Literatura Africana - LETRAS
Transcript of Literatura Africana - LETRAS
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
1/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 1
CURSO: LICENCIATURA EM LETRAS HABILITAO EM LNGUAPORTUGUESA E SUAS LITERATURAS
MDULO: VI
DISCIPLINA: Literatura Africana de Lngua Portuguesa
PROFESSORA AUTORA: Dr. Helosa Helena Siqueira Correia
PORTO VELHO RO
FUNDAO UNIVERSIDADE FEDERAL DERONDNIA
PR-REITORIA DE GRADUAO
CENTRO DE EDUCAO A DISTNCIA E NOVAS
TECNOLOGIASUNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
2/83
2 Literatura Africana de Lngua Portuguesa
GOVERNO FEDERAL
Presidente da Repblica: Luiz Incio Lula da Silva
Ministro da Educao: Fernando Haddad
Secretrio de Ensino a Distncia: Carlos Eduardo Bielschowky
Coordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil: Celso Costa
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDNIA
Reitor: Jos Janurio de Oliveira Amaral
Vice-reitora: Maria Ivonete Barbosa Tamboril
Pr-reitora de Graduao: Nair Ferreira Gurgel do Amaral
Pr-reitor de Cultura, Extenso e Assuntos Estudantis: Ricardo Gilson da Costa
Silva.
Pr-reitora de Ps-Graduao e Pesquisa: Maria das Graas Nascimento Silva
Coordenao CEADT/ UNIR: Snia Ribeiro de Souza
Coordenao UAB-UNIR: Crystiany Maria Guilherme
Coordenador UAB-Adjunto: Francisco Paulo Duarte
Coordenao do Curso de LetrasUABUNIR: Iracema Gabler
Coordenao do Curso de PedagogiaUABUNIR: Carmem Tereza Velanga
Assessoria Pedaggica: Giovani Mendona Lunardi
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
3/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 3SUMRIO
Apresentao da Autora ..................................................................................... 4UNIDADE I .......................................................................................................... 9
Apresentao .................................................................................................. 9Literaturas em frica ....................................................................................... 9UNIDADE I .................................................................................................... 10Subunidade I ................................................................................................. 10Literatura Colonial ........................................................................................ 10
UNIDADE I .................................................................................................... 15Subunidade II ................................................................................................ 15Literaturas Africanas de Lngua Portuguesa ................................................. 15UNIDADE I .................................................................................................... 23Subunidade III ............................................................................................... 23Brasil- frica: O Dilogo ................................................................................ 23
UNIDADE II ....................................................................................................... 27Apresentao .................................................................................................... 27
Narrativas Africanas de Expresso Portuguesa ............................................ 27UNIDADE II ................................................................................................... 28Subunidade I ................................................................................................. 28Apresentao de MAYOMBE ........................................................................ 28UNIDADE II ................................................................................................... 41Subunidade II ................................................................................................ 41Apresentao da Obra TERRA SONMBULA .............................................. 41
UNIDADE III ...................................................................................................... 57Apresentao .................................................................................................... 57
Poesia Africana de Expresso Portuguesa ................................................... 57UNIDADE III .................................................................................................. 58Subunidade I ................................................................................................. 58CABO VERDE ............................................................................................... 58
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
4/83
4 Literatura Africana de Lngua Portuguesa
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
5/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 5
APRESENTAO DA AUTORA
Caros alunos!
um prazer encontr-los! Meu nome Helosa Helena Siqueira Correia,
doutora em Teoria e Histria Literria pela Unicamp SP; leciono as disciplinas
de Literatura Brasileira e Portuguesa no Curso de Letras da UNIR/Porto Velho.
Mas antes de qualquer coisa, sou uma leitora. Leio textos poticos e literrios,
textos filosficos, histricos e os textos da vida. Sou eu quem escrevo e
apresento a vocs este material sobre Literatura Africana de Lngua
Portuguesa. E, devo dizer, vou caminhar junto com vocs, pois meu momento
de aprendizagem ainda agora.
Helosa Helena
Apresentao do Componente Curricular
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
6/83
6 Literatura Africana de Lngua Portuguesa
O objetivo do curso de vocs form-los professores de lngua
portuguesa e de literatura brasileira e portuguesa. Nosso componente
curricular, Literatura Africana de Lngua Portuguesa, nos coloca em contato
com uma literatura de outro continente, que, frequentemente, vem dialogando
com a nossa literatura, o que, ao mesmo tempo, nos permite reconhecer
elemento comum s duas literaturas: a africanidade. A EMENTA da disciplina
a seguinte:
A literatura africana de lngua portuguesa e a crtica colonizao. Literatura e
engajamento: a luta anti-colonial. Temas da literatura engajada. A literatura
africana de lngua portuguesa no perodo ps-colonial. Principais autores daliteratura de Angola, Moambique, Cabo Verde, So Tom e Prncipe.
Peo que mantenham o esprito aberto a esse novo continente literrio,
que, aos poucos, nos ser conhecido e familiar. A literatura africana de lngua
portuguesa, que melhor chamar de literaturas africanas de lngua portuguesa,
dado sua existncia plural, uma literatura com rosto de histria, luta e
libertao. Ao longo do material, vocs percebero que indico vrias leituras,solicito que faam atividades e que se auto-avaliem. Lembrem-se que essa a
contra-parte imprescindvel para a sua formao. Nosso tempo e espao
estreito demais para dar conta de literaturas de tantos pases. Por isso,
tambm, vocs percebero que fiz escolhas. Privilegio as literaturas de Angola
e Moambique, bem como determinados textos.
Nossa perspectiva histrica e intertextual. Partiremos do momento
histrico da literatura colonial e em seguida trilharemos o surgimento dasliteraturas engajadas na luta pela libertao. Leremos juntos alguns romances
e poemas refletindo, analisando e aprendendo com eles.
A bibliografia complementar sobre o assunto, como tambm vrios stios
que a rede oferece, aos poucos sero indicados, para que possamos pesquisar
e conhecer mais. Segue abaixo a bibliografia bsica utilizada:
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
7/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 7
ANDRADE, C. Literatura Angolana (Opinies).Lisboa: Edies 70, (s.d).
CHABAL, P. Vozes Moambicanas. Lisboa: Vega, (s.d) (Col. PalavraAfricana).
CHAVES, R. A formao do romance angolano.So Paulo: Faculdade deFilosofia, Letras e Cincias HumanasUSP, 1999. (Col. Via Atlntica, n.1)
COUTO, M. Terra Sonmbula.Rio de Janeiro/So Paulo: Editora Record,(s.d.). (Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa).
ERVEDOSA, C. Roteiro da Literatura Angolana. Lisboa: Edies 70, (s.d.).
FERREIRA, M. Literaturas Africanas de Expresso Portuguesa. So Paulo:tica, 1987.
_____. 50 Poetas Africanos. Lisboa: Pltano Editora, (s.d.).
LARANJEIRA, P. Literatura calibanesca. Porto: Edies Afrontamento, 1985.
MARGARIDO, A. Estudos sobre Literaturas das Naes Africanas deLngua Portuguesa. Lisboa: Ed. A Regra do Jogo, 1980.
MOLLAT, M. Los exploradores del siglo XIII al XVI:primeras miradas sobrenuevos mundos. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1990.
PEPETELA. Mayombe.3.ed. Cuba: Unio dos Escritores Angolanos, 1985.
PIRES, L. Literatura Africana de Expresso Portuguesa.Lisboa:Universidade Aberta, 1991.
SANTILLI, M. A. Paralelas e tangentes: entre literaturas de lngua portuguesa.So Paulo: Arte & Cincia, 2003.
TENREIRO, F. J.; ANDRADE, M. P. de. Poesia Negra de ExpressoPortuguesa. Lisboa: ALAC, (s.d.).
TRIGO, S. Introduo Literatura Angolana de Expresso Portuguesa.Porto: Braslia Editora, 1977.
_____. Ensaios de literatura comparada (Afro-Lusa Brasileira).Lisboa:Vega, 1981.
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
8/83
8 Literatura Africana de Lngua Portuguesa
O material didtico est estruturado em trs unidades, e cada unidade
subdividida em unidades menores, de acordo com a tabela abaixo:
LITERATURA AFRICANA DE LINGUA PORTUGUESA
UNIDADE ILiteraturas em frica
UNIDADE II
Narrativas africanasde expressoportuguesa
UNIDADE IIIPoesia africana de expresso
portuguesa
Literatura
colonial
Literaturas
africanas
de lngua
portuguesa
frica
eBrasil:
o
dilogo
Pepetela Mia Couto
Cabo
Verde eSo
Tom e
Prncipe
Angola,Moambique e
Guin-Bissau
As expectativas de aprendizado nas unidades acima so:
1) Em Literaturas em frica, desenharemos o perfil da literatura que seproduzia em frica, sob os auspcios da razo do colonizador, e da literatura
que rompe com o domnio cultural e os modelos estticos da metrpole.
Tambm indicaremos possveis relaes entre literatura brasileira e literaturas
africanas.
2) Em Narrativa, faremos leitura de dois romances, de Pepetela e Mia Couto
produzidos no momento posterior independncia de Angola e Moambique.
Tais romances so representativos de um conjunto importante de elementos
configuradores da literatura africana de lngua portuguesa.
3) Em Poesia, o aprendizado se dar por meio da leitura de poemas
engajados nas lutas pela libertao nacional e poemas produzidos aps a data
de independncia dos pases africanos.
Em cada unidade, o aluno leitor encontrar propostas de atividades,
indicaes de leituras para pesquisa e textos disponibilizados no ambientevirtual.
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
9/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 9
UNIDADE I
Apresentao
Literaturas em frica
Pensar nas literaturas produzidas nos pases africanos de lngua
portuguesa implica saber que devemos pensar, a principio, em duas grandes
vertentes: literatura colonial e literaturas africanas de lngua portuguesa.
Para nos aproximarmos do terreno das literaturas africanas de lngua
portuguesa precisamos, primeiramente, passar pelo momento anterior, da
denominada literatura colonial, situada no sculo XIX e encontrada ainda nas
primeiras dcadas do sculo XX. Em seguida, sim, ser a vez de demarcar omomento histrico comumente aceito como incio da produo, propriamente
dita, das literaturas africanas de lngua portuguesa. Trata-se da dcada de 40
do sculo XX.
Antes que a literatura em questo seja tratada em seus pormenores,
cabe lembrar que as literaturas africanas de lngua portuguesa s podem ser
abordadas em relao ao processo de colonizao, isto quer dizer que sua
existncia torna-se possvel e necessria dado o fato da descoberta da frica
pelos portugueses e o processo de dominao que, ento, se inicia.
As subunidades I e II vo demonstrar as diferenas entre essas duas
vertentes, e a subunidade III nos far lembrar que h uma importante troca de
vozes entre frica e Brasil. Ao final da subunidade II e III, alunos, vocs
encontraro a proposta de uma atividade.
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
10/83
10 Literatura Africana de Lngua Portuguesa
UNIDADE I
Subunidade I
Literatura Colonial
No perodo compreendido entre a segunda metade do sculo XIX e a
dcada de 40 do sculo XX, ser possvel encontrar, j em terras africanas,
determinado tipo de literatura, aquela que ficou conhecida como literatura
colonial e que precede o nosso objeto de estudo. Refiro-me a certa literatura
solidria ao colonialismo. Ela exalta a figura do branco europeu conquistador e
sua cultura, tomada como algo superior. Para compreender isso basta ler os
versos de Caetano Costa Alegre citados por Ferreira (1987, p.39):
A minha cor negra,Indica luto e pena;s luz, que nos alegra, negra a minha raa,A tua raa branca, [..]
Todo eu sou um defeito.
Trata-se de uma produo que assume a condio inferior do colonizado
e no se compromete com os anseios de libertao das colnias. Passa ao
largo da questo social, econmica e cultural que assola os pases
colonizados: a dependncia e subjugao impostas por Portugal. Sobre a
figurao do branco na literatura colonial, vamos ler juntos a observao de
Manuel Ferreira:
O branco elevado categoria de heri mtico, de desbravadordas terras inspitas, o portador de uma cultura superior. Ele ,
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
11/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 11no texto literrio e no pensamento de quem o redige eorganiza, o habitante privilegiado e soberano, o prolongamentoda ptria e o mtico semeador de utopias. (FERREIRA, 1987, p.11).
Podemos perceber que essa literatura aquela que se faz sob os
auspcios da razo e dos valores do invasor, ou colonizador. Os nomes que se
destacam: Henrique Galvo, Hiplito Raposo, Antnio Gonalves Videira, Joo
Teixeira das Neves, Brito Camacho e Joo de Lemos, entre outros.
Imediatamente anterior s dcadas de 40, 50 e 60, intensas no que diz respeito
ao combate poltico-militar, pode-se encontrar tambm Daniel Filipe e Reinaldo
Ferreira.
A literatura colonial, ainda que apresente temticas africanas, est ligada
ao modo de ser ocidental. Por vezes, consegue se afastar da literatura
metropolitana, mas apenas de modo superficial; nesse sentido literatura
africana porque produzida em frica, mas no revela africanidade. Revela
antes imitao de modelos potico-literrios europeus, exotismo para
exportao (cujo destino era os leitores metropolitanos), presena da cor local
e africanidade estereotipada.
Agora vamos tentar compreender o que j foi anunciado anteriormente,
que a literatura africana de lngua portuguesa deve colonizao o seu
surgimento. Voltemos no tempo, retornemos ao sculo XV.
Nesse momento histrico a Europa ocidental estende seus domnios de
modo extremamente significativo, estamos no sculo das grandes descobertas.
Imbudos do eurocentrismo narcsico, pretensos herosmo e sentimento de
conquista, os grandes viajantes, carregadores do poder das metrpoles,
aportam em terras desconhecidas, povoadas por homens e culturas tambm
desconhecidos. Assim, os portugueses colocaram os ps em terras africanas
em meados do sculo XV e antes que o sculo findasse alcanaram o Cabo daBoa Esperana e a costa oriental do continente africano. O to sonhado
Imprio Portugus estendia fronteiras e poder para alm dos mares. Desse
modo, alunos, vamos, a partir desse instante, pensar o encontro entre
portugueses e africanos, como o encontro entre o eu e o outro.
O eu em questo o eu-portugus, cristo, mercantil, que se quer
representante da civilizao, da evoluo moral, possuidor de conhecimentos
tcnicos e subjugador dos mares, um eu-ocidental, equilibrado por umaconvivncia com elementos culturais e seres reconhecidos como semelhantes.
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
12/83
12 Literatura Africana de Lngua PortuguesaEu-europeu, eu-cartgrafo de um mapa, imediatamente anterior ao do sculo
XV, que o colocava como centro do mundo criado por Deus.
Quem no lhe semelhante, apenas pode ser antpoda. Quem no vive
de modo similar tomado, por esse eu narcsico, como feio, inferior, brbaro e
selvagem. O outro, para o eu ocidental, o que deve ser batizado, salvo,
controlado e dominado fsica e culturalmente. O outro o diferente que deve
ser mantido distncia, dado sua vida se desenvolver em um pressuposto
padro inculto e atrasado.
O navegante Zurara assim se referia aos africanos: Ainda que de pele
negra, tm uma alma como a nossa (MOLLAT, 1990, p.186, traduo nossa).
O que s faz transparecer que, de acordo com a mentalidade do navegante, se
os negros tm alma, podem ser salvos, ainda que possuam pele negra. O
enunciador da observao -o colonizador- parece supor a si mesmo algum
superior e bondoso, com preocupaes crists, elevadas e justas. Da mesma
bondade, no demais dizer, que impulsiona o saque cultural e econmico, o
flagelo social e a morte das populaes nativas.
Os portugueses descobridores de frica encontram Estados Africanos
com monarquias constitudas por conselho popular que abarcava
representantes de todas as camadas sociais; nesse sentido, pode-se dizer que
a poltica era equivalente ordem social e moral das comunidades. Por outro
lado, do ponto de vista tcnico os territrios africanos eram habitados por
inmeras etnias, cuja vida se mantinha fundada na tradio oral e
memorialstica, e possuam variadas lnguas, na maioria, sem sistemas de
escrita.
Aquele decisivo encontro entre o eu e o outro de que falvamos no
exatamente um encontro. Antes, chama-se invaso, agresso, explorao,
dominao e humilhao. A ocupao sistemtica da frica pelos povosocidentais, no sculo XIX, provoca a destruio das antigas instituies
polticas dos povos africanos, bem como a do seu ser moral e intelectual dos
africanos. Foram necessrios, praticamente, cinco sculos, desde o fato da
conquista, para que a luta pela libertao e independncia atingisse xito. As
Literaturas africanas, no coloniais, combativas no sentido de construo das
nacionalidades, caminham lado a lado com a luta pela libertao.
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
13/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 13
Atentemos para alguns dados histricos importantes:
Angola
Independncia: 11.11.1975Capital: LuandaLnguas: portugus (oficial) e banto.Populao: 10.366.031 (2004)Moeda: Kwanza
Cabo Verde
Independncia: 05.07.1975Capital: PraiaLnguas: portugus (oficial) e crioulos.Populao: 405.163 (2004)Moeda: Escudo cabo-verdiano
Guin-Bissau
Independncia: 24.11.1973 (declarada) e 10.09.1974 (reconhecida)Capital: BissauLnguas: Portugus (oficial), Crioulo, Fula e Mandinka.Populao: 1.315.822 (2004)Moeda: Franco CFA
Moambique
Independncia: 25.06.1975
Capital: MaputoLnguas: portugus (oficial) e banto (maioria da populao).Populao: 19.576.783 (2004)Moeda: Metical
So Tom e Prncipe
Independncia: 12.06.1975Capital: So TomLnguas: portugus (oficial) e dialeto crioulo (maioria da populao).
Populao: 165.034 (2004)Moeda: Dobra
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
14/83
14 Literatura Africana de Lngua Portuguesa
Para vocs saberem mais, consultem:
FERREIRA, M. Literaturas Africanas de Expresso Portuguesa.So Paulo:tica, 1987.
LARANJEIRA, P. Literatura calibanesca.Porto: Edies Afrontamento, 1985.
MARGARIDO, A. Estudos sobre Literaturas das Naes Africanas deLngua Portuguesa. Lisboa: Ed. A Regra do Jogo, 1980.
MOLLAT, M. Los exploradores del siglo XIII al XVI:primeras miradas sobre
nuevos mundos. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1990.PIRES, L. Literatura Africana de Expresso Portuguesa.Lisboa:Universidade Aberta, 1991.
TRIGO, S. Ensaios de literatura comparada (Afro-Lusa Brasileira). Lisboa:Vega, 1981.
Site Memria de frica: http://memoria-africa.ua.pt/
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
15/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 15
UNIDADE I
Subunidade II
Literaturas Africanas de Lngua Portuguesa
De incio, preciso que nos lembremos que frica uma unidade
geogrfica e continental, no , de modo algum, uma unidade cultural, poltica
e econmica. E que a literatura africana herdeira da literatura ocidental,
portuguesa principalmente, e da literatura africana oral. Dessas afirmaes
derivam certas implicaes: que coerente tratar a literatura africana na sua
pluralidade: literaturas africanas; que elas so filhas do processo colonizador -
demonstra-o o fato de serem escritas em lngua portuguesa, a lngua da
metrpole - e so frteis na carga cultural e lingustica africana e portuguesa
que suportam. Sua criao no prescinde da sabedoria da tradio oral e das
lnguas africanas, e nem do conhecimento da lngua portuguesa e da grande
cultura.
E por que no perguntar novamente sobre a literatura colonial: qual a
diferena entre as literaturas africanas de lngua portuguesa e a literatura
colonial, tambm produzida em lngua portuguesa?Como foi tratado anteriormente, a literatura colonial imita padres
esttico- literrios e lingusticos portugueses e seu vetor valorativo exalta a
cultura do branco dominador e seus poderes civilizatrios. J as denominadas
literaturas africanas de lngua portuguesa, reconhecveis de modo mais
preciso a partir da dcada de 40 do sculo XX, incorporam a lngua do
colonizador e da cultura dominadora, mas valorizam, em si mesmas, sua fora
de transgresso dos modelos potico-literrios e lingusticos europeus, e seusentido combativo, de resistncia, luta e construo da liberdade, da justia e
da independncia.
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
16/83
16 Literatura Africana de Lngua PortuguesaEssas literaturas, muitas vezes, mesclam lngua portuguesa e lnguas
africanas, manifestando, com o bilinguismo, a cultura complexa e hbrida que
fruto do contato de dois mundos e a inteno de dificultar a leitura pelos no-
africanos. So literaturas portadoras de ideologia e manuseadoras dos poderes
polticos que h nas lnguas. Pode-se afirmar que tais literaturas trabalham na
contra- escrita. Os escritores no abrem mo da elaborao complexa, muitas
vezes enigmtica, para quem no se aventura a conhecer as culturas africanas
de bem perto.
Atentemos, a seguir, seguinte observao da Laranjeira: Na riqueza
elitista, que toma, por vezes, o carter de simbologia hermtica, a escrita no
chega a descrever, a apontar, a profetizar, a contar, optando pela via da contra-
escrita, do des-apontamento, do des-encont(r)o. (LARANJEIRA, 1985, p. 13).
Dos leitores exigida uma leitura que percorra caminhos tecidos de modo
cruzado, leitura de decifrao, e esprito inquieto o suficiente para aceitar o
convite.
A no facilitao do texto para leitores metropolitanos marca a atitude do
outro no processo civilizatrio. As literaturas africanas vo, lentamente,
construindo seu eu, ao mesmo passo que historicamente, organizam-se,
intensificam-se e praticam-se as lutas pelas identidades nacionais e
independncias polticas.
O pargrafo acima pode dar a impresso de que a constituio das
literaturas africanas e a constituio das naes independentes digam respeito
a processos paralelos. Ressaltamos que no so apenas paralelos, mas
convergentes e tangentes. As literaturas africanas e a luta pela emancipao
identificam-se. H ainda mais: as literaturas africanas de lngua portuguesa
encarnam a voz do outro no processo civilizatrio. As literaturas articulam as
palavras dos colonizados, unidos na luta pela vida digna. Texto literrio, textosocial e texto poltico se harmonizam, e Laranjeira, a esse respeito, pode
auxiliar nossa compreenso:
A literatura africana de lngua portuguesa surge com anecessidade de cumprir dois desejos solidrios: a expresso ea liberdade, impraticveis no quadro do sistema colonial, queassenta na usurpao da terra e do poder, na proibio daexpresso e no corte das liberdades sociais e polticas. A
administrao colonial penetra em profundidade na carne dasestruturas tribais e provoca a derrocada do processo social epoltico autctone, embora sem conseguir destruir a heranacultural, as lnguas locais e a capacidade de produo textual.
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
17/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 17Dos sectores alfabetizados da populao, em contatopermanente com a cultura e as idias da Europa e do resto domundo, que se iro destacar os escritores, por sua veztornados dirigente polticos, perante a coincidncia de seremsimultaneamente os mais ilustrados e com melhores hiptesesde praticarem um trabalho poltico. Essas as razes pelasquais a escrita africana de lngua portuguesa sempre
atravessada no seu discurso pelo texto social e pelo textopoltico. O erotismo da escrita sempre marcado pelo conflitosocial, assim sempre sancionado pelo objetivo histrico.(LARANJEIRA, 1985, p.125)
Percebemos, pela leitura da citao acima, que as literaturas africanas
de lngua portuguesa so literaturas engajadas, ou ainda, so literaturas
constitutivas da histria e da sociedade. Estamos frente a frente com um tipo
de texto literrio que permite a abordagem interdisciplinar entre literatura,
histria e cincias sociais. Estamos diante de um tipo de texto que revelamotivos, aspectos, e anseios histricos dos povos, que demonstra as sutilezas
e as brutalidades que tramam as relaes sociais e que reinventa a literatura
na medida em que transgride cnones europeus, modelos estticos e pactos
de leitura baseados na ideologia do colonizador.
A tarefa de escrever a si mesmo e ao futuro -poltica e culturalmente- a
partir da experincia do passado, experincia devastadora de ter sido o outro
no processo de colonizao, a partir da trgica situao de violncia,usurpao, dissoluo e morte de si mesmo, de sua identidade, ao mesmo
tempo que possuidor de uma cultura nova, fruto da colonizao, , no caso
africano, tarefa de guerreiros, de escritores, de poetas, de jornalistas e de
intelectuais. As literaturas, nesse sentido, nunca so apenas literaturas, esto
semeadas de anseios reais, histricos, sociais e polticos alimentados pelo
sangue e pela revolta. Os atores desse cenrio conhecem bem o papel do
outro, sabem-se portadores de uma cultura que j resultado do encontrocolonizador- colonizado e das habilidades de construo do eu.
Tratam-se de atores que assumem a inscrio de sua produo literria
no terreno da ptria e da nao, fortalecendo-o a onde esto suas razes- suas
razes de ser. E fortalecida nas razes, a produo literria frtil em
sementes de futuro. O estudioso TRIGO chamado a dialogar neste momento.
Refletindo sobre a relao de alteridade presente nas literaturas africanas,
Trigo retoma Derrida e em seguida explica:
Em suma, toda a escrita literria implica o desaparecimento doeu para que o outro possa emergir. As literaturas africanas
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
18/83
18 Literatura Africana de Lngua Portuguesano fogem a esta regra desde que no se olvide que o eu quedesaparece o ocidentalizado, no pensamento e na ao, frutoduma aculturao colonial inevitvel e o outro que renasce, ,afinal, o africano espera do seu momento de acesso voz, palavra libertadora. (TRIGO, 1981, p.68).
O poema abaixo, de Antonio Jacinto, demonstra que o poeta assume a
presena da alteridade em seu prprio ser: branco e negro, ao mesmo tempo
que portador da cultura do colonizador e da cultura do colonizado:
Mas o meu poema no fatalista,o meu poema um poema que j quere j sabeo meu poema sou eu brancomontado em mimpreto
a cavalgar pela vida
Trata-se de um poema que j quer e j sabe. Conhece a alteridade
que produz a escrita africana de lngua portuguesa. Dupla alteridade: EU-
COLONIZADOR X OUTRO-COLONIZADO / EU-BRANCO X OUTRO-NEGRO.
O prximo poema que transcrevemos, revela a conscincia do lugar do
outro no processo de colonizao, e tambm a conscincia da prpria fora
transformadora que subjaz nesse outro. O poema de Jos Craveirinha:
Grito negro
Eu sou carvo!E tu arrancas-me brutalmente do choE faz-me tua mina, patro.
Eu sou carvo!E tu acendes-me, patro, para te servir eternamente comofora matriz
Mas eternamente no, patro.
Eu sou carvoTenho que arder na exploraoArder at as cinzas da maldioArder vivo como alcatro, meu irmo at no ser mais atua mina, patro
Eu sou carvoTenho que arderQueimar tudo com o fogo da minha combustoSim!Eu serei o teu carvo, patro!
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
19/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 19Dificilmente nossa leitura no se sensibilizar como o eu lrico. O leitor
extrai da metfora do carvo a mensagem poltica, o grito de liberdade, a
certeza de vencer o poder colonizador.
As literaturas africanas de lngua portuguesa, como dissemos, so porta-
vozes da africanidade, fogem do exotismo e da cor local pintada para olhos
estrangeiros. Inscrevem-se na nao, mas fazem com conscincia do que h
para alm de suas fronteiras. Vamos ler o poema de Agostinho Neto, intitulado
Voz do sangue:
Palpitam-meOs sons do batuqueE os ritmos melanclicos do blue
negro esfarrapado do Harlen danarino de Chicago negro servidor da South
negro de frica
Negros de todo o mundo
Eu junto a vossa cantoa minha pobre vozos meus humildes ritmos.
Eu vos acompanhoPelas emaranhadas fricasdo nosso Rumo
Eu vos sintonegros de todo o mundoeu vivo a vossa Dormeus irmos
A africanidade, nesse caso, revela-se transportada para outros
continentes, o que s faz multiplicar a questo. Ser negro implica sofrimento
em territrio africano e em territrios outros, que receberam africanos. A
irmandade, aludida pelo poeta, apoia-se nas fricas do destino comum, e na
identificao pela dor.
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
20/83
20 Literatura Africana de Lngua Portuguesa
PROPOSTA DE ATIVIDADE
Nesse instante, tocamos em um ponto que merece exerccio de
questionamento. Trata-se de perguntar a respeito das possibilidades de relao
entre literatura e realidade histrico-social. Releia o texto base da
SUBUNIDADE I e da SUBUNIDADE II e reflita a respeito das seguintes
questes:
1- Ser que podemos afirmar, sem sombra de dvida, que a literatura
retrata a sociedade e o tempo histrico de sua produo?
2- Podemos defender seguramente a ideia de que o texto literrio revela
mais profundamente a realidade que o texto histrico e social? No seria isso
uma pretenso hierarquizante?
3- Se o texto literrio testemunho dos fatos histricos, ele pode ser
considerado texto histrico? Quais so as diferenas entre texto literrio e texto
histrico?
4- Uma literatura, seja ela qual for, adquire valor apenas na medida em
que literatura engajada? Qual o valor das literaturas engajadas e no
engajadas?
No caso de obras das literaturas africanas de lngua portuguesa que
especificamente tratam da capacidade de resistncia e luta dos colonizados, ao
mesmo tempo em que trabalham com inovaes formais do ponto de vista da
elaborao ou construo do literrio, no demais dizer que guardam afinada
coerncia nas relaes que estabelecem entre esttica e tica.
5- O que podemos pensar sobre literatura no que diz respeito s
implicaes ticas que carrega em seu corpo textual?
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
21/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 216- superior a literatura que toma para si determinado objetivo tico, ou
j estamos a falar de um extra-literrio que no possui papel ou valor literrio
significativo?
Discuta essas questes com seu tutor e colegas e em seguida produza
um texto dissertativo discutindo os problemas tericos e ideolgicos presentes
nelas.
Envie seu texto para a biblioteca. Ele poder ser lido por
todos!
O texto: As Literaturas Africanas e o Jornalismo no Perodo
Colonial de Jurema Jos de Oliveira merece ser lido, alunos. Ali encontramos
datas e informaes a respeito das influncias determinantes da imprensa para
o desenvolvimento e maturidade das literaturas africanas, processo que,
timidamente inicia-se no sculo XIX. O texto est disponvel em:
haptooo://www.omarrare.uerj.br/numero8/pdfs/jurema.pdf
Voc tambm pode encontr-lo (Texto 1) nos arquivos disponveis noambiente virtual.
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
22/83
22 Literatura Africana de Lngua Portuguesa
Para vocs saberem mais, consultem:
CHABAL, P. Vozes Moambicanas. Lisboa: Vega, (s.d) (Col. PalavraAfricana).
CHAVES, R. A formao do romance angolano. So Paulo: Faculdade deFilosofia, Letras e Cincias HumanasUSP, 1999. (Col. Via Atlntica, n.1)
COUTO, M. Terra Sonmbula. Rio de Janeiro/So Paulo: Editora Record,(s.d.). (Mestres da Literatura Brasileira e Portuguesa).
ERVEDOSA, C. Roteiro da Literatura Angolana. Lisboa: Edies 70, (s.d.).
FERREIRA, M. Literaturas Africanas de Expresso Portuguesa.So Paulo:tica, 1987.
_____. 50 Poetas Africanos. Lisboa: Pltano Editora, (s.d.).
LARANJEIRA, P. Literatura calibanesca. Porto: Edies Afrontamento, 1985.
MARGARIDO, A. Estudos sobre Literaturas das Naes Africanas de
Lngua Portuguesa. Lisboa: Ed. A Regra do Jogo, 1980.
PIRES, L. Literatura Africana de Expresso Portuguesa.Lisboa:Universidade Aberta, 1991.
TENREIRO, F. J.; ANDRADE, M. P. de. Poesia Negra de ExpressoPortuguesa. Lisboa: ALAC, (s.d.).
TRIGO, S. Introduo Literatura Angolana de Expresso Portuguesa.Porto: Braslia Editora, 1977.
Stio da Unio dos escritores angolanos: http://www.ueangola.com/
Stio Memria de frica: http://memoria-africa.ua.pt/
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
23/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 23
UNIDADE I
Subunidade III
Brasil- frica: O Dilogo
A identidade lingustica pode ser motivo suficiente para o estudo das
possveis relaes entre literatura brasileira africana. Mas de modo algum o
nico motivo. A comum condio de colnia, o sangue comum dos escravos
africanos e brasileiros, e sua vontade de emancipao, somam outros motivos
identidade lingustica.
Ressalte-se que as relaes ente literatura brasileira e africana iniciam-se no sculo XIX. Segundo Trigo,
[...] a migrao esttico-literria faz-se da Europa para o Brasile daqui para a frica.[...] salvo raras excepes, as influnciasesttico-literrias europias passavam pelo Brasil, onde, namaior parte dos casos, sofriam j a primeira tropicalizao,seguindo daqui para a frica com um sabor e com um ritmo jafricanizado que provocavam rpida adeso. (TRIGO, 1981,p.28-29).
Nesse sentido, Gonalves Dias e seu poema Cano do Exlio ecoa
entre os poetas africanos, tambm exilados, eles, em sua prpria terra. E no
se pode perceber, ainda, rupturas significativas com relao ao cnone literrio
europeu.
Durante o sculo XIX encontraram repercusso, em frica, Gonalves
Dias (como j mencionado) e Castro Alves. Mas no a poesia indianista do
primeiro e nem a poesia condoreira do segundo que encontrar os leitores
africanos. Gonalves Dias atraiu pela lrica sentimental e pela poesia amorosa,
Castro Alves pela poesia sensual. Desse modo, percebe-se que os africanos
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
24/83
24 Literatura Africana de Lngua Portuguesacultos, leitores e escritores da poca, a gerao denominada de gerao dos
filhos do pas no demonstrava conscincia, ainda, da dimenso poltica e
social que a poesia e a literatura em geral possuem. Diferentemente acontecia
no Brasil: o momento romntico fazia despertar a conscincia literria por parte
dos escritores, preocupados com a constituio de uma nacionalidade em
literatura. E, para isso, lanavam mo do primitivismo, do nacionalismo e da
anlise social.
Ser apenas na dcada de 40 do sculo XX, que Castro Alves ser
valorizado, em frica, pela poesia social e combativa, defensora da causa dos
negros, como se percebe na leitura de Viriato da Cruz. At ento, os filhos do
pas ao mesmo tempo em que no se propunham a perturbar, pela via potica,
a ordem social africana, baseada no poder dos colonizadores, demonstravam
interesse pela literatura brasileira apenas no que toca ao exotismo lingustico e
imagtico presente em determinados textos.
A fora do modernismo brasileiro, de 22, no entanto, muda o cenrio das
relaes e influncias. Seu esprito se far sentir em frica. A influncia das
vanguardas, a ruptura com modelos estticos precedentes, anteriores dcada
de 20, a ruptura com a ideologia da imitao da cultura do colonizador, a
inaugurao do projeto antropofgico, a busca das razes brasileiras na cultura
indgena e africana, e o fortalecimento de uma conscincia literria nacional
provocaram leitores e escritores africanos nos incios dos anos 40, momento
em que comeam sua luta para consolidar a africanidade na literatura. Nossa
brasilidade, repleta de africanidade, no apenas relaciona-se, mas participa do
dilogo necessrio entre os dois continentes.
Os estudos em literatura comparada muito j avanaram, revelando o
dilogo estreito de ambas as literaturas. Entre os inmeros possveis estudos
de literatura comparada entre literaturas de lngua portuguesa, encontra-se,como bem demonstrou Santilli, o intertexto entre Guimares Rosa e Luandino
Vieira. Ambos experimentadores e criadores de uma linguagem nova, ambos
contistas, rapsodos que contam histrias por meio de rituais e prticas de
oralidade.
Tambm as relaes do indivduo com o poder permitem identificar a
intertextualidade presente em Mayombe, de Pepetela, As novas cartas
portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho daCosta, e Memrias do Crcere, de Graciliano Ramos. Ou ainda, pode-se
relacionar Estria de galinha e do ovo, de Luandino Vieira, A hora e a vez de
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
25/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 25Augusto Matraga, de Guimares Rosa, e Eu conto (segundo captulo de
Casa de Malta) de Fernando Namora, vislumbrando a interseco pela
categoria da justia.
Alerta Trigo que muito ainda h por fazer no campo dos estudos
comparativistas. E sugere, desse modo, algumas hipteses de investigaes:
[...] Gonalves Dias e os poetas angolanos da gerao de1880; Cruz e Souza e Caetano da Costa Alegre (santomense);Castro Alves e a gerao da mensagem angola,nomeadamente, Agostinho Neto e Antonio Jacinto; relaodeste tambm com a poesia moambicana de Nomia deSouza, Kalungano e Jos Craveirinho e com a poesiasantomense de Francisco Jos Terreiro; os poetas e escritoresdo modernismo brasileiro e seu impacto no nascimento daliteratura cabo verdiana e das literaturas angolana e
moambicana modernas. Enfim o caso da relaoespecialssima de Joo Guimares Rosa com o angolano JosLuandino Vieira [...] (TRIGO, 1981, p. 30).
Desde o momento de escritura do texto acima citado, os estudos em
literatura comparada muito avanaram, revelando o estreitamento das relaes
entre ambas as literaturas, mas ainda muito h por fazer. Portanto, caros
alunos: -Mos obra!
PROPOSTA DE ATIVIDADE
Caros alunos, vamos ler dois dos contos acima citados: Estria de
galinha e do ovo, de Luandino Vieira, e A hora e a vez de Augusto Matraga,
de Guimares Rosa, a fim de rastrearmos a interseo pela categoria da
justia, anunciada pela estudiosa Santilli. O conto Estria de galinha e do ovo
(texto 2), de Luandino Vieira, est disponvel no ambiente virtual; o conto de
Saramago vocs precisaro encontrar em uma biblioteca. Bom trabalho a
todos!
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
26/83
26 Literatura Africana de Lngua Portuguesa
Pesquise o que literatura comparada, como mtodo,
campo de estudos e conceito. Desse modo ser possvel compreender
realmente as amplas possibilidades de estudos comparativos entre as
literaturas de lngua portuguesa.
Para saber mais consulte e estude os textos abaixo:
ANDRADE, C. Literatura Angolana (Opinies).Lisboa: Edies 70, (s.d).
CHABAL, P. Vozes Moambicanas. Lisboa: Vega, (s.d) (Col. PalavraAfricana).
ERVEDOSA, C. Roteiro da Literatura Angolana. Lisboa: Edies 70, (s.d.).
FERREIRA, M. Literaturas Africanas de Expresso Portuguesa. So Paulo:tica, 1987.
_____. 50 Poetas Africanos. Lisboa: Pltano Editora, (s.d.).
LARANJEIRA, P. Literatura calibanesca. Porto: Edies Afrontamento, 1985.
MARGARIDO, A. Estudos sobre Literaturas das Naes Africanas deLngua Portuguesa. Lisboa: Ed. A Regra do Jogo, 1980.
MOLLAT, M. Los exploradores del siglo XIII al XVI:primeras miradas sobre
PIRES, L. Literatura Africana de Expresso Portuguesa.Lisboa:Universidade Aberta, 1991.
SANTILLI, M. A. Paralelas e tangentes: entre literaturas de lngua portuguesa.So Paulo: Arte & Cincia, 2003.
TENREIRO, F. J.; ANDRADE, M. P. de. Poesia Negra de ExpressoPortuguesa. Lisboa: ALAC, (s.d.).
TRIGO, S. Introduo Literatura Angolana de Expresso Portuguesa.Porto: Braslia Editora, 1977.
Stio da Unio dos escritores angolanos: http://www.ueangola.com/
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
27/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 27UNIDADE II
APRESENTAO
Narrativas Africanas de Expresso Portuguesa
Vamos conhecer parte do universo das narrativas produzidas em frica,por meio da aproximao a duas obras escolhidas: Mayombe, de Pepetela,
escritor angolano e Terra Sonmbula, de Mia Couto, escritor moambicano.
Mayombe tematiza a luta pela libertao de Angola e Terra Sonmbula
ambienta-se no momento posterior independncia de Moambique, mais
precisamente no momento em que a guerra civil acontece no pas.
Abaixo transcrevo uma passagem do estudo de Maria Nazareth Soares
Fonseca e Terezinha Taborda Moreira, em que as estudiosas retomam aabordagem de Manuel Ferreira, expondo um modo possvel de compreenso
das literaturas africanas de lngua portuguesa, a partir de quatro momentos
dinmicos:
Manuel Ferreira (1989b) discute a emergncia da literatura(sobretudo da poesia) nos espaos africanos colonizados pelosportugueses, propondo a observao de quatro momentos. No
primeiro, destaca o terico que o escritor est em estado quaseabsoluto de alienao. Os seus textos poderiam ter sidoproduzidos em qualquer outra parte do mundo: o momentoda alienao cultural. Ao segundo momento corresponde afase em que o escritor manifesta a percepo da realidade. Oseu discurso revela influncia do meio, bem como os primeirossinais de sentimento nacional: a dor de ser negro, o negrismo eo indigenismo. O terceiro momento aquele em que o escritoradquire a conscincia de colonizado. A prtica literria enraza-se no meio sociocultural e geogrfico: o momento dadesalienao e do discurso da revolta. O quarto momentocorresponde fase histrica da independncia nacional,
quando se d a reconstituio da individualidade plena doescritor africano: o momento da produo do texto emliberdade, da criatividade e do aparecimento de outros temas,
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
28/83
28 Literatura Africana de Lngua Portuguesacomo o do mestio, o da identificao com frica, o do orgulhoconquistado.Segundo Manuel Ferreira (1989b), o entendimento da literaturaafricana passa pela compreenso da perspectiva dinmica queorienta a produo literria, que faz com que esses momentosno sejam rgidos nem inflexveis e permite que um escritor,muitas vezes, atravesse dois ou trs deles: no espao
ontolgico e de criatividade potica do escritor movem-sevalores do colonizador que so dados adquiridos, funcionamvalores culturais de origem e h sempre a conscincia devalores que se perderam e que necessrio ressuscitar.
Voc pode aprender mais lendo o texto completo, de onde foi extrada a
passagem acima. Intitula-se: Panorama das literaturas africanas de lngua
portuguesa. Roce pode encontr-lo no ambiente virtual (Texto 3) ou no
endereo: (haptoooo://www.ich.pucminas.br/posletras/Nazareth_panorama.pdf)
UNIDADE II
Subunidade I
Apresentao de MAYOMBERomance do Escritor Angolano Pepetela
Artur Carlos Maurcio Pestana dos Santos
(Pepetela) nasceu em Benguela, Angola, em 29
de outubro de 1941. Em 1958, mudou-se para
Lisboa, ingressando no Instituto Superior
Tcnico (Engenharia) que frequentou at 1960.
Em 1961 transferiu seus estudos para o curso
de Letras. No mesmo ano eclode, em Luanda,
a revolta que d incio Guerra Colonial. Em
1963, o escritor torna-se militante do MPLA -
Movimento Popular para a Libertao de
Angola. Entre os anos de 1960 e 1970, frequentador da Casa dos Estudantes
do Imprio, em Lisboa, lugar de efervescncia dos ideais de independncia.
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
29/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 29Nesse perodo encontra-se Exilado na Frana e na Arglia, posteriormente
forma-se em Sociologia. Em 1975, quando Angola se torna livre, assume a
posio de Vice-Ministro da Educao no governo de Agostinho Neto. Ganha o
Prmio Cames pelo conjunto da sua obra em 1997, e em 2002 recebe a
Ordem do Rio Branco ttulo concedido pelo Brasil. Factualmente professor
de Sociologia da Faculdade de Arquitetura de Luanda, cidade em que reside.
Vamos, agora, adentrarmos juntos a atmosfera de
Mayombe, romance do escritor angolano Pepetela. Mayombe o nome da
floresta da regio de Cabinda, lugar privilegiado para a ao das personagens
e que divide, com a cidade de Dolisie, o espao da narrativa. Mayombe um
romance impressionante! Logo saberemos os motivos.
A dedicatria assalta o leitor pelo carter sugestivo e pelo tom tico, e
anuncia muito do que os leitores iro encontrar. Vejamos o que nos diz a
dedicatria: Aos guerrilheiros do Mayombe, que ousaram desafiar os deuses
abrindo um caminho na floresta obscura, vou contar a histria de Ogun, o
Prometeu africano (PEPETELA, 1985, p.8). O leitor encontrar sim,
personagens guerreiros que desafiam os deuses a cada momento, a cada
passo, na floresta do Mayombe, nos muitos caminhos e questes da vida e da
meta poltica. So guerreiros orientados por Prometeu, a um s tempo tit e
smbolo da inteligncia do ser humano. No caso de nossa histria, quem ser
Prometeu e Ogun?
Voltaremos a isso mais adiante. Falemos por agora do romance como
um todo. Mayombe romance que tem por tema a luta pela libertao nacional
de Angola, dramatizada por um grupo vinculado aos ideais e misso do MPLA:
Movimento pela libertao de Angola. Trata-se de grupo de guerrilheiros que
trava sua luta no interior da floresta, estando submetido direo localizada
em Dolisie, de onde recebem notcias e mantimentos, e para onde guerrilheiros
do comando se dirigem para levar companheiros a serem castigados.
Estamos s voltas, eu e vocs, alunos, com um romance que nos revelaa histria de homens reais que viveram a luta pela liberdade de Angola de
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
30/83
30 Literatura Africana de Lngua Portuguesameados de 60 at a independncia nacional do pas, em 1974. Sua luta,
portanto, contra os portugueses, no romance denominados tugas.
Ns estamos, ento, no plano ficcional tecido pela inveno e pelas
malhas da histria. No podemos concordar com a ideia de que se trataria de
um romance apenas ideolgico ou panfletrio. Mayombe uma obra que
encena o problema histrico ideolgico e tico, identificvel na dialtica
formada pelo par colonizador-colonizado, dominador-dominado, senhor-
escravo, cuja sntese: independncia e liberdade motivo de luta, de guerrilha
e de amor por parte dos angolanos, oriundos e representantes de variadas
tribos e regies.
tambm uma obra que chama a ateno para a concretude dos
indivduos, seus dramas existenciais, morais, tribais e polticos, ainda quando
fazem parte de uma coletividade organizada e unanimemente eleita como mais
legtima e que possui o estatuto de sua existncia, criado e mantido pelos
mesmos indivduos. Da tambm o limite do individual: a meta comum, a futura
Angola livre.
Se observarmos sua estrutura narrativa, percebemos que est de acordo
com essa valorizao do coletivo sem esquecimento dos valores e direitos
individuais de cada membro, de cada guerrilheiro, de cada personagem.
Podemos perceber a relao entre o individual e o coletivo na presena de
narradores diversos, que se apresentam, cada um, em primeira pessoa, e de
um narrador em terceira pessoa, que abre a narrativa e depois intercala-se com
os outros narradores, sem oniscincia e com certo envolvimento nos episdios.
O leitor pode perceber facilmente que o narrador em terceira pessoa no
abandona a histria. Inclusive a referncia a Ogun, Prometeu Africano,
encontrada na dedicatria, supostamente feita pelo narrador em terceira
pessoa, reaparece no captulo 2 A base, em terceira pessoa novamente. Jno Eplogo, a referncia ser encontrada na voz do Comissrio Poltico,
narrado em primeira pessoa.
Vrias das personagens que desempenham papel significativo na
histria, realizando aes, tomando decises e interagindo com outras
personagens, so, tambm, um a um, narradores da histria que vivem. Por
isso os captulos se iniciam de modo surpreendente, como: Eu, o narrador ,
sou teoria, Eu, o narrador, sou milagre, Eu, o narrador, sou mundo novo,Eu, o narrador, sou Muantinvua, Eu, o narrador, sou Andr, Eu, o
narrador, sou o chefe do depsito, Eu, o narrador, sou o chefe de operaes,
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
31/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 31Eu, o narrador, sou lutamos, O narrador sou eu, o comissrio poltico. Cada
personagem narrador se apresenta ao leitor a seu modo. Seus nomes remetem
sua personalidade, sua histria pessoal e sua histria de guerrilha.
O comissrio do grupo simplesmente chamado Comissrio, seu nome
prprio usado apenas por duas personagens: Ondina e Sem -Medo.
Chamam-no de Joo quando esto a ss, em situaes de intimidade e
confidncia. O personagem professor chama-se Teoria. Hbil na dimenso
terica, possuidor de grande medo, o que inversamente o impele para a luta.
Outras personagens da ao e da luta chamam-se Lutamos e Chefe de
Operaes, o ltimo designado pelo cargo que ocupa. Em relao postura
diante da revoluo, encontramos Mundo Novo, nome de personagem que
apresenta perfil de intelectual marxista, o que, neste caso, tambm significa
que pensa por categorias tericas leninistas. Milagre, por sua vez, recebe
esse nome por ter sobrevivido, por milagre, ao massacre que matou seu pai.
Muatinvua, por sua vez, leva nome de rei, corajoso e de carter firme, uma
vez j foi ladro, marinheiro e contrabandista. H outras personagens que no
se apresentam diretamente ao leitor como narradoras. o caso do
comandante do grupo que se chama Sem- Medo; seu nome refere-se
coragem demonstrada quando resistiu sozinho a um grupo de inimigos. o
caso de Verdade, personagem dogmtica, que apresenta esprito
revolucionrio e assume posies radicais. Ingratido do Tuga, que recebera
esse nome negativo por seu carter duvidoso, e fora julgado e condenado
como traidor. Ekuikui, cujo nome denominao de caador de elefantes,
que se refere ocupao da personagem antes da guerrilha. Pangu-Akitina,
que possui nome de curandeiro, equivalente s funes de enfermeiro que
exerce em meio ao grupo. E Vew, jovem recm chegado ao grupo, leva em
seu nome a marca ilria do despreparo. A palavra Vew remete ao carro daWolkswagem, que tambm conhecido na regio por cgado.
H personagens mais significativas do ponto de vista de sua voz
narrativa, enquanto outros so vistos pelo leitor atravs das lentes do narrador
em terceira pessoa. Dos dois modos, ao leitor dado conhecer, das
personagens, mais do que apenas seu papel enquanto integrantes do grupo. O
leitor tem acesso personalidade individual das personagens, sua histria e
seus anseios, sinal claro da conscincia dos narradores em relao necessidade de fazer perceber a existncia concreta de cada indivduo na sua
condio de colonizado e para a configurao do corpo coletivo. Por isso o
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
32/83
32 Literatura Africana de Lngua Portuguesacoletivo, em Mayombe, no uma abstrao ou apenas uma categoria. Cada
personagem possui motivos individuais para estar na luta pelo coletivo. Por
isso, as personagens narradoras e o narrador em terceira pessoa
reincidentemente demonstram que lhes tocam as questes sobre o humano,
seus dilemas ticos, polticos e psicolgicos, como a questo da verdade, do
poder e do amor.
Vejamos como Teoria se apresenta ao mesmo tempo em que d inicio
obra:
Eu, o narrador, sou Teoria. Nasci na Gabela, na terra decaf. Da terra recebi a cor escura do caf, vinda da me,misturada ao branco defunto do meu pai, comercianteportugus. Trago em mim o inconcilivel e este o meu motor.
Num Universo de sim ou no, branco ou negro, eu represento otalvez. Talvez no para quem quer ouvir sim e significa simpra quem espera ouvir no. A culpa ser minha se os homensexigem a pureza e recusam as combinaes? Sou eu que devotornar-me em sim ou eu no?Ou so os homens que devemaceitar o talvez? Face a este problema capital, as pessoasdividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueistas eos outros. bom esclarecer que raros so os outros, o mundo geralmente maniqueista.(PEPETELA, 1985, p.14)
Teoria demonstra sua viso aguda sobre as mediaes existentes entre
o sim e o no, entre o branco e o negro. Mais adiante, a personagem aindadir: (...) a minha vida o esforo de mostrar a uns e a outros que h sempre
lugar para o talvez (PEPETELA, 1985, p.21). Vamos pensar, pelo menos, em
duas possibilidades de compreenso da fala de Teoria.
Em um primeiro sentido, podemos perceber que o talvez se refere ao
mestio, filho de frica e Portugal e ento, aps o processo alongado de
colonizao, realmente no ser possvel exigir pureza, pois o que h so
encontros raciais e culturais, o que h so, doravante, sempre combinaes.
Em um segundo sentido, podemos perceber crtica latente ao dogmatismo
muitas vezes identificvel nos militantes da Revoluo. Nesse caso, estamos a
pensar nos intelectuais e homens de ao que levam a ferro e fogo a dialtica
marxista e o par tese-anttese, esquecendo-se que em histria h sempre
mltiplas mediaes atuando. Isto , no interior da Tese (colonizao) e da
Anttese (revoluo) no h homogeneidade de posies ou acontecimentos, e
nem se pode isolar completamente um fato. Por isso, qualquer dogmatismo
arriscado, seja no plano terico de defesa das ideias, seja no plano prtico da
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
33/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 33ao e, no caso dos militantes, s vezes no mbito da deciso de punio para
os prprios companheiros.
O maniquesmo aludido por Teoria nos remete, tambm, enquanto
leitores, dicotomia formada pelo par Bem e Mal. Nesse sentido, Teoria
denuncia a rigidez, o esquematismo e a simplificao imposta ao mundo pelos
homens. Afinal: entre o que seria ideal e absolutamente Bom e ideal e
absolutamente Mal, quantos meios tons? Quantas aes justificveis, possveis
e de consequncias benficas, sem que sejam exatamente boas ou ms?
Estamos, aos poucos, alunos, adentrando uma obra que tem como mote
a ao de guerrilheiros em meio a floresta de Mayombe, sim, mas que um
livro que trata das grandes questes que tocam a existncia humana, social e
poltica. Uma das grandes qualidades da narrativa que, aos poucos, vai
desenvolvendo uma crtica lcida aos meios utilizados na luta pela libertao.
Os guerrilheiros engajados na luta pela independncia de seus pases,
podem ter a tendncia, como vrias das personagens, em considerar que o
que importa o fim almejado e no os meios de atingi-lo. Mayombe
testemunha que no: os meios importam tanto quanto os fins, e os fins
dependem dos meios. Tal coerncia se faz presente no episdio em que os
guerrilheiros enfrentam o campo inimigo para devolver a ex-prisioneiros uma
quantia em dinheiro que lhes fora roubada por um dos guerrilheiros. Tambm
se encontra no reconhecimento da incoerncia do machismo entre homens que
lutam pela liberdade e igualdade. E, ainda, mostra-se na crtica constante ao
tribalismo como fora contraditria, que age contra a ideia e o valor da
nacionalidade. A obra no deixa de, a todo momento, mostrar-se ao leitor como
um texto questionador do Movimento pela Libertao de Angola e
individualmente dos homens que o movem.
So mais do que entusiasmantes as passagens em que Sem-Medocritica determinado uso panfletrio do marxismo, denunciando que a ideologia
se torna rasa e se deforma quando aceita apenas, ao invs de ser vivida
coerentemente, de modo a vincul-la s necessidades da ao no prprio
instante da ao. E quando denuncia a ausncia de crtica em relao ao
prprio marxismo como o caso da passagem abaixo.
(...) demagogia dizer que o proletariado tomar o poder.Quem toma o poder um pequeno grupo de homens, namelhor das hipteses, representando o proletariado ouquerendo represent-lo. A mentira comea quando se diz que o
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
34/83
34 Literatura Africana de Lngua Portuguesaproletariado tomou o poder. Para fazer parte da equipedirigente, preciso ter uma razovel formao poltica ecultural. O operrio que a isso acede passou muitos anos ou naorganizao ou estudando. Deixa de ser proletariado, umintelectual. Mas ns todos temos medo de chamar as coisaspelo seus nomes e ,sobretudo ,esse nome de intelectual. Tu,Comissrio, s um campons? Porque o teu pai foi campons,
tu s campons? Estudante um pouco, ls-te muito, h anosque fazes um trabalho poltico, s um campons? No, s umintelectual. Neg-lo demagogia, populismo.(PEPETELA,1985, p.135-6)
E as passagens em que Sem-Medo denuncia o carter religioso da
poltica que muitos concretizam em seus atos e decises. A esse respeito,
vamos ler juntos as seguintes passagens, pronunciadas por Sem-Medo.
(...) Os quadros do Movimento esto impregnados dereligiosidade, seja catlica, seja protestante, e no so s osdo Movimento. Pega em qualquer Partido. H uns queprocuram aldrabar o padre e escondem os pecados: como osmilitantes que fogem crtica e nunca a aceitam. H os outros,os que inventam mesmo pensamentos impuros que afinal nemchegaram a ter, salvo no momento da confisso, para que sesintam mesquinhos em face do sofrimento do Cristo: so osmilitantes sempre dispostos a auto-criticar-se, a reconhecererros que no cometeram, apenas porque isso lhes d aimpresso de serem bons militantes. Um partido umacapela. (PEPETELA, 1985, p.131)
Eu sou um hertico, eu sou contra a religiosidade dapoltica. Sou marxista? Penso que sim, conheosuficientemente o marxismo para ver que as minhasidias so conformes a ele. Mas no acredito numa sriede coisas que se dizem ou se impem, em nome domarxismo.(...) Uma coisa, por exemplo, que me pedoente a facilidade com que vocs aplicam um rtulo auma pessoa, s porque no tem exatamente a mesma
opinio sobre um ou outro problema. (PEPETELA, 1985,p.132)
O tema do tribalismo periodicamente pontuado pelos narradores do
romance. Ao mesmo tempo em que h conscincia de que o tribalismo
determinante para o jogo de foras e privilgios que se estabelecem entre os
integrantes do Movimento, h momentos cruciais para a discusso do assunto,
quando o tribalismo acusado de impedir o xito da luta, enfraquecer o
nacionalismo e trabalhar contra a liberdade da coletividade. O ltimo captulodemonstra, em contrapartida, como os homens superam o tribalismo em nome
da luta pela nao livre. A voz do Chefe de Operaes: -Lutamos, que era
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
35/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 35cabinda, morreu para salvar um Kimbundo. Sem-Medo, que era Kikongo,
morreu para salvar um Kimbundo. uma grande lio para ns, camaradas.
(PEPETELA, 1985, p.294).
Outro tema que encontramos tratado de modo especial em Mayombe
o tema do amor. Curiosamente tambm no amor est presente a dialtica :
(...) o amor uma dialtica cerrada de aproximaorepdio, de ternura e
imposio (PEPETELA, 1985, p.110). E a dialtica do senhor e do escravo:
Todo o sentimento irracionaliza e, por isso, incapacita para a ao. Que todo
dominador em parte dominado, essa a relao dialtica entre escravo e o
senhor de escravos. Que as relaes humanas so sempre contraditrias e
que as no h perfeitas (Pepetela, 1985,p.175-6). Percebe-se, ainda e
inversamente, pela voz de Sem-Medo, que no possvel identificar leis nos
acontecimentos do amor:
(...) talvez seja isso o amor. O homem tem atrao pelo que lhefaz medo. O mar, o deserto, o abismo, a idia de Deus, amorte, o relmpago...Enfrentar pela primeira vez uma outrapessoa faz medo, por isso atrai os aventureiros. H, noentanto, casais que s encontram o verdadeiro prazer muitodepois do primeiro amor. No se podem estabelecer leisuniversais. (PEPETELA, 1985, p.238)
Lembremos que nas entrelinhas da histria de guerra, o narrador havia
anunciado que contaria a histria de Ogun, o Prometeu africano. Muito bem!,
mas qual seria a personagem a encarnar os poderes titnicos? Quem foi
Prometeu? O que o tit fez de acordo com a mitologia grega? E qual sua
importncia?
Prometeu o tit que, para auxiliar os seres humanos, desobedeceu a
Zeus e por ele foi castigado. Prometeu deu aos homens a racionalidade e o
fogo roubado aos deuses. Zeus lhe imputou um castigo eterno: o tit foi
aprisionado a um penhasco e passou a ter seu fgado devorado por uma guia
todos os dias, ao passo que, por ser imortal, seu rgo regenerava-se toda
noite. O dia seguinte esperava-lhe sina igual, e assim infinitamente.
Independente do castigo recebido, importa saber que ele ensinou aos homens
como desafiar os deuses, como igual-los em inteligncia e poder. Com o fogo
e os ensinamentos do tit, os homens passaram a praticar a agricultura e a
guerra.Nossa personagem titnica Sem-Medo. ele quem ensina os
recrutas e os guerreiros maduros a desafiarem os deuses, a desafiarem seu
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
36/83
36 Literatura Africana de Lngua Portuguesasuposto destino, determinado ora pelos portugueses, ora pela natureza
impetuosa. Vamos ler juntos a passagem textual que faz referncia direta a
Zeus e Prometeu, prestando ateno para o fato de que, mesmo a, o narrador
introduz a dialtica. Afinal, Zeus agrilhoou Prometeu ao castig-lo, ou Prometeu
que comprometeu Zeus para sempre? A partir do feito de Prometeu, Zeus
ainda poder ignorar os homens? Prometeu o tit que, ao auxiliar os homens,
aproxima-se da natureza humana:
O Mayombe tinha criado o fruto, mas no se dignou mostr-loaos homens: encarregou os gorilas de o fazer, que deixaram oscaroos partidos perto da Base, misturados com as suaspegadas. E os guerrilheiros perceberam ento que o deus-Mayombe lhes indicava assim que ali estava o seu tributo coragem dos que o desafiavam: Zeus vergado a Prometeu,
Zeus preocupado com a salvaguarda de Prometeu,arrependido de o ter agrilhoado, enviando agora a guia, nopara lhe furar o fgado, mas para o socorrer.(Ter sido Zeusque agrilhoou Prometeu, ou o contrrio?A mata criou cordas nos ps dos homens, criou cobras frentedos homens, a mata gerou montanhas intransponveis, feras,aguaceiros, rios caudalosos, lama, escurido, Medo. A mataabriu valas camufladas de folhas, sob os ps dos homens,barulhos imensos no silncio da noite, derrubou rvores sobreos homens. E os homens avanaram. E os homens tornaram-se verdes, e dos seus braos folhas brotaram, e flores, e amata curvou-se em abbada, e a mata estendeu-lhes a sombra
protetora, e os frutos. Zeus ajoelhado diante de Prometeu. EPrometeu dava impunemente o fogo aos homens, e ainteligncia. E os homens compreendiam que Zeus, afinal, noera invencvel, que Zeus se vergava coragem, graas aPrometeu que lhes d a inteligncia e a fora de se afirmaremhomens em oposio aos deuses. Tal o atributo do heri, ode levar os homens a desafiarem os deuses. Assim Ogun, oPrometeu africano (PEPETELA,1985,p.82)
No capitulo V e no Eplogo, finalmente o leitor compreende a afinidade
entre Prometeu, Ogun e o comandante Sem-Medo. Prometeu ensinara aoshomens a desafiar os deuses e a evolurem em direo ao conhecimento.
Ogun, orix do ferro e da guerra, smbolo da fora guerreira, protegia seus
filhos. Assim se passa com Sem-Medo, ensina a todos: jovens recrutas,
homens de ao madura e intelectuais, a desafiarem a colonizao e a
natureza, e ao mesmo tempo os protege com a prpria vida.
Ns, leitores, sabemos que Sem-Medo morreu salvando a vida de seu
amigo, o Comissrio, sabemos tambm que j havia deixado seu legado: osensinamentos e o exemplo. O Comissrio, por sua vez, sabe que Sem -
Medo especial. Nas palavras do Comissrio contidas no eplogo: Sem-Medo
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
37/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 37resolveu o seu problema fundamental: para se manter ele prprio, teria de ficar
ali no Mayombe. Ter nascido demasiado cedo ou demasiado tarde? Em todo
caso, fora de seu tempo, como qualquer heri de tragdia.
(PEPETELA,1985,p.299)
Constatamos que no somos apenas ns, os leitores, a tom-lo como
heri, a admirar suas reflexes e aes durante toda a narrativa. Na sequncia,
descobrimos, pelas palavras do Comissrio, que Sem-Medo ter sido um
dos poucos homens a viver entre o sim e o no, a viver aquilo que Teoria uma
vez denominara o talvez. Vamos ler as seguintes palavras do Comissrio, a
respeito do Comandante:
Penso, como ele, que a fronteira entre a verdade e a mentira
um caminho no deserto. Os homens dividem-se dos dois ladosda fronteira. Quantos h que sabem onde se encontra essecaminho de areia no meio da areia? Existe, no entanto, e eusou um deles. Sem-Medo tambm o sabia. Mas insistia em queera um caminho no deserto. Por isso se ria dos que diziam queera um trilho cortando, ntido, o verde do Mayombe. Hoje seique no h trilhos amarelos no meio do verde. Tal o destino de Ogun, oPrometeu africano. (PEPETELA, 1985, p.300)
Independente desta breve apresentao de Mayombe, imprescindvel, alunos, que vocs leiam a obra toda. Percebemos que uma
obra sem igual e posso afirmar a vocs: a leitura desta narrativa, de modo
integral, inquieta e provoca prazer!
Outras obras de Pepetela:
Muana Pu - Romance escrito em 1969 e publicado em 1978.
Mayombe - Romance escrito entre 1970 e 1971 e publicado em 1980.
As Aventuras de Ngunga - Romance escrito e publicado em 1973.
A Corda - Pea teatral escrita em 1976.
A Revolta da Casa dos dolos - Pea teatral escrita em 1978 e publicada em
1979.O Co e os Calus - Romance escrito entre 1978 e 1982 e publicado em 1985.
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
38/83
38 Literatura Africana de Lngua PortuguesaYaka - Romance escrito em 1983 e publicado em 1984 no Brasil e em 1985 em
Portugal e em Angola.
Lueji, o Nascimento de um Imprio - Romance escrito entre 1985 e 1988 e
publicado em 1989.
Luandando - Crnicas sobre a cidade de Luanda escritas e publicadas em
1990.
A Gerao da Utopia - Romance que comeou a ser escrito em 1972 e
publicado em 1994.
A Gloriosa Famlia, o Tempo dos Flamingos - Romance publicado em 1997.
O Desejo de Kianda - Romance escrito em 1994 e publicado em 1995.
A Parbola do Cgado Velho - Romance. Comeou a ser escrito em 1990 e foi
publicado em 1997.
A Montanha da gua Lils, fbula para todas as idades - Romance publicado
em 2000.
Jaime Bunda, o agente secreto - Romance publicado em 2002.
Sugiro a leitura do texto O romance como documento
social: o caso de Mayombe, de Carlos SERRANO. Diria mesmo que
imprescindvel essa leitura, alm de observaes sobre Mayombe, vocs
encontraro, no texto, uma breve entrevista com Pepetela. A atividade proposta
s poder ser realizada aps leitura do texto complementar. O texto est
disponvel em arquivo, ou ento no seguinte endereo eletrnico:
http://www.ueangola.com/index.php/criticas-e-ensaios/item/158-o-romance-como-documento-social-o-caso-de-mayombe.html
Voc tambm pode encontr-lo em arquivo (Texto 4) disponvel no
ambiente virtual.
Para compreendermos de modo adequado as passagens
do romance, comentadas no texto base, em que est presente a questo da
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
39/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 39dialtica, vocs devem pesquisar o conceito. Lembrem-se que dialtica envolve
trs elementos: tese-anttese e sntese.
PROPOSTA DE ATIVIDADE
Como atividade, vocs devero relembrar com seus colegas, professor e
tutor quais so os tipos de narradores e personagens que existem e so
amplamente reconhecidos pela teoria literria. Em seguida, comparem tais
narradores e personagens com a polifonia narrativa e a diversidade de
personagens criada por Pepetela em Mayombe. Em seguida, retomem a
discusso iniciada na UNIDADE I acerca das relaes entre literatura e histria,
agora levando em considerao os pronunciamentos de Pepetela, sobre o
imaginrio e a fico, ao ser entrevistado por Carlos Serrano.
Como produto final da atividade, vocs devem aprofundar
a primeira dissertao produzida, o que tambm quer dizer que podero
melhor-la nessa segunda verso.
Envie sua dissertao para a biblioteca.
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
40/83
40 Literatura Africana de Lngua Portuguesa
Para vocs saberem mais sobre a literatura angolana,
consultem o texto: Sobre a gnese da literatura angolana, escrito por Pepetela,
disponvel no ambiente virtual (Texto 5) e disponvel no seguinte endereo:
haptooo://www.ueangola.com/index.php/criticas-e-ensaios/item/57-sobre-a-
g%C3%A9nese-da-literatura-angolana.html
INDICAES:
Unio dos escritores angolanos: http://www.ueangola.com/
ANDRADE, C. Literatura Angolana (Opinies).Lisboa: Edies 70, (s.d).
CHAVES, R. A formao do romance angolano.So Paulo: Faculdade deFilosofia, Letras e Cincias HumanasUSP, 1999. (Col. Via Atlntica, n.1)
ERVEDOSA, C. Roteiro da Literatura Angolana. Lisboa: Edies 70, (s.d.).
LARANJEIRA, P. Literatura calibanesca. Porto: Edies Afrontamento, 1985.
PIRES, L. Literatura Africana de Expresso Portuguesa.Lisboa:Universidade Aberta, 1991.
SANTILLI, M. A. Paralelas e tangentes: entre literaturas de lngua portuguesa.So Paulo: Arte & Cincia, 2003.
TRIGO, S. Introduo Literatura Angolana de Expresso Portuguesa.Porto: Braslia Editora, 1977.
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
41/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 41
UNIDADE II
Subunidade II
Apresentao da Obra TERRA SONMBULARomance do Escritor Moambicano Mia Couto
Mia Couto nasceu na Cidade da Beira
(Moambique) em 1955, filho de emigrantes
portugueses. Aos 14 anos publicou seus
primeiros poemas no "Notcias da Beira". Em
1972, mudou-se para Loureno Marques para
estudar Medicina. A partir de 1974, inicia-se no
jornalismo, seguindo o exemplo de seu pai.
Com a independncia de Moambique, passou
a diretor da Agncia de Informao deMoambique (AIM). Dirigiu a Revista "Tempo"
e o Jornal "Notcias de Maputo".
Algumas obras de Mia Couto:
Raiz de Orvalho , livro de poesia publicado em 1983.
Vozes anoitecidas, livro de contos publicado em 1986.
Cada Homem uma Raa, livro de contos publicado em 1990.
Estrias Abensonhadas, coletnea de contos publicada em 1994.
A Varanda do Frangipani, romance publicado em 1996.
Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra, romance de 2002.
O Fio das Missangas, seu ltimo livro de contos de 2004.
O ltimo voo do flamingo, romance de 2000.
O Gato e o Escuro, romance de 2001.
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
42/83
42 Literatura Africana de Lngua Portuguesa
Vamos agora, adentrar juntos ao ambiente onrico de Terra
Sonmbula, primeiro romance do escritor moambicano Mia Couto. O que se
segue, caro aluno, uma aproximao mencionada obra, o que, no entanto,
no nos faz prescindir da leitura integral do texto de Mia Couto.
Terra Sonmbula ambienta-se no Moambique ps-guerra anti-colonial,
mais exatamente no momento da guerra civil, em que o pas disputado por
duas frentes polticas; a FRELIMO (Frente de Libertao de Moambique), que
passou a ocupar o poder, assim que o pas se tornara independente em 1975 e
a RENAMO (Resistncia Nacional Moambicana), que fazia oposio ao poder
institudo. Trata-se de um romance sobre a guerra, a guerra civil e sobre os
efeitos devastadores da guerra na alma de cada habitante e de toda uma
nao. Surpreendentemente, tambm um romance sobre sonhadores e o
poder do sonho, e sobre como o passado essencialmente importante para a
projeo da esperana no futuro.
Terra Sonmbula apresenta ao leitor as paisagens mortas, j geladas,estreis, violentas e cruis da guerra que destri invariavelmente povos e
regies, e ao mesmo tempo, mostra a sobrevivncia de sonhadores que
resistem em sua tarefa custosa de sonhar, a despeito da fome, da sede, da
pobreza, do expatriamento no interior da ptria, do exlio, do esfacelamento
familiar e cultural, da impossibilidade de confiar, de descansar ou trabalhar.
O poder dos sonhadores est em um lugar no demarcado no territrio
marcado por campos de deslocados que se alternam com runas e extensesdesoladas. Seu poder est na dimenso dos sonhos, estes, sempre
alimentados pelo passado, que guarda a riqueza cultural, a identidade, a
sabedoria, a convivncia em meio aldeia, cidade, famlia. O que tambm,
quer dizer que reside no passado a fora da esperana no futuro melhor e mais
belo.
Frequentemente, a fora do passado se faz presente na herana cultural
que sobrevive pela oralidade incansvel dos contadores de histrias, os mais
velhos, os sbios, os ascendentes, e que, no romance, reavivada pela cultura
escrita. Terra Sonmbula , a esse respeito, especialmente delicado. Faz ver
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
43/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 43ao leitor que o passado de que trata um passado recente, em que a
sabedoria oral dos moambicanos j se encontrava com a tcnica da escrita e
da leitura dos colonizadores. O romance no nostlgico: no retorna a
memria do momento anterior colonizao, mantem-se no momento hbrido
em que a cultura branca ocidental j convive com a cultura oral, mtica e
cosmognica, de razes africanas. Tudo o que at aqui foi dito, caros alunos,
ser agora, explicado passo a passo. Iniciemos nossa caminhada.
O leitor percebe logo nas primeiras pginas do romance que so quatro,
a princpio, as personagens principais: Muidinga, Tuahir, Kindzu e Tamo.
Vamos conhec-las.
Muidinga e Tuahir caminham juntos. O primeiro um menino, o outro um
senhor de mais idade, responsvel por salvar a vida de Muidinga e dele cuidar.
Tuahir uma vez encontrara Muidinga em meio a cinco meninos, mortos;
Muidinga tambm julgado morto, prestes a ser enterrado, descoberto ainda
com vida por Tuahir. A partir desse momento Tuahir passa a cuidar do menino,
que fora envenenado por ingerir mandioca que envenena. E torna-se ento, a
nica famlia do pequeno, ele tambm carente de famlia e com saudades de
ser pai.
A solido acompanhada, vivida pelas duas personagens inseparveis
flagrante em toda a narrativa. E os encontros, as interseces profundas
dessas duas solides, so marcadamente enfocadas pelo narrador por
momentos e profundamente sentidos pelo leitor, que pode chegar a sentir o
que o encontro produz em termos de confiana e segurana para os que
caminham ss sobre a terra.
Talvez eu esteja pintando com cores muito fortes a histria das
personagens de Terra Sonmbula, alunos, ou talvez eu apenas me aproxime
da intensidade existencial criada pelo narrador... cabe a vocs, com certeza, atarefa de conferirem esse relato de leitura. Por certo, encontraro cores
diversas, cortes outros, impresses menos ou mais tnues. Vamos prosseguir,
contudo.
Kindzu uma personagem conhecida pelo leitor por meio da voz de
Muidinga. o menino quem l, a Tuahir, a histria de Kindzu contida em uns
cadernos encontrados junto a um morto, com o qual Muidinga e Tuahir
esbarraram na estrada. Durante toda a narrativa, tais cadernos so nomeadosCadernos de Kindzu. Por meio da leitura, levada a cabo por Muidinga, Tuahir e
ns, leitores, passamos a conhecer a histria de Kindzu, sua famlia,
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
44/83
44 Literatura Africana de Lngua Portuguesaespecialmente seu pai, Tamo, seus sofrimentos, suas andanas, aventuras, os
perigos pelos quais atravessa, seus amores e seu corao.
Kindzu membro de famlia excntrica. Seu pai sonhador, recebe
previses do futuro por meio dos sonhos que o agitam noturnamente, em uma
espcie de sonambulismo (modo como nomeada a doena do pai). Kindzu
tem um irmo Junhito, que recebera esse nome em homenagem ao vinte e
cinco de Junho, dia da Independncia do pas, acontecimento profetizado pelo
pai por meio de sonho. Esse irmo, alm do nome especial, portador de um
destino trgico e incomum. Tambm por obra de uma profecia, dado ao pai
conhecer o futuro do filho: a morte ainda na meninice, o que faz com que o
progenitor tome providncias decisivas para salvar o filho. Tamo determinara
que Junhito se mudasse para o galinheiro e se transformasse em galinha:
nica maneira pela qual entendia que o filho estaria a salvo.
No desalinho do destino de Junhito, o destino do pai se define: aps
desaparecimento de Junhito, Tamo se ressente, enfraquece, adoece, at
morrer. Entretanto, sua vida espiritual continua, especialmente no que diz
respeito a seu relacionamento com Kindzu. Aps a morte do pai, Kindzu ganha
o mundo, ora perseguido e amaldioado pelo esprito de seu pai, ora por ele
auxiliado. Sua meta: transformar-se em naparama, guerreiro abenoado pelos
feiticeiros e que luta contra os fazedores de guerra.
Os elementos fantsticos presentes nas histrias de Junhito e Tamo
no so propriedade exclusiva dessas personagens. H outras personagens,
assim como h acontecimentos e sonhos igualmente fantsticos. Tal o caso
de Farida, personagem com a qual Kindzu encontra j adulto, mulher que
passa a amar.
Farida divide, com Tamo, papel determinante na vida de Kindzu. Ela
filha gmea e o simples fato do nascimento de gmeos traa seu destino e o desua me. A despeito dos rituais purificadores realizados pelo fato do
nascimento, considerado portador de maldio, Farida e a me acabam tendo
que viver uma espcie de vida paralela em sua aldeia de origem. A me fingira
que matara uma das gmeas (a irm de Farida), uma vez que, segundo a
tradio, gmeos s podem existir nos cus. O castigo, ento, adveio sobre a
aldeia, e Farida acabara por fugir. Acolhida na casa de um casal de
portugueses, Romo Pinto e Virgnia, Farida recebe proteo e cuidados dasenhora, mas ao crescer passa a sentir o desejo incontido do senhor.
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
45/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 45Aps estratgia mal sucedida de Virgnia, que tenta proteger Farida
colocando-a em uma misso catlica, Farida encontra Romo, por ele
atacada e gera um filho do portugus. Esse filho, Gaspar, separado da me,
torna-se o motivo de sua vida e encontr-lo torna-se o outro objetivo de Kindzu,
que quer fazer feliz a Farida, mulher que passara a amar. Porm, no tem xito
na busca. Farida e Kindzu morrem antes que Gaspar pudesse ser encontrado.
Ainda no que diz respeito ao fantstico, possvel afirmar que emerge
no seio do cotidiano, ora trazido por sonhos, que recebem tratamento narrativo
equivalente aos fatos que ocorrem na viglia, ora acompanham os rituais,
cerimnias, crenas e mitos tradicionais da cultura de Moambique.
O fantstico est presente nas duas narrativas que compem o
romance: a do narrador em terceira pessoa que conta a histria de Muidinga e
Tuahir e a do narrador personagem Kindzu, que conta a histria de sua prpria
vida. Essa duplicidade narrativa, alunos, de extrema importncia no romance.
Lembremos que Muidinga encontra os Cadernos de Kindzu e passa a l-los.
Tal leitura intercala-se com a histria narrada em 3 pessoa a respeito de
Muidinga e Tuahir.
O que se pode perceber, entre outras coisas, que tal intercalao
constitui a prpria estrutura do romance e que as duas narrativas dialogam, at
o acontecimento da convergncia entre elas, quando, ao final do livro, Kindzu,
narrador, reconhece em Muidinga, o filho de FaridaGaspar, carregando seus
cadernos, os Cadernos de Kindzu, enquanto este ltimo est a morrer.
Tambm possvel perceber que a leitura dos Cadernos redimensiona a
vida do leitor Muidinga e de quem ouve a leitura da narrativa: Tuahir. Muidinga
e Tuahir, ao entrarem em contato com os Cadernos, passam a ter suas
esperanas renovadas, suas vidas passam a ser motivadas pela leitura, sua
fora, aos poucos, recuperada na emergncia do passado, da tradio oral,da sabedoria tradicional, dos mitos, rituais e cerimnias que os Cadernos de
Kindzu, alm de fazerem sobreviver, insuflam a ponto de Muidinga e Tuahir
passarem a conviver, no mais apenas com a guerra, mas tambm com o que
havia antes dela e com o que poder existir quando ela acabar.
No so poucos os momentos narrativos envoltos no fantstico ou que
por ele ganham vida. Lembremos o caso de Junhito; Tamo anuncia a morte
prxima do filho e diante da reao da famlia afirma: Calem! No querochoraminhices. Este problema j todo eu pensei. Em diante Junhito, vai viver
no galinheiro! (COUTO, s.d., p.21)
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
46/83
46 Literatura Africana de Lngua PortuguesaO narrador esclarece quais foram as ordens de Tamo:
Fez seguir ordens de seu mandamento: o mido devia mudar,alma e corpo, na aparncia de galinha. Os bandos quandochegassem no lhe iriam levar. Galinha era bicho que nodespertava brutais crueldades (...) aquela era a nica maneirade salvar Vinte e Cinco de Junho. (COUTO, s.d., p.21)
O acontecimento da morte de Tamo, transloucado, lastimoso e apenas
se embebedando aps o desaparecimento de Junhito, tambm rodeado de
fantasia. Tamo fora sepultado nas guas, em seguida, os fatos ocorridos,
relatados por Kindzu, narrador, so incrveis:
No dia seguinte, deu-se o que de imaginar nem ningumse atreve: o mar todo secou, a gua inteira desapareceu naporo de um instante. No lugar onde antes praiava o azul,ficou uma plancie coberta de palmeiras. Cada uma sebarrigava de frutos gordos, apetitosos, luzilhantes. Nem eram
frutos, pareciam eram cabaas de ouro, cada uma pesando milriquezas. Os homens se lanaram nesse vale, correndo decatanas na mo, no antegozo daquela ddiva. Ento seescutou uma voz que se multiabriu em ecos, parecia que cadapalmeira se servia de infinitas bocas. Os homens aindapararam, por brevidades. Aquela voz seria em sonho quefigurava? Para mim no havia dvida: era a voz de meu pai.Ele pedia que os homens ponderassem: aqueles eram frutosmuito sagrados. Sua voz se ajoelhava clamando para que sepoupassem as rvores: o destino do nosso mundo sesustentava em delicados fios. Bastava que um desses fiosfosse cortado para que tudo entrasse em desordens edesgraas se sucedessem em desfile. O primeiro homem,ento, perguntou rvore: por que s to desumana? Srespondeu o silncio. Nem mais se escutou nenhuma voz. Denovo, a multido se derramou sobre as palmeiras. Mas quandoo primeiro fruto foi cortado, do golpe espirrou a imensa gua e,em cataratas, o mar se encheu de novo, afundando tudo etodos. (COUTO, s.d., p.23-24)
E tal passagem apenas um pequeno exemplo da fora fantstica de
Tamo, pai que falecera e permanece vivo ao longo das viagens de Kindzu.
Outro momento fantstico em que vale a pena nos determos estpresente no Segundo Caderno de Kindzu. Uma cova no teto do mundo, em que
Kindzu percebe que mal iniciara sua viagem e o esprito de seu pai j estava
em seu encalo e que seus passos estavam deixando rastos no mar. A esse
respeito, Kindzu toma providncia inesperada:
Assim, eu desobedecia da jura de nunca deixar sinais deminha viagem. Lembrei o conselho do nganga e tirei a ave
morta debaixo do meu assento. Estava preparado para essabatalha com as foras do aqum. Em cada pegada deitei umapena branca. No imediato, da pluma nascia uma gaivota que,ao levantar vo, fazia desaparecer o buraco. O vo das avesque eu semeava ia apagando meu rasto. Dessas artes, eu
-
5/24/2018 Literatura Africana - LETRAS
47/83
Literatura Africana de Lngua Portuguesa 47vencia o primeiro encostar de ombros com os espritos.(COUTO, s.d., p. 49-50)
Com aparecimento breve no romance, outra personagem rodeada pelo
fantstico Nhamataca, antigo conhecido de Tuahir, com quem trabalhou nos
tempos coloniais. Muidinga e Tuahir encontram Nhamataca trabalhando nafeitura de um rio. Nas palavras do narrador a respeito da ocupao de
Nhamataca:
Sim, por aquele leito fundo haveria de cursar um rio,fluviando at o infinito mar. As guas haveriam de nutrir asmuitas sedes, confeitar peixes e terras. Por ali viajariamesperanas, incumpridos sonhos. E seria o parto da terra, dolugar onde os homens guardariam, de novo, suas vidas. (...)Nome que dera ao rio: Me-gua. Porque o rio tinha vocao
para se tornar doce, arrastada criatura. Nunca subiria emfrias, nunca se deixaria apagar no cho. Suas guas serviriamde fronteira para a guerra. Homem ou barco carregando armairiam ao fundo, sem regresso. A morte ficaria confinada aooutro lado. O rio limparia a t