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VOLUME III, N1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001
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VOLUME III, N1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 VOLUME III, N1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 VOLUME III, N1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 VOLUME III, N1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 VOLUME III, N1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 VOLUME III, N1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 VOLUME III, N1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 VOLUME III, N1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 VOLUME III, N1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001
Controvrsias Controvrsias Controvrsias Controvrsias Controvrsias Controvrsias Controvrsias Controvrsias Controvrsias Controvrsias
J. L. Pio Abreu
Mdico Psiquiatra dosH.U.C.
Professor da Faculdadede Medicina daUniversidade deCoimbra
Como tornar-sedoente mental - V
A razo desta srie de artigos foi explicada em nmeros
anteriores. Grosso modo, so um ensaio de soluo
do paradoxo dos psiquiatras: grande parte dos
verdadeiros doentes (com diagnstico a preceito) noaceitam tratar-se, enquanto um sem nmero de pessoas
sem diagnstico claro procura uma doena e o seu
miraculoso tratamento. Espero, com este ensaio,
contentar uns e outros, contribuindo assim para
terminar com o jogo do gato e do rato que se travafrequentemente nos consultrios psiquitricos. Dado
porm o possvel efeito prejudicial destes artigos,
aconselho a que a sua leitura seja reservada a pessoas
inteligentes e com esprito de humor.
Terminamos esta srie com as doenas sagradas da
Psiquiatria: a psicose manaco-depressiva e a esquizofrenia.
Muitos entendidos diro que estas doenas esto escritas
nos astros (ou no destino, ou nos genes) e, portanto,
no se pode fazer nada para as ter. Discordo. Todos osclnicos sabem que existem certas pessoas, tantas vezes
familiares de doentes assumidos, que manifestam
sintomas incipientes mas que, nada tendo feito para os
agravar, passam uma vida normal e nem sequer se do
ao trabalho de se queixarem aos psiquiatras. Muitosoutros procuraram cedo os psiquiatras e fazem, desde
o princpio, um tratamento correcto e sensato,
arriscando-se a fazer igualmente uma vida normal.
Evidentemente, no aderiram minha proposta.
Para os aderentes, esto aqui vrios truques que aprendi
com aqueles que, de um modo ou doutro, tiram partido
da doena e no resistem a complic-la. Admito que
alguns deles tenham obtido uma preciosa ajuda de
psiquiatras ou psiclogos, ou mesmo dos malentendidosda cincia do seu tempo. So coisas que acontecem,
e tambm no seguro que, hoje, saibamos tudo sobre
o assunto. Mas parece-me que, com todas as
oportunidades que a sociedade actual pe nossa
disposio, tanto nos circuitos legais como no legais,
qualquer pessoa ser capaz, se no de exibir uma
verdadeira doena deste tipo, ao menos adquirir uma
imitao. Por isso, leitor aderente, tenha f e persistncia.
Como tornar-se manaco-depressivo
Lord Byron, Schuman, Beethoven, Balzac, Hemingway,
William Faulkner, Virginia Woolf, Althusser, Edward Munch,
Paul Gaugin, Antero de Quental. J ouviu falar de algum
destes gnios criadores? Pois bem: todos eles tinham
psicose manaco-depressiva, e a associao entre a doena
e a genialidade no pura coincidncia. A psicose manaco-
depressiva (que agora tem o estpido nome de doena
bipolar) no s a doena dos gnios: tambm a doena
que confere a genialidade criativa. Mas desiluda-se o
leitor. Para l chegar precisa de pertencer a uma famlia
tocada pelo fogo, na feliz expresso de Kay Jamison, ela
tambm portadora da doena.
Provavelmente ser uma famlia ilustre, j que a doena
facilita a asceno social. Como, porm, samos de um
pas rural, algum dos seus antepassados ter sido, pelo
menos, navegador ou emigrante. Se esse for o caso,
prepare-se para passar por perodos da sua vida que
em tudo se parecem, quer hibernao dos ursos,
quer migrao das aves. Torpr, lentido, apatia, umas vezes,
energia, vivacidade e deciso, outras vezes. bem possvel que
todos sejamos um pouco assim, ao ritmo das estaes do ano,
empolgados com a luz do astro Rei, dormentes com o calor do
sol ou vibrantes com o ar gelado, perturbados com os equincios
da primavera ou do outono (o nascer da flor e o cair da folha),
variveis com as fases da lua. O problema que, v-se l saber
porqu , a lgumas pessoas da sua faml ia exageram.
Se abrir um livro cientfico sobre a psicose manaco-depressiva, vai
encontrar um rol de teorias que lhe falam de vrios neurotransmissores
que actuam em diversos receptores e assim por diante, uma coisa
muito complicada. verdade que isso para perceber a actuao
dos medicamentos e talvez para promover a sua venda. Mas, c para
ns, que no estamos interessados em comprimidos, mas sim na
promoo da doena, o problema bastante mais simples. Numa
palavra, o que importa desorganizar os ritmos do seu corpo.
Este problema no tem que o afligir desde a infncia. Pelo contrrio,
o fogo que vem dos seus genes pode fazer de si uma criana brilhante,
criativa e cheia de actividade. Aquilo que se chama uma pessoa de
sucesso. Por quanto tempo, sempre difcil saber, pois a riqueza de
esprito no dura sempre. O problema esperar pela primeira
depresso, que pode chegar aos 15 ou aos 70 anos. E isso depende
muito da sua vida afectiva, da sua insero social ou da sua profisso.
Para chegar doena, atrevo-me a dar-lhe um conselho: entre em
roda livre, mas apenas a partir de certa idade. De facto, se voc
tivesse uma vida toda ela bem estruturada e cheia de responsabilidades,
com horrios a cumprir, com tarefas a desempenhar, refeies a
horas, hora certa de se levantar, arriscava-se a nunca dessincronizar
o seu relgio corporal nem ter tempo de se dar conta das suas
angstias internas. Mas mesmo isso que dever fazer durante a
sua infncia e juventude, de modo a criar uma imagem de sucesso
e uma personalidade activa e saudvel, e como tal reconhecida pelo
seu crculo de amigos e familiares, todos eles dispostos a apoi-lo
e a desculparem-lhe algumas excentricidades. Assim, tudo ir correr
bem e, quando comear com problemas, todos reconhecero que
por doena. Pelo contrrio, se comeasse em roda livre muito
cedo, entraria facilmente na asneirada, passaria por muitas drogas,
iria ter dificuldades em estabelecer a sua identidade, e o melhor
diagnstico a que poderia aspirar seria o de uma personalidade
borderline. Coisa demasiado banal, nos dias que correm.
O problema, portanto, no est em como entrar em roda livre,
mas sim quando. Para que o seu caso seja tpico, aconselho-o a
faz-lo na idade adulta. Entretanto dever tratar da sua formao
e at mesmo constituir famlia. Mas cautela evite demasiadas
responsabilidades e procure uma profisso onde tenha a possibilidade
de cumprir os horrios que lhe apetecerem. Ou ento que lhe
permita facilmente atrasos, faltas e baixas sem repercusso no seu
rendimento econmico. Depois aguarde por uma situao de
tenso, conflito ou perda, daquelas que acabam por acontecer a
toda a gente, contando que viva os anos suficientes. Isso pode
ocorrer na rea profissional, familiar ou afectiva. Qualquer coisa
que, genuinamente, o desgoste. Mas isto fica entre ns porque, por
mais grave que o problema tenha sido, voc, habituado a resolver
tudo, vai desvaloriz-lo inicialmente e no vai admitir que est
triste por isso. Seria demasiado normal.
Depois, preciso esperar por uma altura propcia do ano, geralmente
por volta dos equincios. Se for para comear com uma depresso,
aconselho-o o fim da primavera, quando todas as outras pessoas
comeam a renascer com o sol, a olhar para si prprios e para os
outros. Nessa altura, e contra a corrente, a ocasio de voc se
declarar inimigo do sol. Tranque-se em casa e feche todas as janelas
e persianas. Se tiver de se levantar de manh, faa o mais tardiamente
possvel essa tentativa derradeira, mas reconhecendo que a sua
disposio para se levantar no grande. Para isso, arrange qualquerpretexto menor, algum que no o tratou como merecia, que no
o cumprimentou, qualquer contratempo assim. Faa cara dechateado e ver que no difcil arranjar pretextos destes.
Durante o dia, e logo que possvel, tranque-se em casa. Deite-se
na cama (ou no seu sof preferido) s escuras, com o objectivode dormitar. Se tiver coisas para fazer, v-as adiando. Evite contactoscom outras pessoas e deixe de cumprir os compromissos. At se
pode entreter a pensar em todas as coisas que ter de resolverdurante a sua vida, e ver como impossvel viver. A soluo
simples: dormir tanto quanto possvel (acabar por descobrir que,apesar de ficar 24 horas por dia deitado, no lhe possvel dormir
todas essas horas). Faa por isso durante o dia e, sobretudo, depoisde jantar, quando verificar que passou mais um dia vazio. claro
que depois, durante a noite, no tem mais sono. Fique a olhar parao ar ou, melhor, para as porcarias da televiso. Depois de um diasonolento, vai passar as noites em branco, mas assim que vai
conseguir dessincronizar o relgio do seu corpo.
Este apenas o incio, porque o ciclo repetir-se- dias a fio, e cadavez pior. Alm de evitar os encontros banais, comea a faltar aos
compromissos importantes. Esteja-se nas tintas para tudo, quealgum cuidar de si. Se algum o criticar, melhor. Voc sabe quemerece todos os insultos porque se transformou num trapo intil,
o ser mais desprezvel da humanidade. Fique a curtir a sua culpa e aimaginar os castigos que merece. Perdido por dez, perdido por mil.
Para si, s a cama, a escurido, o nada. Muito perto da morte, queseria benvinda. Nem sequer j chora (secaram-lhe as lgrimas): s
aquela expresso parada, aquela lentido. S de pensar num movimentosente um peso de toneladas, para lhe sair uma palavra tem de percorrer
todo o dicionrio. Comida? -Que trabalheira! Sexo? -Que estupidez!A vida? -Um peso impossvel! -O futuro? -Um mar de calamidades.
Ao sentir-se assim, j se encontra to dessincronizado que o seuorganismo reage com a hibernao. Mas de vez em quando os seus
astros internos sincronizam e pode sentir, subitamente, umafelicidade efmera. bem possvel que isso lhe comece a acontecer
para o fim da tarde ou mesmo para a noite. Mas voc, to preocupadoque est com o seu sono, nem d por isso. mnima oportunidade
pe-se a dormir, e o mximo que pode ter so bons sonhos. Paraisso vai mesmo procurar comprimidos para dormir. Mas quantomais os toma mais se dessincroniza, j que o seu organismo se
habitua a eles e, assim que acaba o efeito, l comea a insnia... ea angstia. O seu relgio corporal est agora catico e voc merece
o diagnstico de depresso major com melancolia. Para acrescentaro mximo da graduao (com componente psictico), basta sair um
pouco da realidade e supr, por exemplo, que j apodreceu, que
est mesmo morto e esperando pelo enterro (os especialistas
chamam a isto delrio de Cotard).
Os trs pargrafos anteriores so muito pouco para descrever o
verdadeiro martrio da depresso. O processo pode prolongar-se por
meses ou mesmo anos, s vezes melhorando um pouco, na maior
parte das vezes piorando, j que cada deciso que voc tomar
sempre em seu desfavor. claro que existe tratamento para isso, mas
tambm no se decide a ir ao psiquiatra. Talvez se entretenha a passar
por outros especialistas ou alternativos, tomando medicamentos
irrelevantes ou insuficientes que faro a sua depresso arder em fogo
lento. Assim vai ter tempo suficiente para pr em causa toda a sua
vida e, quem sabe, tomar decises ruinosas. Algum dia se cansar, mas
tambm lhe devo dizer que a verdadeira depresso no dura sempre.
Se for ao psiquiatra e este o souber tratar (e voc aceitar o
tratamento), pode estar certo que ao fim de trs semanas se sentir
bem melhor. Se no, ter de aguardar que a natureza (ou talvez os
astros) d por findo o seu sofrimento. Num caso e noutro, voc
acordar um dia de manh, abrir a janela do quarto e ver como
bonito o nascer do sol. Nesse dia sentir-se- feliz e tudo lhe
correr bem. Achar-se- estpido pelo estado a que se deixou chegar,
e pensar em recuperar o tempo perdido. Se continuar em roda
livre (ou se conquistou esse estatuto com a depresso), pode pr
de imediato mos obra e preparar-se para a mania.
Ela pode ou no acontecer. Se no for desta vez, pode esperarpara a prxima. Mesmo assim arrisco-me a dar-lhe alguns conselhospara que se torne manaco o mais depressa possvel. O importante manter-se em roda livre e fazer coisas que o entusiasmem. Seantes lhe receitaram antidepressivos, tome-os agora em grandesquantidades.Voc renasceu: est satisfeito e fluente, torna-se umverdadeiro sedutor e no lhe difcil levar os outros certa. Poroutro lado, torna-se optimista e j no admite que as coisas lhecorram mal. Sente-se cheio de energia e est disposto a arriscar,seja no que fr. Arrisque: faa projectos, apresente-os s outraspessoas, que elas no resistem ao seu dinamismo. Continue alevantar-se cedo, mas trabalhe muito, sobretudo pela noite fora.Ou seja: durma pouco e, se possvel, passe noites em branco. Este o verdadeiro teste. Se, depois de umas noites em claro, se sentecom maior energia, voc tem direito a uma verdadeira mania.
Vai continuar a fazer projectos e propostas, e passa de uns paraos outros ao sabor das ocasies. A sua alegria contagiante: alegraos outros que, por sua vez, o alegraro a si. Toma as decises maistemerrias no que respeita ao amor, profisso ou aos negcios.At natural que muitas coisas lhe corram bem. Se correrem mal,voc nem tem tempo para pensar nisso, uma vez que est sempre apassar de uma para outra iniciativa. Fala sem parar, de tal modo que,apesar de uma boa memria, j no se consegue lembrar do que disseantes. Tudo isto sem dormir e, talvez, sem prestar nuita ateno comida. Roda livre! Em compensao, a sua energia, que esteveadormecida na depresso, agora cada vez maior (paradoxos danatureza, ou a lei do pndulo?). A sexualidade, tambm em roda livre,no conhece quaisquer freios. a altura das grandes realizaes, depr em aco as mais escondidas fantasias. Pode fazer discursos smassas atnitas debaixo da sua janela, exibir-se como espontneonum espectculo de pera ou tentar roubar um submarino da Marinha.
No se esquea que muitas obras de grandes criadores foramrealizadas numa fase destas, depois de eles terem posto todo o seupassado em causa durante a depresso. certo que pertenciam aoseleitos, mas estavam pouco interessados em serem doentes mentais.Por isso, mantiveram a sua mania em lume brando, procurando oapoio de psiquiatras, a crtica de amigos e, sobretudo, a disciplina quehaviam adquirido nos seus ofcios. Evitaram entrar em roda livre. Porfavor, leitor, se est genuinamente interessado nos objectivos destelivro, no siga estes exemplos. Faa coisas mais grandiosas e disparatadas,mude de assuntos, v buscar o seu alimento falta de sono. Rapidamenteentrar em tal confuso, que algum o levar, apesar do seu protesto,ao hospital. A, no obstante as injeces que ocasionalmente lheconsigam dar, pode continuar o seu engraado jogo do gato e dorato, ensaiando fugas, recusas, faenas, fintas e sedues. O pior que,
hoje, existem medicamentos realmente eficazes.
O resto da sua carreira depende do modo como vai lidar com
estes medicamentos. Imagine que existem pessoas que, tratadas
adequadamente e aceitando o tratamento, apenas tm uma destas
fases durante a vida que, em todos os aspectos, se torna normal
ou bem sucedida. No foi certamente para isso que leu este livro
e, portanto, vamos ao resto. Por acaso at o aconselho a tomar,
inicialmente, os medicamentos prescritos. Por um lado, pode ter
a sorte de apanhar um psiquiatra mal avisado que lhe d
medicamentos que apressem o seu prximo episdio, depressivo
ou manaco. Por outro lado podem-lhe receitar um simples sal de
ltio ou outro medicamento normalizador do humor (um anti-
epilptico, veja l!). Com efeito, se tomasse certinho tais
medicamentos, podia ficar livre de novos episdios. Mas voc vai
apenas tom-los durante algum tempo para logo os largar
subitamente. Parece que esta a melhor maneira de ganhar
resistncia ao tratamento e dessincronizar mais o seu relgio, com
o adicional bnus de mais episdios manacos e depressivos.
A altura de deixar os medicamentos consigo. Mas pelo que
conheo dos interessados, a melhor altura quanto se aproximar
a poca de uma nova mania, talvez no outono. Provavelmente voc
j conhece os sinais de que ela est para chegar: levanta-se bem
cedo com a sensao de que vai vencer o mundo, adora a luz e
as cores, sente-se com energia para dar e vender, retoma os velhos
projectos, trabalha muito, no consegue parar. Esquece-se das horas
e, sobretudo, da hora de tomar os comprimidos. O seu optimismo
f-lo convencer de que j no precisa de se tratar, e a est a sua
sensao de (demasiado) bem estar para o provar. Largue a
medicao e entrar, seguramente, num novo episdio manaco.
Depois, j se sabe: deixa de dormir, entra em roda livre, leva ao
exagero as suas faanhas e algum (at pode ser a polcia) o levar
ao hospital para entrar de novo no jogo do gato e do rato.
Os medicamentos, agora, podem j no pegar to bem, e o ciclo vai
recomear. natural que da mania vire para a depresso, uma boa
ocasio para se arrepender e envergonhar das tolices que fez, sentimentos
estes sobrepostos culpa e pessimismo prprios do estado depressivo.
Agarra-se desesperadamente aos medicamentos antidepressivos,
convencendo o seu psiquiatra que est na disposio de fazer uma
medicao certa... at ver. Se ajudar com bebidas alcolicas, pode baralhar
mais o esquema dos tratamentos e dos seus altos e baixos.
A evoluo torna-se agora imprevisvel. Pode ter um ciclo por ano
(um episdio manaco e outro depressivo), ao ritmo da translaco
da terra, eventualmente com um ou outro ano de folga, ou pode
funcionar ao ritmo da translaco da lua, com mais de 4 ciclos
anuais. Naste caso tratar-se- de uma mania de ciclos curtos, e pareceque o melhor para chegar a ela abusar dos antidepressivos. Comtodas estas voltas e reviravoltas, a sua vida fai ficar feita num oito.
Mas os servios de sade no se podem negar a cuidar de si
sempre que seja necessrio e nada mais lhe reste. Voc est
verdadeiramente doente.
Em 1984, os americanos descobriram uma nova doena, a SAD
(Seasonal Affective Disorder). Como tudo o que vem dos americanos,
esta inveno tem muito que se lhe diga. SAD parece uma boa
designao para marketing, mas no diz nada de novo. Primeiro
porque no se trata de uma doena do afecto, mas sim do humor,
como so todas as manias e depresses. Em segundo lugar, porque
todas as manias e depresses tm alguma incidncia sazonal. Do
que se trata ento? Pura e simplesmente, de uma depresso que
ocorre mais frequentemente no inverno, sobretudo nos paises
longe do Equador (acima e abaixo do paralelo 35). Como o nosso
pas est no limite, tambm nos pode calhar esta beno.
Em boa verdade no sei se se trata de uma verdadeira doena ou
de um estado banal, uma vez que muitos dos doentes envolvidos
nos primeiros estudos foram convocados por anncios de jornais
onde se descreviam os sintomas: tristeza, irritabilidade, pessimismo,
isolamento e desinteresse sexual, dores, fadiga, lentido, hipersonolncia
e um especial apetite para hidratos de carbono, com o consequente
aumento de peso. Como tpico da sociedade de consumo ( qual
a psiquiatria no faz excepo) foi a oferta que determinou a procura.
Por isso, se o leitor se sentir assim nos invernos frios e escuros,
pode-se apresentar ao seu psiquiatra com o diagnstico j feito.
Mesmo assim, os sintomas so variveis e em graus diversos. Decidir
se se trata de uma doena autnoma, de um estado fisiolgico de
adaptao ao inverno ou de uma depresso clssica com alguns
sintomas atpicos, pode ser um problema para o psiquiatra.
Para o leitor praticante vai dar ao mesmo, uma vez que tem uma
verdadeira oportunidade de tentar a carreira de manaco-depressivo.Tanto mais que aos sofredores da doena afectiva sazonal lhes dada
a possibilidade de terem tambm episdios manacos: um no fim do
episdio depressivo, de Maro a Abril, outro antes, de Setembro a
Outubro. Se estudou bem a carreira dos manaco-depressivos, j sabe
como pode forar os episdios de energia e euforia (e falta de sono).At pode passar s depresses e manias clssicas, com episdios
noutras fases do ano. Tudo depende da capacidade de dessincronizar
o relgio corporal com as vrias alternativas que lhe indiquei, incluindo
a irregularidade da medicao que o psiquiatra fornece.
De facto, os medicamentos para esta doena so os mesmos das
outras manias e depresses, embora se especule muito sobre a
omnipresente serotonina (neste caso ela estar ausente: dizem que
a procura de chocolates e hidratos de carbono tem a ver com o auto-
reabastecimento deste neurotransmissor). Mas a doena afectivasazonal tem mais um medicamento eficaz: a luz do sol durante a
manh. Vrias empresas passaram a fabricar a luz do sol e a disponibiliz-
la comercialmente de todas as formas e feitios. O ltimo produto
consiste num bon com uma lmpada inserida por debaixo da pala.
Engraadssimo e com um bonito design. O leitor pode encontr-losna Internet se inserir o nome da doena em qualquer motor de busca.
possvel que a doena afectiva sazonal no seja muito diferente das
outras depresses e manias. S que, para a depresso do inverno, no
necessrio declarar guerra luz nem trancar-se em casa de portase janelas. Nos paises perto dos polos onde elas acontecem, o sol
que nos faz negaa durante boa parte do ano. De qualquer modo, as
investigaes volta da doena tiveram a vantagem de demonstrar
que aquilo que comanda os nossos ciclos de energia e, portanto, as
manias e depresses, so os astros (e sobretudo o Astro-Rei), emrelao com a sincronizao do ritmo de produo das nossas
hormonas. Nada que os antigos (e os astrlogos?) no soubessem.
Embora tenha dado sugestes para iniciar uma e outra, mais fcilchegar depresso do que verdadeira mania. Se j conseguiu teruma depresso e ela acabou por passar sem chegar mania, tenteoutra depresso passado algum tempo. Se a primeira resultou, j
aprendeu com a experincia e j sabe quais as melhores solues quese adaptam ao seu caso. Estamos a falar de antecedentes, pretextos,
modos de reagir da sua parte e dos outros. Este timo pormenor muito importante, pois nunca se sabe partida qual vai ser a reaco
dos outros. Podem-no tratar mal, o que talvez o ajude a melhorar(nunca se sabe) ou a piorar. Mas podem tentar trat-lo da melhor
maneira possvel, o que pode agravar a sua culpa e portanto pioraro seu estado. Podem finalmente mudar completamente e submeter-se aos seus caprichos, o que lhe d um enorme poder. S depois de
experimentar que fica a saber o que pode acontecer.
Acima de tudo j sabe qual a altura do ano mais propcia suadepresso, e pode automatizar as rotinas que o levam directamente
ao agravamento. H pessoas que aprendem a adivinh-la atravs depequenas rotinas do quotidiano. Tambm j conhece a melhor maneira
de evitar que o levem ao psiquiatra. Aconselho-o porm a ir l ao fimde algum tempo para ver se, com os medicamentos, consegue obtera almejada mania. H quem o consiga apenas por uns dias, depois de
se tratar com os antidepressivos, mas ela muito efmera e no chegaa ser uma verdadeira mania. Alguns especialistas podem, neste caso,
conceder-lhe o diagnstico de doena bipolar tipo II.
Se no conseguir chegar verdadeira mania, tenha persistncia,voltando a tentar ano aps ano. Enquanto l no chegar, tem, pelomenos o direito ao diagnstico de depresso unipolar recorrente.Mas no perca a esperana. Se tiver uma vida longa ainda pode lchegar. H quem faa uma mania depois de 10 episdios depressivos
ou apenas aos 80 anos. Se morrer mais cedo ficar apenas com adepresso unipolar. Mas repare que tudo muito subjectivo. Para
alm do caso da bipolar tipo II, em que no far grandes asneirasdurante a mania, seno, talvez, umas compras excessivas, natural
que, entre as depresses, voc ande muito bem disposto e cheiode optimismo, com energia para fazer muitas coisas e talvez comgrande sucesso na vida. At pode ser que se apaixone depois de
uma depresso, mas quem que pode chamar a isto mania? Voc,de certeza, no se queixa, e desde que ningum se queixe de si,
nunca chegar ao psiquiatra nem ao diagnstico.
Chegar ou no ao diagnstico de mania vai ento depender da suaprofisso, do estatuto social, das pessoas que dependem de si (ou
esto espera do seu dinheiro), do modo como estavam habituadosa v-lo ( por isso que aconselhei a iniciar a doena um poucotarde). Mas deixe l. Depresso unipolar j no mau, porque lheconfere algumas desculpas e regalias. Experimente, por exemplo,a frase chave: no me contrariem porque seno fico doente. O
que importa que leve a vida o melhor possvel e, se isso incluir
sucesso e uma rara felicidade custa de alguns episdios de
sofrimento (que o desculpam socialmente), s lhe posso dar osparabns. Mas se for essa a sua opo, melhor conter entusiasmos
exagerados e, sobretudo, no se dessincronizar com passagem denoites em claro ou horrios estapafrdios.
Finalmente, h outra maneira de ter uma depresso unipolar,
embora pouco sofisticada e muito prxima da distimia, quetrataremos no fim deste captulo. Com a vida difcil e aceleradaque temos, existem muitas coisas que nos desgostam genuinamente.
Basta ver um telejornal para constatar as tragdias dirias queteimamos em vencer. Mas no s isso: durante a nossa vida
existem perdas inevitveis, que vo desde amores e pessoas queridasat propriedades, expectativas, sonhos de uma vida ou o prprio
amor prprio. Claro que isto perfeitamente natural, e a naturezacolocou ao nosso dispr os modos de resolver o problema. Aceitar
a perda, a primeira coisa. Ficar triste e chorar, a segunda. Como apoio dos outros, vamos aprendendo a defendermo-nos.Aprendemos que cada coisa que se perde pode deixar um vazio
mas que com o tempo ser substitudo por outra coisa. Isto amudana, a aquisio de maturidade e a essncia da vida.
Porm, se o leitor quer ser doente mental fora e no tem
talento nem nascimento para qualquer outra doena, aproveiteesta oportunidade. Ao primeiro precalce deste tipo, no chorenem faa luto. Aproveite mesmo para no pensar muito no assunto,
evitando falar com amigos ou parentes. Em vez disso, dirija-se deimediato a um psiquiatra (ou mesmo a um clnico geral) daqueles
que demoram menos de 10 minutos por consulta. Conte-lhe comose sente e, se ele estiver renitente, acrescente que j pensou em
morrer (o que pode ser verdade). Sai de l com uma receita deantidepressivos e um diagnstico de depresso tout court. Temtambm a possibilidade de obter uma baixa ou mesmo uminternamento, aproveitando esse facto para dessincronizar os seusritmos ou, quem sabe, aprender qualquer outra doena. Em geral,
melhora ao fim de algum tempo, quando a perda for reparada e,sobretudo, quando largar os medicamentos e voltar vida normal.
No entanto, um s episdio no chega para o diagnstico de depressounipolar recorrente. Por isso, tem de aproveitar o prximo contratempopara dar os mesmos passos. Tambm, isso torna-se muito mais fcil,
porque a nica coisa que aprendeu para se defender da tristeza foirecorrer ao circuito mdico. Outros ouvem msica, lem ou escrevem,trabalham mais, dedicam-se a outras pessoas, mudam de vida, fazem
compras, arranjam-se melhor, mas voc deita-se a dormir e tomacomprimidos. Tenho apenas um aviso: se quiser atingir este objectivo
mrbido, nunca v ao psiclogo. Como ele no pode receitarcomprimidos, at lhe podia ensinar qualquer uma destas defesas.
Tanto na depresso como na mania, a sua energia anda alternadamente
para cima e para baixo. Por isso so ambas bipolares. Mas j que
esto definidas as depresses unipolares, porque no maniasunipolares? s tantas, tudo depende do que se considera normal.
Se voc for sempre uma pessoa tristonha, circunspecta e pessimista
(realista e lcida, como dizem alguns), qualquer periodo de entusiasmo
(amoroso?) lhe d direito posse de, pelo menos, um estado
maniforme. Os obsessivos e os fbicos no esto livres disso.
Fora isto, o problema que a mania mais difcil de atingir do que
a depresso. Se pertencer, verdadeiramente, a uma famlia eleita,
talvez consiga entrar directamente numa mania depois de umas
noites sem dormir ajudado por doppings ou, simplesmente, caf. muito possvel que isso acontea enquanto anda a estudar, portanto
bastante cedo. Neste caso, as suas ideias da juventude podem-no
levar a inventar ideologias pouco habituais, e podem-no tomar como
esquizofrnico. Outras vezes, mistura-se a tristeza e a euforia, a
irritabilidade e o bom humor, o pessimismo debitado num discursotorrencial, levando quilo que se tem chamado mania mista.
Serve isto para dizer que a mania unipolar, para alm de rara,
tambm geralmente atpica. Por isso, no estou muito seguro
das receitas que lhe dou para a provocar. Pode mesmo acontecerque ela ocorra sem fazer nada por isso (por exemplo, depois de
um traumatismo craniano acidental) e sem que eu nem ningum
saiba porqu. O crebro ainda est numa caixa fechada que no
se abre muito facilmente. certo que hoje existem os meios
imagiolgicos para o estudar, mas convenhamos que no fcilconvencer um manaco a meter-se no tnel de uma cmara de
positres e estar ali quietinho por vrios minutos. De qualquer
modo, se o leitor quiser passar pelas delcias de uma mania unipolar,
experimente embriagar-se. Dizem que o que h de mais parecido.
Existem hoje no mercado dezenas de antidepressivos diferentes os
quais, naturalmente, tm de ser vendidos. Por isso tambm existem
diversos items da DSMIV que contemplam depresses. Um dos maisabrangentes, e portanto mais fcil de obter, a distimia, antigamentechamada depresso neurtica. Portanto, se o leitor no tem talentopara qualquer uma das outras seces, e quer viva fora ser doente
mental, escolha esta variante. Alis, tambm a pode atingir depois
de estar farto das outras carreiras, como a obsessiva, a agorafbica,
a da personalidade evitante ou do transtorno de somatizao. At
bem possvel que um psiquiatra apressado esteja disposto a
conceder-lhe este diagnstico em vez de qualquer outro. Com o
apoio da literatura, ele sabe que o tratamento simples - comprimidos
- mas a doena crnica. Ou seja: voc tem de ir vrias vezes ao
seu consultrio buscar a receita, embora nunca fique melhor. Talvez
uma boa designao para esta doena seja tubo de ensaio, uma
vez que vai testar os mais diversos medicamentos (em geral as
ltimas novidades do mercado e, portanto, os mais caros).
J falmos da distimia aquando da variante da depresso unipolar,
porque o incio muito semelhante: menor contrariedade, mdico
com ele. S que, no caso da distimia, tem de comear muito cedo
e nunca mais vai largar os medicamentos nem retornar vida
normal. E muito menos vai mudar de vida (a no ser a mudana
para a vida doentia). Por isso, esta especialidade est especialmente
indicada para quem se meteu em becos sem sada (mais
frequentemente mulheres), por exemplo, um casamento insatisfatrio
ou qualquer outra dependncia social de que no consegue sair.
Tambm pode acontecer que, em jovem, tenha feito expectativas
de vida irrealistas que o quotidiano acabou por frustrar. Ou ento,
que tenha descurado o treino das capacidades mnimas para
qualquer actividade autnoma relevante. Em qualquer destes casos
fica presa das suas limitaes, ser doente a nica profisso possvel,
e a ida ao mdico a nica distraco aceite por todos.
Trata-se pois de uma carreira simples (para si e para o mdico que
o tratar) que pode ser feita sem grande esforo. Ou antes, a essncia
da carreira no fazer qualquer esforo e transferir toda a
responsabilidade para os mdicos e seus medicamentos. Eles vo
experimentando um aps outro, e pode juntar em casa uma
verdadeira farmcia. Alguns vo causar novos problemas e at pode
ter direito a novas doenas organizadas no ambiente apressado do
mdico dos 5 minutos. At pode ter, l pelo meio, uma depresso
mais profunda, com a qual ganhar o direito de ter uma depresso
dupla. Com pouco esforo ganha medicamentos, ateno, atestadose talvez subsdios. o melhor que pode arranjar, pois a carreira
disponvel para quem j no tenha mais nada a ganhar com a vida.
Repito um conselho final: se o aconselharem a ir a algum psiclogo
ou um mdico sem f nos medicamentos e que prefira conversar
sobre os seus problemas, fuja deles. Podiam-lhe propr outros
diagnsticos, sugerir teraputicas alternativas, ajud-lo a mudar de
vida. S ia arranjar problemas com a sua famlia e talvez tivesse de
gastar algum dinheiro extra (por exemplo, para comprar alguma
coisa agradvel, mudar de casa, reiniciar estudos, passar frias ou
inscrever-se na ginstica). verdade que isto ficaria talvez mais
barato do que os medicamentos que consome mensalmente. No
entanto, os medicamentos sempre so subsidiados pelo Estado, e
as outras coisas no. E a quem, seno ao Estado, compete tomar
conta de si? No fim de contas, ele o grande responsvel pela vida
complexa e difcil a que voc no se conseguiu adaptar.
BIBLIOGRAFIA
Algumas auto-descries, nomeadamente as de Althusser e Kay
Jamison, renovaram recentemente o interesse pelas psicoses
manaco-depressivas, bem como pelos aspectos mais interessantes
desta patologia. O mesmo se pode dizer do filme de Mike Figgis,
Mr. Jones (Tristar pictures), protagonizado por Richard Gere. A
lista seguinte inclui as auto-descries e alguns textos de actualizao
ou apoio a alguns aspectos realados no texto.
American Psychiatric Association (1996): DSM-IV Manual de Diagnstico e Estatsticadas Perturbaes Mentais. Lisboa: Climepsi Editores.
Bechman E. E., Leber W. R. (1995): Handbook of Depression, 2nd. Ed. New York: TheGilford Press.
Halaris A (1987): Chronobiology and Psychiatric Disorders. New York: Elsevier.
Healy, D., Williams J.M.G. (1989): Moods, Misattributions and Mania: An Interactionof Biological Factors inthe Pathogenesis of Mania. Psichiatric Developments, 1: 49-70.
Jamison, K. R. (1993): Touched With Fire: Manic-Depressive Illness and the ArtisticTemperament. New York: The Free Press.
Jamison, K. R. (1996): Uma Mente Inquieta . So Paulo: Martins Fontes.
Madden, P.A.F., Heath, A.C., Rosenthal, N. M. (1996): Seasonal Changes in Mood andBehaviour: The Role of Genetic Factors. Arch. Gen. Psychiatry, 53: 47-55.
Pio-Abreu, J. L. (1997): Seasonal Variation in Bipolar Disorder (Letter), Brit. J. Psychiatry,170: 483-484.
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Pio-Abreu, J.L., e Pires, I. C. (1985): Incidncia Sazonal das Psicoses Afectivas Bipolares,Psiquiatria Clnica, 6:181-8.
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Wehr, T. A., Rosenthal, N. E. (1989): Seasonality and Affective Disorders. Am. J. Psychiatry,146: 829-839.
Wright, J. B. D. (1993): Mania Following Sleep Deprivation. Brit. J. Psychiat., 163: 679-680.
Pese o facto de a esquizofrenia ser um saco onde se pode metermuita coisa diferente, devo alertar o leitor que, mesmo assim, no esquizofrnico quem quer. Ter a capacidade de vir a seresquizofrnico depende de uma constelao de acontecimentosque os cientistas ainda hoje procuram. Essa constelao pode irdesde o nascimento nos meses frios, ter problemas no parto,suportar viroses precoces, at ocorrncia casual de uma certaconstelao de genes. Como andamos a descobrir os genes, devemosdar maior importncia a esta ltima hiptese. Mas no quero iludiro leitor: no vale a pena andar procura de esquizofrnicos nafamlia, porque os genes em causa so vrios e, s por si, nochegam. Mesmo que tivesse os genes iguaizinhos a um esquizofrnico(um clone seu ou um gmeo monozigtico), as suas hipteses deter a doena estariam apenas entre 30 e 40%, se tirarmos a mdiadas vrias opinies desencontradas sobre o assunto.
Como descobrir ento que voc pertence aos eleitos? Muita genteanda procura disso, mas em boa verdade ningum sabe ao certo.Talvez seja melhor ir lendo as novidades que as revistas trazem.Se levar a srio essa dos genes, comece por olhar para a sua rvoregenealgica, no necessariamente procura de um esquizofrnico(deve saber como difcil sairem dois pokers em jogadasconsecutivas), mas antes de algum bizarro que teime em ser muitoespecial e diferente dos outros, um desconfiado crnico (leia aseco dos paranides), uma pessoa de difcil trato ou, talvezmesmo, um gnio empreendedor. Numa palavra, o que tem deencontrar na sua famlia uma dessas pessoas cujo comportamentoe maneira de ser baralhe qualquer um que se encontre com ele.
Olhe depois para si prprio e verifique se tem dificuldades em contactarcom os outros por nunca saber em que onda eles esto, se a suaconcentrao trabalhosa, se nunca percebe bem o que os outrosquerem dizer. possvel que o seu crebro no seja bem igual aodeles (imagine que, enquanto o crebro dos outros monstruosamenteassimtrico, o seu tem uma simetria perfeita), e que voc tenha deter muito trabalho para chegar aos mesmos resultados. Com todoesse trabalho, at se pode tornar um pequeno gnio cheio deoriginalidade. De facto, possvel que desenvolva algumas habilidadesadicionais, como reparar em pormenores que ningum notara antesou saber usar indistintamente as duas mos para trabalhos que osoutros s fazem com a mo direita (ou esquerda, se forem canhotos).
O que importa saber se pertence quelas 3 em cada 100 pessoasque podem contrair esquizofrenia. Mas isso no chega porque,destas trs, s uma delas o consegue. preciso muito mais trabalho,e disso que nos vamos ocupar a seguir. Talvez no seja mau revera carreira dos paranicos porque, no caso de estar premiado coma constelao necessria, esse pode ser um caminho directo paraa doena. Mas existem outras alternativas.
Nota: os critrios da DSMIV para as perturbaes do humor (depressese manias) so uma grande confuso; nestes quadros fizmos o nossomelhor para os simplificar, enquanto no texto esclarecemos a suarelao com a nomenclatura psiquitrica mais c lssica.
A. Actualmente, ou muito recentemente, um episdio manaco.B. Existiu previamente, pelo menos, um episdio depressivo
major, episdio manaco ou misto.C. Os episdios no se sobrepem a esquizofrenia,
per tu rbao esqui zo-a fect i v a , per tu rbaoesquizofreniforme ou outra perturbao psictica.
Objectivos a atingir para a Perturbao Bipolar I,Episdio Manaco recente (DSMIV)
VOLUME III, N1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001
Controvrsias
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Controvrsias
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Controvrsias
Antes de mais deve estar ciente de que os resultados raramenteaparecem antes dos 18 anos e talvez bastante mais tarde se for
mulher. At l preciso preparar o terreno. O problema queningum sabe exactamente como. Possivelmente, o mais seguro cultivar o isolamento, contactar com o menor nmero possvel de
pessoas e aprender o menos possvel da vida. Deve-se cumprir oque os adultos querem, nomeadamente as obrigaes escolares, para
poder manter a ideia de ser uma pessoa muito especial e, por isso,justificar a falta de envolvimento em actividades ldicas com os
amigos. Uma coisa importante , para j, ter uma vida rotineira demodo a no se confrontar com situaes imprevisveis e tumultuosasonde tenha de pr prova as suas emoes. Isso ficar apenas para
pouco antes do incio da doena (uma coisa de cada vez).
Portanto, para j, vida rotineira e pacata. Fique limitado ao lar, ondeter muitas oportunidades de se iniciar num tranquilo jogo demal-entendidos. Se a sua famlia est preparada para o ajudar na
carreira, melhor. O esquema o seguinte: ningum se entendeentre si, mas todos supem que se entendem maravilhosamente
e que o vosso pequeno mundo o melhor de todos. Por exemplo,se voc est aborrecido com alguma coisa, a sua me pode-lhedizer filho, tu ests mas contentssimo, e di-lo com tal convico
que voc acredita que est contente, e comea a aprender a viverem dois mundos: o da linguagem falada e lembrada, e o dos seus
sentimentos caticos e ocultos. E tudo vai bem, por enquanto.
Fora de casa, nada de contactos nem confuses, tirando talvez as
estritas obrigaes escolares e, ainda, o contacto com um grupofechado de amigos onde possa fumar umas passas de haxiche (algumas
drogas, como haxiche, a cocaina, o LSD e as anfetaminas facilitam-lhea carreira, mas as duas ltimas podem-lhe proporcionar umaesquizofrenia de emprstimo, vivida sem honra nem glria). Sobretudo,
nada de namoros e, muito menos, contactos fsicos com o outro sexo.Sabe como essas situaes podem ser emocionantes, mas voc deve
esforar-se por nunca aprender a lidar com emoes. Pode apenaspermitir-se a uma ou outra paixo platnica, quanto mais impossvelmelhor. Por exemplo, imagine conversas com o seu amor ou escreva
cartas que mete na gaveta para se ir deleitando com as respostas queele (que, necessariamente, nunca saber de nada) lhe poderia escrever.
O importante que tudo isto se passe apenas na sua cabea e quevoc se inicie na proveitosa arte de falar de si para si.
Falar de si para si o prximo grande exerccio. Para alm de umamor imaginado, aconselho-o a fazer uma viagem sozinho pelos
vrios ocultismos que do sempre a possibilidade de fazer asinterpretaes que lhe aprouver. Temos por exemplo a cabala:
transformam-se as letras das palavras em nmeros, e estes noutras
letras que formam novas palavras. Por este processo pode adivinharo que quer que seja, e torna-se mestre do universo. Vai ver que as suasintuies lhe aparecem sempre confirmadas, e tudo estava escrito nosastros. Leia muito sobre o assunto, misture tudo, e tire as suas prpriasconcluses. Como, nos mal-entendidos familiares, j est habituado sinterpretaes aleatrias, no lhe vai ser difcil. Procure sobretudo ascoincidncias que encontrar em pequenos pormenores retirados docontexto (a preparao para esta carreira implica que se estejaborrifando para os contextos). Se assim prosseguir, ter sempre aconfirmao das suas ideias, por mais absurdas que elas sejam. Podecriar um novo sistema oculto ou, quem sabe, uma nova religio.
O objectivo de tudo isto, criar curto-circuitos no seu crebro que,mais dia menos dia, lhe faam fundir alguns fusveis. Em boa verdade,se cumpriu as indicaes anteriores, voc j entrou em curto-circuito.Ter uma ideia nova e confirm-la de imediato um exerccio apaixonanteque far surgir novas e estranhas ideias que confirmar de seguida.Haver quem diga que isto entrar em autismo, mas no lhe ligue.Alis, o seu exerccio to apaixonante que no precisa de aprendermais nada nem falar com ningum. E bom no falar, porque no ocompreendero ou pem-se a desdiz-lo. Esto a comear a ficarcontra si. Afaste-se deles, e no haver mais resistncia. As suas ideiascom as confirmaes que desenvolver, voc consigo prprio, j seinstalou no curto-circuito. Mas falta-lhe fundir os fusveis, como queo vai conseguir? -S se encontrar alguma energia adicional.Essa energia, espero que a encontre por volta dos 18 anos, quandoa sua personalidade estiver amadurecida e a sua viso do mundotambm. Pode aproveitar uma sada do seio da sua famlia, umadeslocao para outra terra ou uma grande paixo. Se as trs coisasjuntas se propiciarem, ainda melhor. O que importa , finalmente,levar as emoes ao rubro. Nesse momento, tudo comear a tornar-se estranho, e voc entrar num mundo kafkiano. J no entenderningum, nem ningum o entender a si. Mas voc que est nocentro de tudo. Nada ser mais como era antes, e tudo lhe diz agorarespeito. A coincidncia de pormenores ser turbilhonante. Descobrirverdades absolutas que s voc conhecer. As palavras e as coisastransfiguram-se e mudam o significado para lhe confirmarem essasverdades. As pessoas j no falam do mesmo modo, mas por sinaiscodificados que s voc compreende. Pode mesmo ouvi-las falarem
de si por processos estranhos. Todo o mundo gira em sua volta.
Se deixar as coisas evoluirem, novos acontecimentos esto para
surgir. O mais engraado (engraado para os que esto de fora,porque quem passou por elas diz que no tem graa nenhuma)
que o seu eu fica dividido. Pode sentir-se dentro do seu corpo, mas
simultaneamente encarnando outra pessoa qualquer ou talvez mesmo
um animal. O seu pensamento, os seus gestos, a sua escrita ou mesmo
as suas vsceras passam a ser controladas por potncias ocultas. Temde fazer um grande esforo para entender isso, mas talvez lhe ocorra
que, assim como voc se passou para outra dimenso, talvez tambm
os outros o controlem por esse processo. Se tal lhe ocorrer,
rapidamente confirmar essa nova verdade, e no se cansar de a
apregoar. No fim de contas, conseguiu ser o centro do universo.
As emoes que, durante tanto tempo, foram evitadas, encontram
agora a oportunidade para se exprimirem copiosamente. Mas so
de tal modo inadequadas que voc, em desespero, far provavelmente
alguma asneira, e algum o levar ao hospital. a altura de ospsiquiatras lhe devolverem o diagnstico de surto esquizofrnicoparanide e montes de comprimidos e injeces.
claro que voc, a nica pessoa no mundo a descobrir a verdade,
no tem nada que tomar os medicamentos. Se os tomasse, poderiadescobrir que tudo no passara de uma espcie de sonho. Mais
ainda: se os tomasse muito precocemente, poderia mesmo acontecer
nunca passar pelas delcias do surto esquizofrnico. Lembre-se
que os neurolpticos so a grande arma contra esta doena e que,
quanto mais cedo e mais regularmente os tomar, menor aprobabilidade de continuar com ela. Portanto, v de evit-los a
todo o custo. Argumente com os efeitos secundrios (rigidez dos
msculos, sonolncia, aumento de peso) e aproveite para ir
queimando mais alguns fusveis. Se o conseguir, nunca mais ficar
como dantes, e novos surtos estaro no horizonte da sua vida.
Existem tantos sintomas de esquizofrenia que se tem de optarpor um determinado conjunto. No se sabe se isso devido doena, ao doente ou a quem o avalia. Se quiser optar pela formahebefrnica (os americanos chamam-lhe desorganizada) temque omitir as verdades que concluiu, bem como as vozes que o
perseguem (que o seu psiquiatra classificar de alucinaes). Pelo
contrrio, voc deve evidenciar a confuso que vai nos seuspensamentos e os malentendidos dos seus afectos. No sei dar-
lhe as receitas para o conseguir, mas talvez uma condio importante
seja comear muito cedo, bem antes dos 18 anos.
A regra estabelecer uma tal confuso na sua cabea que nopossa chegar a concluso nenhuma nem a qualquer conversa. Vai
ficar a olhar perplexo para os outros, talvez a repetir o que eles
dizem, enquanto curte um confuso turbilho de pensamentos. Se
lhe ocorre dizer alguma coisa, aquilo que sai uma salada de
palavras sem qualquer coerncia entre si. A sua cara fica com umar aparvalhado e os seus sentimentos so uma verdadeira lotaria.
evidente que tudo aquilo que faz tambm disparatado.
Esta forma est recomendada aos perfeccionistas, pois h quem diga
que a mais genuina forma de esquizofrenia. De facto, a formaparanide tem muito a ver com as paranias (embora ocorra mais
cedo, mais sbita e definitivamente, e com mais sintomas) e a catatonia
pode estar, como veremos, misturada com outras coisas. Tem no
entanto um pequeno problema: que o seu comportamento d
demasiado nas vistas, pelo que rapidamente o levaro ao mdico,e voc, de to confuso que est, fica sem foras para fugir medicao.
H quem diga que a forma catatnica est a reduzir de frequncia.No entanto, o quadro catatnico tambm est disponvel para osmanacos graves. Neste ltimo caso, o segredo negar-se a tudo,
incluindo beber gua, tal como explicarei mais adiante.
Se quiser aderir a esta raridade, talvez seja melhor jogar mais com ocorpo do que com as palavras. No m ideia ter vocao de bailarino.
Assim, voc sente todos aqueles controlos que acontecem com os
paranides e hebefrnicos, mas vai defender-se com as posturas doseu corpo. Se dizem mal de si, erga-se e fungue. Se a voz no a sua,oriente o pescoo e a cabea para a voz lhe sair mais lmpida. Secontrolam o seu pensamento, incline-se para a esquerda. Se lherepuxam os intestinos, incline-se para a direita... Claro que isto someras sugestes, porque a variedade infinita. Voc pode adoptar asposturas mais bizarras, sendo essa a melhor maneira de mostrar aosoutros que est realmente passado. E far ainda a alegria dos psiquiatraspor acertarem to facilmente no diagnstico de esquizofrenia catatnica.
Uma condio no falar, para no mostrar o turbilho que lhe vai naalma (nem voc talvez o conseguisse descrever). Assim, voc cala-se e,para acompanhar o mutismo, tambm pode parar o seu corpo. Transforme-se numa verdadeira esttua! Mantenha-se assim por horas ou dias. Sealgum psiquiatra o mudar de posio, mantenha a nova posio para queele tenha a felicidade suprema de encontrar um caso de flexibilidadecrea. Para alm disto, no far nada do que os outros lhe pedem, j quevoc est assim para se defender de tudo e de todos. Resistncia passiva!
Claro que os outros se preocupam com as suas atitudes impossveise, sobretudo, com o facto de estar para ali, sem fazer nada e semcomer nem beber. Mas a ocasio para levar um pouco mais longea sua resistncia passiva: no coma nem beba. Assim, far umadesidratao hipertnica cujo grande sintoma a irritabilidade. Sas crianas, os velhos dependentes e, vamos l, voc, conseguemesta proeza, j que todos os outros sempre encontram alguma guaquando tm sede. Mas voc, que baralhou a voz dos seus neurnios(o sdio e os outro ies so a voz dos neurnios) no sente j sedenem cansao, apenas a irritabilidade que o vai levar a uma agitaodestrutiva incessante. Vai ter direito aos seus momentos de violncia.Mas cuidado, porque os antigos chamavam, a este quadro, catatoniamortal. Se ningum o apanhar e lhe meter injeces e soro pelasveias, o melhor emborcar uma garrafa de gua na primeira janelade lucidez. Se no, talvez lhe reste o electrochoque.
Pode dar-se o caso de voc nunca chegar a ter um surto francamente
psictico, daqueles que descrevi at agora (paranide, hebefrnico
ou catatnico). possvel que isso acontea porque no se empenhou
suficientemente na carreira (pode-se ter esquecido, por exemplo,
de dar largas expresso das suas emoes no momento propcio),
apesar de ter nascido sob a constelao adequada, ou porque,
apesar de um empenhamento extremo, no nasceu sob a constelao
adequada. Num caso ou noutro pode ter direito a uma medalha
de segunda ordem, a de personalidade esquizot p ica.
A ideia no m, porque no carne nem peixe. Torna-se uma
pessoa singular, um pouco excntrica, sempre do contra, com ideias
to estranhas que podem ter mais audincia que o jornal Inslito, faz
o que lhe apetece, no conta com os outros nem precisa deles, mas
a sua vida l vai andando. Enquanto for jovem, pode mesmo ser apreciado
por quem vir em si um artista ou um profeta. Pode viver conta da
famlia ou de expedientes ocasionais. Pode vestir a pele de um sem
abrigo e dirigir-se assistncia social. Vai ficar admirado porque os
outros se preocupam mais consigo do que voc consigo prprio. E se,
algum dia, tiver problemas, sempre pode exibir a desculpa da doena.
Se ganhar esta identidade, pode juntar-se ao clube das pessoas estranhas.
Encontrar muitos outros que no fizeram nada por isso, mas apenas
nasceram assim. Alguns podem at ser sbios ou cientistas reconhecidos,
muitas vezes superdotados em lgica, mas que partilham consigo a
caracterstica de no precisarem das outras pessoas, mesmo das do
outro sexo. Ser um clube de pessoas interessantes mas muito
montono nas suas reunies. Imagine um clube de pessoas parecidas
por serem deliciosamente bizarras, mas em que cada um se est nas
tintas para os outros, e principalmente para as bizarrias alheias.
Desde o princpio deste captulo que avisei o leitor de que nopodia ser esquizofrnico quem quisesse, apesar da esquizofrenia
ser um grande saco onde se pode meter muita coisa. Vamos agoratratar deste saco, especialmente til para os no eleitos. De facto,
o diagnstico de esquizofrenia, ainda que duvidoso, pode-se obterde diversas maneiras. Tudo vai depender da tolerncia do psiquiatra
que o observar. Houve mesmo um grupo de jornalistas que foram consulta de psiquiatria queixar-se de que ouviam vozes eacreditavam em qualquer coisa bizarra. Foram logo internados e
tratados, mas tiveram mais dificuldade em sair. O certo que,quando comearam a dizer que eram jornalistas e que apenas
foram testar os psiquiatras, mais sintomas acrescentavam ao seurol. O leitor pode tentar a mesma experincia, mas tenha muito
cuidado: quem no quiser ser lobo no lhe deve vestir a pele.
Outra possibilidade seguir, enviezadamente, pela carreira dosparanicos. Haver sempre psiquiatras apressados que esto dispostosa no dar ouvidos s suas razes e a passarem-lhe o rtulo de
esquizofrnico. Isso no importa para eles (e, para si, talvez tambmno) porque o tratamento farmacolgico vai dar no mesmo. E, a
propsito de frmacos e drogas, no se esquea que elas semprepodem alterar os seus neurnios e produzir-lhe sintomas que,
falta de melhor, podem entrar no saco da esquizofrenia. Por exemplo,o LSD tem efeitos imediatos, enquanto que as anfetaminas osproduzem a longo prazo. O recurso especialmente til para quem
tiver qualquer outro quadro mrbido, mas queira tambm obteruma ps-graduao nesta rea, embora limitada no tempo.
Existem de facto sub-especialidades da esquizofrenia que se prestam
a tudo. Uma delas a chamada perturbao esquizo-afectiva, umaespcie de mistura entre esquizofrenia e psicose manaco-depressiva.
Outra a perturbao esquizofreniforme, outra a psicose delirante.Algumas pessoas chegam a qualquer uma destas situaes semdarem por isso nem se procuparem com a carreira. H coisas, no
crebro, que aparecem por acaso e, muitas vezes, ningum as chegaa descobrir. Mas se quiser baralhar os psiquiatras, uma vez iniciada
qualquer carreira, ou mesmo sem ela, ingira irregularmente, masem altas doses, os medicamentos que eles lhe disponibilizam, bem
como as drogas que consegue arranjar por a. Faa-o em segredo.E, segredo por segredo, no se esquea de ir esvaziando
secretamente as garrafas de whisky escondidas no seu bar.
Se obtiver um destes diagnsticos, pode estar seguro que o psiquiatra
j dificilmente se entende com o seu tratamento. Por isso, tem direitoa uma constelao catica de medicamentos que ajudam a baralhar
mais os seus neurnios. Se quiser, v-se passeando de mdico em
mdico, s para ver o desatino que grassa entre os entendidos!
BIBLIOGRAFIA
A bibliografia sobre as esquizofrenias imensa e crescente. O
tema desafiante mas resiste ao entendimento. De vez em quando
surgem lampejos de descoberta, mas logo se volta costumadaignorncia. Por isso no exultamos excessivamente com a mais
recente investigao imagiolgica patrocinada pelos neurolpticos
da nova gerao. Por ser desnecessrio incluirmos aqui uma longa
lista das diferentes linhas de investigao actual, remetemo-nos a
autores clssicos, por vezes bastante esclarecedores mas poucolidos, bem como a textos de reviso recente, sobretudo os que
apoiam algumas ideias expostas.
Bleuler, E. (1950): Dementia Praecox or The Group of Schizophrenias. New York: InternationalUniversity Press.
Conrad, K. (1971): La Esquizofrenia Incipiente: Intento de un Anlisis de la Forma delDelrio, Ed. Alhambra, Madrid, Mxico.
Haley, J. (1965): El Arte de ser Esquizofrnico, Voices. Repr. in Tcticas de Poder deJesucristo y Otros Ensayos. Buenos Aires: Ed. Tiempo Contemporneo, pp.147-177.
Hall, W., Solowij (1997): Long Term Cannabis Use and Mental Health. Brit.J. Psychiat.,171: 107-108.
Kales, A., Stefanis, C. N., Talbott, J. (1990): Recent Advances in Schizophrenia. New York:Springer Verlag.
Mayer-Gross, Slater e Roth (1960): Psiquiatria Clnica. So Paulo: Editora Mestre Jou.
Pio-Abreu, J. L. (2000): Clnica e Investigao da Esquizofrenia: Um DesafioContemporneo. Sade Mental, II, 3: 9-15.
Wyatt R. J. (1995): Early intervention for schizophrenia: Can the course of the illnessbe altered?, Biol. Psychiatry, 38: 1-3.
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VOLUME III, N1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001
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Controvrsias Controvrsias Controvrsias Controvrsias Controvrsias Controvrsias Controvrsias Controvrsias Controvrsias Controvrsias
J. L. Pio Abreu
Mdico Psiquiatra dosH.U.C.
Professor da Faculdadede Medicina daUniversidade deCoimbra
Como tornar-sedoente mental - V
A razo desta srie de artigos foi explicada em nmeros
anteriores. Grosso modo, so um ensaio de soluo
do paradoxo dos psiqu iatras: grande parte dos
verdadeiros doentes (com diagnstico a preceito) noaceitam tratar-se, enquanto um sem nmero de pessoas
sem diagnstico claro procura uma doena e o seu
miraculo so trata mento. Espero, com este ensaio,
contentar uns e outros, contr ibuindo assim para
terminar com o jogo do gato e do rato que se travafrequentemente nos consultrios psiquitricos. Dado
porm o possvel efeito prejudicial destes artigos,
aconselho a que a sua leitura seja reservada a pessoas
inteligentes e com esprito de humor.
Terminamos esta srie com as doenas sagradas da
Psiquiatria: a psicose manaco-depressiva e a esquizofrenia.
Muitos entendidos diro que estas doenas esto escritas
nos astros (ou no destino, ou nos genes) e, portanto,
no se pode fazer nada para as ter. Discordo. Todos osclnicos sabem que existem certas pessoas, tantas vezes
familiares de doentes assumidos, que manifestam
sintomas incipientes mas que, nada tendo feito para os
agravar, passam uma vida normal e nem sequer se do
ao trabalho de se queixarem aos psiquiatras. Muitosoutros procuraram cedo os psiquiatras e fazem, desde
o prin cpio, um tratamento correcto e sensat o,
arriscando-se a fazer igualmente uma vida normal.
Evidente mente , no aderir am minha proposta.
Para os aderentes, esto aqui vrios truques que aprendi
com aqueles que, de um modo ou doutro, tiram partido
da doena e no resistem a complic-la. Admito que
alguns deles tenham obtido uma preciosa ajuda de
psiquiatras ou psiclogos, ou mesmo dos malentendidosda cincia do seu tempo. So coisas que acontecem,
e tambm no seguro que, hoje, saibamos tudo sobre
o assunto. Mas parece-me que, com todas as
oportunidades que a sociedade actual pe nossa
disposio, tanto nos circuitos legais como no legais,
qualquer pessoa ser capaz, se no de exibir uma
verdadeira doena deste tipo, ao menos adquirir uma
imitao. Por isso, leitor aderente, tenha f e persistncia.
Como tornar-se manaco-depressivo
Lord Byron, Schuman, Beethoven, Balzac, Hemingway,
William Faulkner, Virginia Woolf, Althusser, Edward Munch,
Paul Gaugin, Antero de Quental. J ouviu falar de algum
destes gnios criadores? Pois bem: todos eles tinham
psicose manaco-depressiva, e a associao entre a doena
e a genialidade no pura coincidncia. A psicose manaco-
depressiva (que agora tem o estpido nome de doena
bipolar) no s a doena dos gnios: tambm a doena
que confere a genialidade criativa. Mas desiluda-se o
leitor. Para l chegar precisa de pertencer a uma famlia
tocada pelo fogo, na feliz expresso de Kay Jamison, ela
tambm portadora da doena.
Provavelmente ser uma famlia ilustre, j que a doena
facilita a asceno social. Como, porm, samos de um
pas rural, algum dos seus antepassados ter sido, pelo
menos, navegador ou emigrante. Se esse for o caso,
prepare-se para passar por perodos da sua vida que
em tudo se parecem, quer hibernao dos ursos,
quer migrao das aves. Torpr, lentido, apatia, umas vezes,
energia, vivacidade e deciso, outras vezes. bem possvel que
todos sejamos um pouco assim, ao ritmo das estaes do ano,
empolgados com a luz do astro Rei, dormentes com o calor do
sol ou vibrantes com o ar gelado, perturbados com os equincios
da primavera ou do outono (o nascer da flor e o cair da folha),
variveis com as fases da lua. O problema que, v-se l saber
porqu , a lgumas pessoas da sua faml ia exageram.
Se abrir um livro cientfico sobre a psicose manaco-depressiva, vai
encontrar um rol de teorias que lhe falam de vrios neurotransmissores
que actuam em diversos receptores e assim por diante, uma coisa
muito complicada. verdade que isso para perceber a actuao
dos medicamentos e talvez para promover a sua venda. Mas, c para
ns, que no estamos interessados em comprimidos, mas sim na
promoo da doena, o problema bastante mais simples. Numa
palavra, o que importa desorganizar os ritmos do seu corpo.
Este problema no tem que o afligir desde a infncia. Pelo contrrio,
o fogo que vem dos seus genes pode fazer de si uma criana brilhante,
criativa e cheia de actividade. Aquilo que se chama uma pessoa de
sucesso. Por quanto tempo, sempre difcil saber, pois a riqueza de
esprito no dura sempre. O problema esperar pela primeira
depresso, que pode chegar aos 15 ou aos 70 anos. E isso depende
muito da sua vida afectiva, da sua insero social ou da sua profisso.
Para chegar doena, atrevo-me a dar-lhe um conselho: entre em
roda livre, mas apenas a partir de certa idade. De facto, se voc
tivesse uma vida toda ela bem estruturada e cheia de responsabilidades,
com horrios a cumprir, com tarefas a desempenhar, refeies a
horas, hora certa de se levantar, arriscava-se a nunca dessincronizar
o seu relgio corporal nem ter tempo de se dar conta das suas
angstias internas. Mas mesmo isso que dever fazer durante a
sua infncia e juventude, de modo a criar uma imagem de sucesso
e uma personalidade activa e saudvel, e como tal reconhecida pelo
seu crculo de amigos e familiares, todos eles dispostos a apoi-lo
e a desculparem-lhe algumas excentricidades. Assim, tudo ir correr
bem e, quando comear com problemas, todos reconhecero que
por doena. Pelo contrrio, se comeasse em roda livre muito
cedo, entraria facilmente na asneirada, passaria por muitas drogas,
iria ter dificuldades em estabelecer a sua identidade, e o melhor
diagnstico a que poderia aspirar seria o de uma personalidade
borderline. Coisa demasiado banal, nos dias que correm.
O problema, portanto, no est em como entrar em roda livre,
mas sim quando. Para que o seu caso seja tpico, aconselho-o a
faz-lo na idade adulta. Entretanto dever tratar da sua formao
e at mesmo constituir famlia. Mas cautela evite demasiadas
responsabilidades e procure uma profisso onde tenha a possibilidade
de cumprir os horrios que lhe apetecerem. Ou ento que lhe
permita facilmente atrasos, faltas e baixas sem repercusso no seu
rendimento econmico. Depois aguarde por uma situao de
tenso, conflito ou perda, daquelas que acabam por acontecer a
toda a gente, contando que viva os anos suficientes. Isso pode
ocorrer na rea profissional, familiar ou afectiva. Qualquer coisa
que, genuinamente, o desgoste. Mas isto fica entre ns porque, por
mais grave que o problema tenha sido, voc, habituado a resolver
tudo, vai desvaloriz-lo inicialmente e no vai admitir que est
triste por isso. Seria demasiado normal.
Depois, preciso esperar por uma altura propcia do ano, geralmente
por volta dos equincios. Se for para comear com uma depresso,
aconselho-o o fim da primavera, quando todas as outras pessoas
comeam a renascer com o sol, a olhar para si prprios e para os
outros. Nessa altura, e contra a corrente, a ocasio de voc se
declarar inimigo do sol. Tranque-se em casa e feche todas as janelas
e persianas. Se tiver de se levantar de manh, faa o mais tardiamente
possvel essa tentativa derradeira, mas reconhecendo que a sua
disposio para se levantar no grande. Para isso, arrange qualquerpretexto menor, algum que no o tratou como merecia, que no
o cumprimentou, qualquer contratempo assim. Faa cara dechateado e ver que no difcil arranjar pretextos destes.
Durante o dia, e logo que possvel, tranque-se em casa. Deite-se
na cama (ou no seu sof preferido) s escuras, com o objectivode dormitar. Se tiver coisas para fazer, v-as adiando. Evite contactoscom outras pessoas e deixe de cumprir os compromissos. At se
pode entreter a pensar em todas as coisas que ter de resolverdurante a sua vida, e ver como impossvel viver. A soluo
simples: dormir tanto quanto possvel (acabar por descobrir que,apesar de ficar 24 horas por dia deitado, no lhe possvel dormir
todas essas horas). Faa por isso durante o dia e, sobretudo, depoisde jantar, quando verificar que passou mais um dia vazio. claro
que depois, durante a noite, no tem mais sono. Fique a olhar parao ar ou, melhor, para as porcarias da televiso. Depois de um diasonolento, vai passar as noites em branco, mas assim que vai
conseguir dessincronizar o relgio do seu corpo.
Este apenas o incio, porque o ciclo repetir-se- dias a fio, e cadavez pior. Alm de evitar os encontros banais, comea a faltar aos
compromissos importantes. Esteja-se nas tintas para tudo, quealgum cuidar de si. Se algum o criticar, melhor. Voc sabe quemerece todos os insultos porque se transformou num trapo intil,
o ser mais desprezvel da humanidade. Fique a curtir a sua culpa e aimaginar os castigos que merece. Perdido por dez, perdido por mil.
Para si, s a cama, a escurido, o nada. Muito perto da morte, queseria benvinda. Nem sequer j chora (secaram-lhe as lgrimas): s
aquela expresso parada, aquela lentido. S de pensar num movimentosente um peso de toneladas, para lhe sair uma palavra tem de percorrer
todo o dicionrio. Comida? -Que trabalheira! Sexo? -Que estupidez!A vida? -Um peso impossvel! -O futuro? -Um mar de calamidades.
Ao sentir-se assim, j se encontra to dessincronizado que o seuorganismo reage com a hibernao. Mas de vez em quando os seus
astros internos sincronizam e pode sentir, subitamente, umafelicidade efmera. bem possvel que isso lhe comece a acontecer
para o fim da tarde ou mesmo para a noite. Mas voc, to preocupadoque est com o seu sono, nem d por isso. mnima oportunidade
pe-se a dormir, e o mximo que pode ter so bons sonhos. Paraisso vai mesmo procurar comprimidos para dormir. Mas quantomais os toma mais se dessincroniza, j que o seu organismo se
habitua a eles e, assim que acaba o efeito, l comea a insnia... ea angstia. O seu relgio corporal est agora catico e voc merece
o diagnstico de depresso major com melancolia. Para acrescentaro mximo da graduao (com componente psictico), basta sair um
pouco da realidade e supr, por exemplo, que j apodreceu, que
est mesmo morto e esperando pelo enterro (os especialistas
chamam a isto delrio de Cotard).
Os trs pargrafos anteriores so muito pouco para descrever o
verdadeiro martrio da depresso. O processo pode prolongar-se por
meses ou mesmo anos, s vezes melhorando um pouco, na maior
parte das vezes piorando, j que cada deciso que voc tomar
sempre em seu desfavor. claro que existe tratamento para isso, mas
tambm no se decide a ir ao psiquiatra. Talvez se entretenha a passar
por outros especialistas ou alternativos, tomando medicamentos
irrelevantes ou insuficientes que faro a sua depresso arder em fogo
lento. Assim vai ter tempo suficiente para pr em causa toda a sua
vida e, quem sabe, tomar decises ruinosas. Algum dia se cansar, mas
tambm lhe devo dizer que a verdadeira depresso no dura sempre.
Se for ao psiquiatra e este o souber tratar (e voc aceitar o
tratamento), pode estar certo que ao fim de trs semanas se sentir
bem melhor. Se no, ter de aguardar que a natureza (ou talvez os
astros) d por findo o seu sofrimento. Num caso e noutro, voc
acordar um dia de manh, abrir a janela do quarto e ver como
bonito o nascer do sol. Nesse dia sentir-se- feliz e tudo lhe
correr bem. Achar-se- estpido pelo estado a que se deixou chegar,
e pensar em recuperar o tempo perdido. Se continuar em roda
livre (ou se conquistou esse estatuto com a depresso), pode pr
de imediato mos obra e preparar-se para a mania.
Ela pode ou no acontecer. Se no for desta vez, pode esperarpara a prxima. Mesmo assim arrisco-me a dar-lhe alguns conselhospara que se torne manaco o mais depressa possvel. O importante manter-se em roda livre e fazer coisas que o entusiasmem. Seantes lhe receitaram antidepressivos, tome-os agora em grandesquantidades.Voc renasceu: est satisfeito e fluente, torna-se umverdadeiro sedutor e no lhe difcil levar os outros certa. Poroutro lado, torna-se optimista e j no admite que as coisas lhecorram mal. Sente-se cheio de energia e est disposto a arriscar,seja no que fr. Arrisque: faa projectos, apresente-os s outraspessoas, que elas no resistem ao seu dinamismo. Continue alevantar-se cedo, mas trabalhe muito, sobretudo pela noite fora.Ou seja: durma pouco e, se possvel, passe noites em branco. Este o verdadeiro teste. Se, depois de umas noites em claro, se sentecom maior energia, voc tem direito a uma verdadeira mania.
Vai continuar a fazer projectos e propostas, e passa de uns paraos outros ao sabor das ocasies. A sua alegria contagiante: alegraos outros que, por sua vez, o alegraro a si. Toma as decises maistemerrias no que respeita ao amor, profisso ou aos negcios.At natural que muitas coisas lhe corram bem. Se correrem mal,voc nem tem tempo para pensar nisso, uma vez que est sempre apassar de uma para outra iniciativa. Fala sem parar, de tal modo que,apesar de uma boa memria, j no se consegue lembrar do que disseantes. Tudo isto sem dormir e, talvez, sem prestar nuita ateno comida. Roda livre! Em compensao, a sua energia, que esteveadormecida na depresso, agora cada vez maior (paradoxos danatureza, ou a lei do pndulo?). A sexualidade, tambm em roda livre,no conhece quaisquer freios. a altura das grandes realizaes, depr em aco as mais escondidas fantasias. Pode fazer discursos smassas atnitas debaixo da sua janela, exibir-se como espontneonum espectculo de pera ou tentar roubar um submarino da Marinha.
No se esquea que muitas obras de grandes criadores foramrealizadas numa fase destas, depois de eles terem posto todo o seupassado em causa durante a depresso. certo que pertenciam aoseleitos, mas estavam pouco interessados em serem doentes mentais.Por isso, mantiveram a sua mania em lume brando, procurando oapoio de psiquiatras, a crtica de amigos e, sobretudo, a disciplina quehaviam adquirido nos seus ofcios. Evitaram entrar em roda livre. Porfavor, leitor, se est genuinamente interessado nos objectivos destelivro, no siga estes exemplos. Faa coisas mais grandiosas e disparatadas,mude de assuntos, v buscar o seu alimento falta de sono. Rapidamenteentrar em tal confuso, que algum o levar, apesar do seu protesto,ao hospital. A, no obstante as injeces que ocasionalmente lheconsigam dar, pode continuar o seu engraado jogo do gato e dorato, ensaiando fugas, recusas, faenas, fintas e sedues. O pior que,
hoje, existem medicamentos realmente eficazes.
O resto da sua carreira depende do modo como vai lidar com
estes medicamentos. Imagine que existem pessoas que, tratadas
adequadamente e aceitando o tratamento, apenas tm uma destas
fases durante a vida que, em todos os aspectos, se torna normal
ou bem sucedida. No foi certamente para isso que leu este livro
e, portanto, vamos ao resto. Por acaso at o aconselho a tomar,
inicialmente, os medicamentos prescritos. Por um lado, pode ter
a sorte de apanhar um psiquiatra mal avisado que lhe d
medicamentos que apressem o seu prximo episdio, depressivo
ou manaco. Por outro lado podem-lhe receitar um simples sal de
ltio ou outro medicamento normalizador do humor (um anti-
epilptico, veja l!). Com efeito, se tomasse certinho tais
medicamentos, podia ficar livre de novos episdios. Mas voc vai
apenas tom-los durante algum tempo para logo os largar
subitamente. Parece que esta a melhor maneira de ganhar
resistncia ao tratamento e dessincronizar mais o seu relgio, com
o adicional bnus de mais episdios manacos e depressivos.
A altura de deixar os medicamentos consigo. Mas pelo que
conheo dos interessados, a melhor altura quanto se aproximar
a poca de uma nova mania, talvez no outono. Provavelmente voc
j conhece os sinais de que ela est para chegar: levanta-se bem
cedo com a sensao de que vai vencer o mundo, adora a luz e
as cores, sente-se com energia para dar e vender, retoma os velhos
projectos, trabalha muito, no consegue parar. Esquece-se das horas
e, sobretudo, da hora de tomar os comprimidos. O seu optimismo
f-lo convencer de que j no precisa de se tratar, e a est a sua
sensao de (demasiado) bem estar para o provar. Largue a
medicao e entrar, seguramente, num novo episdio manaco.
Depois, j se sabe: deixa de dormir, entra em roda livre, leva ao
exagero as suas faanhas e algum (at pode ser a polcia) o levar
ao hospital para entrar de novo no jogo do gato e do rato.
Os medicamentos, agora, podem j no pegar to bem, e o ciclo vai
recomear. natural que da mania vire para a depresso, uma boa
ocasio para se arrepender e envergonhar das tolices que fez, sentimentos
estes sobrepostos culpa e pessimismo prprios do estado depressivo.
Agarra-se desesperadamente aos medicamentos antidepressivos,
convencendo o seu psiquiatra que est na disposio de fazer uma
medicao certa... at ver. Se ajudar com bebidas alcolicas, pode baralhar
mais o esquema dos tratamentos e dos seus altos e baixos.
A evoluo torna-se agora imprevisvel. Pode ter um ciclo por ano
(um episdio manaco e outro depressivo), ao ritmo da translaco
da terra, eventualmente com um ou outro ano de folga, ou pode
funcionar ao ritmo da translaco da lua, com mais de 4 ciclos
anuais. Naste caso tratar-se- de uma mania de ciclos curtos, e pareceque o melhor para chegar a ela abusar dos antidepressivos. Comtodas estas voltas e reviravoltas, a sua vida fai ficar feita num oito.
Mas os servios de sade no se podem negar a cuidar de si
sempre que seja necessrio e nada mais lhe reste. Voc est
verdadeiramente doente.
Em 1984, os americanos descobriram uma nova doena, a SAD
(Seasonal Affective Disorder). Como tudo o que vem dos americanos,
esta inveno tem muito que se lhe diga. SAD parece uma boa
designao para marketing, mas no diz nada de novo. Primeiro
porque no se trata de uma doena do afecto, mas sim do humor,
como so todas as manias e depresses. Em segundo lugar, porque
todas as manias e depresses tm alguma incidncia sazonal. Do
que se trata ento? Pura e simplesmente, de uma depresso que
ocorre mais frequentemente no inverno, sobretudo nos paises
longe do Equador (acima e abaixo do paralelo 35). Como o nosso
pas est no limite, tambm nos pode calhar esta beno.
Em boa verdade no sei se se trata de uma verdadeira doena ou
de um estado banal, uma vez que muitos dos doentes envolvidos
nos primeiros estudos foram convocados por anncios de jornais
onde se descreviam os sintomas: tristeza, irritabilidade, pessimismo,
isolamento e desinteresse sexual, dores, fadiga, lentido, hipersonolncia
e um especial apetite para hidratos de carbono, com o consequente
aumento de peso. Como tpico da sociedade de consumo ( qual
a psiquiatria no faz excepo) foi a oferta que determinou a procura.
Por isso, se o leitor se sentir assim nos invernos frios e escuros,
pode-se apresentar ao seu psiquiatra com o diagnstico j feito.
Mesmo assim, os sintomas so variveis e em graus diversos. Decidir
se se trata de uma doena autnoma, de um estado fisiolgico de
adaptao ao inverno ou de uma depresso clssica com alguns
sintomas atpicos, pode ser um problema para o psiquiatra.
Para o leitor praticante vai dar ao mesmo, uma vez que tem uma
verdadeira oportunidade de tentar a carreira de manaco-depressivo.Tanto mais que aos sofredores da doena afectiva sazonal lhes dada
a possibilidade de terem tambm episdios manacos: um no fim do
episdio depressivo, de Maro a Abril, outro antes, de Setembro a
Outubro. Se estudou bem a carreira dos manaco-depressivos, j sabe
como pode forar os episdios de energia e euforia (e falta de sono).At pode passar s depresses e manias clssicas, com episdios
noutras fases do ano. Tudo depende da capacidade de dessincronizar
o relgio corporal com as vrias alternativas que lhe indiquei, incluindo
a irregularidade da medicao que o psiquiatra fornece.
De facto, os medicamentos para esta doena so os mesmos das
outras manias e depresses, embora se especule muito sobre a
omnipresente serotonina (neste caso ela estar ausente: dizem que
a procura de chocolates e hidratos de carbono tem a ver com o auto-
reabastecimento deste neurotransmissor). Mas a doena afectivasazonal tem mais um medicamento eficaz: a luz do sol durante a
manh. Vrias empresas passaram a fabricar a luz do sol e a disponibiliz-
la comercialmente de todas as formas e feitios. O ltimo produto
consiste num bon com uma lmpada inserida por debaixo da pala.
Engraadssimo e com um bonito design. O leitor pode encontr-losna Internet se inserir o nome da doena em qualquer motor de busca.
possvel que a doena afectiva sazonal no seja muito diferente das
outras depresses e manias. S que, para a depresso do inverno, no
necessrio declarar guerra luz nem trancar-se em casa de portase janelas. Nos paises perto dos polos onde elas acontecem, o sol
que nos faz negaa durante boa parte do ano. De qualquer modo, as
investigaes volta da doena tiveram a vantagem de demonstrar
que aquilo que comanda os nossos ciclos de energia e, portanto, as
manias e depresses, so os astros (e sobretudo o Astro-Rei), emrelao com a sincronizao do ritmo de produo das nossas
hormonas. Nada que os antigos (e os astrlogos?) no soubessem.
Embora tenha dado sugestes para iniciar uma e outra, mais fcilchegar depresso do que verdadeira mania. Se j conseguiu teruma depresso e ela acabou por passar sem chegar mania, tenteoutra depresso passado algum tempo. Se a primeira resultou, j
aprendeu com a experincia e j sabe quais as melhores solues quese adaptam ao seu caso. Estamos a falar de antecedentes, pretextos,
modos de reagir da sua parte e dos outros. Este timo pormenor muito importante, pois nunca se sabe partida qual vai ser a reaco
dos outros. Podem-no tratar mal, o que talvez o ajude a melhorar(nunca se sabe) ou a piorar. Mas podem tentar trat-lo da melhor
maneira possvel, o que pode agravar a sua culpa e portanto pioraro seu estado. Podem finalmente mudar completamente e submeter-se aos seus caprichos, o que lhe d um enorme poder. S depois de
experimentar que fica a saber o que pode acontecer.
Acima de tudo j sabe qual a altura do ano mais propcia suadepresso, e pode automatizar as rotinas que o levam directamente
ao agravamento. H pessoas que aprendem a adivinh-la atravs depequenas rotinas do quotidiano. Tambm j conhece a melhor maneira
de evitar que o levem ao psiquiatra. Aconselho-o porm a ir l ao fimde algum tempo para ver se, com os medicamentos, consegue obtera almejada mania. H quem o consiga apenas por uns dias, depois de
se tratar com os antidepressivos, mas ela muito efmera e no chegaa ser uma verdadeira mania. Alguns especialistas podem, neste caso,
conceder-lhe o diagnstico de doena bipolar tipo II.
Se no conseguir chegar verdadeira mania, tenha persistncia,voltando a tentar ano aps ano. Enquanto l no chegar, tem, pelomenos o direito ao diagnstico de depresso unipolar recorrente.Mas no perca a esperana. Se tiver uma vida longa ainda pode lchegar. H quem faa uma mania depois de 10 episdios depressivos
ou apenas aos 80 anos. Se morrer mais cedo ficar apenas com adepresso unipolar. Mas repare que tudo muito subjectivo. Para
alm do caso da bipolar tipo II, em que no far grandes asneirasdurante a mania, seno, talvez, umas compras excessivas, natural
que, entre as depresses, voc ande muito bem disposto e cheiode optimismo, com energia para fazer muitas coisas e talvez comgrande sucesso na vida. At pode ser que se apaixone depois de
uma depresso, mas quem que pode chamar a isto mania? Voc,de certeza, no se queixa, e desde que ningum se queixe de si,
nunca chegar ao psiquiatra nem ao diagnstico.
Chegar ou no ao diagnstico de mania vai ento depender da suaprofisso, do estatuto social, das pessoas que dependem de si (ou
esto espera do seu dinheiro), do modo como estavam habituadosa v-lo ( por isso que aconselhei a iniciar a doena um poucotarde). Mas deixe l. Depresso unipolar j no mau, porque lheconfere algumas desculpas e regalias. Experimente, por exemplo,a frase chave: no me contrariem porque seno fico doente. O
que importa que leve a vida o melhor possvel e, se isso incluir
sucesso e uma rara felicidade custa de alguns episdios de
sofrimento (que o desculpam socialmente), s lhe posso dar osparabns. Mas se for essa a sua opo, melhor conter entusiasmos
exagerados e, sobretudo, no se dessincronizar com passagem denoites em claro ou horrios estapafrdios.
Finalmente, h outra maneira de ter uma depresso unipolar,
embora pouco sofisticada e muito prxima da distimia, quetrataremos no fim deste captulo. Com a vida difcil e aceleradaque temos, existem muitas coisas que nos desgostam genuinamente.
Basta ver um telejornal para constatar as tragdias dirias queteimamos em vencer. Mas no s isso: durante a nossa vida
existem perdas inevitveis, que vo desde amores e pessoas queridasat propriedades, expectativas, sonhos de uma vida ou o prprio
amor prprio. Claro que isto perfeitamente natural, e a naturezacolocou ao nosso dispr os modos de resolver o problema. Aceitar
a perda, a primeira coisa. Ficar triste e chorar, a segunda. Como apoio dos outros, vamos aprendendo a defendermo-nos.Aprendemos que cada coisa que se perde pode deixar um vazio
mas que com o tempo ser substitudo por outra coisa. Isto amudana, a aquisio de maturidade e a essncia da vida.
Porm, se o leitor quer ser doente mental fora e no tem
talento nem nascimento para qualquer outra doena, aproveiteesta oportunidade. Ao primeiro precalce deste tipo, no chorenem faa luto. Aproveite mesmo para no pensar muito no assunto,
evitando falar com amigos ou parentes. Em vez disso, dirija-se deimediato a um psiquiatra (ou mesmo a um clnico geral) daqueles
que demoram menos de 10 minutos por consulta. Conte-lhe comose sente e, se ele estiver renitente, acrescente que j pensou em
morrer (o que pode ser verdade). Sai de l com uma receita deantidepressivos e um diagnstico de depresso tout court. Temtambm a possibilidade de obter uma baixa ou mesmo uminternamento, aproveitando esse facto para dessincronizar os seusritmos ou, quem sabe, aprender qualquer outra doena. Em geral,
melhora ao fim de algum tempo, quando a perda for reparada e,sobretudo, quando largar os medicamentos e voltar vida normal.
No entanto, um s episdio no chega para o diagnstico de depressounipolar recorrente. Por isso, tem de aproveitar o prximo contratempopara dar os mesmos passos. Tambm, isso torna-se muito mais fcil,
porque a nica coisa que aprendeu para se defender da tristeza foirecorrer ao circuito mdico. Outros ouvem msica, lem ou escrevem,trabalham mais, dedicam-se a outras pessoas, mudam de vida, fazem
compras, arranjam-se melhor, mas voc deita-se a dormir e tomacomprimidos. Tenho apenas um aviso: se quiser atingir este objectivo
mrbido, nunca v ao psiclogo. Como ele no pode receitarcomprimidos, at lhe podia ensinar qualquer uma destas defesas.
Tanto na depresso como na mania, a sua energia anda alternadamente
para cima e para baixo. Por isso so ambas bipolares. Mas j que
esto definidas as depresses unipolares, porque no maniasunipolares? s tantas, tudo depende do que se considera normal.
Se voc for sempre uma pessoa tristonha, circunspecta e pessimista
(realista e lcida, como dizem alguns), qualquer periodo de entusiasmo
(amoroso?) lhe d direito posse de, pelo menos, um estado
maniforme. Os obsessivos e os fbicos no esto livres disso.
Fora isto, o problema que a mania mais difcil de atingir do que
a depresso. Se pertencer, verdadeiramente, a uma famlia eleita,
talvez consiga entrar directamente numa mania depois de umas
noites sem dormir ajudado por doppings ou, simplesmente, caf. muito possvel que isso acontea enquanto anda a estudar, portanto
bastante cedo. Neste caso, as suas ideias da juventude podem-no
levar a inventar ideologias pouco habituais, e podem-no tomar como
esquizofrnico. Outras vezes, mistura-se a tristeza e a euforia, a
irritabilidade e o bom humor, o pessimismo debitado num discursotorrencial, levando quilo que se tem chamado mania mista.
Serve isto para dizer que a mania unipolar, para alm de rara,
tambm geralmente atpica. Por isso, no estou muito seguro
das receitas que lhe dou para a provocar. Pode mesmo acontecerque ela ocorra sem fazer nada por isso (por exemplo, depois de
um traumatismo craniano acidental) e sem que eu nem ningum
saiba porqu. O crebro ainda est numa caixa fechada que no
se abre muito facilmente. certo que hoje existem os meios
imagiolgicos para o estudar, mas convenhamos que no fcilconvencer um manaco a meter-se no tnel de uma cmara de
positres e estar ali quietinho por vrios minutos. De qualquer
modo, se o leitor quiser passar pelas delcias de uma mania unipolar,
experimente embriagar-se. Dizem que o que h de mais parecido.
Existem hoje no mercado dezenas de antidepressivos diferentes os
quais, naturalmente, tm de ser vendidos. Por isso tambm existem
diversos items da DSMIV que contemplam depresses. Um dos maisabrangentes, e portanto mais fcil de obter, a distimia, antigamentechamada depresso neurtica. Portanto, se o leitor no tem talentopara qualquer uma das outras seces, e quer viva fora ser doente
mental, escolha esta variante. Alis, tambm a pode atingir depois
de estar farto das outras carreiras, como a obsessiva, a agorafbica,
a da personalidade evitante ou do transtorno de somatizao. At
bem possvel que um psiquiatra apressado esteja dispo