revolucionários conspiram; os anarquistas conspiram; os intelectuais conspiram; os oficiais conspiram. Cada cidade tem o seu estado maior secreto, o seu governo provisório, acompanhados de prefeitos e de faladores prestes a surgir da penumbra depois do golpe iminente. Os aderidos som suspeitos. Na frente checoloslovaca, o comandante chefe do Exército Vermelho, Muraviev, atraiçoa, quer passar para o inimigo. Os socialistas-revolucionários arranjam o assassinato de Lenine e de Trotsky. Uritsky e Volodarsky som mortos em Petrogrado. Najimsón é morto em Jaroskavi. Sublevaçom dos checoslovacos; sublevaçons em Jarolavi, Rybinsk, Mourom, Kazan... Complot da Uniom pola Pátria e a Liberdade, complots dos socialistas-revolucionários de direita; golpe dos socialistas-revolucionários de esquerda; caso Lokhart (este cônsul geral da Gram Bretanha tem menos sorte do que Noulens). Os complots sucederám-se por anos. Era o labor de sapa no interior, coordenada com a ofensiva no exterior dos exércitos brancos e

dos intervencionistas estrangeiros. Dará-se o caso do Centro Táctico, em Moscovo; as actividades do inglês Paul Dux e o caso Tagántsev em Petrogrado; o atentado do Leóntievsky Perúlok em Moscovo (caso dos “anarquistas clandestinos”); as traiçons do forte de Krásnaya-Gorka e do regimento de Seménovsky28; a contrarrevoluçom económica e a especulaçom. Durante anos, os directores de empresas nacionalizadas continuárom na realidade ao serviço dos capitalistas expropriados; informam-nos, executam as suas ordens, sabotam no seu interesse a produçom: há inúmeros excessos e abusos de todas as classes, infiltraçons de pescadores em rio revolto no partido dirigente; os erros de uns, a corrupçom dos outros; há o individualismo pequenoburguês enredado em luitas caóticas... Nada de problemas de repressom. A Cheka é tam necessária como o Exército Vermelho ou como o Comissariado de Avitualhamento.

Cento e vinte anos antes, a Revoluçom Francesa, em situaçons semelhantes, reaccionara de maneira quase idêntica. Os revolucionários de 1792 tinham o Comité de Saúde Pública, o Tribunal Revolucionário, Fouquier-Tinville, a guilhotina. Nom esqueçamos tampouco a “Jourdan-corta-cabeças” nem a Carrier de Nantes.

Jornadas de Setembro, proscriçom dos emigrados, lei contra os suspeitos, caçaria de cregos hostis, depovoaçom da Vendée, destruiçom de Lyon. “Deve-se matar todos os inimigos interiores –dizia simplesmente Danton aos convencionistas— para triunfar sobre os inimigos do exterior. “E frente ao Tribunal Revolucionário, ele, o “ministro da Revoluçom”, acusado das matanças de Setembro, acusado de querer a clemência, exclama: “Nom me importo por ser chamado bebedor de sangue! Bebamos, se cumprir, o sangue dos inimigos da humanidade”. Nom citaremos Marat, a quem os revolucionários proletários poderiam julgar seu com algumha razom, mas sim o grande orador do partido moderado da revoluçom burguesa, Vergniaud. Exigindo à assembleia legislativa umha atitude sumária terrorista contra os imigrados, o tribuno da Gironda dizia em 25 de Outubro de 1791:

“Provas legais! Entom nom tendes em nada o sangue que vos custarám! Provas legais! Áh! Previnamos mais vem so desastres que poderiam procurar-nos as tais provas! Tomemos já medidas drásticas!”

28 Relatei estes episódios em Pendant la guerre civil. Ed. Librairie du Travail, Paris, 1921.

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Por quê estranha aberraçom é que os burgueses da III República, em que os avós vencêrom por meio do terror à monarquia, à nobreza, ao clero feudal, à intervençom estrangeira, se haveria de indignar veementemente contra o terror vermelho!

III. O terror durou séculosNom havemos negar que o terror é terrível.

Ameaçada de morte, a revoluçom proletária utilizou-no na Rússia durante três anos, de 1918 a 1921. De muito boa vontade, costuma esquecer-se que a sociedade burguesa, além das revoluçons que terminárom por formá-la, tivo necessidade, para nascer e crescer, de séculos de terror. A grande propriedade capitalista formou-se ao longo dos séculos por meio da expropriaçom implacável dos camponeses. O capital manufactureiro e a seguir o industrial formárom-se pola exploraçom implacável, complementada por umha legislaçom sanguinária, dos camponeses despossuídos, reduzidos à vagabundagem. Esta horrorosa página da história é passada em silêncio nos manuais escolares e mesmo nas obras sérias. A única exposiçom de conjunto, concisa mas magistral, que conhecemos, é a de Karl Marx, no capítulo XXIV de O Capital: “A acumulaçom originária”.

“Em fins do século XV e durante todo o século XVI –escreve Marx— regeu na Europa ocidental toda umha legislaçom sanguniária contra a vagabundagem. Os antepassados dos operários actuais fôrom de facto punidos por ter-se deixado converter em vagabundos e em miseráveis”.

Um dos fins desta legislaçom muito precisa era a de promocionar mao de obra para a indústria. Pena de chicote para os vagabundos, escravatura para quem se negasse a trabalhar (edito de Eduardo VI, rei de Inglaterra, 1547), marca o vermelho vivo para quem tratar de evadir-se, morte em caso de reincidência! O roubo castiga-se com a morte. Segundo Tomás Moro, “72.000 pequenos ou grandes ladrons fôrom executados sob o reinado de Henrique VIII”, que reinara 24 anos, de 1485 a 1509. Inglaterra tinha naquela altura de 3 a 4 milhons de habitantes. “Em tempos da rainha Isabel, os vagabundos eram enforcados por séries, e cada ano fazia-se enforcar de 300 a 400”. Sob esta grande rainha, os vagabundos de mais de 18 anos que ninguém guigesse empregar durante polo menos dous anos, eram condenados à morte. Em França, “sob Luís XVI [ordenança de 13 de Julho de 1777] todos os homens aptos, de 16 a 60 anos, que carecessem de meios de subsitência

e que nom exercesse algumha profissom, deviam ser enviados a galeras”. Numha das suas cartas, tam apreciadas polos literatos, madame de Sevigné falava com umha encantadora singeleza de afeitos a enforcamentos de camponeses.

Durante séculos, a justiça nom foi mais do que terror, utilitariamente organizado polas classes possuidorsas. Roubar a um rico tem sido sempre maior crime do que matar um pobre. A falsificaçom da história, feita de acordo com os interesses de classe da burguesia, é a regra no ensino dos países democráticos, e ainda nom existe em francês, que nós saibamos, umha história séria das instituiçons sociais que esteja à disposiçom das escolas ou do grande público. Por isso necessitaremos recorrer a umha documentaçom referente à Rússia. O historiador marxista M. N. Pokorvsky, dedica à justiça, na sua destacada obra História da cultura russa, um capítulo de umha vintena de páginas. Sob Joam III, no século XV, a justiça era aplicada polos boiardos29, os dvorian –casta privilegiada de grandes terratenentes— e polos bons (quer dizer, mais exactametne, polos ricos) camponeses. A opiniom desta “honrada gente” bastava para justificar completamente umha condena à morte, sempre que se tratasse, é claro, de um pobre.

Em finais do século XV –escreve M. N. Pokrovsky— já é evidente que a supressom dos elementos suspeitos é a essência deste direito”. Suspeitos para quem? Suspeitos para os ricos. Um documento que data de 1539 outorga aos nobres (boiardos) o direito de aplicar a justiça assistidos por “pessoas honradas” (os camponeses ricos). O acordo presecreve a pena de morte para os “ladrons surpeendidos in fraganti ou nom” e autoriza a pena de tormento para os “malfeitores”. Obtida a confessom, o “culpado” será enforcado; se nom confesar, pode ser encarcerado a perpetuidade. As ordenanças que estabelecem este direito nom admitem que um nobre poda ser julgado. A justiça só começa a ser efectiva quando se trata de camponeses, de artesaos, de comerciantes e fai-se rigorosa a sério só com os pobres. Para convercer-se da crueldade dessa justiça, bastará com percorrer a história das revoluçons camponesas da Alemanhas, jacqueries em França, que assinalárom o surgimento da propriedade capitalista. Semelhantes instituiçons existírom em todos os países onde houvo servidom. Esta justiça de classe da propriedade latifundiária feudal nom desaparece, e apenas muito lentamente cede o seu posto à das monarquias absolutas –mais completa mas nom menos feroz— caracterizadas 29 Boiardo: nobre russo. [E.]

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pola importáncia crescente do comércio. Até a revoluçom francesa, até épocas recentíssimas da história, nengumha igualdade frente à “justiça”, nem sequer puramente formal, tem existido entre pobres e ricos.

É claro: as revoluçons nada inovam em matéria de repressom e de terror, nom fam mais do que ressuscitar, em forma de medidas extraordinárias, os princípios de justiça e de direito que durante séculos tenhem sido os mesmos das classes possuidoras contra as classes despossuídas.

IV. De Gallifet a MussoliniToda vez que as crises sociais pugérom frente à

burguesia moderna o problema da repressom, esta nom vacilou em recorrer aos procedimentos mais sumários da justiça de classe, tratando os seus inimigos como tratava os vagabundos no século XV. Enforcou, metralhou por milhares, em 1848, os insurrectos parisinos do bairro de Saint-Antoine, que nom eram mais do que cessantes exasperados por hábeis provocadores. Entre grandes factos históricos nom se devem esquecer. Duas vezes, com o melhor sangue humano, a burguesia escreveu no livro da história a justificaçom antecipada do terror vermelho: decapitando, para tomar o poder, os aristocratas feudais e dous reis, Carlos I de Inglaterra em 1649 e Luis XVI, e reprimindo as sublevaçons proletárias. Deixemos por um momento que falem as datas e os números.

A Comuna de Paris, respondendo às execuçons sumárias dos seus soldados feitos prisioneiros polos versalheses, passa polas armas 60 reféns. Os versalheses dizimárom o povo de Paris. Segundo estimaçons moderadas, a repressom deixou em Paris mais de 100.000 vítimas. Vinte mil comuneiros, como mínimo, fôrom metralhados, e nom durante a batalha, mas depois dela. Três mil morrêrom nos presídios.

A revoluçom soviética da Finlándia, reprimida em 1918 polos guardas brancos de Mannerheim, aliados dos soldados de Van der Goiz, reprimiu antes de cair alguns dos seus inimigos? É possível; mas o número foi tam reduzido que nem a mesma burguesia o tem em conta. Mas, polo contrário, neste país de três milhons e meio de habitantes, onde o proletariado nom existe em grande proporçom, 11.000 operários fôrom fusilados polas forças da ordem e mais de 70.000 internados em campos de concentraçom.

A República dos Soviets da Hungria (1919), funda-se quase sem derramamento de sangue, graças à abdicaçom voluntária do governo burguês do conde Károlyi. Quando os comissários do povo de Budapest julgam desesperada a situaçom, abdicam por sua vez, entregando o poder aos social-democratas. Durante os três meses que durou, a ditadura do proletariado húngaro, apesar de estar ameaçada sem cessar polas invasons checoslovaca e romena nas suas fronteiras e polos complots internos, golpeou em total 350 inimigos: estám compreendidos nesta cifra os contrarrevolucionários caídos de armas na mao durante as sublevaçons locais. Os bandos de oficiais e os tribunais de Horthy figérom perecer “em represália” muitos milhares de pessoas e internárom, encarcerárom, vexárom, dúzias de milhares.

O Soviet de Munique (1919) fijo passar polas armas, em resposta ao massacre de 23 prisioneiros vermelhos polo exército regular, 12 reféns. Depois da entrada da Reichwehr em Munique, 505 pessoas fôrom fusiladas na cidade, das quais 321 sem o menor simulacro de justiça. Desse número, 60 eram russos apreendidos na confusom.

Das vítimas do terror branco que desolou as regions onde a contrarrevoluçom triunfou, momentaneamente, na Rússia, nom possuímos estatísticas. Porém, tem-se calculado num milhom as vítimas só dos progromos anti-semitas na Ucránia, em tempos do general Denikin. A populaçom judia de cidades inteiras (Festov) foi degolada sistematicamente.

Estima-se em 15.000 o número de operários que perecêrom pola repressom, durante as insurrecçons operárias da Alemanha, de 1918 a 1921.

Nom mencionaremos aqui nomes de mártires nem episódios simbólicos. Nom tratamos mais que de basear alguns princípios sobre cifras. Demasiadas experiências dolorosas deveriam ter ensinado o proletariado sobre este ponto, demasiados regimes de terror branco estám ainda em acçom como para se necessitarem demonstraçons minuciosas.

De Gallifet a Mussolini, passando por Noske, a repressom dos movimentos revolucionários operários, mesmo os que os social-democratas aceitavam presidir, como sucedeu na Alemanha, caracteriza-se polo desígnio de espancar as classes trabalhadoras nas suas forças vivas: por outras palavras, de exterminar fisicamente, e completamente se for possível, as suas elites.

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V. Lei burguesa e Lei proletáriaA repressom é umha das funçons essenciais de

todo o poder político. O Estado revolucionário, na sua primeira fase de existência polo menos, necessita-o mais do que qualquer. Mas semelha que, nos seus três elementos fundamentais –polícia, exército, tribunais, prisons— o mecanismo da repressom e da coerçom quase nom varia. Acabamos de estudar umha polícia secreta. Temos descendido até os seus mais sujos e secretos redutos. E temos verificado a sua impotência. Esta arma, em maos do antigo regime, dixemos, nom podia salvá-lo nem matar a revoluçom. Admitimos, no entanto, a decisiva eficácia desta arma em maos da revoluçom. A arma é a mesma só em aparência: umha instituiçom, repitamo-lo, sofre profundas transformaçons segundo a classe a que serve e os fins que persegue.

A Revoluçom Russa destruiu o aparelho coercitivo do antigo regime, de lés a lés. Sobre essas ruínas jubilosamente amontoadas é que criou o seu próprio.

Esforcemo-nos por gizar as diferenças fundamentais entre a repressom tal e como a exerce a classe dominante e a repressom tal e como a exerce a classe revolucionária. Dos princípios gerais que umha análise ligeira nos revele, deduziremos alguns corolários sobre o papel da polícia em um lado e em outro.

Na sociedade burguesa, o poder é exercido pola minoria rica contra as maiorias pobres. Um governo nom é mais do que o comité executivo de umha oligarquia de financeiros apoiados polas classes privilegiadas. A legislaçom rumada a manter na obediência o conjunto de assalariados –a maioria da populaçom— deve ser forçosamente muito complexa e muito severa. Fai com que todo atentado sério à propriedade implique de umha outra maneira a supressom do culpado. Já nom se enforca o ladrom; e nom porque os princípios “humanitários” tenham “progressado”, mas porque a proporçom de forças entre as classes possuidoras e as nom possuidoras e também o desenvolvimento da consciência de classe dos pobres, já nom permite ao juiz lançar um repto semelhante à miséria. Mas limitamo-nos a seguir a legislaçom francesa, que é de umha ferocidade média. O roubo qualificado é penado com trabalhos forçados, e a pena de trabalhos forçados cumpre-se em condiçons tais, agrava-se de jeito tal com “penas acessórias”, que a vida do culpado fica quase destruída. Todas as

penas de trabalhos forçados significa o duplo: o condenado é obrigado a morar nalgumha colónia um tempo igual à residência perpétua na Güiana. Trata-se da mais malsá das colónias francesas! O confinamento, pena “acessória” perpétua, que também se cumpre na Güiana, bastante semelhante de facto aos trabalhos forçados, é precisamente o destino dos reincidentes de roubo nom qualificado. Quatro condenas por roubo, fraudes, etc. –o roubo sucessivo de 4 peças de cem sous constituiria um caso ideal; tenho visto muitos expedientes de confinados para saber o que dos casos deste tipo— podem conduzir ao confinamento; também sete condenas por vagabundagem: por outras palavras, achar-se sete vezes seguidas sem pam nem albergue nas ruas de Paris é um crime punido com pena perpétua. Em Inglaterra e na Bélgica, onde existem workhouses (casas de trabalhos forçados) e assilos de mendicidade, a repressom da mendicidade e da vagabundagem nom é menos implacável. Outro traço: o patronato tem necessidade de mao de obra e de carne de canhom: a lei pune implacavelmente o aborto.

Com a propriedade privada e o sistema assalariado como princípio, nengum remédio eficaz pode ser aplicado às doenças sociais tais como a criminalidade. Umha batalha permanente livra-se entre a ordem e o crime; o “exército do crime”, di-se, exército de miseráveis, exército de vítimas, exército de inocentes inútil e indefinidamente dizimado. O seguinte ainda nom tem sido vincado com suficiente insitência: a luita contra a criminalidade é um aspecto da luita de classes. Três quartas partes dos criminosos de direito comum, polo menos, pertencem às classes exploradas.

O código penal do Estado proletário, por regra geral, nom admite a pena de morte em matéria criminal (umha outra cousa é que a supressom física de certos anormais incuráveis e perigosos seja às vezes a única soluçom). Tampouco admite penas a perpetuidade. A pena mais severa é de dez anos de prisom. A privaçom de liberdade, medida de segurança social e de reeducaçom, que exclui a ideia medieval do castigo, é a pena que se impom. Nesse domínio e na situaçom actual da Uniom de Soviets, as possibilidades materiais som naturalmente muito inferiores ao apetecido. A edificaçom da sociedade nova –que será sem prisons— nom começa pola erecçom de prisons ideais. O impulso existe, sem dúvida; começou umha reforma profunda. Igual que o legislador, os tribunais tenhem em conta, com um

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claro sentido de classe, as causas sociais do delito, as origens e as condiçons sociais do delinqüente. Víamos que o facto de se achar sem pam nem teito constitui um delito grave em Paris; em Moscovo é, se está em relaçom com um outro delito, umha importante circunstáncia atenuante.

Face à lei burguesa, ser pobre é freqüentemente um crime, sempre umha circunstáncia agravante ou umha presunçom de culpabilidade. Face à lei proletária, ser rico, incluso dentro dos estritos limites em que durante a NEP se permitia o enriquecimento, é sempre umha circunstáncia agravante.

VI. Os dous sistemas. Combater os efeitos ou remontar às causas?

A grande doutrina liberal do Estado que os governantes capitalistas nom derrogárom a sério mais do que em tempos de guerra –entom tenhem o seu capitalismo de guerra, caracterizado pola estatizaçom da produçom, o rigoroso contolo do comércio e da distribuiçom dos produtos (livretas de racionamento, o estado de sítio, etc.), preconiza a nom ingerência do Estado na vida económica. Esta doutrina reduz-se em economia política ao laisser-faire, ao laisser-passer da escola manchesteriana. Julga o Estado principalmente como instrumento de defesa colectiva dos interesses dos possuidores; máquina de guerra contra os grupos nacionais competidores, máquina de reprimir os explorados. Reduz ao mínimo as funçons administrativas do Estado; é sob a influência do socialismo e sob a influência da pressom das massas que o Estado assumiu recentemente a direcçom do ensino público. As funçons económicas do Estado reduzem-se, na medida do possível, ao estabelecimento de tarifas alfandegárias destinadas a proteger os industriais contra a concorrência estrangeira (a legislaçom laboral sempre é umha conquista do movimento operário). Numha palavra, o respeito à anarquia capitalista é a regra do Estado. Que produza, venda, revenda, especule sem qualquer entrave, sem atender ao interesse geral: está certo. A livre concorrência é a lei do mercado. As crises convertem-se assim nas grandes reguladoras da vida económica; som as que reparam, à custa dos trabalhadores, das classes médias inferiores e dos capitalistas mais fracos, os erros dos chefes da indústria. Incluso quando os grandes truts ditam a lei ao país todo, suprimindo de facto a concorrência em vastos sectores da produçom e do comércio, a velha doutrina do Estado, se nom embate com os interesses dos reis do aço, do carvom, da carne

de porco ou dos transportes marítimos, continua intacta: assim acontece nos Estados Unidos.

A enumeraçom destes factos que todos deveríamos conhecer fai-se-nos necessária para melhor podermos definir o Estado operário e camponês tal como o realiza a Uniom de Soviets, com a nacionalizaçom do solo, dos transportes, da grande indústria, do comércio exterior. O Estado soviético governa a vida económica. Influi diária e directamente sobre os factores essenciais da vida económica. Nos mesmos limites em que permite a iniciativa capitalista, controla-a e rege-a, exercendo sobre ela umha dupla tutela: pola lei e pola acçom que chamamos directa sobre o mercado, o crédito, a produçom. A previsom das crises é umha das mais características tarefas do Estado soviético. Esforça-se por conter as crises aquando dos primeiros sintomas; nom é exagerado prever, em certo momento do desenvolvimento social, a sua eliminaçom completa.

Onde o Estado capitalista se contenta por princípio com combater os últimos efeitos das causas sociais que lhe está vedadeo tocar, o Estado soviético age sobre essas causas. A indigência, a prostituiçom, a precária situaçom da saúde pública, a criminalidade, a deterioraçom das populaçons, o baixo índice de natalidade, som só efeitos de causas económicas profundas30. Depois de cada crise económica, aumenta a criminalidade; nom pode ser de outro jeito. E os tribunais capitalistas redobram a sua severidade. Aos trastornos provocados polo funcionamento natural da economia capitalista –anárquica, irracional, regida polos egoísmos individuais e polo egoísmo colectivo das classes possuidoras— a burguesia nom conhece outro remédio que a repressom31. O Estado soviético, ao concentrar-se sobre as causas do mal, tem evidentemente menos necessidade da repressom. Quanto mais de desenvolver, mais a sua acçom

30 O baixo índice de natalidade inquieta sensivelmente os chefes da burguesia francesa. As comissons instituidas para pesquisar as suas causas chegárom à conclusom, o que é totalmente certo, de que este fenómeno é característico de um Estado de pequenos rendistas. O que é que o legislador pode fazer ante isto? Somente lhe resta admoestar platonicamente o pequeno rendista que apenas quer um filho.31 Já temos feito alusom noutro lugar às jornadas de Junho de 1848. É deplorável o esquecimento em que tem caído esta página edificante e gloriosa da história do proletariado francês. A burguesia da II República atravessava umha crise cuja conseqüênica foi a extensom do desemprego. Para o problema do desemprego só encontrou umha soluçom: promover a sublevaçom e a seguir reprimi-la. Paul-Luis oferece na sua Histoire du socialisme francais um quadro conciso destes acontecimentos.

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económica há de ser eficaz, concertada, previsora, e menos necessidade terá da repressom, até o dia em que umha inteligente gestom da produçom suprima, com a prosperidade, males sociais tais como a criminalidade, cujo contágio se esforça em diminuir por meio da coerçom... Roubará-se menos quando a fame nom exista; e menos ainda se roubará quando o bem-estar se tenha realizado.

Doravante –e ainda estamos longe da meta— a nossa conviçom é, contrariamente às aparências, que o Estado soviético infinitamente menos do que outros. Pense-se na situaçom económica actual da Rússia, nom se veria obrigado um governo burguês a governar pola força infinitamente mais do que o governo soviético? O camponês está amiúde descontente. Os impostos semelham-lhe algo de mais, os artigos industriais muito caros. O seu descontentamento costuma traduzir-se em actos que amiúde poderiam qualificar-se de contrarrevolucionários. No entanto, os camponeses no seu conjunto dérom aos soviets a vitória militar –o Exército Vermelho estava composto principalmente por camponeses— e continuam a apoiá-los. Um governo capitalista que restituísse a terra aos latifundiários tera que conter e nom poderia fazê-lo mais que por meio de umha repressom contínua e despiadada— a cólera de cem milhons de camponeses. Eis por quê é que caírom todos os governos subordinados polas forças estrangeiras.

Na sua actual penúria, após anos de guerra imperialista, de guerra civil, de bloqueio, de carestia, cercada polos estados capitalistas, objecto de bloqueio financeiro, de intrigas diplomáticas, de preparativos bélicos, a Uniom Soviética, semelhante a um campo atrincheirado sitiado polo inimigo, ocupada aliás com as contradiçons internas, próprias de um período de transiçom tam difícil, tem ainda muita necessidade da repressom. Seria enganar-se muito julgar concluída a etapa das tentativas contrarrevolucionárias. Mas, quaisquer que forem as dificuldades actuais da Revoluçom Russa e as suas formas de resolvê-las, as características essenciais do Estado soviético nom se modificarám e, por conseqüência, também nom o fará o papel que a repressom tem jogado.

VII. A violência económica: por fameEsquece-se amiúde esta outra verdade: que

a sociedade soviética, no seu oitavo ano de vida, nom pode ser comparada em justiça à sociedade burguesa, que goza de umha tradiçom de autoridade

de vários séculos e de mais de um século de experiências políticas. Muito antes de 1789, o terceiro estado era, contra a veemente afirmaçom de Sieyes, umha força respeitada dentro do Estado. Os primeiros cinqüenta anos de desenvolvimento económico da burguesia no deixárom de ser anos de atroz ditadura de classe. Os falsificadores oficiais da história esquecem voluntariamente a verdade sobre as muitas generaçons de trabalhadores que havitavam cortelhos, trabalhavam da alva ao pôr do sol, desconheciam toda liberade democrática e entregavam à fábrica devoradora até os fracos músculos das crianças de oito anos... Sobre os ossos, a carne, o sangue e o suor destas geraçons sacrificadas foi que se erigiu toda a civilizaçom moderna. A ciência burguesa ignora-os. Mai umha vez, é-nos forçoso remeter o leitor para O Capital de Karl Marx. No capítulo XXIII achará páginas terríveis sobre a Inglaterra de 1846 a 1866. Nom resistimos a tentaçom de citar algumhas linhas. Um médico, encarregado de um inquérito oficial, verifica que “mesmo entre os operários da cidade, o trabalho que de ordinário unicamente lhes permite morrer de fame, prolonga-se para além de qualquer media... Nom há direito a dizer que o trabalho dá para comer a um homem”. Um outro pesquisador constata que em Londres há “vinte grandes bairros povoados cada um por à roda de 10.000 indivíduos; a sua miséria ultrapassa todo o que se pode ver em Inglaterra”. “Newcastle –di o doutor Hunter— oferece o exemplo de como umha das melhores castas de compatriotas caiu numha degeneraçom quase selvagem por obra de circunstáncias puramente exteriores: a habitaçom e a rua”. O Standard, diário conservador inglês, escreve a 5 de Abril de 1866, a respeito dos desocupados de Londres: “lembremo-nos do que padece esta populaçom. Morre à fame. Som 40.000. E isto na nossa época, num dos bairros desta maravilhosa metrópole, junto da maior acumulaçom de riquezas vista no mundo”. Em 1846, a fame fijo perecer na Irlanda mais de um milhom de individuos... Isto nom atingiu em absoluto a riqueza do país (Marx).

Para transformar em guinés constantes e soantes com a efígie da rainha Vitória, o sangue e o suor deste povo miserável; para que os inúteis condenados polo desenvolvimento do maquinismo e da crises a morrer de miséria consintam em morrer sem se rebelarem como bestas encadenadas, que formidável opressom nom seria necessária? Agora percebemos com nitidez um dos principais meios da violência capitalista: a fame. Há meio século que se

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pode falar de terror económico. O operário ameaçado polo desemprego, ameaçado de morrer à fame, trabalha entre a chusma industrial, trabalha como um bruto para nom morrer à fame em quinze anos. (Nom possuímos dados sobre a duraçom média da vida desses assalariados; deploramo-lo; essas cifras resumiram todo.) Nos nossos dias é igual: à violência económica por fame, contodo o mais importante, em definitivo a única eficaz, a repressom nom fai mais do que proporcionar-lhe o complemento exigido pola “defesa da ordem” capitalista contra determinado tipo de vítimas particularmente inquietantes (os malfeitores) e contra os revolucionários.

VIII. A eliminaçom. Erros e abusos. Controlo

Repitamo-lo: o terror é terrível. Na guerra civil, todo combatente –e esta guerra nom conhece neutrais— arrisca a vida. Instruída na escola dos reaccionários, a classe operária, à qual os complots mantenhem ameaçada de assassinato, deve golpear ela própria os seus inimigos mortais. A prisom nom intimida ninguém; o motim arranca facilmente as portas aferrolhadas que também abrem a corrupçom ou a engenhosidade dos conspiradores.

No paroxismo da luita, umha outra necessidade contribui para estender os estragos do terror. Desde os exércitos antigos, a eliminaçom é o meio clássico de manter disciplinadas as tropas. Foi praticada durante a Grande Guerra, nomeadamente na frente francesa depois dos amotinamentos de Abril de 1917. Nom se deve esquecer. Consiste em passar polas armas um de entre cada dez homens, sem considerar a inocência ou a culpabilidade individual. Por certo, fagamos umha observaçom de ordem histórica. Em 1871, os da Comuna fôrom mais do que dizimados polos versalheses. Já citamos o cálculo médio do número de fusilados por Gallifet: 20.000; a Comuna contou com 160.000 combatentes. A burguesia francesa, a mais esclarecida do mundo, a mesma de Taine e de Renan, ensina-nos até com cifras a temível lógica da guerra de classes. Umha classe nom se declara vencida, umha classe nom é vencida enquanto nom se lhe impingir umha elevada quantidade de baixas. Suponhamos –e a Rússia conheceu situaçons semelhantes durante os anos heróicos da revoluçom— umha cidade de 100.000 almas, divididas em 70.000 proletários (simplificando, proletários e elementos próximos do proletariado) e 30.000 pessoas pertencentes à burguesia e às classes médias, costumadas a julgarem-se como pertencentes à classe dirigente, instruída, possuidora de meios de produçom Nom

torna evidente, sobretodo se a luita se circunscreve à cidade, que a resistência mais ou menos organizada desta força contrarrevolucionária nom será derrotada enquanto nom tiver sofrido perdas bastantes consideráveis? Nom resulta menos perigoso para a revoluçom golpear forte e nom brandamente?

A burguesia prodigou advertências sangrentas aos explorados. Acontece que agora os explorados se reviram contra ela. A história adverte-o: quantos mais sofrimentos e misérias a burguesia tiver ocasionado às classes trabalhadoras, com tanto maior afinco resistirá o dia do acerto de contas e mais caro há de pagá-lo.

Igual que o Tribunal Revolucionário, da Revoluçom Francesa, só que com procedimentos em geral um bocado menos sumários, a Cheka da Revoluçom Russa julgava irrecusável e implacavelmente os seus inimigos de classe; igual que o Tribunal Revolucionário, julgava menos por cargos e acusaçons concretas do que pola origem social, pola atitude política, pola mentalidade, pola capacidade de danar o inimigo. Tratava-se mais bem de golpear umha classe através dos seus homens do que de sopesar factos concretos. A justiça de classe nom se detém no exame de casos individuais, mas nos períodos de calamaria.

Os erros, os abusos, os excessos parecem-nos funestos, nomeadamente frente aos sectores sociais que o proletariado deve tratar de agrupar: campesinato médio, camadas inferiores das classes médias, intelectuais sem fortuna; de igual maneira, a respeito dos dissidentes da revoluçom, revolucionários sinceros aos quais as ideologias demasiado afastadas da compreensom das realidades da revoluçom fam adoptar atitudes objectivamente contrarrevolucionárias. Lembro aqueles anarquistas que, quando a frota vermelha defendia desesperadamente Kronstadt e Petrogrado (1920) contra umha esquadra inglesa, continuavam imperturvavelmente a bordo de alguns buques a sua boa e velha propaganda antimilitarista! Penso também nos socialistas-revolucionários de esquerda que, em 1918, se empenhavam em meter a República dos Sovietes, desprovida de exército e de todo o tipo de recursos, numha nova guerra contra o imperialismo alemám, ainda rigoroso. Entre estes “revolucionários” equivocados e os homens do antigo regime, a repressom revolucionária esforça-se e deverá esforçar-se sempre por distinguir; mas nom sempre é possível consegui-lo.

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Em qualquer batalha social, determinada percentagem de excessos, de abusos, de erros, nom poderám ser evitados. O dever do partido e de todos os revolucionários é trabalhar por diminui-los. A sua importáncia, em definitivo, nom dependente mais que dos seguintes factores:

1) a proporçom das forças enfrentadas e o grau de encarniçamento da luita;

2) o grau de organizaçom da acçom; a eficácia do controlo do partido do proletariado sobre a acçom;

3) o grau de cultura das massas proletárias e camponesas.

Umha certa crueladade devém das circunstáncias materiais da luita: cheias, as prisons de umha revoluçom proletária nom suportam, no que di respeito à higiene, a comparaçom com as “boas prisons” da burguesia... em tempos normais. Nas cidades sitiadas, onde reinam a fame e o tifo, nessas prisons as pessoas morrem mais do que fora. Quê fazer? Quando o cárcere está cheio de operários e camponeses, esta ociosa questom nom preocupa nem sequer os filantropos. Quando os communards prisioneiros no campo de Satory dormiam a céu aberto sobre a lama e as pedras, a tremer de frio nas noites geladas, abaixo da chuva torrencial –com proibiçom de erguer-se, ordem às sentinelas para dispararem sobre qualquer que se incorporasse, um grande filósofo, Taine, escrevia: “Esses miseráveis pugérom-se fora da humanidade...”

Ao dia seguinte de tomar o poder, o proletariado, solicitado por inúmeras tarefas, resolve, naturalmente, as mais importantes: avitualhamento, organizaçom urbana, defesa exterior e interior, inventário dos bens expropriados, embargo das riquezas. Consagra a isto as suas melhores forças. Para a repressom revolucionária nom resta –e é umha causa de erros e abusos— mais do que um pessoal subalterno sob a chefia de homens que devem procurar-se entre os mais firmes e puros (o que fijo a ditadura do proletariado na Rússia –Djerjinsky— e na Polónia –Otto Corvin). Os assuntos da defesa interior de umha revoluçom som os mais delicados, os mais difíceis, os mais dolorosos e às vezes os mais consternadores. Os melhores entre os revolucionários com elevada consciência, espírito escrupuloso e carácter firme devem dedicar-se a tal tarefa.

Por meio deles é que se exerce o controlo do partido. Este controlo, moral e político, permanente neste e os outros domínios, exprime ao mesmo

tempo a intervençom da elite mais consciente da classe operária, e a intervençom um tanto menos directa das massas populares sob o controlo efectivo de aqueles para os quais o partido está presente em todos os actos da sua vida. Também garante o espírito de classe da repressom. As possibilidades de erros e de abusos reduzirám-se na medida em que as forças de vanguarda do proletariado puderem agir nesse sector.

IX. Repressom e provocaçomNo decurso do nosso estudo sobre a Okhrana,

ocupamo-nos a fundo da provocaçom. Ela nom é um elemento necessário na técnica de toda polícia. A tarefa de um polícia é a de controlar, a de saber, a de prevenir. Nom a de provocar, cultivar ou suscitar. No Estado burguês, a provocaçom judiciária policíaca, quase que desconhecida nas épocas de estabilidade, toma umha importáncia crescente à medida que o regime esmorece, enfraquece, escorrega para o abismo. A actualidade basta para convencer-nos. Praticamente insignificante neste momento no movimento operário de França, após as crises revolucionárias de fins de 1923, umha importáncia menor da que já tivo na Rússia depois da revoluçom derrotada de 1905. O processo de Leipzig, chamado da “cheka alemá”, durante o qual se viu a polícia berlinesa montar, em casa de um dos defensores do socialista Kurt Rosenfeld, um roubo nocturno (Abril-Maio de 1925), revela na Segurança Geral do Reich intrigas muito semelhantes às da Okhrana. Noutro país, onde a reacçom se enfrenta desde há quase dous anos com umha revoluçom popular –Bulgária—, o mesmo fenómeno, mas mais acentuado ainda. Na Polónia, a provocaçom tornou-se na arma por excelência da reacçom contra o movimento operário. Limitemo-nos a estes exemplos.

A provocaçom policial é principalmente a arma –ou o mal— dos Regimes em descomposiçom. Consciente da sua impotência para prevenir ou para impedir, a sua polícia suscita iniciativas que reprime imediatamente. A provocaçom também é um facto espontáneo, elementar, resultante da desmoralizaçom de umha polícia encurralada, desbordada polos acontecimentos, que nom pode com umha tarefa infinitamente superior às suas forças e que tenta polo menos justificar a atençom e o favor dos seus patrons.

X. Quando é eficaz a repressomA Okhrana nom pudo impedir a queda da

autocracia.

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Victor Serge

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Mas a Cheka contribuiu poderosamente para impedir a derrocada do poder dos soviets.

A autocracia russa, mais do que ser derrubada, caiu por si própria. Bastou-lhe um empurrom. Aquele velho prédio carcomido, do qual a imensa maioria da populaçom desejava a queda, ruiu. O desenvolvimento económico da Rússia precisava de umha revoluçom, que podia contra isso a Segurança Geral? Era da sua conta remediar os conflitos de interesses confrontados, irreconciliáveis, decididos a todo para sair da situaçom que nom oferecia outra saída que a guerra de classes, conflito entre a burguesia industrial e financeira, os grandes latifundiários, a nobreza, os intelectuais, os desclassados, o proletariado e as massas camponesas? A sua acçom nom podia proporcionar ao antigo regime, ainda a condiçom de contar com inteligentes medidas de política geral, mais do que recursos limitados. Aquele cordom de polícias e de agentes provocadores tratava às cegas de conter a determinaçom da vaga contra o velho farelhom resquebrado, bambeante, que logo os enterraria abaixo do seu entulho. Que ironia!

A Cheka nom cumpriu funçons tam absurdas.

Um país divido em brancos e vermelhos, onde os vermelhos eram foçosamente a maioria, procura o inimigo, desarma-o, espanca-o. Nom é mais do que umha tina em maos da maioria contra a minoria, umha arma entre outras muitas, acessória depois de todo e que nom atinge grande importáncia mais do que em razom do perigo de que a revoluçom poda ser ferida na cabeça polos paus do inimigo. Conta-se que para o dia seguinte a ter tomado o poder, Lenine passou umha noite em claro a redigir o decreto de expropriaçom da terra. “Com tal de termos tempo para promulgá-lo”, dizia. “A ver quem é que entom tenta derrogá-lo”. A expropriaçom dos domínios senhoriais proporcionou instantaneamente aos bolcheviques a adesom de cem milhons de camponeses.

A repressom é eficaz quando complementa o efeito de medidas eficazes de política geral. Antes da Revoluçom de Outubro, quando o gabinete de Kerensky rejeita satisfazer as reivindicaçons dos campones, a detençom dos agitadores revolucionários nom fazia mais do que aumentar a irritaçom e a desesperaçom nas aldeias. Após o deslocamento das forças sociais operado nos campos pola expropriaçom dos domínios, o interesse

dos camponeses leva-os a defenderem o poder dos soviets; o arresto dos agitadores socialistas-revolucionários ou monárquicos, decididos uns a explorar nos campos a sua passada popularidade e outros a especular com o espírito religioso, suprimiu umha fonte de confusons.

A repressom é umha arma eficaz em maos de umha classe enérgica, consciente do que quer e que serve os interesses da imensa maioria. Em maos de umha aristocracia degenerada, cujos privilégios constituem um obstáculo para o desenvolvimento económico da sociedade, é historicamente ineficaz. Nom o dissimulemos mais: a umha burguesia forte nos períodos decisivos, pode emprestar quase os mesmos serviços que ao proletariado durante a guerra civil.

A repressom é eficaz quando vai no sentido do desenvolvimento histórico; é afinal, impotente quando vai contra o sentido do desenvolvimento histórico.

XI. Consciência do risco e consciência do fim

Em vinte ocasions, tanto durante o mais intenso da guerra civil quanto antes da tomada do poder, Lenine dedicou-se a restabelecer as teorias de Marx sobre a desapariçom do Estado e sobre a aboliçom final da violência na sociedade comunista. Umha das razons que invoca para preconizar a substituiçom da palavra social-democrata pola palavra comunista para a designaçom do partido bolchevique é que “o termo social-democrata é cientificamente inexacto. A democracia é umha das formas do Estado. Mas, como marxistas, somos contra todo Estado”32. Também lembramos um artigo que escreveu em tempos difíceis, por ocasiom do primeiro de Maio (em 1920, achamos). O punho de ferro do partido proletário ainda mantinha o comunismo de guerra. O terror vermelho só estava amodorrado. Por cima desse presente heróico e terrível, os homens da revoluçom mantinham os olhos calmamente fixos na meta. Fechado a todo utopismo, desdenhoso dos sonhos, mas dedicado inquebrantavelmente à consecuçom dos objectivos essenciais da revoluçom, Lenine, chefe indiscutido do primeiro Estado proletário, Lenine, animador de umha ditadura, evocava um futuro em que o trabalho e a repartiçom do produto estariam regidos polo princípio: “De cada quem segundo as suas capacidades, a cada quem segundo as suas necessidades”.

32 Veja-se Victor Serge, Lenine, 1917. Librairie du Travail, Paris, 1925.

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A diferença fundamental entre o Estado capitalista e o Estado proletário é esta: o Estado dos trabalhadores trabalha pola sua desapariçom. A diferença fundamental entre a violênica-repressom exercida pola ditadura do proletariado é que esta última constitui umha arma necessária da classe trabalhadora para a aboliçom de toda a violência.

Nom se debe esquecer nunca. A consciência dos fins supremos é também umha força.

Em fins do século anterior podia-se alimentar o grande sonho de umha transformaçom social idílica. Generosos espíritos dedicárom-se a ele, desdenhando ou deformando a ciência de Marx. Imaginavam a revoluçom social como a expropriaçom quase indolora de umha ínfima minoria de plutocratas. Por que o proletariado magnánimo, rompendo as velhas espadas e os fusis modernos, nom havia de perdoar os seus despossuídos exploradores da véspera? Os derradeiros ricos extinguiriam-se pacificamente, ociosos, rodeados de um burlom menosprezo. A expropriaçom dos tesouros acumulados polo capitalismo, unida à reorganizaçom racionial da produçom, proporcionaria à sociedade inteira, no seu momento, a segurança e a comodidade. Todas as ideologias operárias de anteguerra estavam mais ou menos penetradas por essas falsas ideias. O mito radical do progresso dominava-as. Entretanto, os capitalistas aperfeiçoavam a sua artilharia. Na II Internacional, umha presa de marxistas revolucionários desentranhavam sozinhos as grandes vertentes do desenvolvimento histórico. Em França, à volta do problema da violência proletária, alguns sindicalistas revolucionários viam claro.

Mas o capitalismo, noutra época iníquo e cruel sem dúvida, mas criador de riquezas, converteu-se, no apogeu da sua história, que começa em 2 de Agosto de 1914, no exterminador da sua própria civilizaçom, no exterminador dos seus povos... desenvolvido prodigiosamente durante um século de descobertas e de labor encarniçado, com a técnica científica em maos dos grandes burgueses, dos chefes de bancos e trusts, virou-se contra o homem. Todo o que servia para produzir, para estender o poder humano sobre a natureza, para enriquecer a vida, serviu para destruir e para mtar com um poderio repentinamente aumentado. Basta umha tarde de bombardeamento para destruir umha cidade, obra de séculos de cultura. Basta umha bala de 6 milímetros para paralisar totalmente o cérebro melhor organizado. Nom podemos ignorar que umha

nova conflagraçom imperialista poderia ferir de morte a civilizaçom europeia já bastante espancada. É razoável prever, em razom do progresso da “arte militar”, a despovoaçom de países inteiros por umha aviaçom provista de armas químicas, cujo enorme perigo denunciou em 1924 a Sociedade de Naçons –e nom será ela acusada de demagogia revolucionária— num documento oficial. Ainda nom acabárom de ser dispostos nos monumentos patrióticos o sangue e os ossos de milhons de mortos de 1914-18, quando esta ameaça paira novamente sobre a humanidade. Tendo presentes as duras realidades da revoluçom, é necessário lembrar estas cousas. Os sacrifícios impostos pola guerra civil, a implacável necessidade do terror, os rigores da repressom revolucionária, os erros inelutáveis e dolorosos que aparecem entom reduzidos às suas justas proporçons. Som males ínfimos se comparados com essas imensas calamidades. Se nom estivesse de mais, só o ossário de Verdum os justificaria largamente.

“A revoluçom ou a morte”. Esta frase de um combatente de Verdum continua a ser umha profunda verdade. Nas próximas horas terríveis da história, esse será o dilema. Terá chegado o momento para a classe operária cumprir com esta dura, embora saudável e salvadora tarefa: a revoluçom.

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BIBLIOTECA GALEGA DE MARXISMO-LENINISMO·Manifesto Comunista. Karl Marx e Friedrich Engels (2ª ediçom).·Que Fazer? seguido de O Estado e a Revoluçom. Vladímir Ilich Uliánov Lenine·O que todo revolucionário deve saber sobre a repressom. Victor Serge·O comunismo que aí vem. Francisco Martins Rodrigues·Socialismo e Independência. 17 textos de Lenine sobre os direitos nacionais. Vladímir Ilich Uliánov Lenine·10 anos de imprensa comunista galega. Selecçom de artigos do Abrente 19996-2006.·Diário da Bolivia. Ernesto Che Guevara ·O pensamento de Che Guevara. Michael Löwy

Colecçom INTERNACIONAL·A nova desorde internacional. Carlos Taibo·Misérias da globalizaçom capitalista. Carlos Taibo

Colecçom DOCUMENTOS E TEXTOS POLÍTICOS·Abrindo horizontes de revolta na Galiza, Resoluçons do I Congresso de Primeira Linha (MLN)·Pola Unidade da Esquerda Independentista, Resoluçons do II Congresso de Primeira Linha (MLN)·Esplendor, crise e reconstruçom da alternativa comunista. Justo de la Cueva (2ª ediçom).·As categorias marxistas e a definiçom da globalizaçom como fenómeno e forma actual do capitalismo. Iñaki Gil de San Vicente·Comunismo galego do século XXI, Resoluçons do III Congresso de Primeira Linha·Apreender e atrever-se a pensar bem. Receituário útil e acaido para nom pensarmos como tont@s. Iñaki Gil de San Vicente·O capitalismo histórico. Incerteza e criatividade. O declínio do império americano. Immanuel Wallerstein·Pequeno manual do guerilheiro urbano. Carlos Marighella·Capitalismo e emancipaçom nacional e social de género. Iñaki Gil de San Vicente ·Revoluçom Galega. Resoluçons do IV Congresso de Primeira Linha·Che Guevara, presente ou passado?. Relatórios das XI Jornadas Independentistas Galegas. VVAA·O Socialismo do século XXI a debate.Relatórios das XII Jornadas Independentistas Galegas. VVAA

Colecçom CONSTRUIRMOS GALIZA·Para umha Galiza independente. Ensaios, testemunhos e documentaçom histórica do independentismo galego. VVAA. Coordenador: Domingos Antom Garcia·Galiza e a diversidade lingüística no mundo. Subsídios para um diagnóstico actualizado da situaçom sociolingüística galega. Maurício Castro·A esquerda independentista galega (1977-1995). Noa Rios Bergantinhos·A Galiza do século XXI. Ensaios para a Revoluçom Galega. VVAA· 50 números de Abrente. Galiza em tinta vermelha 1996-2008. VVAA

Colecçom Literária CABEÇA DE ÉGUA·Dez por dez. Vários autores

Co-ediçons·Manual galego de língua e estilo. Maurício Castro Lopes, Beatriz Peres Bieites, Eduardo Sanches Maragoto·Os anos do silêncio. Francisco Martins Rodrigues·Anti-Dimitrov – 1935/1985 – meio século de derrotas da revolução. Francisco Martins RodriguesHistória de uma vida. Francisco Martins Rodrigues

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O QUE TODO REVOLUCIONÁRIO DEVE SABER SOBRE A REPRESSOM

Victor Serge

Título original: Ce que tout révolutionnaire soit savoir sur la répression (1925)

O presente trabalho é a síntese do escrito por Victor Serge, quem após a Revoluçom de Outubro entra nos arquivos da Okhrana, a polícia de Estado do czarismo. Eram os bons tempos da III Internacional, anteriores à sua burocratizaçom.

Longe de ser um documento histórico, das conclusons de Serge tiram-se nom poucas liçons para o presente. Em primeiro lugar, desmitifica o poder dos serviços de inteligência e polícias políticas. A Okhrana foi modelo de polícia de Estado para a sua época. Por exemplo, exportou as suas técnicas a nom poucos países. No entanto, na hora de confrontar-se com um movimento insurreccional deixou a nu a sua total impotência.Em segundo lugar, muitas vezes teme-se o que nom se conhece; conhecer os fundamentos de toda a acçom repressiva sistemática e a sua metodologia permite conhecer de quê é que devemos acautelar-nos, mas também conhecer as impossibilidades das forças reaccionárias. Um outro acerto importante de Serge é pôr o acento na sistematicidade da repressom e em explicar a sua lógica interna. Isto permite advertir aos/às recém iniciad@s sobre as atitudes conspirativas que em nada ajudam. Finalmente, achega singelas advertências que na sua essência continuam a ser válidas para @s militantes: os conselhos a respeito dos correios bem podem ser aplicados hoje nos seus fundamentos em relaçom com os correios electrónicos, bem como com todos os mais.

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