Edgar Morin Ciencia´com Conciencia
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O sculo 20 tem sido um sculo fecundopara a cincia, no qual desafios novos socolocados competncia explicativa das
teorias, hipteses, premissas e leis fundadoras do pensamento cientfico moderno. A relatividade de Einstein, a microfsica, a termodinmica, a microbiologia tm ampliadoo universo das indagaes dos cientistas,que cada vez mais se vem confrontadoscom novas verdades e com incertezas sobrealgumas verdades h muito estabelecidas.Alm disso, novos campos de aplicao enovos usurios dos conhecimentos geradosnos laboratrios do to restrito universo daacademia suscitam, felizmente, uma necessria reflexo tica no meio acadmico e fora dele.
Cincia com conscinciaenfrenta o duplo desafio: apontar problemas ticos e morais da cincia contempornea, cujos mltiplos e prodigiosos poderes de manipulao,nascidos das tecnocincias, tm imposto aocientista, ao cidado e humanidade inteirao problema do controle poltico das desco
bertas cientficas, e a necessidade epistemolgica de um novo paradigma que rompa oslimites do determinismo e da simplificao,e incorpore o acaso, a probabilidade e a incerteza como parmetros necessrios compreenso da realidade.
Retomando a discusso sobre a cinciamoderna, Edgar Morin critica o paradigmaclssico que se fundava na suposio de quea complexidade do mundo dos fenmenos
podia e devia resolver-se a partir de princpios simples e leis gerais. Estes princpios,que se revelaram fecundos para o progressotanto da fsica newtoniana como da relatividade einsteiniana e da natureza fsico-qumica de todo organismo, no so mais suficientes para considerar a complexidade dapartcula subatmica, da realidade csmicae dos progressos da microbiologia. Assim,enquanto a cincia clssica dissolvia a complexidade aparente dos fenmenos para revelar a simplicidade oculta das leis imutveis da natureza, hoje a complexidade co
mea a aparecer, no como inimigo a eliminar, mas como um desafio a ser superado.Para o autor, enfrentar a complexidade do
real significa: confrontar-se com os paradoxos da ordem/desordem, da parte/todo, dosingular/geral; incorporar o acaso e o particular como componentes da anlise cientfica e colocar-se diante do tempo e do fenmeno, integrando a natureza singular e evolutiva do mundo sua natureza acidental efactual.
Muitos desses problemas, tratados inicialmente na primeira edio de 1982, foramconsiderados impertinentes, sendo hoje admitidos pela maior parte da academia, comoa idia do caos organizador, o problema paradigmtico da ordem, da desordem e da organizao, da complexidade, da auto-orga-nizao. A contribuio de Morin tambmparticularmente importante para as cinciassociais, vistas por muito tempo como impossibilitadas de desembaraar-se da complexidade dos fenmenos humanos para elevar-se dignidade das cincias naturais, com suas
leis e princpios concebidos na ordem do determinismo; o que era visto como resduosno-cientficos das cincias humanas: a incerteza, a desordem, a contradio, a pluralidade e a complicao fazem parte hoje deuma problemtica geral do conhecimento.
Como resposta a todos esses desafios,Morin, objetivamente, nos oferece, em oposio ao paradigma clssico da simplificao, os fundamentos do novo paradigma
complexo, capaz de ampliar os horizontesda explicao cientfica, tanto nas cinciasfsicas e biolgicas como nas sociais.Cincia com conscincia, portanto, uma referncia obrigatria para todos aqueles quetm se empenhado em participar da aventurada construo do novo esprito cientficoproposto por Bachelard, desde o incio dosculo.
In Elias de Castro
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Edgar Morin
Cinciacom Conscincia
Edio revista e modificada pelo Autor
raduo
Maria D. Alexandree
Maria Alice Sampaio Dria
82 EDIO
BBERTRAND BRASIL
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Copyright Librairie Arthme Fayard, 1982, para os captulos1.1,1.3,1.'1-5,1.7,1.8,1.9, II.2, II.4, ILS, Il., II.7, II.8, II.9,11.10,11.11.
Copyright Editions du Seuil. 1990 , prefacio e captulos 1.2,1.6, II . 1 e I I.3 .
T tu lo original: Science avec Conscience
Capa: projeto grfico de Simone Villas Boas
2005
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
CIP-Brasil. Catalogao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Morin, Edgar, 1921-M8 5c Cincia com conscincia / Edgar Morin; traduo de Maria8'1 ed. D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dria. - Ed. revista e
modificada pelo autor - 8" ed. - Rio de Janeiro: BertrandBrasil, 2005.
350p.
Traduo de: Science avec conscience
Inclui bibliografia
ISBN 85-286-0579-5
1. Cincia- Filosofia. 2. Teoria do conhecimento. 3. Cincia.I. Ttulo.
CD D - 50196-1238 CDU - 50:1
Todos os direitos reservados pe la:
EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.Rua Argentina, 1 7 1 - 1 " andar - So Cristvo
20921-380 - Rio de Janeiro - RJ
T e L (0XX21 ) 258 5- 207 0 - Fax: (0XX21) 25 85 -2087
No permitida a reproduo total ou parcial desta obra, por quaisquer
meios, sem a prvia autorizao por escrito da Editora.
Atendemos pelo Reembolso Postal.
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Sumrio
Prefcio 7
PRIMEIRA PAET
Cincia com Conscincia
1. Para a cincia 15
2. O conhecimento do conhecimento cientfico 37
3. A idia de progresso do conhecimento 95
4. Epistemologia da tecnologia 107
5. A responsabidade do pesquisador perante a
sociedade e o homem 117
6. Teses sobre a cincia e a tica 125
7. A antiga e a nova transdisciplinaridade 135
8. O erro de subestimar o erro 1419. Para uma razo aberta 157
SEGUNDA PARTE
Para o Pensamento Complexo
1. O desafio da complexidade 175
2. Ordem, desordem, complexidade 195
3. A inseparabilidade da ordem e da desordem 207
4. O retorno do acontecimento 2335. O sistema: paradigma ou/e teoria? 257
6. Pode-se conceber uma cincia da autonomia? 277
7. A complexidade biolgica ou auto-organizao 291
8. Si eautos 311
9.Computo ergo sum(a noo de sujeito) 323
10. Os mandamentos da complexidade 329
11. Teoriae mtodo 335
Referncias 343
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Prefcio
Para esta nova edio, o plano do livro foi modificado, pas
sando a comportar duas partes, a primeira denominada
Cincia com Conscincia, e a segunda, Para o Pensamento
Complexo.Alguns textos foram suprimidos e substituidos poroutros, mais recentes, sobre os mesmos temas e dentro do
mesmo esprito. Os textos novos so, na primeira parte, O
conhecimento do conhecimento cientfico e Teses sobre a
ciencia e a tica;na segunda parte, O desafio da complexi
dadeeA inseparabilidade da ordem e da desordem.
Suprimi o prefacio primeira edio, em que fiz questo de
mostrar, com suporte de citaes, que j havia enunciado,
entre 1958 e 1968, a maior parte de minhas idias sobre a
cincia e a complexidade. Ser contestado, incompreendido,marginalizado causou-me mgoa profunda que, se no foi
consolada, adormeceu com o tempo.
Algumas idias lanadas neste livro, que foram consideradas
impertinentes, so atualmente admitidas por um grande nme
ro de cientistas, como a do caos organizador. Se a reforma do
pensamento cientfico no chegou ainda ao ncleo paradigmti
co em que Ordem, Desordem e Organizao constituem as
noes diretrizes que deixam de se excluir e se tornam dialogi-
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camente inseparveis (permanecendo, entretanto, antagnicas),
se a noo de caos ainda no concebida como fonte indistinta
de ordem, de desordem e de organizao, se a identidade com
plexa de caos e cosmo, que indiquei no termocaosmo,ainda
no foi concebida, s nos resta comear a nos engajar, aqui e
ali, no caminho que conduz reforma do pensamento.
Da mesma forma, o termo complexidade j no mais perse
guido na conscincia cientfica. A cincia clssica dissolvia acomplexidade aparente dos fenmenos para revelar a simplici
dade oculta das imutveis Leis da Natureza Atualmente, a com
plexidade comea a aparecer no como inimigo a ser elirninado,
mas como desafio a ser enfatizado. A complexidade permanece
ainda, com certeza, uma noo ampla, leve, que guarda a incapa
cidade de definir e de determinar. por isso que se trata agora
de reconhecer os traos constitutivos do complexo, que no
contm apenas diversidade, desordem, aleatoriedade, mas com
porta, evidentemente tambm, suas leis, sua ordem, sua organizao. Trata-se, enfim e sobretudo, de transformar o conheci
mento da complexidade em pensamento da complexidade.
No entrarei aqui nesse difcil reconhecimento e definio
da complexidade, a que se consagra a segunda parte deste
livro. S quero indicar que, mesmo quando tinha por objetivo
nico revelar as leis simples que governam o universo e a
matria de que ele constitudo, a cincia apresentava consti
tuio complexa. Ela s vivia em e por uma dialgica de com
plementaridade e de antagonismo entre empirismo e raciona
lismo, imaginao e verificao. Desenvolveu-se apenas em e
pelo conflito das idias e das teorias no meio de uma comuni
dade/sociedade (comunidade porque unida em seus ideais
comuns e com a regra verificadora do jogo aceita por seus
membros; sociedade porque dividida por antagonismos de
todas as ordens, a compreendidas pessoas e vaidades).
A cincia igualmente complexa porque inseparvel de
seu contexto histrico e social. A cincia moderna s pde
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emergir na efervescncia cultural da Renascena, na eferves
cncia econmica, poltica e social do Ocidente europeu dos
sculos 16 e 17. Desde ento, ela se associou progressivamen
te tcnica, tornando-se tecnocincia, e progressivamente se
introduziu no corao das universidades, das sociedades, das
empresas, dos Estados, transformando-os e se deixando
transformar, por sua vez, pelo que ela transformava. A cincia
no cientfica Sua realidade multidimensional. Os efeitosda cincia no so simples nem para o melhor, nem para o
pior. Eles so profundamente ambivalentes.
Assim, a cincia , intrnseca, histrica, sociolgica e etica
mente, complexa essa complexidade especfica que preci
so reconhecer. A cincia tem necessidade no apenas de um
pensamento apto a considerar a complexidade do real, mas
desse mesmo pensamento para considerar sua prpria comple
xidade e a complexidade das questes que ela levanta para a
humanidade. dessa complexidade que se afastam os cientistas no apenas burocratizados, mas formados segundo os
modelos clssicos do pensamento. Fechados em e por sua dis
ciplina, eles se trancafiam em seu saber parcial, sem duvidar de
que s o podem justificar pela idia geral a mais abstrata, aque
la de que preciso desconfiar das idias gerais! Eles no
podem conceber que as disciplinas se possam coordenar em
torno de uma concepo organizadora comum, como foi o
caso das cincias da Terra, ou se associar numa disciplina glo
balizante de um tipo novo, como o caso, h muito tempo, daecologia, ou ainda se entrefecundar numa questo ao mesmo
tempo crucial e global, como a questo cosmolgica, em que as
diversas cincias fsicas, utilizadas pela astronomia, concorrem
para conceber a origem e a natureza de nosso universo.
Esses mesmos espritos no querem se dar conta de que,
contrariamente ao dogma clssico de separao entre cincia
e filosofia as cincias avanadas deste sculo todas encontra
ram e reacenderam as questes filosficas fundamentais (o
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que o mundo? a natureza? a vida? o homem? a realidade?) e
que os maiores cientistas desde Einstein, Bohr e Heisenberg
transformaram-se em filsofos selvagens.
de esperar que as transformaes que comearam a
arruinar a concepo clssica de cincia vo continuar em
verdadeira metamorfose. O conceito de cincia herdado do
sculo passado no , como observou Bronowski, nem abso
luto, nem eterno. Enquanto os fsicos acreditavam, em 1900,
que sua cincia suprema estivesse quase completa, essa
mesma fsica comeava uma nova aventura, arruinando seus
dogmas. A pr-histria das cincias no terminou no sculo
17. A idade pr-histrica da cincia ainda no est morta no
fim do sculo 20. Mas em toda parte, cada vez mais, tende-se
a ultrapassar, abrir, englobar as disciplinas, e elas aparecero,
pela tica da cincia futura, como um momento de sua pr-
histria Isso no significa que as distines, as especializaes, as competncias devam dissolver-se. Isso significa que
um princpio federador e organizador do saber deve impor-se.
No haver transformao sem reforma do pensamento, ou
seja, revoluo nas estruturas do prprio pensamento. O pen
samento deve tomar-se complexo.
Cincia com conscincia A palavra conscincia tem aqui
dois sentidos. O primeiro foi formulado por Rabelais em seu
preceito: "Cincia sem conscincia apenas runa da alma." Aconscincia de que ele fala , com certeza, a conscincia
moral. O preceito rabelaisiano pr-cientfico, uma vez que a
cincia moderna s se pde desenvolver em se livrando de
qualquer julgamento de valor, obedecendo a uma nica tica,
a do conhecimento. Mas ele se torna pericientfico, no sentido
de que mltiplos e prodigiosos poderes de manipulaes e
destruies, originrios das tecnocincias contemporneas,
levantam, apesar de tudo, para o cientista, o cidado e a
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E.M.. janeiro de 1990
humanidade inteira a questo do controle tico e poltico da
atividade cientfica
0 segundo sentido do palavra conscincia intelectual.
Trata-se da aptido auto-reflexiva que a qualidade-chave da
conscincia. O pensamento cientfico ainda incapaz de se
pensar, de pensar sua prpria ambivalncia e sua prpria
aventura. A cincia deve reatar com a reflexo filosfica,
como a filosofia, cujos moinhos giram vazios por no moer os
gros dos conhecimentos empricos, deve reatar com as cin
cias. A cincia deve reatar com a conscincia poltica e tica
O que um conhecimento que no se pode partilhar, que per
manece esotrico e fragmentado, que no se sabe vulgarizar a
no ser em se degradando, que comanda o futuro das socieda
des sem se comandar, que condena os cidados crescente
ignorncia dos problemas de seu destino? Como indiquei em
meu prefcio de abril de 1982: "Uma cincia emprica privada
de reflexo e uma filosofia puramente especulativa so insufi
cientes, conscincia sem cincia e cincia sem conscincia
so radicalmente mutiladas e mutilantes..."
Atualmente, nos dois sentidos do termo conscincia, cin
cia sem conscincia apenas a runa do homem. Os dois sen
tidos da palavra conscincia devem entreassociar-se e se
associar cincia, que os deveria englobar: da o sentido do
ttulo Cincia com Conscincia.
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Para a cincia
I. A CINCIA-PROBLEMA
H trs sculos, o conhecimento cientfico no faz mais do
que provar suas virtudes de verificao e de descoberta em
relao a todos os outros modos de conhecimento. o
conhecimento vivo que conduz a grande aventura da desco
berta do universo, da vida, do homem. Ele trouxe, e de forma
singular neste sculo, fabuloso progresso ao nosso saber.
Hoje, podemos medir, pesar, analisar o Sol, avaliar o nmero
de partculas que constituem nosso universo, decifrar a linguagem gentica que informa e programa toda organizao
viva. Esse conhecimento permite extrema preciso em todos
os domnios da ao, incluindo a conduo de naves espa
ciais fora da rbita terrestre.
Correlativamente, evidente que o conhecimento cientfi
co determinou progressos tcnicos inditos, tais como a
domesticao da energia nuclear e os princpios da engenha
ria gentica. A cincia , portanto, elucidativa (resolve enig
mas, dissipa mistrios), enriquecedora (permite satisfazer
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necessidades sociais e, assim, desabrochar a civilizao); ,
de fato, e justamente, conquistadora, triunfante.
E, no entanto, essa cincia elucidativa, enriquecedora, con
quistadora e triunfante, apresenta-nos, cada vez mais, proble
mas graves que se referem ao conhecimento que produz,
ao que determina, sociedade que transforma. Essa cincia
libertadora traz, ao mesmo tempo, possibilidades terrveis de
subjugao. Esse conhecimento vivo o mesmo que produziua ameaa do aniquilamento da humanidade. Para conceber e
compreender esse problema, h que acabar com a tola alter
nativa da cincia "boa", que s traz benefcios, ou da cincia
"m", que s traz prejuzos. Pelo contrrio, h que, desde a
partida, dispor de pensamento capaz de conceber e de com
preender a ambivalncia, isto , a complexidade intrnseca
que se encontra no cerne da cincia.
O lado mau
O desenvolvimento cientfico comporta um certo nmero
de traos "negativos" que so bem conhecidos, mas que, mui
tas vezes, s aparecem como inconvenientes secundrios ou
subprodutos menores.
1) O desenvolvimento disciplinar das cincias no traz uni
camente as vantagens da diviso do trabalho (isto , a contri
buio das partes especializadas para a coerncia de um todo
organizador), mas tambm os inconvenientes da superespe-
cializao: enclausuramento ou fragmentao do saber.
2) Constituiu-se grande desligamento das cincias da natu
reza daquilo a que se chama prematuramente de cincias do
homem. De fato, o ponto de vista das cincias da natureza
exclui o esprito e a cultura que produzem essas mesmas
cincias, e no chegamos a pensar o estatuto social e histri-
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co das cincias naturais. Do ponto de vista das cincias do
homem, somos incapazes de nos pensar, ns, seres humanos
dotados de esprito e de conscincia, enquanto seres vivos
biologicamente constitudos.
3) As cincias antropossociais adquirem todos os vcios da
especializao sem nenhuma de suas vantagens. Os conceitos
molares de homem, de indivduo, de sociedade, que perpassam vrias disciplinas, so de fato triturados ou dilacerados
entre elas, sem poder ser reconstitudos pelas tentativas inter
disciplinares. Tambm alguns Diafoirus chegaram a acreditar
que sua impotncia em dar algum sentido a esses conceitos
provava que as idias de homem, de indivduo e de sociedade
eram ingnuas, ilusrias ou mistificadoras.
4)A tendncia para a fragmentao, para a disjuno, para
a esoterizao do saber cientfico tem como conseqncia atendncia para o anonimato. Parece que nos aproximamos de
uma temvel revoluo na histria do saber, em que ele, dei
xando de ser pensado, meditado, refletido e discutido por
seres humanos, integrado na investigao individual de
conhecimento e de sabedoria, se destina cada vez mais a ser
acumulado em bancos de dados, para ser, depois, computado
por instncias manipuladoras, o Estado em primeiro lugar.
No devemos eliminar a hiptese de um neo-obscurantismo
generalizado, produzido pelo mesmo movimento das especiali
zaes, no qual o prprio especialista torna-se ignorante de
tudo aquilo que no concerne a sua disciplina e o no-especia-
lista renuncia prematuramente a toda possibilidade de refletir
sobre o mundo, a vida, a sociedade, deixando esse cuidado
aos cientistas, que no tm nem tempo, nem meios concei
tuais para tanto. Situao paradoxal, em que o desenvolvimen
to do conhecimento instaura a resignao ignorncia e o da
cincia significa o crescimento da inconscincia
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5) Enfim, sabemos cada vez mais que o progresso cientfico
produz potencialidades tanto subjugadoras ou mortais quanto
benficas. Desde a j longnqua Hiroxima, sabemos que a ener
gia atmica significa potencialidade suicida para a humanida
de; sabemos que, mesmo pacfica, ela comporta perigos no s
biolgicos, mas, tambm e sobretudo, sociais e polticos. Pres
sentimos que a engenharia gentica tanto pode industrializar a
vida como biologizar a industria Adivinhamos que a elucidao dos processos bioqumicos do crebro permitir interven
es em nossa afetividade, nossa inteligncia, nosso esprito.
Mais ainda os poderes criados pela atividade cientfica esca
pam totalmente aos prprios cientistas. Esse poder, em miga
lhas no nvel da investigao, encontra-se reconcentrado no
nvel dos poderes econmicos e polticos. De certo modo, os
cientistas produzem um poder sobre o qual no tm poder, mas
que enfatiza instncias j todo-poderosas, capazes de utilizar
completamente as possibilidades de manipulao e de destruio provenientes do prprio desenvolvimento da cincia
Assim, h:
progresso indito dos conhecimentos cientficos, parale
lo ao progresso mltiplo da ignorncia;
progresso dos aspectos benficos da cincia, paralelo ao
progresso de seus aspectos nocivos ou mortferos;
progresso ampliado dos poderes da cincia, paralelo
impotncia ampliada dos cientistas a respeito desses mesmos
poderes.
Na maior parte das vezes, a conscincia dessa situao
chega partida ao esprito do investigador cientfico que, ao
mesmo tempo, reconhece essa situao e dela se protege, sob
olhar trptico em que ficam afastadas as trs noes: 1) cin
cia (pura, nobre, desinteressada); 2) tcnica (lngua de Esopo
que serve para o melhor e para o pior); 3) poltica (m e noci-
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va, pervertora do uso da cincia). Ora, o "lado mau" da cin
cia no poderia ser pura e simplesmente despejado sobre os
polticos, a sociedade, o capitalismo, a burguesia, o totalita
rismo. Digamos at que a acusao do poltico pelo cientista
vem a ser, para o investigador, a maneira de iludir a tomada
de conscincia das inter-retroaes de cincia, sociedade, tc
nica e poltica.
Uma era histrica
Vivemos uma era histrica em que os desenvolvimentos
cientficos, tcnicos e sociolgicos esto cada vez mais em
inter-retroaes estreitas e mltiplas.
A experimentao cientfica constitui por si mesma uma tcni
ca de manipulao ("uma manip") e o desenvolvimento das cin
cias experimentais desenvolve os poderes manipuladores da
cincia sobre as coisas fsicas e os seres vivos. Este favorece odesenvolvimento das tcnicas, que remete a novos modos de ex
perimentao e de observao, como os aceleradores de partcu
las e os radiotelescopios que permitem novos desenvolvimentos
do conhecimento cientfico. Assim, a potencialidade de manipu
lao no est fora da cincia, mas no carter, que se tornou inse
parvel, do processo cientfico tcnico. O mtodo experimen
tal um mtodo de manipulao, que necessita cada vez mais de
tcnicas, que permitem cada vez mais manipulaes.
Em funo desse processo, a situao e o papel da cinciana sociedade modificaram-se profundamente desde o sculo
17. Na origem, os investigadores eram amadores no sentido
primitivo do termo: eram ao mesmo tempo filsofos e cientis
tas. A atividade cientfica era sociologicamente marginal,
perifrica. Hoje, a cincia tornou-se poderosa e macia insti
tuio no centro da sociedade, subvencionada, alimentada,
controlada pelos poderes econmicos e estatais. Assim, esta
mos num processo inter-retroativo.
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cincia tcnica -* sociedade -Estado,t 1 1 I
A tcnica produzida pelas cincias transforma a sociedade,
mas tambm, retroativamente, a sociedade tecnologizada trans
forma a prpria cincia Os interesses econmicos, capitalistas,
o interesse do Estado desempenham seu papel ativo nesse cir
cuito de acordo com suas finalidades, seus programas, suas
subvenes. A instituio cientfica suporta as coaes tecno-
burocrticas prprias dos grandes aparelhos econmicos ou estatais, mas nem o Estado, nem a indstria, nem o capital so
guiados pelo esprito cientfico: utilizam os poderes que a inves
tigao cientfica lhes d
Uma dupla tarefa cega
Essas indicaes muito breves so suficientes para o meu
propsito: uma vez que, doravante, a cincia est no mago da
sociedade e,embora bastante distinta dessa sociedade, inseparvel dela,isso significa que todasas cincias, incluindo as
fsicas e biolgicas, so sociais. Mas no devemos esquecer que
tudo aquilo que antropossocial tem uma origem, um enrai
zamento e um componente biofsico.E aqui que se encontra a
dupla tarefa cega a cincia natural no tem nenhum meio para
concebeiHsecomo realidade social; a cincia antropossocial no
tem nenhum meio paraconceber-se no seu enraizamentobiofsi
co; a cincia no tem os meios para conceber seu papel social e
sua natureza prpria na sociedade. Mais profundamente: a cincia no controla sua prpria estrutura de pensamento. O conhe
cimento cientfico um conhecimento que no se conhece. Essa
cincia, que desenvolveu metodologias to surpreendentes e
hbeis para apreender todos os objetos a ela externos, no dis
pe de nenhum mtodo para se conhecer e se pensar.
Husserl, h quase cinqenta anos, tinha diagnosticado a tare
fa cega a eliminao por princpio do sujeito observador, expe
rimentador e concebedor da observao, da experimentao e
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da concepo eliminou o ator real, o cientista, homem, intelec
tual, universitrio, esprito includo numa cultura, numa socie
dade, numa histria. Podemos dizer at que o retorno reflexivo
do sujeito cientfico sobre si mesmo cientificamente impos
svel, porque o mtodo cientfico se baseou na disjuno do
sujeito e do objeto, e o sujeito foi remetido filosofia e moral.
certo que existe sempre a possibilidade, para um cientista, de
refletir sobre sua cincia, mas uma reflexo extra ou meta-
cientfica que no dispe das virtudes verificadoras da cincia
Assim, ningum est mais desarmado do que o cientista
para pensar sua cincia. A questo "o que a cincia?" a
nica que ainda no tem nenhuma resposta cientfica por
isso que, mais do que nunca, se impe a necessidade do auto-
conhecimento do conhecimento cientfico, que deve fazer
parte de toda poltica da cincia, como da disciplina mental
do cientista. O pensamento de Adorno e de Habermas
recorda-nos incessantemente que a enorme massa do saber
quantificvel e tecnicamente utilizvel no passa de veneno
se for privado da fora libertadora da reflexo.
II. A VERDADE DA CINCIA
O esprito cientfico incapaz de se pensar de tanto crer que
o conhecimento cientfico o reflexo do real. Esse conheci
mento, afinal, no traz em si a prova emprica (dados verifica
dos por diferentes obsercaes-experimentaes) e a provalgica (coerncia das teorias)? A partir da, a verdade objetiva
da cincia escapa a todo olhar cientfico, visto que ela esse
prprio olhar. O que elucidativo no precisa ser elucidado.
Ora, os diversos trabalhos, em muitos pontos antagnicos,
de Popper, Kuhn, Lakatos, Feyerabend, entre outros, tm
como trao comum a demonstrao de que as teorias cientfi
cas, como os icebergs,tm enorme parte imersa no cientfi
ca, mas indispensvel ao desenvolvimento da cincia A se
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22 Cincia com Conscincia
situa a zona cega da cincia que acredita ser a teoria reflexo
do real. No prprio da cientificidade refletir o real, mas
traduzi-lo em teorias mutveis e refutveis.
Com efeito, as teorias cientficas do forma, ordem e orga
nizao aos dados verificados em que se baseiam e, por isso,
so sistemas de idias, construes do esprito que se aplicam
aos dados para lhes serem adequadas. Mas, incessantemente,
meios de observao ou de experimentao novos, ou uma
nova ateno, fazem surgir dados desconhecidos, invisveis.
As teorias, ento, deixam de ser adequadas e, se no for pos
svel ampli-las, necessrio inventar outras, novas. De fato, "a
cincia mais mutvel do que a teologia", como observava
Whitehead. Com efeito, a teologia tem grande estabilidade por
que se baseia num mundo sobrenatural, inverificvel, enquanto
o que se baseia no mundo natural sempre refutvel.
A evoluo do conhecimento cientfico no unicamente
de crescimento e de extenso do saber, mas tambm de trans
formaes, de rupturas, de passagem de uma teoria paraoutra. As teorias cientficas so mortais e so mortais por
serem cientficas.A viso que Popper registra com relao
evoluo da cincia vem a ser a de uma seleo natural em
que as teorias resistem durante algum tempo no por serem
verdadeiras, mas por serem as mais bem adaptadas ao estado
contemporneo dos conhecimentos.
Kuhn traz outra idia, no menos importante: que se pro
duzem transformaes revolucionrias na evoluo cientfica,
em que um paradigma, princpio maior que controla as visesdo mundo, desaba para dar lugar a um novo paradigma.
Julgava-se que o princpio de organizao das teorias cientfi
cas era pura e simplesmente lgico. Deve ver-se, com Kuhn,
que existem, no interior e acima das teorias, inconscientes e
invisveis, alguns princpios fundamentais que controlam e
comandam, de forma oculta, a organizao do conhecimento
cientfico e a prpria utilizao da lgica
A partir da, podemos compreender que a cincia seja "ver-
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Cincia com Conscincia. 23
dadeira" nos seus dados (verificados, verificveis), sem que
por isso suas teorias sejam "verdadeiras". Ento, o que faz que
uma teoria seja cientfica, se no for a sua "verdade"? Popper
trouxe a idia capital que permite distinguir a teoria cientfica
da doutrina (no cientfica): uma teoria cientfica quando
aceita que sua falsidade possa ser eventualmente demonstrada
Uma doutrina, um dogma encontram neles mesmos a autoveri-
ficao incessante (referncia ao pensamento sacralizado dosfundadores, certeza de que a tese est definitivamente prova
da). O dogma inatacvel pela experincia A teoria cientfica
biodegradvel. O que Popper no viu que a mesma teoria
tanto pode ser cientfica (aceitando o jogo da contestao e da
refutao, isto , aceitando sua morte eventual), quanto doutri
na auto-suficiente: o caso do marxismo e do freudismo.
A partir da, o conhecimento progride, no plano emprico,
por acrescentamento das "verdades" e, no plano terico, por
eliminao dos erros. O jogo da cincia no o da posse e doalargamento da verdade, mas aquele em que o combate pela
verdade se confunde com a luta contra o erro.
A incerteza/certeza
O conhecimento cientfico certo, na medida em que se
baseia em dados verificados e est apto a fornecer previses
concretas. O progresso das certezas cientficas, entretanto,
no caminha na direo de uma grande certeza.
certo que se julgou durante muito tempo que o universo
fosse uma mquina determinista impecvel e totalmente
conhecvel; alguns ainda crem que uma equao-chave reve
laria seu segredo. De fato, o enriquecimento do nosso conheci
mento sobre o universo desemboca no mistrio de sua origem,
seu ser, seu futuro.Anatureza do tecido profundo da nossa
realidade fsica esquiva-se no mesmo movimento em quea
entrevemos. Nossa lgica agita-se ou desnorteia-se diante do
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infinitamente pequeno e do irtfinitamente grande, do vazio fsi
co e das energias muito altas. As extraordinrias descobertas
da organizao simultaneamente molecular e informacional
da mquina viva conduzem-nos no ao conhecimento final da
vida, mas s portas do problema da auto-organizao.
Podemos at dizer que, de Galileu a Einstein, de Laplace a
Hubble, de Newton a Bohr, perdemos o trono de segurana
que colocava nosso esprito no centro do universo: aprende
mos que somos, ns cidados do planeta Terra, os suburbanos
de um Sol perifrico, ele prprio exilado no entorno de uma
galxia tambm perifrica de um universo mil vezes mais mis
terioso do que se teria podido imaginar h um sculo. O pro
gresso das certezas cientficas produz, portanto, o progresso
da incerteza, uma incerteza "boa", entretanto, que nos liberta
de uma iluso ingnua e nos desperta de um sonho lendrio:
uma ignorncia que se reconhece como ignorncia. E, assim,
tanto as ignorncias como os conhecimentos provenientes do
progresso cientfico trazem um esclarecimento insubstituvel
aos problemas fundamentais ditos filosficos.
A regra do jogo
Assim, a cincia no somente a acumulao de verdades
verdadeiras. Digamos mais, continuando a acompanhar
Poppen um campo sempre aberto onde se combatem no s
as teorias, mas tambm os princpios de explicao, isto , as
vises do mundo e os postulados metafsicos. Mas esse comba
te tem e mantm suas regras de jogo: o respeito aos dados, por
um lado; a obedincia a critrios de coerncia, por outro. a
obedincia a essa regra por parte de debatentes-combatentes
que aceitam sem equvoco essa regra que constitui a superiori
dade da cincia sobre qualquer outra forma de conhecimento.
Quer dizer, ao mesmo tempo, que seria grosseiro sonhar com
uma cincia purgada de toda a ideologia e onde no houvesse
mais do que uma nica viso do mundo ou teoria "verdadeira".
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Cincia com Conscincia 25
De fato, o conflito das ideologias, dos pressupostos metafsicos
(conscientes ou no) condiosine qua nonda vitalidade da
cincia. Aqui se opera uma necessria desmitificao: o cientis
ta no um homem superior, ou desinteressado em relao aos
seus concidados; tem a mesma pequenez e a mesma propen
so para o erro. O jogo a que se dedica, entretanto, o jogo cient
fico da verdade e do erro, esse, sim, superior num universo
ideolgico, religioso, poltico, onde esse jogo bloqueado oufalseado. O fsico no mais inteligente do que o socilogo, que
ainda no consegue fazer da sociologia uma cincia. que, em
sociologia, muito mais difcil estabelecer a regra do jogo: a
verificao experimental quase impossvel, a subjetividade
est sempre comprometida A idia de que a virtude capital da
cincia reside nas regras prprias do seu jogo da verdade e do
erro mostra-nos queaquilo que deve ser absolutamente salva
guardado como condio fundamental da prpria vida da
cincia a pluralidade conflitual no seio de um jogo que obedece a regras empricas lgicas.
Assim, vemos que, correspondendo a dados de carter
objetivo, o conhecimento cientfico no o reflexo das leis da
natureza Traz com ele um universo de teorias, de idias, de
paradigmas, o que nos remete, por um lado, s condies
bioantropolgicas do conhecimento (porque no h esprito
sem crebro) e, por outro lado, ao enraizamento cultural,
social, histrico das teorias. As teorias cientficas surgem dos
espritos humanos no seio de uma culturahic et nunc.
O conhecimento cientfico no se poderia isolar de suas con
dies de elaborao, mas tambm no poderia ser a elasredu
zido. A cincia no poderia ser considerada pura e simples
"ideologia" social, porque estabelece incessante dilogo no
campo da verificao emprica com o mundo dos fenmenos.
necessrio, portanto, que toda cincia se interrogue
sobre suas estruturas ideolgicas e seu enraizamento socio-
cultural. Aqui, damo-nos conta de que nos falta uma cincia
capital, a cincia das coisas do esprito ou noologia, capaz de
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conceber como e em que condies culturais as idias se
agrupam, se encadeiam, se ajustam, constituem sistemas que
se auto-regulam, se autodefendem, se automultiplicam, se
autopropagam. Falta-nos uma sociologia do conhecimento
cientfico que seja no s poderosa, mas tambm mais com
plexa do que a cincia que examina
Isso significa queestamos na aurora de um esforo de fle
go eprofundo, que necessita de mltiplos desenvolvimentosnovos, afim de permitir que a atividade cientfica disponha
dos meios da reflexidade, isto , da auto-interrogao.
A necessidade de uma cincia da cincia j foi formulada mui
tas vezes. Mas h que se dizer, de acordo com as demonstraes
de Tarsky e Godel, que ela seria em relao cincia atual, uma
"metacincia", dotada de um metaponto de vista mais rico, mais
amplo, que considerasse cientificamente apropria cincia
Essa metacincia no poderia ser a cincia definitiva.
Abrir-se-ia para novos meta-horizontes. E isso que nos revela outro aspecto da "verdade" da cincia:A cincia , e conti
nua a ser, uma aventura.A verdade da cincia no est uni
camente na capitalizao das verdades adquiridas, na verifi
cao das teorias conhecidas, mas no carter aberto da aven
tura que permite, melhor dizendo, que hoje exige a contesta
o das suas prprias estruturas de pensamento. Bronovski
dizia que o conceito da cincia no nem absoluto, nem eter
no. Talvez estejamos num momento crtico em que o prprio
conceito de cincia se esteja modificando.
III. VIVEMOS UMA REVOLUO CIENTFICA?
O conhecimento cientfico est em renovao desde o come
o deste sculo. Podemos at perguntar-nos se as grandes
transformaes que afetaram as cincias fsicas da microf-
sica astrofsica , as cincias biolgicas da gentica e da
biologia molecular etologia , a antropologia (a perda do pri-
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Cincia com Conscincia 27
vilgio heliocntrico no qual a racionalidade ocidental se via
como juiz e medida de toda a cultura e civilizao) no prepa
ram uma transformao no prprio modo de pensar o real.
Podemos perguntar, em suma, se em todos os horizontes cien
tficos no se elabora, de modo ainda disperso, confuso, incoe
rente, embrionrio, o que Kuhn denomina revoluo cientfica,
a qual, quando exemplar e fundamental, arrasta uma mudan
a de paradigmas (isto , dos princpios de associao/excluso fundamentais que comandam todo pensamento e toda teo
ria) e, por isso, uma mudana na prpria viso do mundo.
Tentemos indicar em que sentido cremos entrever a revolu
o de pensamento que se esboa Os princpios de explicao
"clssicos'' que dominavam antes de ser perturbados pelas trans
formaes que evoquei postulavam que a aparente complexida
de dos fenmenos podia explicar-se a partir de alguns princpios
simples, que a espantosa diversidade dos seres e das coisas
podia explicarse a partir de alguns elementos simples. A simplificao aplicava-se a esses fenmenos por separao e reduo.
A primeira isola os objetos no s uns dos outros, mas tambm
do seu ambiente e do seu observador. no mesmo movimento
que o pensamento separatista isola as disciplinas umas das
outras e insulariza a cincia na sociedade. A reduo unifica
aquilo que diverso ou mltiplo, quer quilo que elementar,
quer quilo que quantificvel. Assim, o pensamento redutor
atribui a "verdadeira" realidade no s totalidades, mas aos ele
mentos; no s qualidades, mas s medidas; no aos seres e aosentes, mas aos enunciados formalizveis e matematizveis.
A alternativa mutilante
Assim comandado por separao e reduo, o pensamento
simplificador no pode escapar alternativa mutilante quan
do considera a relao entre fsica e biologia, biologia e antro
pologia: ou bem separa, e foi o caso do "vitalismo", que se
recusava a considerar a organizao fsico-qumica do ser
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vivo, como o caso do antropologismo, que se recusa a consi
derar a natureza biolgica do homem; ou bem reduz a com
plexidade viva simplicidade das interaes fsico-qumicas,
como o caso das vises que fazem obedecer tudo quanto
humano simples hereditariedade gentica ou assimilam as
sociedades humanas a organismos vivos.
O princpio de simplificao, que animou as cincias natu
rais, conduziu s mais admirveis descobertas, mas so asmesmas descobertas que, finalmente, hoje arrunam nossa
viso simplificadora. Com efeito, foi animada pela obsesso
do elemento de base do universo que a investigao fsica
descobriu a molcula, depois o tomo, depois a partcula. De
igual modo, foi a obsesso molecular que suscitou as magnfi
cas descobertas que esclareceram os funcionamentos e pro
cessos da maquinaria viva. Mas as cincias fsicas, procuran
do o elemento simples e a lei simples do universo, descobri
ram a inaudita complexidade de um tecido microfsico ecomeam a entrever a fabulosa complexidade do cosmo.
Elucidando a base molecular do cdigo gentico, a biologia
comea a descobrir o problema terico complexo da auto-
organizao viva, cujos princpios diferem dos das nossas
mquinas artificiais mais aperfeioadas.
A crise do princpio clssico de explicao
O princpio de explicao da cincia clssica exclua aaleatoriedade (aparncia devida nossa ignorncia) para ape
nas conceber um universo estrita e totalmente determinista
Mas, a partir do sculo 19, a noo de calor introduz a desor
dem e a disperso no mago da fsica, e a estatstica permite
associar o acaso (no nvel dos indivduos) e a necessidade
(no nvel das populaes). Hoje, em todas as frentes, as cin
cias trabalham cada vez mais com a aleatoriedade, sobretudo
para compreender tudo aquilo que evolutivo, e consideram
um universo em que se combinam o acaso e a necessidade.
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O princpio de explicao da cincia clssica no concebia a
organizao enquanto tal. Reconheciam-se organizaes (sistema
solar, organismos vivos), mas no o problema da organizao.
Hoje, o estruturalismo, a ciberntica, a teoria dos sistemas opera
ram, cada um sua maneira, avanos para uma teoria da organi
zao, e esta comea a permitir-nos entrever, mais alm, a teoria
da auto-organizao, necessria para conceber os seres vivos.
O princpio de expcao da cincia clssica via no aparecimento de uma contradio o sinal de um erro de pensamen
to e supunha que o universo obedecia lgica aristotlica. As
cincias modernas reconhecem e enfrentam as contradies
quando os dados apelam, de forma coerente e lgica, asso
ciao de duas idias contrrias para conceber o mesmo
fenmeno (a partcula que se manifesta quer como onda, quer
como corpsculo, por exemplo).
O princpio de explicao da cincia clssica eliminava o
observador da observao. A microfsica, a teoria da informao, a teoria dos sistemas reintroduzem o observador na
observao. A sociologia e a antropologia apelam necessi
dade de se situarhic et nunc,isto , de tomar conscincia da
determinao etnosociocntrica que hipoteca toda a concep
o de sociedade, cultura, homem.
O socilogo deve perguntar-se incessantemente como pode
conceber uma sociedade de que faz parte. J o antroplogo
contemporneo indaga a si prprio:Como que eu, portador
inconsciente dos valores da minha cultura, posso julgar
uma cultura dita primitiva ou arcaica? Que valem os nos
sos critrios de racionalidade?A partir da, comea a neces
sria auto-relativizao do observador, que pergunta "quem
sou eu?", "onde estou eu?" O eu que surge aqui o eu modes
to que descobre ser o seu ponto de vista, necessariamente,
parcial e relativo. Assim, vemos que o prprio progresso do
conhecimento cientfico exige que o observador se inclua em
sua observao, o que concebe em sua concepo; em suma,
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que o sujeito se reintroduza de forma autocrtica e auto-
reflexiva em seu conhecimento dos objetos.
Para um princpio de complexidade
De toda parte surge a necessidade de um princpio de explicar
o mais rico do que o princpio de simplificao (separao/ re
duo), que podemos denominar princpio de complexidade.
certo que ele se baseia na necessidade de distinguir e de analisar,
como o precedente, mas, alm disso, procura estabelecer a co
municao entre aquilo que distinguido: o objeto e o ambiente,
a coisa observada e o seu observador. Esfora-se no por sacrifi
car o todo parte, a parte ao todo, mas por conceber a difcil
problemtica da organizao, em que, como dizia Pascal, " im
possvel conhecer as partes sem conhecer o todo, como impos
svel conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes".
Ele se esfora por abrir e desenvolver amplamente o dilo
go entre ordem, desordem e organizao, para conceber, na
sua especificidade, em cada um dos seus nveis, os fenmenos
fsicos, biolgicos e humanos. Esfora-se por obter a viso
poliocular ou poliscpica, em que, por exemplo, as dimenses
fsicas, biolgicas, espirituais, culturais, sociolgicas, histri
cas daquilo que humano deixem de ser incomunicveis.
O princpio de explicao da cincia clssica tendia a redu
zir o conhecvel ao manipulvel. Hoje, h que insistir forte
mente na utilidade de um conhecimento que possa servir
reflexo, meditao, discusso, incorporao por todos, cada
um no seu saber, na sua experincia, na sua vida...
Os princpios ocultos da reduo-disjunco que esclareceram
a investigao na cincia clssica so os mesmos que nos tor
nam cegos para a natureza ao mesmo tempo social e poltica da
cincia, para a natureza ao mesmo tempo fsica, biolgica, cul
tural, social, histrica de tudo o que humano. Foram eles que
estabeleceram e so eles que mantm a grande disjuno
natureza-cultura, objeto-sujeito. So eles que, em toda parte,
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no vem mais do que aparncias ingnuas na realidade com
plexa dos nossos seres, das nossas vidas, do nosso universo.
Trata-se, doravante, de procurar a comunicao entre a
esfera dos objetos e a dos sujeitos que concebem esses obje
tos. Trata-se de estabelecer a relao entre cincias naturais e
cincias humanas, sem as reduzir umas s outras (pois nem o
humano se reduz ao biofsico, nem a cincia biofsica se
reduz s suas condies antropossociais de elaborao).
A partir da, o problema de uma poltica da investigao no
se pode reduzir ao crescimento dos meios postos disposio
das cincias. Trata-se tambm e sublinho o tambmpara
indicar que proponho no uma alternativa, mas um comple
mento de que a poltica da investigao possa ajudar as cin
cias a realizarem as transformaes-metamorfoses na estrutura
de pensamento que seu prprio desenvolvimento demanda Um
pensamento capaz de enfrentar a complexidade do real, permi
tindo ao mesmo tempo cincia refletir sobre ela mesma
IV. PROPOSTAS PARA A INVESTIGAO
No temos aqui de voltar s grandes orientaes fixadas
para a investigao, mas convm definir e reconhecer as
seguintes orientaes complementares:
1) que os caracteres institucionais (tecnoburocrticos) da
cincia no sufoquem, mas estofem1os seus caracteres
aventurosos;
2) que os cientistas sejam capazes de auto-interrogao,
isto , que a cincia seja capaz de auto-anlise;
3) que sejam ajudados ou estimulados os processos que
permitiriam revoluo cientfica em curso realizar a
transformao das estruturas de pensamento.
1No original, jogo de palavras:tovffer(sufocar);tojfer(estofar).(N. T.)
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A primeira orientao mencionada impe-se com evidn
cia, tendo sido sempre reconhecida; historicamente, na
Frana, a poltica da investigao procedeu, quando a institui
o preexistente se afigurava excessivamente pesada e petri
ficada, por saltos institucionais que avanavam criando novas
instituies mais flexveis e leves, que se petrificaram por sua
vez, e assim por diante. Desse modo, foram criados o
C.N.R.S., para constituir estrutura mais adaptada investigao do que a universidade, e, depois, a D.G.R.S.T., para permi
tir inovaes e criaes que as estruturas, por se terem torna
do pesadas, do C.N.R.S. j no autorizavam.
Sem dvida, poder-se- sempre inovar, instituindo novas es
truturas, mas h que perguntar se no se pode tentar um esforo
no nvel das grandes instituies, em primeiro lugar o C.N.R.S.
Aqui, h que refletir sobre o problema do investigador. Na
palavra investigador h algo mais do que o sentido corporativo
ou profissional, algo que concerne aventura do conhecimentoe a seus problemas fundamentais. Ora, o investigador repre
sentado de fato, de um lado, por seu sindicalismo e, de outro,
por seu mandarinato. 0 mandarinato defende a autonomia cor
porativa da investigao relativa s presses externas. O sindi
cato defende os interesses dos investigadores relativos no s
administrao e ao Estado, mas tambm ao mandarinato.
O mandarinato constitui a "elite" oficialmente reconhecida
dos cientistas e ocupa freqentemente os altos postos dirigen
tes da investigao. Os sindicatos defendem a "massa" dos
investigadores e sua promoo coletiva. O mandarinato tende
a selecionar indivduos de "elite", o sindicato, a proteger tudo
o que no diz respeito ao elitismo mandarnico. Assim, os
investigadores no dispem de mais nenhuma instncia para
se exprimir enquanto investigadores, o que significa que,
simultaneamente, mandarinato e sindicato tendem a ocul
tar e a recalcar aquilo que a palavra investigao significa:
eocplorao, questionamento, risco, aventura.
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Se o corpo dos investigadores , assim, ao mesmo tempo
exprimido por e laminado entre mandarinato e sindicato, tor
na-se capital que, na ocasio inesperada do grande colquio,
o investigador se exprima como investigador, pensando seus
prprios problemas de cientista. Tambm desejvel que
reflitamos no sentido de manter, no futuro, essa brecha entre
mandarinato e sindicato.
Um sistema no-otimizvel
As comisses do C.N.R.S. so instncias em que as influn
cias mandarnicas e sindicais se disputam ou/e se conjugam
de formas muito diversificadas segundo os setores ou disci
plinas. Digamos que, por princpio, a manuteno do dualis
mo dessa ordem, ou seja, do antagonismo, saudvel.
No setor de minha experincia, houve, primeiro, a era do
feudalismo mandarnico, quando diversidades e oposies en
tre mestres socilogos permitiam certa pluralidade neptica.
Os jovens investigadores considerados "brilhantes'', segundo
a escolha de um suserano, eram recrutados depois de nego
ciaes discretas entre grandes mandarins. Tal sistema favo
recia ora o recrutamento de espritos originais, ora o dos fiis.
A preeminncia dos grandes mandarins-socilogos apagou-se
ao longo dos anos 60 em proveito do recrutamento por con
senso mdio e das promoes por antigidade. O consenso
mdio sabota, decerto, a antiga arbitrariedade, mas em pro
veito de um neofuncionarismo que, evidentemente, desfavore
ce todo desvio e, por isso, a originalidade e a singularidade.
Existe um sistema ideal? H que saber que em toda a pro
blemtica organizacional complexa no existe, "a priori",
urfi timodefinvel ou programvel. H que saber que a reu
nio em comisso de espritos prestigiosos, cada um original
e criativo no seu campo, mas cada um tambm animado por
unia paixo ou obsesso diferente da dos outros, conduz em
geral ao consenso sobre um mnimo comum desprovido de
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originalidade e de inveno. A opinio mdia, sem expresso
das variedades e desabrochamento das liberdades, significa
menos democracia do que mediocracia.
Sabemos que um esprito criativo, aberto, liberal pode, se
for dotado de poderes, exercer um "despotismo esclarecido"
que favorece a liberdade e a criao, mas sabemos tambm
que no podemos institucionalizar o princpio do despotismo
esclarecido: pelo contrrio, temos de instituir comisses para
fazer face aos perigos mais graves do poder incontrolado.
Proteger o desvio
Por outro lado, o peso/inrcia institucional no tem s
inconvenientes. nos erros da enorme mquina tecnoburo-
crtica, nas falhas no seio das comisses, nas negligncias
dos patres que existem no s recnditos de incria e de
indolncia, mas tambm espaos de uberdade onde se pode
infiltrar e desenvolver a novidade que, finalmente, brota para
a glria da instituio.
Evidentemente, no podemos contar apenas com os erros e
as excees na enorme mquina tecnoburocrtica para favore
cer a inovao. Tambm no podemos, como j dissemos,
pensar que existe uma forma tima para favorecer a inveno.
Em todo caso, se verdade que o surgimento e o desenvolvi
mento de uma idia nova precisam de um campo intelectual
aberto, onde se debatam e se combatam teorias e vises do
mundo, se verdade que toda novidade se manifesta como des
vio e aparece freqentemente ou como ameaa, ou como insa
nidade aos defensores das doutrinas e disciplinas estabelecidas,
ento o desenvolvimento cientfico, no sentido de que esse
termo comporte necessariamente inveno e descoberta, neces
sita fundamentalmente de duas condies: 1) manuteno e
desenvolvimento do pluralismo terico (ideolgico, filosfico)
em todas as instituies e comisses cientficas: 2) proteo do
desvio, ou seja, tolerar/favorecer os desvios no seio dos progra-
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mas e instituies, apesar do risco de que o original seja apenas
extravagante, de que o espantoso no passe de absurdo.
Mais ainda, a inovao deve beneficiar-se, no seu estado
inicial, de medidas de exceo que protejam sua autonomia.
Supondo que no se pode provara prioria justeza das inicia
tivas que comportam probabilidades, porque, por isso
mesmo, comportam riscos, h que correr o risco/probabilida
de de confiar a responsabilidade a um pequenssimo grupo de
pessoas que, embora com opinies diferentes, tenham todas a
mesma paixo pela nova inteno.
As solues para os problemas suscitados pelo peso exces
sivo das determinaes tecnoburocrticas no seio da institui
o cientfica podem ser institucionais (como a descentraliza
o), mas s podem ser institucionais. So precisos estmulos
no s do alto da instituio (das instncias superiores ou
centrais), mas tambm do cerne da instituio, dos prprios
investigadores; voltamos, ento, a este problema-chave: preciso que os investigadores despertem e se exprimam enquan
to investigadores.
A necessidade, para a cincia, de se auto-estudar supe que
os cientistas queiram auto-interrogar-se, o que supe que eles
se ponham em crise, ou seja, que descubram as contradies
fundamentais em que desembocam as atividades cientficas
modernas e, nomeadamente, as injunes contraditrias a
que est submetido todo cientista que confronte sua tica do
conhecimento com sua tica cvica e humana.A crise intelectual que concerne s idias simplrias, abstra
tas, dogmticas, a crise espiritual e moral de cada um diante de
sua responsabilidade, no seu prprio trabalho, so as condies
sine qua non do progresso da conscincia. As autoglorifica-
es, felicitaes, exaltaes abafam a tomada de conscincia
da ambivalncia fundamental, ou seja, da complexidade do pro
blema da cincia, e so to nocivas quanto denegrimentos e vi
tuprios.
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Dissemos justamente que j no se tratava tanto, hoje, de
dominar a natureza quanto de dominar o domnio. Efetiva
mente, o domnio do domnio da natureza que hoje causa
problemas. Simultaneamente, esse domnio , por um lado,
incontrolado, louco e pode conduzir-nos ao aniquilamento;
por outro lado, demasiado controlado pelos poderes domin
antes. Esses dois caracteres contraditrios explicam-se por
que nenhuma instncia superior controla os poderes domin
antes, ou seja, os Estados-naes.
O problema do controle da atividade cientfica tornou-se
crucial e supe o controle dos cidados sobre o Estado que
os controla, bem como a recuperao do controle pelos cien
tistas, o que exige a tomada de conscincia de que falei ao
longo destas pginas.
A recuperao do controle intelectual das cincias peloscientistas necessita da reforma do modo de pensar, que, por sua
vez, depende de outras reformas, havendo, naturalmente, inter
dependncia geral dos problemas; essa interdependncia, entre
tanto, no deve permitir o esquecimento da reforma-chave.
Todo cientista serve, pelo menos, a dois deuses que, ao lon
go da histria da cincia e at hoje, lhe pareceram absoluta
mente complementares. Hoje, devemos saber que eles no
so apenas complementares, mas tambm antagnicos. O pri
meiro o da tica do conhecimento, que exige que tudo sejasacrificado sede de conhecer. O segundo o da tica cvica
e humana.
O limite da tica do conhecimento era invisvela priori, e
ns o transpusemos sem saber; a fronteira alm da qual o
conhecimento traz em si a morte generalizada: hoje, a rvore
do conhecimento cientfico corre o risco de cair sob o peso
dos seus frutos, esmagando Ado, Eva e a infeliz serpente.
Os dois deuses
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O conhecimento do conhecimento cientfico
Minha exposio ser incompleta e fragmentada. Em pri
meiro lugar, no vou repetir o que j publiquei sobre o problema do conhecimento cientfico. Vou experimentar partir des
ses problemas e tentar montar um tipo de balano da grande
aventura epistemolgica vivida no mundo germnico e anglo-
saxo (da qual a Frana se manteve afastada).
Que aventura essa? Ela comeou no famoso Crculo de
Viena, nesse grupo de cientistas, lgicos e matemticos que
tinham em comum a total ojeriza pelo arbitrrio da filosofia e
da metafsica. Em suma, eles queriam que a filosofia, o pensa
mento, refletisse a imagem da cincia, isto , que houvesseenunciados dotados de sentido, e que fossem baseados no que
observvel e verificvel. Eles achavam ser possvel encontrar
enunciados chamados de "atmicos", fundamentados num
dado emprico formalmente definido, e que a partir desses
enunciados atmicos seria praticvel construir proposies e
teorias, havendo, ento, a possibilidade de ter um tipo de pen
samento verdadeiro, seguro, cientfico. Para eles, a cincia era
o modelo e levantaram o seguinte problema: "O que a cin-
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cia?" Quiseram estudar o modelo e o estudo desse modelo
levou a uma srie de desventuras e decepes: eles acredita
ram ter encontrado um fundamento e este fracassou.
Um desses malogros aconteceu, por exemplo, no plano da
lgica (ou da lgica matemtica) com o teorema da indecidibili-
dade de Gdel. Outro malogro foi a renncia e a desiluso de
Wittgenstein. Porm, um outro cientista e filsofo, Whitehead,
colaborador de Russell, j havia feito a observao de que a cin
cia ainda mais mutvel do que a teologia estes so os seus
conceitos. Nenhum sbio, dizia ele, poderia endossar sem reser
vas as crenas de Galileu, ou as de Newton e nem mesmo todas
as suas prprias crenas cientficas de dez anos atrs. Ele punha
em evidncia o fato surpreendente de que, ao contrrio do que se
pensava, a cientificidade no se define pela certeza, e sim pela
incerteza E a se situa a contribuio decisiva de Karl Popper.
Karl Popper combinava com os positivistas lgicos do
Crculo de Viena por sua vontade de criar, de encontrar uma
demarcao entre cincia e pseudocincia Porm, ele se dife
renciou ao introduzir na cincia a idia de "falibilismo". Ele
disse o seguinte: "O que prova que uma teoria cientfica o
fato de ela ser falvel e aceitar ser refutada.''
Aqui entra a famosa palavra "falsificao", sobre a qual
muito j se escreveu. Sem razo; o que significa essa palavra
falsificao/falseabilidade empregada por Popper num sentido
no previsto no lxico ingls? Ele quis encontrar uma palavra
forte que pudesse fazer oposio a "verificabilidade". Ele
disse: "No basta que uma teoria seja verificvel, preciso queela possa ser falsificada", isto , que, eventualmente, se possa
provar que ela falsa isso o que ele quis dizer e por isso
que os tradutores franceses de Popper fizeram uma traduo
correta ao usar a palavra falseabilidade. Eles no eram igno
rantes que no consultaram o dicionrio e sim quiseram resga
tar essa oposio, forte em Popper, entre a verificao e a fal
sificao. E, por que a oposio to importante em Popper?
Bom, ela est ligada a uma crtica da induo.
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Popper d um exemplo: ns constatamos, ns vemos os
cisnes e percebemos que todos os cisnes so brancos. Ento,
pensamos ter verificado a lei segundo a qual todos os cisnes
so brancos. Mas, basta que aparea um s cisne negro para
que essa lei seja considerada falsa. Isso quer dizer duas coi
sas. Primeiro, que a induo, partindo de fatos da observao
incessantemente verificados, no leva certeza verdadeira; a
certeza terica s pode se basear na deduo. E, segundo,que o problema da induo est ligado ao da verificao: no
suficiente que uma tese seja verificada para ser provada
como lei universal; tambm preciso considerar o caso no
qual ela no verificada, preciso que possamos test-la e
que, efetivamente, possamos refut-la. Sobre isso, Popper nos
diz: nenhuma teoria cientfica pode ser provada para sempre
ou resistir para sempre falseabilidade. Ele desenvolveu um
tipo de teoria de seleo das teorias cientficas, digamos, an
logas teoria darwiniana da seleo: existem teorias que sub
sistem, mas, posteriormente, so substitudas por outras que
resistem melhor falseabilidade. Pela mesma razo Popper
troca a certeza pelo falibismo, porm, no abandona a racio
nalidade. Ao contrrio, ele diz que o que racional na cincia
que ela aceita ser testada e aceita criar situaes nas quais
uma teoria questionada, ou seja, aceita a si mesma como
"biodegradvel". E a opinio de Popper sobre o freudismo e o
marxismo, por exemplo, de que no so teorias cientficas
porque nunca poderemos provar que so falsas, isto , os
adeptos sempre podem dizer que so os opositores, seja na
iluso libidinal e que, por razes psicanalticas, recalcam a
psicanlise, ou na iluso de classe que os faz desconhecer o
verdadeiro motor da histria.
Depois de Popper, houve uma grande reviravolta epistemo
lgica na qual, de alguma forma, surgiram todos os problemas
que o positivismo lgico pensava ter resolvido. Qual o fun
damento da cincia? Muitos no o encontraram; temos posi-
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es extremas como as de Feyerabend que diz: "No preci
so procurar a racionalidade, tudo igual, e no devemos pro
curar mais..." Entramos numa poca em que, finalmente, o
fracasso do ambicioso empreendimento de fundamentar a
verdade da cincia, a certeza da cincia e a do pensamento
fizeram surgir um certo nmero de perguntas essenciais.
Agora vou abordar o problema da objetividade.A objetividade parece ser uma condiosine qua non,evi
dente e absoluta, de todo o conhecimento cientfico. Os
dadosnos quais se baseiam as teorias cientficas so objeti
vos, objetivos pelas verificaes, pelas falsificaes, e isso
absolutamente incontestvel. O que se pode contestar, com
razo, que uma teoriaseja objetiva No, uma teoria no
objetiva; uma teoria no o reflexo da realidade; uma teoria
uma construo da mente, uma construo lgico-mate
mtica que permite responder a certas perguntas que fazemosao mundo, realidade. Uma teoria se fundamenta em dados
objetivos, mas uma teoria no objetiva em si mesma
A objetividade uma coisa absolutamente certa. Ela
determinada por observaes e verificaes concordantes.
Para serem estabelecidas, essas observaes e essas verifica
es precisam de comunicaes intersubjetivas. Mas eviden
te que essas comunicaes so feitas num meio, no centro do
que se pode chamar de comunidade cientfica A, tambm,
existe uma idia de Popper muito interessante. Ele diz mais ou
menos o seguinte: "A cincia no um privilgio de uma teoria
ou de uma mente, a cincia a aceitao pelos cientistas de
uma regra do jogo absolutamente imperativa." No entanto,
para obedecer a regra do jogo da verificao e da experimen
tao, preciso que haja uma grande atividade de crtica
mtua Para que haja uma grande atividade de crtica mtua,
preciso que as teorias se confrontem, que existam pontos de
vista diferentes, at mesmo idias "bizarras", idias metafsi-
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cas. Portanto, no podem existir s fatores comunitrios mas,
tambm, devem existir fatores de rivalidade e fatores confli
tantes; por conseguinte, um verdadeiro meio social onde
existem antagonismos. Mas, para que essa sociedade, essa
comunidade funcione, preciso isso tambm foi dito por
Popper que ela esteja enraizada numa tradio histricae
no seio de uma cultura: a tradio crtica, nascida da filosofia,
em Atenas, cinco sculos antes da nossa era, interrompidacinco sculos depois na nossa era, foi reconstituda com o
Renascimento; foi o primeiro caldo de cultura da cincia que
se destacou como um ramo da filosofia mas que, mesmo as
sim, obedece a essa tradio crtica que marcou a histria oci
dental e que hoje em dia se universaliza atravs da (lifuso da
cincia no mundo. Desde o sculo XIX, o desenvolvimento da
cincia est ligado ao desenvolvimento de uma nova camada
social, aintelligentsiacientfica dos sbios e pesquisadores.
Tudo isso nos leva de volta aos fenmenos da cultura, dasociedade e da histria Todos sabem que existe esse interes
sante processo que, uma vez estabelecida a objetividade, faz o
cientista apagar todo essehinterland,toda essa enorme infra-
estrutura que permite a objetividade. Seria mesmo preciso
apag-la? Acho que no, porque preciso refletir sobre o
seguinte: logicamente a objetividade (as observaes astron
micas, por exemplo) estabelecida independentemente dos
observadores, porm, podemos muito bem supor que tal obje
tividade para ser operacional na atividade cientfica pre
cisa ser sempre verificada ou reverificvel pelos cientistas.
todo um enorme processo sociolgico, cultural, histricoe
intelectual que produz a objetividade. E, eis que a objetivida
de, produto dessa atividade, transcende a si prpria e volta
para fundamentar de novo e relanar a tradio crtica, a
comunidade cientfica, as atividades de verificao etc. Isso
quer dizer que, de fato, o problema da demarcao entre o
cientfico e o no-cientfico um problema que no pode ser
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resolvido por um princpio claro ou fcil: a demarcao o
resultado de uma grande atividade que a comunidade cientfi
ca mantm ao menos no C.N.R.S (Comit Nacional para
Pesquisas Cientficas) e nas universidades e que continua a
viver atravs de intercmbios, congressos, palestras, artigos
de revistas etc. Melhor dizendo, a prpria objetividade dos
dados cientficos mantida por um processo regenerador
ininterrupto que questiona as mentes, os indivduos, os grupos sociais etc.
Portanto, eis a minha idia: a objetividade o resultado de
um processo crtico desenvolvido por uma comunidade/socie
dade cientfica num jogo em que ela assume plenamente as
regras. Ela produzida por um consenso, porque qualquer um
que reflita sobre a objetividade pode dizer: "O que nos faz ver
que alguma coisa objetiva?" Bom! Na verdade, um consen
so de pesquisadores. Temos confiana nesse consenso de pes
quisadores e, como diz Popper, a objetividade dos enunciadoscientficos reside no fato de eles poderem ser intersubjetiva-
mente submetidos a testes. S que, a tambm, vocs perce
bem que isso constitui um crculo. Porque uma vez que esses
testes comeam a ser feitos, eles fundamentam novamente a
objetividade real do fenmeno estudado. Chamo a ateno
para um problema muito interessante: que, assjm, descobri
mos que existe uma ligao inaudita entre a intersubjetivida-
de e a objetividade; acreditamos poder eliminar o problema
dos assuntos humanos, mas, na realidade, isso no possvel.
Se a objetividade se baseia numa dinmica complexa, ento,
efetivamente, vocs podem compreender uma coisa muito
importante, na qual Popper insistiu muito: se a objetividade
cientfica fosse fundamentada na imparcialidade ou na objeti
vidade do sbio individualmente, ento deveramos desistir
dela. A objetividade no uma qualidade prpria das mentes
cientficas superiores. Alm disso, vocs sabem muito bem
que fora dos seus laboratrios as grandes cabeas, os pr-
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mios Nobel, os sbios eminentes se comportam como seres
passionais, pulsionais, ao emitirem suas opinies sobre a
sociedade e sobre a poltica, opinies to lastimveis quanto
as de qualquer outro cidado e mais deplorveis ainda por
causa do prestgio de que gozam e dos erros que propagam.
Logo, vocs compreendem que a objetividade no uma
qualidade prpria do esprito do sbio. No laboratrio, o cien
tista, submetido regra do jogo, sofre uma coao que oempurra para o rigor e para a objetividade. E, s vezes,
mesmo no laboratrio, vocs sabem que existem estranhas
excees.
Em contrapartida, um outro ponto bem "desentulhado" por
diversos debates foi que, evidentemente, no existe um fato
"puro". Os fatos so impuros. por isso, finalmente, que a ati
vidade do cientista consiste numa operao de seleo dos
fatos; de eliminao dos fatos que no so pertinentes, inte
ressantes, quantificveis e julgados contingentes. O dispositivo experimental, em ltima instncia, a seleo de um certo
nmero de dados; um transplante no meio artificial, que o
laboratrio, e permite agir nas variaes desejadas. Dito de
outro modo, fazemos recortes na realidade e por isso que se
diz que no existe um fato puro, um fato sem teoria. Ser que
isso quer dizer que no existe fato objetivo? No! preciso
dizer que graas s idias bizarras, graas s hipteses, graas
aos pontos de vista tericos que, efetivamente, consegui
mos selecionar e determinar os fatos nos quais podemos trabalhar e fazer operaes de verificao e falsificao. E esta
outra idia muito importante: o conhecimento no uma
coisa pura, independente de seus instrumentos e no s de
suas ferramentas materiais, mas tambm de seus instrumen
tos mentais que so os conceitos; a teoria cientfica uma ati
vidade organizadora da mente, que implanta as observaes e
que implanta, tambm, o dilogo com o mundo dos fenme
nos. Isso quer dizer que preciso conceber uma teoria cient-
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fica como uma construo. Mas, ento, quais so os ingre
dientes dessa construo? A que as coisas comeam a ficar
interessantes.
Popper disse e viu muito bem que na elaborao das teo
rias cientficas entram em jogo pressupostos, postulados
metafsicos. Outros autores, como Holton, perceberam que os
cientistas sempre tm idias bizarras. E, ns tambm sabe
mos, quando examinamos a histria das cincias, que os grandes fundadores da cincia moderna eram impelidos por idias
msticas: os pioneiros da nova cosmologia, desde Kepler at
Newton, fundamentaram suas exploraes da natureza na
convico mstica de que existiam leis por trs das confuses
dos fenmenos e que o mundo era uma criao racional, har
moniosa. Isso um postulado. Podemos nos perguntar ser
que Newton foi fecundo, apesar de ser alquimista, mstico e
desta? Ou porque era alquimista, mstico e desta. Vocs
viram que as polmicas entre Bohr e Einstein ocultam oposies de postulados, idias inverificveis sobre a prpria natu
reza do real. Portanto, existem crenas no experimentais e
no testveis por trs das teorias, isto , na mente dos sbios
e dos pesquisadores. Existem impurezas no s metafsicas
mas, sem dvida, tambm sociolgicas e culturais. Foi aqui
que Holton, que fez estudos notveis sobre o tema da imagi
nao cientfica, props a noo dethemata.
Themata, o que ? Um thema (thema, singular/ themata,
plural) uma preconcepo fundamental, estvel, largamentedifundida e que no se pode reduzir diretamente observao
ou ao clculo analtico do qual no deriva Isso significa que os
themata tm uma caraterstica obsessiva, pulsional que esti
mula a curiosidade e a investigao do pesquisador. Tomemos
Einstein como exemplo: Max Born diz que Einstein acreditava
no poder da razo de captar, por intuio, as leis pelas quais
Deus criou o mundo, isto quer dizer que, na mente de Einstein,
Deus no totalmente metafrico. Thema einsteiniano (a
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frase de Einstein): "A nica fonte autntica da verdade est
na simplicidade da matemtica" claro que no verificvel,
mas fecundo. Pode-se at dizer que existem tipos de explica
es bizarras que entram nos grandes esquemas. Nesse
campo, o livro de Schlanger interessante: ele diz que existem
explicaes platnicas (procuram a explicao descobrindo
as essncias escondidas por trs dos fenmenos aparentes);
explicaes aristotlicas (procuram mais as causalidades, osjogos de causa e efeito no mundo dos fenmenos); explica
es esticas (procuram a satisfao na finalidade e na funcio
nalidade). Os que so impulsionados porthematasentem um
tipo de gozo eu diria quase um coito psicolgico quando
acham que o universo responde inteno que os incita.
Todos somos assim, seno seramos somente burocratas,
somente funcionrios da pesquisa. A seu modo, Piaget tam
bm viu que existiam certos modelos profundos, como o
modelo reducionista e o modelo construtivista, que diferenciavam os tipos de mente e os tipos de explicaes. Nesse aspec
to Thomas Kuhn (autor de La Structure des revolutions
scientifiques/A estrutura das revolues cientficas) trouxe
uma coisa muito importante que ele chama de paradigma
O paradigma tambm alguma coisa que no resulta das
observaes. De alguma forma, o paradigma aquilo que
est no princpio da construo das teorias, o ncleo obs
curo que orienta os discursos tericos neste ou naquele sen
tido. Para Kuhn, existem paradigmas que dominam o conhecimento cientfico numa certa poca e as grandes mudanas
de uma revoluo cientfica acontecem quando um paradig
ma cede seu lugar a um novo paradigma, isto , h uma rup
tura das concepes do mundo de uma teoria para outra s
vezes, basta uma simples mudana, uma simples troca, como
a troca entre o Sol e a Terra, para derrubar toda a concepo
do mundo. Kuhn (e outros autores como Feyerabend) inferi
ram a incomensurabidade das teorias cientficas: eles afir-
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maram que no se pode dizer que as teorias cientficas se
acumulam umas sobre as outras, sendo a nova maior, mais
extensa e absorvendo a precedente. Afirmaram que h saltos
ontolgicos de um universo para outro. Mudamos de univer
so quando passamos do universo newtoniano para o univer
so einsteiniano. Mudamos de universo quando passamos do
universo einsteiniano para o universo da fsica quntica,
sobretudo como ele aparece depois das experincias deAspect. Ento, em vez de vermos um tipo de racionalidade
progressiva e ascensional em marcha na histria, percebe
mos que a histria das cincias, como a histria das socieda
des, conhece e passa por revolues. A, tambm, existem
muitas polmicas e grosso modo (voltarei a esse assunto)
preciso ter uma viso multidimensional da evoluo cientfi
ca. Porm, quero insistir no fato de que muitos autores for
mularam as idias dethemata,de paradigmas, de postulados
metafsicos, de imagens do conhecimento (Elkana); outroautor (Mayurama) falou demindscape(de paisagem mental)
e a idia de "programas de pesquisa", tambm interessante e
muito popularizada desde ento, foi uma idia de Lakatos,
enunciada no seu famoso artigo da coletnea Criticism and
Development of Knowledge.
O que um programa de pesquisa? Lakatos acha que exis
tem grupos de teorias ligadas, umas s outras, por princpios
e postulados comuns. isso o que ele chama de programa de
pesquisa. Nesses grupos de teorias, nesses programas, existeum ncleo duro, o ncleo de postulados fundamentais que
incentivam a pesquisa, e existe o que ele chama de cinto de
segurana que o dispositivo experimental, observacional,
que pode se modificar. Porm, o ncleo duro aquilo que
resiste por mais tempo. A idia de ncleo duro de Lakatos
est muito prxima da idia de paradigma de Kuhn, ou seja,
que no ncleo da atividade cientfica existe alguma coisa que
no cientfica mas, da qual, paradoxalmente, depende o
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desenvolvimento cientfico. Ento, teoria, themata,programa
de pesquisa, paradigma etc. so noes que introduzem na
cientificidade os elementos aparentemente impuros mas,
repito, necessrios ao seu funcionamento.
Talvez vocs conheam um ponto de vista que vou assina
lar de passagem. o ponto de vista de Habermas sobre o que
ele chama de os interesses. Ele diz o seguinte: existem tipos
diferentes de conhecimento cientfico; diferentes porque so
impulsionados por interesses diferentes. Por exemplo, h o
interesse tcnico que o interesse de domnio da natureza
que marca profundamente as cincias emprico-formais; h o
interesse prtico, quer dizer, o controle (especialmente o
controle da sociedade) que, segundo Habermas, a caracte
rstica principal das cincias histrico-hermenuticas; e h o
interesse reflexivo: "Quem somos ns, o que fazemos?" que
impulsiona o que ele chama de cincia crtica. Para ele, esse
o bom interesse porque a cincia crtica, motivada pelareflexividade, tem por interesse a emancipao dos homens,
enquanto os outros interesses conduzem dominao e
sujeio. Citei esse ponto de vista que alis vocs j
conhecem porm, no creio que possamos fazer distin
es to ntidas como faz Habermas. Acho que interesses
diferentes se misturam na mente dos pesquisadores de modo
completamente diverso e que, justamente, essa mistura o
problema.
Habermas diz o seguinte: na medida em que a cincia precisa, em primeiro lugar, conquistar a objetividade, ela dissimula
os interesses fundamentais aos quais ela deve no s os
impulsos que a estimulam, mas tambm as condies de toda
objetividade possvel. Ele prope um tipo de psicanlise cien
tfica ao dizer: conscientizem-se dos interesses que os ani
mam, dos quais vocs no tm conscincia.
Em contrapartida, quando vocs levam em considerao
teorias como a das, construes, percebem que no se trata,
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simplesmente, de um jogo de montar, de ummeccano,1 que
ligam as noes por operaes lgicas, e que no s a inte
grao coerente de dados verificados e testados que importa;
existem muitas outras atividades e, entre elas, a atividade
individual criadora. A, existe um tipo de esquizofrenia no uni
verso cientfico. De um lado, existem livros e monumentos
consagrados glria dos grandes gnios, como Newton,
Einstein etc. e, do outro lado, quando vemos os tratados e os
manuais, esses grandes gnios famosos desapareceram por
completo, isto , vemos que a atividade da mente humana que
inventou a teoria foi completamente esvaziada. O curioso
que o aspecto criativo individual um aspecto ao mesmo
tempo conhecido e totalmente recalcado, totalmente imerso!
O que quer dizer idia genial? muito complicado, no pode
mos racionaliz-la e no podemos dar uma equao genial do
tipo E = mc2, no ? (se bem que foi um gnio que encontrou
essa equao). o famoso problema de o ato da descoberta
escapar anlise lgica, como dizia Reichenbach que, no
entanto, era pioneiro da Escola de Viena, do positivismo lgi
co. Portanto, existe o problema da imaginao cientfica que
eliminamos porque no saberamos explic-lo cientificamen
te, mas que est na origem das explicaes cientficas.
Hanson, um autor que tambm refletiu sobre esse ponto
(inicialmente, muitos desses autores so fsicos, cientistas que
refletem sobre a cincia porque os filsofos no fazem mais
esse trabalho) tentou compreender o elo entre a viso original,apercepo original ea descoberta, destacando o que ele
chama de "retxoduo". Ele diz: "Qualquer ato especfico de
descoberta traz consigoacapacidade de considerar o mundo
da realidade sob uma nova luz. A observao emprica no
um simples fato fsico e no uma operao terica neutra."
Evidentemente, a temos perplexidade e surpresa! Einstein
Jogo de construo metlica(N.T.)
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dizia de si mesmo: "Eu era uma criana retardada O tempo
sempre me deixava estupefato, enquanto os outros achavam o
tempo muito normal." Positivamente, um problema de ques
tionamento do real e o prprio questionamento do real um
fenmeno muito particular, muito singular. Foi Pierce quem
usou a palavra abduo para caracterizar a inveno das hip
teses explicativas; ele achava que induo e deduo eram ter
mos insuficientes e que a abduo era uma noo indispens
vel para compreender o desenvolvimento do pensamento.
Vocs tm problemas de estratgia na pesquisa e na descober
ta que apelam aos recursos organizadores da mente, e um dos
problemas que o inventor imprevisvel e relativamente
autnomo em relao ao prprio meio cientfico. Isso foi ver
dade no passado e continuar sendo verdade no futuro; no dia
em que a inveno for programada, no haver mais inveno.
Por exemplo, preciso ver que os anos admirveis de
Newton, de Newton jovem, correspondem aos da peste quelevou a Universidade de Cambridge a fechar suas portas.
Durante dois anos, Newton ficou sozinho, devaneando, olhan
do para as macieiras e, de alguma forma, podemos dizer que se
a universidade tivesse permanecido aberta e ele tivesse conti
nuado a assistir as aulas, talvez no descobrisse a gravidade.
Quem sabe deveramos desejar o fechamento do C.N.R.S
durante dois anos para que as pesquisas fossem estimuladas...
Munford disse uma coisa muito interessante sobre Darwin:
"Darwin escapou dessa especializao profissional unila
teral que fatal a uma plena compreenso dos fenmenos
orgnicos. Para esse novo papel, o amadorismo da prepa
rao de Darwin revelou-se admirvel. Embora estivesse
a bordo doBeaglena qualidade de naturalista, ele no ti
nha nenhuma formao universitria especializada Mes
mo como bilogo, ele no tinha nenhuma instruo ante
rior a no ser como apaixonado pesquisador de animais e
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colecionador de colepteros. Diante da ausncia de fixa
o e da inibio de escola, nada impedia o despertar de
Darwin para as manifestaes do meio ambiente vivo."
No plano da Universidade, encontramos a um fenmeno
que a etologia (estudo do comportamento animal) revelou,
que o imprinting. Trata-se da famosa histria dos passari
nhos de Konrad Lorenz: o passarinho sai do ovo, sua me
passa ao lado do ovo e ele a segue. Para o passarinho, o pri
meiro ser que passa perto do ovo de onde ele saiu a sua
me. Como foi o gordo Konrad Lorenz quem passou ao lado
do ovo, o passarinho tomou-o por sua me e temos toda uma
ninhada de passarinhos correndo atrs de Konrad, persuadi
dos de que ele a me. Isso o imprinting,marca original
irreversvel que impressa no crebro. N