Colonialismo e Genero na India-Diu

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    Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da EmpresaDepartamento de Antropologia

    Dissertao de mestrado em Antropologia. Colonialismo e Ps-ColonialismoOrientadora: Professora Doutora Rosa Maria Perez

    Proponente: Rita dvila CachadoProjecto financiado pela Fundao Oriente

    Novembro de 2003

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    Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da Empresa

    Departamento de Antropologia

    Dissertao de Mestrado em Antropologia.Colonialismo e Ps-colonialismo

    Orientadora: Professora Doutora Rosa Maria Perez

    Projecto financiado pela Fundao Oriente

    Rita dvila Cachado, Novembro de 2003

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    ndice

    Agradecimentos 3Introduo 5Objecto ps-colonial 5

    Como analisar? 10Mtodos: Alm dos livros 13

    I Parte De Volta de Diu 21Captulo 1. Goa, Damo... e Diu? 221.1. Emigrao 221.2. Diu: de colonial a ps-colonial 261.3. Ainda a emigrao 271.4. Os bons tempos dos portugueses 301.5. Portugal e a ndia nos anos 50 34

    1.6. O medo daperda 40Captulo 2. Libertao, invaso, anexao 452.1. Razes para a anexao 462.2. As aces militares e a memria da anexao 472.3. Reaces e reflexos da anexao 542.4. Vantagens de ter vivido num espao colonializado 58

    II Parte Dilogos Tericos 63Captulo 3. Colonialismo portugus 643.1. Uma reflexo sobre a antropologia e o colonialismo portugus 643.2. Colonizao das mentes 673.3. Luso-tropicalismo 733.4. Aproximao relao entre colonialismo portugus e britnico 76Captulo 4. Colonialismo britnico e nacionalismo indiano 804.1. O outro lado do colonialismo britnico 814.1.2. Um mal necessrio 854.2. O mais estvel dos poderes coloniais? 874.3. A emergncia do nacionalismo indiano 884.4. Nacionalismo e gnero 934.4.1.Gandhi como resposta cultural mais eficaz 100Captulo 5. Uma reflexo sobre o gnero e o poder 105

    5.1. Deus, Ptria e Famlia 1095.2. O gnero e os poderes 1035.2.1. O nacionalismo contribuu para o silenciamento das mulheres? 1135.2.2. Can the Subaltern Speak? 114

    Concluso 119Bibliografia 127

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    Sem eles e elas, no teria conseguido prosseguir os estudos, apostar emsonhos, fazer trabalho de campo, ter inmeras experincias pessoais,

    acadmicas, aprender tanta coisa em trabalho de campo que no coube natese ou, tantas vezes, conseguir sorrir perante obstculos.De uma forma ou de outra, todos e todas contriburam e contribuem para arealizao desta tese.

    Em trabalho de campo, pela hospitalidade, disponibilidade mas sobretudo portudo o que aprendi e que no est visvel na tese. So mil e uma histrias quefazem parte do dia-a-dia e de partilha de conhecimentos.Em Lisboa: Bina, Manjulaben, Krishna e famlia, Indiraben, Manglabai, Dina,Muktaben, Krina, Dulcina, Rosnaben, Vrajniben, Bhanumasi, Jetiben,

    Hansaben...Em Diu: Sumanbhai e famlia, todo o pessoal do PWD, com uma nota especialao Iqbal e ao Dharmendrabhai, Vanitaben e famlia, Asmukbhai, Jessuhbhai,Julieta do Rosrio e marido, Bhaunaben, Shandraben e Princi, Pinkubhai eJetiben, Krimilaben e Bagvatiben, Bhavanibhai, Prianka e famlia, Lalit Josi efamlia, Khanubhai, Vishnubhai e famlia, Dineshri, Vijaybhai e famlia,Padmini e Prakash, Lenette e famlia. Em Fudam: Premiben, Pinki, Jamakben,Patrizia e Shankar, Quessoubhai, Manu e Arunaben, Vanitaben e famlia... EmGoghla: Vaishali e famlia. Ainda aos Presidentes da Cmara Dr. Kamalia e Sr.Rasik Solanki e ao Collector, Vijay Kumar.

    No trabalho acadmico, pela inspirao, motivao, sugestes e crticas: orientadora desta tese, Prof Doutora Rosa Maria Perez (tambm pelaimparcialidade e nimo);Aos professores que me influenciaram duma ou doutra forma a prosseguir estecaminho, por ordem de chegada: Paula Godinho, Maria Cardeira da Silva,Jorge Crespo, Miguel Vale de Almeida, Joo Leal, Brian ONeill;Ainda no trabalho acadmico, Snia Almeida, Patrcia vila e IsabelRaposo pelo exemplo; Isabel e Manela do CEAS; aos indianistas PedroMatias e Pedro Roxo, mas sobretudo Ins Loureno, pela partilha, ajuda eentusiasmo permanentes.

    Um abrao especialAo Joo Carlos, Srgio, Dina, Ana Cruz, Z Falco, Filipe Calvo, Joana Lucas;E aos amigos de sempreAna Margarida, Clara, Leonor, Ctia, Paula, Ana Claudia, Felicidade, Joana,Patrcia, Viseu, Vanessa, Rosado, Bruno, Z Miguel, Amadeu, Ganau, Marta.

    Ao Andr Beja, por acreditar, esperar, ouvir, lutar. Por no me deixar vacilar.

    Esta tese , contudo, dedicada aos meus pais e minha irm, pelo apoio,incentivo, crticas construtivas e abertura de esprito.

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    (...) Explicou-lhes que a histria era como umacasa velha. Com todas as lmpadas acesas de

    noite. E antepassados sussurrando l dentro.- Para compreender a histria dizia Chako -,

    teremos de entrar l dentro e escutar o que elesdizem. E observar os livros e as pinturas nas

    paredes. Sentir os cheiros.

    Arundhati Roy, 1997, O Deus das Pequenas Coisas: 60-1

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    Introduo

    Objecto ps-colonial

    Como dizia uma professora minha da licenciatura a propsito dos

    primeiros projectos para a monografia, vocs so muito generosos. O

    objecto de estudo era quase sempe difuso e vasto como se fosse para uma

    tese de doutoramento. sempre difcil circunscrever uma temtica para

    analisar, sobretudo porque o que nos aguarda obriga a reformulaes

    incompatveis com a generosidade excessiva. Serve esta entrada para dizer

    que tambm o objectivo inicial deste trabalho se distancia em parte do texto

    final.

    Primeiramente, elaborei um projecto de investigao intitulado Do

    Ponto de Vista Delas. Colonialismo, Nacionalismo e Gnero no Gujarate1, cujo

    objectivo central era analisar a memria das lutas da anexao2 de Diu

    Unio Indiana, dando ateno, sobretudo, ao ponto de vista das mulheres

    hindus e catlicas de Diu, o espao principal sobre o qual assenta este estudo.

    A segunda3 estada em Diu entre Outubro e Dezembro de 2002 mostrou-me,

    contudo, que algumas das questes colocadas foram elaboradas de acordo

    com pressupostos tericos estabelecidos anteriormente observao in loco

    dos fenmenos em anlise e que as questes que se levantam no campo em

    estudo tm contornos diferentes. A inflexo daqui decorrente, longe de ter

    um carcter negativo, apresenta-se-me, pelo contrrio, extremamente rica

    quer do ponto de vista metodolgico quer conceptual. Ela demonstra, no

    1Muito embora a actual designao do estado referido em portugus seja Guzerate ouGuzarate, a traduo da lngua original implica que o traduzamos para Gujarate, seguindo atraduo inglesa, Gujarat. uma opo discutvel (por no constar dos dicionrios); contudo,surge j o termo Gujarate no dicionrio de Morais para a designao da pessoa oriundadaquele estado.2A opo por este termo prende-se com o facto de ser mais neutro do que outros termoscomo libertao(adoptado pelos sujeitos que desejaram o fim do colonialismo portugus nandia e por aqueles que, contemporaneamente se recentem da presena colonial) e queda,invaso ouperda(termos preferidos pelo Estado Novo e por alguns indianos de Goa, Damo eDiu). Todos os termos podem ter conotaes polticas. Ver, infra, Captulo 1. Goa, Damo... e

    Diu? E Captulo 2. Libertao, invaso, anexao.3Porque houve uma visita preparatria. Vide, infra, Mtodos: alm dos livros.

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    primeiro caso, a incorreco e os riscos resultantes de observaes

    condicionadas por grelhas tericas previamente construdas e, no segundo, a

    extrema complexidade que uma observao de terreno comporta e as mais

    valias que possui relativamente a um trabalho estrito de anlise de fontes.

    No quer isto dizer que o projecto elaborado previamente no se adeque

    realidade, mas sim que a experincia no terreno trouxe novas abordagens das

    mesmas questes.

    Os dados recolhidos no campo pem em evidncia pontos de vista

    crticos na relao histrica entre colonialismo e ps-colonialismo em Diu.

    Neste sentido, mantm-se um objectivo central, que passa pela anlise

    cuidada ao nvel dos interesses e prticas dos indivduos que viveram o

    processo da anexao de Diu Unio Indiana, em Dezembro de 1961. Por um

    lado, entre as pessoas que viveram em situao colonial com quem falei, no

    houve oposio manifesta ao regime, nem revelada qualquer atitude mais

    negativa em relao administrao portuguesa4. Apesar disso, no se podem

    descurar atitudes menos bvias que nos fazem concluir que o regime colonial

    no foi to inclome quanto poder parecer numa primeira anlise das

    conversas informais realizadas em Diu. Referimo-nos emigrao massiva

    para Moambique antes da anexao, por falta de emprego em Diu e, claro

    est, no esquecendo a tradio migratria dos diuenses hindus para aquele

    pas. Por outro lado, e em consequncia de no ter havido grande sinal de

    oposio ao regime, tambm as mulheres (como os homens, alis) no tiveram

    um papel importante neste processo; a oposio veio, quase na totalidade, de

    fora de Diu, e no mbito do nacionalismo indiano ps-independncia, ou seja,

    entre 1947 e 19615. Em contrapartida, medida que avanvamos nos

    estudos, encontrmos um paralelo entre a ideologia nacionalista hindu e

    outros nacionalismos seus contemporneos, como os africanos e o prprio

    4Importa referir que os satyagrahis (que se opuseram pacificamente aos regimes coloniais,seguidores de Gandhi) e osfreedom fighters (da luta nacionalista armada), desempenharamum papel importante no processo, no obstante a ausncia de referncias no trabalho decampo, derivada, em parte, do facto de, no caso dosfreedom fighters, constituirem umdestacamento de Goa e os satyagrahis, com forte presena no Gujarate (onde Gandhi nasceu)e mais importantes do que aqueles na luta pela libertaode Diu, serem de fora de Diu. Ver

    tambm Shirodkar 1986 e 1990 (consultar bibliografia).5Para o caso de Goa, Damo e Diu. Ver nota anterior.

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    nacionalismo portugus no seio da ideologia do Estado Novo,no que toca

    questo das mulheres. Apesar de analisarmos esse paralelo, o ponto de vista

    delas ainda uma miragem.

    A anlise da situao de subalternidade permanece. Sad chamou-nos a

    ateno para que s muito recentemente os ocidentais se aperceberam de

    que a histria dos subordinados6pode ser desafiada pelas pessoas postas em

    causa (Sad 1993: 195). E, de facto, a histria dos subordinados explica-nos

    que tipo de colonialismo/imperialismo se aplicou nos diferentes pases

    colonizados7. No nos tem elucidado, contudo, sobre o modo como os sujeitos

    - que estiveram em posio de subalternidade no perodo colonial -

    aproveitam, no presente, um passado de subordinao.

    Esta tese de mestrado concentra-se, por isso, em dois eixos de anlise.

    O primeiro procura, por um lado, estudar a forma como a anexao de Diu

    perspectivada8antes, durante e depois de Dezembro de 1961 e, por outro, as

    influncias do regime colonial sobre a populao que se verificam na

    actualidade. O segundo eixo de anlise estuda o paralelo entre as ideologias

    coloniais britnica e portuguesa, relacionando-as, respectivamente, com o

    nacionalismo hindu e com o governo do Estado Novo, visto que ambos fazem

    um aproveitamento das questes de gnero de forma singular. Estes dois eixos

    de trabalho procuram chegar a um objectivo comum que consiste em

    contribuir para os estudos ps-coloniais no seio da Antropologia,

    nomeadamente focando a especificidade do colonialismo portugus na ndia,

    quer por referncia a outras formas de colonialismo no sub-continente

    indiano9, quer por referncia a outras formas de actuao poltica portuguesa,

    em meados do sculo XX, isto , por referncia ao Estado Novo.

    6Este termo, assim como o de subalterno, termo Gramsciano adopatado por Guha nonascimento dos Subaltern Studies (confrontar, por exemplo, Guha, ed. 1997) sero utilizadospara falar da situao de sujeio ao poder colonial.7A histria dos subordinados tem duas valncias: a dos historiadores nacionalistas, decontornos tendencialmente essencialistas e a dos subaltern studies, prximos do neo-marxismo, ps-estruturalismo e feminismo acadmico. Ver Prakash 1990 e Chakrabarty 1992.8

    Sobretudo pelo governo colonial portugus e pelos sujeitos que passaram pela anexao.9Centrar-me-ei no colonialismo britnico, o que teve maior influncia sobre a populao.

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    Para isso, procurarei conjugar os domnios disciplinares da Histria e da

    Antropologia, no sentido de aliar a sincronia diacronia, assumindo que

    processo e estrutura no so dissociveis (Hann 1994: 8). Pensar o passado e o

    presente de forma dialctica surge-nos como um exerccio extremamente til

    quando queremos explorar a relao histrica entre colonialismo e ps-

    colonialismo. Deste modo, propomos agora uma reflexo sobre essa relao.

    Parafraseando Stocking, a ideia no estabelecer uma diviso em que a

    Antropologia fornea o objecto de estudo e a Histria a orientao

    metodolgica (Stocking 1993: 6). Pretende-se antes uma abordagem

    interdisciplinar em que as perspectivas principais so as da Histria e da

    Antropologia. Neste trabalho, a importncia deste mtodo analtico

    particularmente evidente pois a maior parte das anlises tericas da nossa

    bibliografia, em torno dos temas de que se ocupar a tese de mestrado, j

    privilegiam ambas as disciplinas. E no por acaso que o fazem. Assim como

    aqui propomos que a Antropologia e a Histria so indissociveis tendo em

    conta a anlise em mos, tambm a cultura e o colonialismo esto

    intimamente ligados quando procuramos realizar uma anlise ps-colonial

    (Dirks 1992: 3). Fica contudo por explicar um terreno de pesquisa

    fecundssimo a estes associado e que passa pela articulao entre cultura e

    poder.

    No que toca ao contexto indiano, por um lado, a reflexo sobre o

    passado j se faz h milnios (Appadurai 1981: 204) e, por outro lado, h uma

    superabundncia do passado no presente. Assayag diz-nos que as fontes da

    histria foram trabalhadas como expresso narrativa do passado e em relao

    com o seu poder legitimador (Assayag 1999: 23). O passado surge, assim,

    como veculo do poder de um discurso como sugere Appadurai: (...) the past

    is an intrinsically alternative mode of discourse to those other cultural modes

    of communication which can, and often do, assume an eternal present. (...)

    (1981: 218). Isto importante porque o nacionalismo indiano aproveitou o

    passado pico na ndia para dar mais fora aos seus argumentos, fazendo uma

    historiografia edificante (Prakash 1992: 157).

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    Este contexto leva-nos a reflectir sobre memria colectiva. As

    perguntas que colocamos neste mbito so: o que que uma comunidade

    memoriza? O que retm do passado? As respostas a estas perguntas passam

    pelo conceito de memria histrica. Susan Crane d-nos uma pista para

    pensar esse conceito, quando diz que a histria no s o passado mas

    tambm o que escrito sobre esse passado (Crane 1997: 1372).

    Acrescentamos que igualmente importante o que escrito nessespassados,

    isto , aqueles documentos com que os historiadores esto bem mais

    familiarizados mas que se revestem de igual importncia para os

    antroplogos. A perspectiva dos antroplogos sobre os mesmos documentos

    pode ser diferente, na medida em que procura dialogar com eles de uma

    forma semelhante ao dilogo que estabelece com os interlocutores. Deste

    modo, a memria histrica passa pelas memrias descritas e contadas por

    diferentes agentes, comeando pelos prprios interlocutores no trabalho de

    campo, mas passando ainda pelos jornais, legislao, documentos produzidos

    por um determinado governo. No devemos discurar que os documentos

    referidos podem estar imbudos do discurso colonial10, pelo que a sua anlise

    dever ter o cuidado de explicitar a conjuntura histrica envolvente.

    As funes de uma metodologia que se estrutura na relao entre

    Histria e Antropologia no seio dos estudos ps-coloniais passam por estes,

    desta forma, lutar contra a amnsia social (Assayag 1999: 22); contribuir para

    a anlise do colonialismo como um processo de conhecimento para atingir a

    dominao (Cohn 199611); abordar globalmente um fenmeno e perceber os

    contornos do que se passa hoje, atravs da histria da experincia de sujeio

    (Prakash 1990: 353); pr em evidncia que os nacionalismos do terceiro

    mundo resistem aos princpios de inteligibilidade fabricados a partir dos

    nacionalismos europeus (Assayag 2000: 18-9); enfim, dar conta de uma

    antropologia histrica do presente ps-colonial (Scott 1997: 568). Esta mesma

    metodologia tem como finalidade descortinar a memria histrica do perodo

    da anexao de Diu Unio Indiana, procurando ilustrar melhor uma poca

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    Conferir, por exemplo, Sad 1978; 1993.11Mas tambm Foucault e Sad, entre outros.

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    que tem sido pouco abordada no mbito da Antropologia e mesmo da

    Histria12. Acresce que as anlises quando feitas no domnio exclusivo desta

    disciplina, muito embora nos dem conta dos factos ocorridos quando das

    lutas nacionalistas, no caso concreto em Diu, carecem de uma anlise cuidada

    ao nvel dos interesses e prticas dos indivduos que passaram por esse

    processo. A perspectiva da Histria (de Portugal) d proeminncia s polticas

    de afirmao colonial, enviezando, e por vezes ignorando, os movimentos de

    oposio ao poder imperial, conducentes s independncias.

    Como analisar?

    (...) Western scholarship has consistently been part of theproblem rather than the solution. When Edward Sad published

    his pathbreaking Orientalism, he articulated the mostcompelling polemical critique of the implication of scholarly

    discourses in colonial legacies that has so far been made. (...)(Dirks 1992: 9).

    Obviamente que a Antropologia do colonialismo e ps-colonialismo

    parece ser o campo disciplinar mais prximo do dilogo entre a Antropologia e

    a Histria. A anlise que aqui se vai forjando pretende ser uma anliseglobalizante dos fenmenos em apreo, o que passa por no parcelar a

    totalidade social, adequando-a a determinadas tendncias tericas.

    Prescindirei, portanto, das hierarquizaes tericas que comum fazerem-se

    entre as diferentes vias da Antropologia, para um entendimento to

    sistemtico quanto possvel do processo colonial portugus em Diu. Os estudos

    sobre o colonialismo e o ps-colonialismo actuais prendem-se, em parte, com

    uma necessidade mais ou menos recente de pr em causa a produoantropolgica sobrepovose culturasno ocidentais, que no levem em conta

    o debate sobre o ps-colonialismo. Uma das primeiras chamadas de ateno

    foi feita por Sad, no final dos anos setenta, contra os pressupostos tericos

    utilizados para falar sobre o Outro13no ocidental. O alerta, surgido no cerne

    dos estudos literrios, levantou uma onda de debate no seio das cincias

    12Tem-se analisado o processo que levou anexao, mas para o contexto alargado de Goa,

    Damo e Diu; quase nunca especificando o caso de Diu.13Sad, 1978, Orientalism: Western conceptions of the Orient.

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    sociais e humanas, que continua sob diversas formas at actualidade. Para o

    campo de estudos centrado no colonialismo e ps-colonialismo,

    explicitaremos em seguida algumas das temticas que levaremos em conta.

    Porque o tempo ps-colonial deu lugar a uma srie de redefinies dos

    espaos ex-coloniais, julgamos que a relao entre globalizao e

    localizao14 deve ser entendida como temtica de pano de fundo deste

    estudo. No pretendemos utilizar globalizao como conceito operatrio; a

    sua utilizao vai no sentido de perceb-la como uma rpida acelerao dos

    acontecimentos no mundo contemporneo. Em contrapartida, a localizao

    fornece-nos a via para pensar a resposta prpria globalizao. Nesta

    problemtica, estou, por um lado, com Abu-Lughod (1991), que fala da

    necessidade de dar visibilidade s especificidades15 culturais, contra os

    discursos de poder (Abu-Lughod 1991: 149). Por outro lado, procurarei

    explorar neste contexto aquilo a que Pels16chama processos subalternos de

    comunicao global, isto , tentarei avaliar em que medida que o

    colonialismo e o domnio colonial (que no caso em concreto um duplo

    domnio, o portugus e o britnico) deram azo a formas alternativas17 de

    oposio. A relao entre globalizao e localizao leva-nos,

    necessariamente, reflexo sobre outro binmio conceptual como o de poder

    e resistncia18, particularmente importante para entender como do

    colonialismo pode nascer o nacionalismo.

    Sobre as funes do nacionalismo, penso que, em termos gerais, e

    tendo em conta o contexto indiano, se deve reflectir com Prakash (1990),

    quando refere que o primeiro grande desafio ndia orientalizada pelo saber

    europeu veio da historiografa nacionalista e do nacionalismo, como um

    14A expressoglobalizao no a ideal. Aqui, o conceito visto como a acelerao dosacontecimentos no mundo contemporneo. Para localizao, Videpor exemplo, Hall, 1992,Identidades culturais na ps-modernidade.15No original,particulars.16VidePels 1997, The Anthropology of Colonialism: Culture, History, and the Emergence ofWestern Governmentality,An. Review of Anthropology: 163-83;17Alternativas, em relao s formas de resistncia mais comuns ao poder colonial, como onacionalismo.18

    Muito embora no sejam processos cronologica ou conceptualmente equivalentes; mantmdistncias entre si e respectivas especificidades.

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    fenmeno de massas (Prakash 1990: 356-8). Muita da resistncia ao

    imperialismo, de facto, foi conduzida a partir de atitudes nacionalistas (Sad

    1993: 223). Conquistada a independncia, os novos cidados reclamam o fim

    da ideologia europeia, que instruiram os no-europeus, visto que as elites

    nacionalistas ficaram com os lugares do poder outrora ocupados pelo poder

    colonial (1993: 264). Ento, tal como o colonialismo tinha sido um sistema,

    tambm a resistncia comeou a ser sistemtica (1993: 196). luz dos

    estudos ps-coloniais, o conceito de resistncia ganhou novo flego (Scott

    1985: 299), por assim dizer. J no se pensa apenas nos processos de

    resistncia visveis, com vista obteno de frutos imediatos; tende-se antes

    a privilegiar processos mais ou menos informais (1985: 33) de resistncia.

    O nacionalismo indiano tambm ser contextualizado nesta dissertao,

    sobretudo a propsito da questo das mulheres. Assayag, na sua recente obra

    LInde. Dsir de Nation(2001), sistematiza a histria do nacionalismo indiano,

    explicando como que os seus contornos chegaram aos dias de hoje,

    consubstanciando-se na actual poltica nacionalista hindu, sob a gide do BJP

    (Bharatyia Janata Party). Retenhamos, por ora, apenas a seguinte ideia: no

    seio do imaginrio-base da construo da nao est a ideia da mulher como

    me ou como deusa, j explicitado em Roy (199819) e outros autores que

    articulam nacionalismo e gnero. Por aqui chegamos necessidade de

    explorar teoricamente os estudos de gnero. No desenvolvimento da pesquisa

    terei em ateno, por um lado, a advertncia da antropologia feminista para

    a no utilizao de pressupostos tericos inerentes dominao masculina

    (Strathern 1987), em ambos os aspectos, sociedade e cincias sociais. Por

    outro lado, no esquecerei outra chamada de ateno, surgida no seio da

    mesma rea disciplinar e, desta vez, da prpria produo cientfica indiana,

    de que a pesquisa feminista, quando concentrada nas questes da famlia, da

    educao, da participao na economia domstica, est implicitamente a

    aceitar a diviso das esferas pblica e privada, negligenciando a

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    Confrontar, ainda, Perez e Fruzzetti 2002 (nesta referncia, veja-se a bibliografia includano artigo).

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    materialidade dos processos econmicos atravs dos quais surgem essas

    esferas20.

    At agora, demos conta do objecto de estudo e abordmos

    sumariamente a base terica que nos apoiar na pesquisa. Seguem-se as

    opes metodolgicas mais prticas, isto , aquilo que aos olhos das cincias

    exactas seria o que fornece credibilidade cientfica a este texto final.

    Mtodos: alm dos livros

    Desde muito cedo que a Antropologia preferiu como mtodo o trabalho

    exterior biblioteca. Em termos simplistas, a busca das prticas dos sujeitos,

    mais do que a leitura sobre essas prticas. De facto, o trabalho de campo com

    observao participante uma das tcnicas mais valorizadas na Antropologia.

    No resistimos a citar Barley, referindo-se a esta opo:

    (...) Frankly, it seems then[21], and [it] seems now, that thejustification for fieldwork, as for all academic endeavour, lies

    not in ones contribution to the collectivity but rather insome selfish development. ()(Barley 1983: 9)

    Para esta tese de mestrado, o trabalho de terreno foi muito importante

    pois sem ele no poderia ter redefinido os objectivos em funo de uma maior

    pertinncia do objecto de estudo. Explicitando, as preocupaes temticas

    desta investigao, resultantes da experincia de terreno entre Outubro e

    Dezembro de 2002, decorrem de uma tentativa de compreender aquilo que os

    sujeitos em questo querem realmente dizer, o que que faz sentido luzdas entrevistas informais realizadas. Esta atitude indispensvel a uma

    antropologia consciente da histria e, em particular, compreenso do

    colonialismo (Scott 1997: 561). Contudo, o trabalho de campo realizado para

    esta pesquisa no se circunscreve estada em Diu entre Outubro e Dezembro

    de 2002. De facto, o que me levou a ingressar no mestrado de Antropologia

    20Este alerta provm de Sangari & Vaid 1999 (1989):24, no mbito de um feminismo

    acadmico auto-crtico.21Quando do trabalho de campo de Barley.

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    Colonialismo e Ps-colonialismo foi o trabalho de campo realizado junto da

    comunidade hindu da Quinta da Vitria22, no mbito de um estgio para a

    Cmara Municipal de Loures23, entre Maro e Outubro de 2000. Desde a, as

    relaes com algumas das interlocutoras24 continuaram, visitando as suas

    casas e assistindo s cerimnias religiosas do calendrio hindu, situao que

    ainda se mantm, pois algumas dessas relaes so tambm de amizade e

    porque pretendo continuar a estudar fenmenos relacionados com aquela

    comunidade. Alm desta permanncia, comecei os contactos com a

    comunidade hindu de Santo Antnio dos Cavaleiros, atravs de uma colega

    que tambm realizava um estgio para a mesma edilidade e ambas viajmos

    at Diu, j no mbito do mestrado, acompanhando uma famlia residente em

    Santo Antnio dos Cavaleiros, durante cinco semanas, entre Janeiro e

    Fevereiro de 2002. A segunda viagem a Diu, entre Outubro e Dezembro do

    mesmo ano, o ncleo duro do trabalho de campo para este mestrado, foi um

    perodo muito enriquecedor, ao nvel da investigao em si e a nvel pessoal.

    O conhecimento da terra de origem nestas duas viagens teve uma importncia

    decisiva ao nvel da ilustrao das informaes recolhidas no terreno

    metropolitano. Isto , a permanncia em Diu permitiu-me conhecer os locais

    de que falam documentos e interlocutores em Lisboa; nesse sentido foi

    particularmente importante para a percepo da conjuntura que envolve a

    anexao do territrio de Diu Unio Indiana.

    semelhana do que estavvamos habituadas25em Lisboa, as pessoas

    que conhecemos foram extraordinrias, dificultando em tudo o rtulo de

    22Utilizo comunidade no sentido de Cohen (1985).O bairro da Quinta da Vitria um bairro dehabitao precria em vias de realojamento, na Portela de Sacavm. As famlias inscritas noPlano Especial de Realojamento (PER) foram j realojadas num bairro contguo ao da Quintada Vitria; as outras esperam um desenlace positivo dos seus processos.23No Gabinete de Assuntos Religiosos e Sociais Especficos, orientado pela Dra. CristinaSantinho. O estgio consistiu na caracterizao da comunidade, e o seu objectivo geral eraperceber quais os agentes mediadores com a sociedade envolvente.24Alguns interlocutores, tambm, mas sobretudo mulheres.25Nesta segunda viagem a Diu tambm fui com a Dra. Ins Loureno, com quem pude semprepartilhar, l e c, as angstias/alegrias do terreno e sem cuja motivao constante esta teseno teria corpo. Metodologicamente, a vantagem de uma etnografia partilhada passa,

    essencialmente, pela resoluo de problemas (ticos e formais, entre outros) de forma menosangustiada do que comum num trabalho antropolgico solitrio. Contudo, esta partilha

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    interlocutores, e muito menos de objecto de estudo, com uma hospitalidade

    difcil de retribuir26. As consequncias que daqui advm so mltiplas e

    dependem no s da anlise que se pretende fazer posteriormente ao

    trabalho de campo, mas tambm do ponto de vista do investigador. No meu

    caso, se por um lado os contactos prximos com os interlocutores dificultavam

    a identidade da investigadora como tal, por outro lado, essa forma de

    convvio tornava mais fcil a colocao das questes ou mesmo a ausncia da

    necessidade de colocar as questes. Este tipo de trabalho de campo ,

    necessariamente, um trabalho continuado, como o que temos vindo a fazer

    entre as comunidades hindus de Santo Antnio dos Cavaleiros e da Quinta da

    Vitria.

    Importa referir, sobretudo por uma questo tica com os

    interlocutores, mas tambm para melhor explicitao do trabalho efectuado,

    que o trabalho de terreno realizado foi subastancialmente mais rico do que

    aquilo que foi possvel expor nesta tese. O tipo de relaes estabelecidas com

    os interlocutores implicaram idas sucessivas ao terreno, que envolveram um

    trabalho paralelo que no se prende directamente com a tese, do qual

    destaco a presena continuada nos rituais hindus (sobre os quais reuni muita

    informao), seguindo o calendrio hindu sempre que possvel junto das duas

    comunidades referidas.

    No que diz respeito s tcnicas utilizadas suplementares observao

    participante no tabalho de campo, destaco a utilizao sistemtica do dirio

    de campo e de entrevistas informais. As actividades realizadas ao longo do dia

    foram registadas num dirio (sobretudo no que se refere s estadas em Diu),

    que se constituiu como um auxiliar imprescindvel da observao participante

    e da recolha de dados relativos anexao de Diu Unio Indiana e forma

    como os diuenses perspectivam a presena colonial portuguesa naquele

    no feminino - tem outras consequncias e valncias terico-metodolgicas a explorar noutrosespaos, com mais acuidade.26Refiro-me concretamente a no recebermos as pessoas em casa ou ao fornecimento de

    informaes correspondentes s que nos foram facultadas. Contudo, no ponho de lado ofacto de haver reciprocidade ao nvel das relaes pessoais.

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    enclave. Como se poder verificar ao longo da tese, optei pela quotao do

    dirio de campo. Esta opo corresponde a um objectivo que passa,

    necessariamente, pela explicitao dos contedos tratados sempre que tal me

    pareceu adequado. As entrevistas foram realizadas, na sua larga maioria, sem

    registo audio, apenas com acompanhamento manuscrito e com carcter

    informal. Em alternativa a Burgess (1984: 113) no considero as entrevistas no

    terreno como no estruturadasporque, de facto, h uma certa estrutura, isto

    , houve sempre um guio para as perguntas a colocar. No obstante,

    concordo com o mesmo autor quando fala das entrevistas como conversas

    (1984: 111). Alm destas tcnicas, utilizei ainda o registo fotogrfico por

    considerar que detm duas funes no trabalho de campo correspondendo a

    dois tipos de apontamento. Por um lado, a funo de auxiliar na descrio do

    universo (espaos e indivduos). Por outro lado, a captao de

    momentos/imagens a pedido dos interlocutores. A funo deste segundo tipo

    a de poder, assim, distinguir o(s) tipo(s) de situaes consideradas

    importantes pela populao em causa.

    Mas se os terrenos foram cruciais para esta pesquisa, tambm as

    recolhas documentais tiveram um papel importante. Elas ajudaram a

    apreender o ambiente cultural, histrico, social, econmico, do objecto de

    estudo. Apresentamos agora os arquivos e os contedos das recolhas

    referidas, em termos gerais.

    Hemeroteca de Lisboa. No perodo que antecedeu a segunda viagem

    ndia, realizei ali uma pesquisa, no intuito de encontrar relatos

    sobre a evoluo da situao em Goa, Damo e Diu, ao longo do ms

    de Dezembro de 1961. Os jornais ento analisados do grande

    importncia aos acontecimentos, mas com especial destaque s

    informaes que vinham de Goa. Damo e Diu esto, de alguma

    forma, negligenciados nas notcias. Por isso, procurei tambm

    opinies e tomadas de posio que surgiam nos jornais da poca

    relativamente ao desenlace da situao;

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    Arquivo Histrico Ultramarino. O objectivo da pesquisa que realizei

    neste arquivo consistia em encontrar dados sobre a actuao do

    governo portugus no que toca administrao colonial, com

    incidncia sobre a ndia e, mais especificamente, sobre Diu. Como

    analisaremos posteriormente, o tipo de documentao produzida

    (sobretudo ao longo da dcada de 50) denuncia uma atitude

    desesperada do governo colonial portugus no perodo final do seu

    domnio;

    Arquivo Histrico Militar. Aqui encontrmos relatos dos militares

    sobre o processo de anexao de Goa, Damo e Diu Unio Indiana,

    sem os quais no teramos um conhecimento mais prximo da

    realidade dos factos ocorridos h mais de 40 anos. Muito embora

    esteja na primeira linha que o que memorizado pelos sujeitos da

    maior importncia, no nos podamos circunscrever s obras

    histricas de carcter geral quando o nosso trabalho se concentra no

    processo de anexao de Diu Unio Indiana;

    Biblioteca Nacional. O objectivo especfico da pesquisa neste local

    foi encontrar os textos legislativos que se prendem com o domnio

    colonial portugus, que deram maior inteligibilidade a algumas das

    aces concretas do perodo final do governo colonial portugus,

    coincidente com o Estado Novo.

    Enfim, as recolhas nestes locais foram-se revelando quase to

    etnogrficas como o trabalho de campo, pois a documentao neles

    disponvel sobre o tema de trabalho escolhido davam conta de atitudes,

    preocupaes, comportamentos e at prticas recorrentes. A perspectiva do

    arquivo como terreno pode ser vista sob dois aspectos: relao e informao.

    O primeiro, relativamente relao humana com os funcionrios dos arquivos,

    no sentido de que estes podem, nos casos de arquivos no informatizados,

    travar, ou pelo menos controlar, o processo de pesquisa individual. Quanto

    aos arquivos informatizados, o controlo do mediador entre o arquivo e a

    documentao menor e a responsabilidade do investigador maior, pois

    ele quem escolhe tout court. Em segundo lugar, a informao em si, na

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    medida em que os arquivos se podem constituir como terreno etnogrfico

    (Almeida 2003), atravs da sua prpria composio. Isto , a escolha do que

    escrito pelos diversos agentes que compuseram a documentao a que hoje

    temos acesso no aliatria. Ela inscreve-se, grosso modo, naquilo que hoje

    chamamos de discurso colonial (Sad 1978). Recorrendo a Dirks (1992: 15), h

    poltica no s no que escrevemos mas na forma como o escrevemos,

    admitindo que isto vlido no s para os investigadores como para os demais

    produtores de documentos. A maior parte dos documentos analisados nos

    arquivos referidos fazem parte do discurso colonial.

    Neste sentido, o trabalho de campo e demais recolhas puderam ser

    analisadas luz do mesmo suporte terico, procurando no hierarquizar um

    mtodo sobre o(s) outro(s). No obstante, no discuramos o capital

    simblico27que o trabalho de campo com observao participante continua a

    ter na Antropologia e entre os antroplogos.

    Como no podia deixar de ser, termino esta introduo falando

    resumidamente das seguintes seces. Na primeira parte, teremos Diu no

    centro da anlise. Contrariando a ausncia quase total de Diu nas anlises

    histricas e antropolgicas sobre o Estado Portugus da ndia28,

    procuraremos ilustrar a histria de Diu no perodo final do governo colonial

    portugus. As maiores atenes vo para a descrio do processo de anexao

    de Diu Unio Indiana, mas verificaremos quais os reflexos desse domnio

    colonial no presente. Depois, na segunda parte, procederemos ao ncleo

    duro da tese. So os dilogos tericos com conjunturas concretas

    comparveis entre si. Por um lado, o colonialismo britnico e o colonialismo

    portugus, suas semelhanas e diferenas nos modos de actuao e activao

    do seu domnio e, por outro lado, o nacionalismo indiano, procurando os

    pontos de contacto entre as diversas ideologias no que toca a questes de

    27No esquecerei o sorriso pregado que mantive durante toda a noite, sentindo-meverdadeiramente antroploga quando, ao fim de trs meses de terreno, assisti a todas ascerimnias de um casamento hindu e, na ltima, me emprestaram umpanjabipara levar ao

    ritual mais participado. (Junho de 2000)28Designao adoptada pelo governo colonial portugus.

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    gnero. Concentrmo-nos nas questes de gnero no sentido de tentar

    perceber a razo pela qual no logrmos obter o ponto de vista delas em

    relao ao contexto em anlise. Nas concluses, alm de desenhar uma

    sntese do trabalho exposto, pretendemos delinear projectos posteriores e

    hipteses de anlise futuras.

    Agradecimentos

    Sem eles e elas, no teria conseguido prosseguir os estudos, apostar emsonhos, fazer trabalho de campo, ter inmeras experincias pessoais,acadmicas, aprender tanta coisa que no coube na tese ou, tantas vezes,conseguir sorrir perante obstculos.De uma forma ou de outra, todos e todas contribuiram e contribuem para o

    meu crescimento e realizao.Em trabalho de campo, pela hospitalidade, disponibilidade e, sobretudo.Em Lisboa:Bina e famlia, Manjulaben e famlia, Manglabai, Dina e famlia, Muktaben,Ramila, Krina, Dulcina, Krishna e famlia, Indiraben e famlia, Vrajniben efamlia, Bhanumasi, Jetiben...Em Diu:Sumanbhai e famlia, todo o pessoal do PWD, com uma nota especial ao Iqbale sua famlia e ainda a Darmendrabhai e famlia, Vanitaben e famlia,Asmukbhai, Jessuhbhai, Julieta do Rosrio e marido, Bhaunaben, Shandraben

    e famlia, Premiben, Pinki, Jamakben e famlia, Pinkubhai e famlia,Krimilaben e famlia, Prianka e famlia, Lalit Josi e famlia, Patrizia eShankar, Khanubhai e famlia, Vaishali e famlia, Vijaybhai e famlia, Padminie Prakash, Lenette e famlia, Quessoubhai, Manu e Arunaben, Vanitaben efamlia...

    No trabalho acadmico, pela inspirao, motivao, sugestes e crticas: orientadora desta tese, Prof Doutora Rosa Maria Perez (tambm pelaimparcialidade e nimo),Aos professores que me influenciaram duma ou doutra forma a prosseguir estecaminho, por ordem de chegada: Paula Godinho, Maria Cardeira da Silva,Miguel Vale de Almeida, Joo Leal,Ainda no trabalho acadmico, Snia Almeida, Isabel Raposo, e aosindianistas Pedro Matias e Pedro Roxo, mas sobretudo Ins Loureno, pelapartilha, ajuda e entusiasmo permanente.

    Um abrao especialAo Joo Carlos, Srgio, Dina, Ana Cruz, Z Falco, Filipe Calvo

    Aos amigos de sempreAna Margarida, Clara, Leonor, Ctia, Paula, Ana Claudia, Felicidade, Joana,

    Patrcia, Viseu, Vanessa, Rosado, Bruno, Z Miguel, Amadeu, Ganau, Marta.

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    Ao Andr Beja, por acreditar, esperar, ouvir, lutar. Pela fonte de energia.

    Esta tese , contudo, dedicada aos meus pais e minha irm, pelo apoio,incentivo, crticas construtivas e abertura de esprito.

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    I PARTE De volta de Diu

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    Captulo 1. Goa, Damo... e Diu?

    Quando tento responder aos meus amigos (fora do crculo da

    Antropologia) sobre o objecto de estudo da tese, respondo quase sempre que sobre a anexao de Diu ndia. O olhar intrigado que recebo como

    feedback apela a uma explicitao da escolha do objecto a nvel espacial.

    Ento acrescento: Diu como uma Goa pequenina, no Norte da ndia;

    assim, o feedback melhora. Mas no s ao nvel do senso comum que Diu

    no conhecido. Como foi referido anteriormente, as anlises feitas sobre o

    Estado Portugus da ndia relegam Diu para um segundo plano. A razo

    principal para estudar sobre Diu decorre do facto de, desde antes do incio

    do mestrado, ter desenvolvido um estudo junto de uma comunidade hindu da

    rea Metropolitana de Lisboa, cuja origem , maioritariamente, de Diu. Urgia,

    por isso, aproximarmo-nos mais de Diu. Este captulo procura perceber os

    contornos de uma histria recente, partindo da explorao do perodo final do

    colonialismo portugus no Estado Portugus da ndia, que engloba os

    fenmenos migratrios, passando pela anlise e descrio da anexao de Diu

    Unio Indiana em 1961, para chegar aos reflexos actuais desse perodo.

    1.1 Emigrao

    H vrios contextos migratrios que correspondem a diferentes

    ambientes socio-histricos e economico-polticos, aparentemente fora do

    contexto das migraes, que se relacionam directamente ou indirectamente

    com a anexao de Diu. Temos, em primeiro lugar, nos anos 30 do sculo

    passado, uma forte imigrao que se vinha sedimentando desde finais do

    sculo XIX, da ndia para Moambique e frica do Sul, tanto por hindus como

    por ismaelitas, em funo da recesso econmica e oferta de mercados

    alternativos em frica indstria mineira na frica do Sul e construo civil

    nas cidades costeiras moambicanas. Em segundo lugar, ao longo do Estado

    Novo verificou-se,grosso modo, uma migrao directa da ndia para Portugal,

    com objectivos acadmicos. Na ndia a formao superior dos portugueses

    tinha de ser feita ou pelo menos terminada na metrpole (Bastos 2002: 61),

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    pelo que se concentrava, em Coimbra, uma importante comunidade goesa.

    Concomitantemente, h um terceiro fluxo de emigrao - hindu - de Diu para

    Moambique no mbito no s de uma tradio migratria para aquele pas,

    mas tambm de um governo colonial dbil, como veremos. Em quarto lugar,

    muitos dos que fizeram parte desse fuxo migratrio emigraram nos princpios

    dos anos 80 de Moambique para Portugal, sobretudo devido guerra civil

    naquele pas, causando um clima de insegurana muito forte entre a

    populao de origem indiana, que se viu na necessidade de emigrar. Foram-se

    instalando na rea Metropolitana de Lisboa, nos arredores da capital, desde a

    Quinta da Vitria, passando pelos bairros do Areeiro (donde, entretanto,

    realojados em Chelas) e por Santo Antnio dos Cavaleiros, at Amadora e

    mesmo ao concelho de Setbal. Em quinto e por ltimo, j mais

    recentemente, a partir de meados dos anos 90 assiste-se a uma migrao

    directamente de Moambique e do Gujarate29 para Londres30, viajando para

    Portugal, entendido sobretudo como meio de acesso supostamente garantido

    a Inglaterra, tendo em conta a mais-valia econmico-simblica da migrao

    hindu para a capital desse pas.

    Ora, actualmente, como sabemos, a Europa fechou31as suas fronteiras

    aos no-europeus, sendo extremamente dificultada a entrada nos seus

    estados-membros. Estas atitudes, contudo, no so novas. Relativamente

    emigrao do lado Oriente para Ocidente do ndico do sub-continente

    indiano para a frica oriental destacamos dois Actos de Emigrao na

    segunda metade do sculo XIX (Leite 1996) que so importantes para o estudo

    da presena indiana em Moambique32. Nos Actos de 1871 e 1883, que

    disciplinam a mobilidade dos indo-britnicos fora da ndia, Moambique no

    29Diu faz parte do territrio geogfico do Gujarate. Alm de Diu, daquele Estado cujodomnio colonial foi o britnico, tambm provm uma grande parte dos hindus actualmenteresidentes em Portugal, essencialmente.30No trabalho de campo o objectivo de viajar para Londres uma referncia constante. Vide,para a explicitao mais alargada destes contextos de migrao, Malheiros; Leite; Bastos &Bastos.31Em termos genricos, de acesso ao trabalho e a melhores condies de vida, no tanto noque toca ao turismo ou ao trabalho do sector tercirio.32Este facto especialmente importante para perceber a presena de hindus gujaratis , de

    fora de Diu, em Portugal. que, semelhana dos provenientes de Diu, vieram tambm deMoambique.

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    referenciado enquanto destino de emigrao: (...) tudo leva a crer que na

    poca se procurava dificultar a entrada de indo-britnicos em Moambique,

    criando assim uma vasta rea de mobilidade de mo-de-obra no seio do

    imprio britnico no ndico oriental. (Leite 1996: 78) O Acto de 1922 ,

    seguindo a mesma autora, mais flexvel: (...) ao no especificar

    territorialmente a orientao da mo-de-obra, passava a considerar

    Moambique como destino legal da emigrao indiana. (1996: 80)

    De resto, at bem recentemente, e concentrando-nos no nosso objecto

    de estudo, os indianos de Diu (hindus, ismaelitas e muulmanos33) no tiveram

    grandes dificuldades de emigrar primeiro para Moambique, sobretudo at

    1961, mas continuando at 1975, ano da indepedncia de Moambique, e

    depois para Portugal. Grande parte da emigrao feita de Moambique para

    Portugal, ocorreu, como vimos, no princpio dos anos 80, altura em que as

    condies de vida dos indianos em Moambique se tornavam incomportveis.

    O passaporte portugus era at h poucos anos uma garantia de acesso

    Europa para os que nasceram em Diu at 1961 e para os que nasceram em

    Moambique at 1975. Actualmente, apesar dos enquadramentos

    institucionais que reflectem as boas relaes entre Portugal e as suas ex-

    colnias, um passado colonial no garantia para os que se propem

    emigrar34.

    Esta explanao dos factos no , porm, clara para os sujeitos que

    actualmente tm dificuldades em emigrar. E porque que no clara?

    partida, somos tentados a pensar que tudo decorre de uma dificuldade de

    comunicao. Na estada de terreno, os pedidos de ajuda para emigrar eram

    constantes. As tentativas de explicar que actualmente muito difcil aceder a

    um visto e que a poltica actual de imigrao em Portugal e na Europa

    33A propsito, os diversos autores que discorreram sobre a origem religiosa dos indianos emMoambique, hesitam entre chamar banianes aos hindus ou aos muulmanos. Tudo indica,confrontando as obras e as pessoas em Diu, que esta uma casta de ambas as religies, assimcomo carv, a casta de pescadores, entre outras. Est por fazer um estudo aprofundado sobreas castas de Diu tendo em conta estas nuances, estudo esse aflorado por Bastos & Bastos;

    Sinha; e, na actualidade, Loureno 2001 e 2003.34Conferir, a propsito, Bastos & Bastos 2001: 118.

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    constitua35 um embarao para ns, provocavam no s incompreenso,

    admirao, mudana de assunto, mas tambm desconfiana em relao

    nossa boa f.

    Todavia, a explicao no clara porque h reflexos do colonialismo

    portugus em Diu no presente, que no so compatveis com explicaes

    curtas sobre a actualidade poltica europeia para com os imigrantes. O reflexo

    mais gritante para o visitante portugus desprevenido so as atitudes de

    subordinao ainda muito prximas da prtica de subalternidade do sujeito

    colonial mesmo apesar de nem eu nem a Ins referirmos Vasco da Gama a

    cada sinal de portugalidade36.

    excepo da emigrao, religio hindu37e relaes comerciais (indis-

    sociveis), Diu no tem sido constitudo objecto da ateno dos investi-

    gadores. H um hiato entre as pesquisas dedicadas a Goa e as que so

    dedicadas a Damo e Diu. Alis, no raro ver escrito, sobretudo nos jornais

    da altura da anexao, Goa em vez de Estado Portugus da ndia, quando este

    ltimo englobava os trs enclaves Goa, Damo e Diu38. uma ausncia

    proveniente do prprio governo colonial e, posteriormente, dos goeses

    referindo-se ndia Portuguesa, que foi apropriada pelo senso comum.

    Muito embora Goa oferea grandes potencialidades investigao, os

    contextos de Diu e Damo39 entre outras razes por se terem constitudo no

    passado como espaos coloniais - so tambm importantes para o

    desenvolvimento dos estudos orientais (sobretudo de ex-pertena

    portuguesa).

    35Em virtude do quase completo actual fechamento das fronteiras para imigrantes (Ver DLn34/2003, que regulamenta a entrada, permanncia, afastamento e expulso deestrangeiros).36Esta obviamente a reproduo de um esteretipo que tem como fim ilustrar uma situaocorrente. de sublinhar que os sinais de portugalidade em Diu so fortes e fariam o gostotanto aos saudosistas do imprio colonial, como aos historiadores de arte e linguistas,sobretudo (desde as igrejas, passando pela manuteno da lngua, at ao consumo do po,que se diz po, entre outros vocbulos gujaratis com origem claramente portuguesa).37Seria interessante realizar um estudo sobre os catlicos de Diu.38J para no referir as minsculas Dadra e Nagar Aveli, perto de Damo, anexadas em 1954.39

    Damo tambm excludo das anlises antropolgicas, embora j tenha sido constitudocomo objecto de estudo histrico.

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    1.2 Diu: de colonial a ps-colonial

    O no entendimento em geral - das nossas explicaes aos

    interlocutores em Diu implica uma reflexo sobre este espao como terreno

    ps-colonial. Outra razo para reflectirmos sobre essa questo a reaco das

    pessoas s atitudes no colonialistas por parte de algum que simboliza o

    passado colonial, como o/as investigadore/as40. Atentemos a uma situao

    registada no dirio de campo:

    Orlando41disse que o nosso presidente foi a Damo em 1992 e

    que havia um protocolo de algo relacionado com o Estado Novo. Opresidente disse qualquer coisa como: o Salazar j morreu, issono interessa e as autoridades ficaram um bocado atrapalhadas

    porque no esperavam aquilo de um portugus, pensavam que paraele era muito importante.

    por estes pormenores que se descobre aquilo que umacomunidade em situao ps-colonial pensa sobre o ex-colonizador

    em parte, pelo menos, ficam com a ideia que tinham no passadocolonial e espantam-se quando o ex-colonizador contradiz o papel

    habitual. (...) Algumas pessoas com quem falo, parece que esperamde mim que pergunte coisas que confirmem um passado que o

    colonizador conseguiu manter direitinho, mas vem algum quecontradiz a ideia que foi incutida, pedindo uma reflexo prpria

    o que sentiu, do que se lembra, etc.. Se, por um lado, possa serdbia a utilidade de um tema pouco evidente como a anexao, por

    outro lado, interessante analisar as diferentes reaces,recorrncias e contradies mais interessante que decorrem

    precisamente do embate do colonial com o ps-colonial.(Dirio de Campo, 21.11.2002)

    Estas situaes constituem argumentos para que seja feita uma

    anlise no mbito da antropologia ps-colonial. Contudo, estamos com Vale

    de Almeida quando adverte que

    (...) A utilidade do termo ps-colonial reside no quepossibilita de anlise integrada da mtua constituio das

    representaes sociais de colonizadores e colonizados, masdesde que 1) haja uma considerao constante do binmiocolonialismo/ps-colonialismo; 2) a anlise discursiva no

    prescinda de consideraes do mbito da economia poltica; 3)haja trabalho de pesquisa emprico, nomeadamente de

    40

    O que no , necessariamente, uma especificidade exclusiva de Diu.41Um advogado de Damo que conhecemos em Diu.

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    27

    natureza antropolgica e 4) se atente ao mtodo comparativo,nomeadamente a comparao de diferentes experincias

    coloniais e ps-coloniais. (...). (Vale de Almeida, 2000: 231)

    Vamos por partes, ento, com Diu em pano de fundo; mas, mais

    concretamente, com a conjuntura da anexao de Diu Unio Indiana e seus

    reflexos actualmente. Dentre os estudos realizados em e/ou sobre Diu, a

    anlise ps-colonial tem estado arredada. Com isto no estamos a dizer que

    os diferentes autores tero cado no erro de no ver que Diu um terreno

    ps-colonial, mas que, pelo menos nalguns casos, este tipo de anlise ajudaria

    a uma contextualizao mais completa da conjuntura42. Importa aqui dizer

    que quando afirmamos o facto de Diu ser um terreno ps-colonial, no nos

    referimos ps-colonialidade cronolgica e poltica, pois que essa

    incontestvel, mas sim s potencialidades de investigao nas cincias sociais

    e humanas contemporneas. Centrando-nos no/as investigadore/as recentes

    que se tenham ocupado de uma ou doutra forma de Diu, no coincidncia

    que todos (Rita-Ferreira 1985; Malheiros 1992; Leite 1996; Carreira 1998; Brito

    1998; Bastos& Bastos 2001; Antunes 2001) se tenham ocupado de temticas

    relacionadas (se no totalmente, pelo menos em parte) com a emigrao.

    Assim, voltamos de novo a esta temtica, desta vez para explicar por que

    razo que ela ajuda a fazer de Diu um terreno ps-colonial.

    1.3 Ainda a emigrao

    Segundo Rita-Ferreira (1985:617) e Leite (1996:68), j no primeiro

    milnio da nossa era havia actividade mercantil no ndico, entre a costa Leste

    de frica e o Golfo da Cambaia43. A pesquisa de Antunes (1999) centra-senessas actividades comerciais desde o sculo XVII at ao sculo XIX. Numa

    obra de carcter geral no mbito das comemoraes do V centenrio da

    chegada dos portugueses ndia, Carreira (1998) informa-nos no seu artigo

    que, em 1838, 6% da populao de Diu eram africanos e descendentes,

    vestgio de trfico importante entre Diu e Moambique (Carreira 1998: 686).

    42Referimo-nos apenas a Bastos & Bastos 2001, por serem os autores dentre os demais cuja

    anlise antropolgica.43A Nordeste de Diu (Diu o ponto mais a sul do lado peninsular do Gujarate).

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    As relaes comerciais no ndico adquirem contornos de emigrao44

    sobretudo a partir do final do sculo XIX, em funo da poltica colonial

    britnica45, como vimos anteriormente. Sublinhamos agora, de acordo com

    Leite, que por um lado, a importao de mo-de-obra de coolies46entre 1860

    e 1911 para a frica do Sul teve consequncias importantes para o contexto

    colonial portugus no ndico: (...) tudo leva a crer que elementos desta

    comunidade [hindu] passaram legal ou ilegalmente para Moambique durante

    as primeiras dcadas do nosso sculo [XX], vindo a desempenhar uma funo

    insubstituvel na dinamizao do circuito comercial (...) (1996: 77). Por

    outro lado, a ndia no distingue os trabalhadores contratados dos

    comerciantes; as leis so as mesmas para todos (1996:78).

    Quanto importncia do colonialismo portugus neste processo,

    Malheiros refere que (...) foram tambm implantados sistemas de emigrao

    por contrato da ndia para Moambique. Para as obras pblicas e construo

    civil manteve-se a tradio de contratar pedreiros de Diu, designadamente

    nos anos 40 (...) (Malheiros 1992: 163-4). Para Rita-Ferreira mesmo

    evidente (...) uma dependncia de tipo colonial de Moambique em relao

    ndia portuguesa (Rita-Ferreira 1985: 645). No entanto, as razes que se

    prendem com a emigrao dos pedreiros de Diu, alm de estarem

    relacionadas com a sua contratao em Moambique no mbito do

    crescimento das obras pblicas nas grandes cidades ou com ancestrais

    relaes entre ambos os lados do ndico, tm ainda que ver com as condies

    de vida em Diu. A falta de trabalho e condies climatricas hostis constituem

    duas fortes razes para emigrar. Segundo Brito (1998), em Diu, antes da

    anexao (...) poucos so os homens com mais de 20 anos que no tenham

    ido em busca de trabalho fora da sua terra. (...) (Brito 1998: 147). Antunes,

    por seu lado, diz que o clima quente e a terra difcil (salobra) contribuem

    44No sentido de manter uma habitao e trabalho no local de destino, assim como prever avinda da famlia. A adopo do termo no , por ora, uma adopo conceptual.45 tambm por isto que no podemos prescindir de analisar o colonialismo britnico (VideCaptulo 4. Colonialismo britnico e nacionalismo indiano).46Jornaleiros contratados de origem asitica quetrabalhavam fora do seu pas. O sistemaproveio da necessidade imperialista - de trabalhadores, que se fez sentir quando da

    abolio da escravatura, muito embora muitos coolies fossem tratados igualmente comoescravos.

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    para a pouca fixao de gentes em Diu (1999: 150). Segundo Lima, num livro

    de memrias de um mdico que esteve destacado em Diu no final dos anos 50,

    em Fudam, aldeia da ilha de Diu donde emigraram muitos pedreiros para

    Moambique, Os rapazes casavam mais velhos [do que as raparigas]. J a

    trabalhar noutras terras, a sua primeira vinda a Podam47s a faziam quando

    estavam em idade de casar (...) (Lima 1997: 84). o mesmo autor que,

    atravs das suas memrias, nos ajuda a fazer a ponte entre a despreocupao

    do governo colonial portugus em relao a Diu e a emigrao, tornando

    aquela numa razo desta:

    Muitas famlias (...) no decorrer dos tempos, tinham-se

    fixado nesses pases, mais prximos dos seus negcios,deixando as suas casas de Diu, e por isso havia tanta casa boadeserta, e com aspecto de abandonadas. Enquanto Diu foiimportante, no decorrer do sculo XIX, a preocupao dosportugueses era a fortaleza em cujo interior viviam, e que

    correspondia ao grande baluarte da nossa presenanaquela regio.

    O resto da ilha era abandonada sua evoluo natural, eassim se manteve no decorrer dos outros sculos. Em Diutambm no houve ocupao territorial. Um porto, uma

    fortaleza, tudo ligado ao mar. (Lima 1997: 56-7)

    Recorrendo ao trabalho de terreno, tambm os sujeitos que passaram

    pelo regime colonial apontam a emigrao como decorrente da falta de

    trabalho que se fazia sentir durante a administrao portuguesa. Citamos dois

    exemplos, entre as mltiplas referncias a esta situao que registei em

    dirio de campo:

    (...) Premibem era pedreira no tempo dos portugueses.Vivia-se muito mal. Fudam quase inteira era zupadio(cabanas

    feitas com folha de palmeira s com uma diviso). (...) Otempo dos portugueses, segundo ela, era difcil. Eles tinham

    feito casas em Diu mas no em Fudam. Depois as casas forammelhorando aos poucos, sobretudo para quem emigrou (...)

    (Dirio de Campo, 10.11.2002)

    (...) Asmukbhai estava a estudar quando se deu alibertao. Disse que antes, quando da administrao

    47Contraco do topnimo Pdamo, usado pelos portugueses durante o domnio colonial. A

    traduo do topnimo gujarati Fudam, embora em Gujarate a letrafseja vocalizada quasecomo ump.

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    portuguesa, no havia emprego; as pessoas iam paraMoambique para ganhar a vida

    (Dirio de Campo, 19.11.2002)

    Os factores aqui referidos como propulsores da emigrao e da sua

    continuidade esto, como vimos, ligados actuao dos governos coloniais,britnico e portugus. A emigrao de Diu para Moambique constitui-se como

    pano de fundo sincrnico com o perodo final do governo colonial e com o

    Estado Novo at anexao de Goa, Damo e Diu Unio Indiana. Alis,

    sintomtico que a anlise sobre o luso-tropicalismo48, de Castelo (1998),

    escolha o seu perodo temporal entre 1933, o ano da Constituio Poltica da

    Repblica Portuguesa do Estado Novo, e 1961, o ano da perda do Estado

    Portugus da ndia. A adopo da ideologia do luso-tropicalismo pelo EstadoNovo prende-se tambm com o medo da perda do imprio colonial no seu

    conjunto: (...) depois do incio da guerra de Angola e da perda da ndia

    portuguesa assiste-se a uma tentativa no sentido de luso-tropicalizar a

    legislao e prticas ultramarinas. (...) (Castelo 1998: 139) Dito isto, faz

    sentido agora rever o que aconteceu no perodo final do governo colonial

    portugus at queda de Goa, Damo e Diu.

    1.4. Os bons temposdos portugueses

    Na introduo, a propsito das alteraes feitas ao primeiro projecto,

    referamos que os sujeitos que viveram no tempo da administrao portuguesa

    no manifestam oposio ao regime. As pessoas com quem falei revelam, em

    termos gerais, uma opinio muito positiva relativamente a esse perodo.

    Deixemos ento os sujeitos falarem por si prprios

    49

    , respondendo ao apelofeito pelos Subaltern Studies:

    (...) Shandraben diz que os indianos gostavam muito dosportugueses, at porque havia muita coisa de Portugal que

    vinha para c [Diu]. Os portugueses tambm gostavam muitodos indianos. Os indianos de fora que no queriam que as

    coisas continuassem assim. (...)(Dirio de Campo, 20.10.2002)

    48

    Analisado no Captulo 3. Colonialismo portugus49Conferir, por exemplo, Guha (ed.) 1997. Vide, infra, Captulo 4.

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    31

    (...) Bhavanibhai sempre viveu em Diu (...). O tempo dosportugueses era bom podia-se sempre deixar a porta aberta,

    mesmo s com raparigas dentro. (...)(Dirio de Campo, 3.11.2002)

    (...) Sumanbhai (...) fala portugus, gostava muito dotempo dos portugueses, repete eu jurei sob a bandeira

    portuguesa, adora sardinha em lata e alegra-se em treinaro portugus, com gramtica, tal como sublinha.

    (Dirio de Campo, 16.12.2002)

    No entanto, tal como vimos anteriormente, h fragilidades na

    administrao portuguesa. No havia emprego para todos; muita da populao

    viu-se na necessidade de emigrar. O governo colonial portugus, por seu lado,

    parecia inclome s suas fragilidades e actuou de forma assertiva em relao

    populao em geral e nas suas relaes com a ONU. Desde a Declarao

    sobre territrios no autnomos da Carta da ONU que os governos coloniais

    tinham de transmitir informaes ao Secretrio Geral, sobre a forma como

    administravam os seus territrios (Castelo 1998: 48). Apesar do ento famoso

    artigo 73 do Captulo XI da Carta da ONU, o governo colonial insiste na

    exclusividade do caso portugus. No projecto da 4 reunio do Comit

    Interministrial das Naes Unidas, parte do texto reflecte, por um lado, a

    percepo de que Portugal como pas colonizador no bem visto na ONU e,no obstante, por outro lado, a ideia do orgulhosamente ss:

    (...) certo que o facto de reivindicarmos o carcter sui-generis daNao Portuguesa, por razes histricas, polticas, morais, etc., poderdiminuir a acuidade das contradies apontadas, na medida em que talcarcter justificaria at certo ponto alguma diferenciao. Por ser umaestrutura especfica e quase nica no cabe nas classificaes internacionaisexistentes. No entanto, tal explicao de difcil compreenso para os

    estrangeiros, transformando-se portanto num espao de petio de princpio.Para os estrangeiros, a tese da unidade ser sempre desmentida com novosactos de reserva s Convenes. S haver vantagem pois em ventilar aquesto. O representante do Ministrio do Ultramar ento, em reforo do seuponto de vista, a frase de S. Exa. o Presidente do Conselho de que asProvncias Ultramarinas Portuguesas so independentes com a independnciada Nao o que, em sua opinio, permitiria e imporia mesmo a integrao dePortugal na classificao da OIT de pases independentes com populaesaborgenes.50

    50

    Confrontar Srie 171 ONU, AHU, Projecto da 4 reunio do Comit Interministrial dasNaes Unidas, p.2.

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    Noutro registo, o professor Adriano Moreira conclui a sua Lio

    proferida na inaugurao solene das aulas do Instituto Superior de Estudos

    Ultramarinos, dizendo:

    (...) A virtude de viver em comum, que unifica osportugueses em todas as latitudes, cobre a deciso

    nacional da fora do direito (...)(Moreira 1955: 47)

    Chegando a este ponto, h que fazer um apanhado da evoluo dos

    acontecimentos para chegar a afirmaes como as que citmos. Como do

    conhecimento geral, na sequncia da queda do Brasil, Portugal elabora o

    famoso Mapa Cor de Rosa, configurando uma zona compacta na frica sub-

    sariana entre Angola e Moambique, o novo objectivo imperialista portugus.

    Segundo Alexandre (2000), os fracos resultados da Conferncia de Berlim,

    delimitando as fronteiras definitivas, e o Ultimatum ingls em 1890 deram azo

    a uma vaga nacionalista imperial (Alexandre 2000: 149). Os interesses

    coloniais estabeleceram-se em frica. A primeira medida foram as campanhas

    de pacificao que se concretizaram na (...) utilizao da fora para

    submeter as raas atrasadas ou inferiores, no mbito das teses do

    darwinismo social introduzidas em Portugal na dcada de oitenta

    [1880].(...) (2000: 182)

    Essas campanhas foram feitas a par das expedies entre 1894 e 1901.

    Uma dessas expedies foi ndia, no contexto de uma primeira51oposio ao

    governo de Goa, tal como explicitado em Roque (2001). Exceptuando essa

    expedio, as atenes viraram-se sobretudo para Angola e Moambique, os

    maiores espaos imperiais onde seria possvel desenvolver a economia

    (Alexandre 2000: 186). No entanto, o primeiro grande esforo legislativo do

    sculo s foi elaborado no contexto de um Estado Novo acabado de nascer,

    atravs do Acto Colonial de 1930. Os objectivos desse Acto passaram por

    reafirmar a soberania portuguesa sobre os territrios ultramarinos, alicerada

    na chamada funo histrica portuguesa, tal como referido no seu artigo

    2. Apesar de delinear uma certa autonomia das colnias, nota-se no texto do

    51

    Muito embora a oposio j se revelasse desde meados do sculo XIX (de acordo comShirodkar 1986).

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    Acto Colonial, segundo Silva (in Rosas 1992: 361) uma grande centralizao

    dos poderes.

    Trs anos depois, a Reforma Administrativa Ultramarina integrada na

    Constituio do Estado Novo (Silva in Rosas 1992: 365), sob a gide de

    Armindo Monteiro, ministro das colnias entre 1931 e 1935, cujos discursos

    enquadram o surgimento de uma mstica imperial (1992: 370; Castelo 1998:

    45). Numa anlise da situao nessa altura, Silva diz-nos que o imprio era

    (...) algo de que os portugueses deviam ter imensaconscincia e orgulho, pelo que se exigia das mais diversas

    instituies um esforo concertado para fazer com que a novaideologia imperial fosse assumida por todos (...). Mas (...) o

    imprio colonial permaneceu para boa parte do povo portuguscomo algo longnquo e inatingvel. (Silva in Rosas 1992: 372)

    J durante a 2 Guerra Mundial na qual Portugal, como sabemos, no

    participou, houve uma tentativa de organizar as finanas ultramarinas (Silva

    in Rosas 1992: 273 e Rosas 1994: 488). Foi a poca de maior esperana em

    relao s colnias, com base numa poltica de maior controlo do comrcio

    colonial externo. No fim da 2 Guerra Mundial havia j uma burguesia colonial

    com interesses prprios (Silva in Rosas 1992: 373-7). Nessa altura, adiplomacia internacional comea a convergir no sentido de afirmar

    fortemente a necessidade de autonomia dos povos ainda em situao

    colonial52, e o governo portugus inicia uma srie de tentativas de resposta s

    presses. Nesta conjuntura, a Cmara Corporativa preferia a designao de

    provncias ultramarinas para as anteriores colnias, mas a nova

    designao s passa a ser utilizada desde 1953, quando da Nova Lei Orgnica

    do Ultramar Portugus, na qual elaborado um Plano de Fomento para

    caminhos de ferro, barragens e portos, mas nada para a sade, o ensino e a

    investigao (Silva in Rosas 1992: 381-2). Mas s alguns anos mais tarde que

    se verifica, de facto, uma consciencializao por parte do governo colonial

    portugus, de que o imprio est ameaado, face s presses internacionais

    descritas. No Arquivo Histrico Ultramarino encontrmos um documento que

    faz referncia a essa situao:

    52Com a Carta da ONU, Captulo XI, Artigo 73, como vimos anteriomente.

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    (...) a aprovao do projecto de resoluo sobre o direito dospovos a disporem de si msmos e a consequente atribuio

    Assembleia do poder de verificar (...) se este direito est a serobservado (...). Desde que dificilmente hoje se podem tratar

    os problemas ultramarinos franceses e ingleses e que os belgasafastaram de si grande parte dos crticos atravs do caminhoque agora tomaram sobre o Congo, tem de se ter como certo

    que todo o peso do anti-colonialismo das Naes Unidasrecair sobre ns e frica do Sul. Existem sinais de que assimvai suceder, e isso j tem sido expresso nossa Delegao da

    ONU por outros delegados. (...)53

    1.5. Portugal e a ndia nos anos 50

    Chegando a este ponto de situao histrica, j estamos muito perto daqueda da ndia Portuguesa. Recorramos ainda a uma obra de carcter geral

    para observar como vem descrito o desencadear dos acontecimentos,

    sobretudo na ltima dcada do Estado Portugus da ndia, no sentido de

    perceber um dos olhares dominantes sobre este assunto. Baseamo-nos, por

    isso, na explicitao dos acontecimentos formulada por Rosas (1994: 514-5).

    logo no princpio da dcada de 50 que surgem as primeiras pretenses

    pblicas da Unio Indiana (UI) sobre o estado portugus da ndia. Ogoverno portugus , contudo, intransigente, excluindo-se a discutir o assunto

    e colocando Nehru em cheque ou ocupao ou nada; isto porque confiava-se

    que ele no o faria. Ao longo da dcada, a UI d incio a uma srie de atitudes

    diplomticas e no terreno em Maio de 1952 fecha a delegao em Lisboa e

    em Julho de 1954 satyagrahis54ocupam os enclaves de Dadra e Nagar Aveli,

    perto de Damo. O governo portugus admitido na ONU nesse ano. O

    processo fica suspenso at 1961. A partir do final da dcada de 50 os

    acontecimentos aceleram. As provocaes so cada vez maiores e o governo

    portugus, apesar de ter conhecimento deles, no desenvolve nenhuma aco

    mais severa.

    53In Projecto da 4 reunio do Comit Interministrial das Naes Unidas, de 11.06.1958,pg.2, ponto 6.54

    De satyagraha(satya verdade e agraha caminho, via). Eram nacionalistas seguidores deGandhi, actuando de forma pacfica.

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    A exposio dos factos anterior , portanto, uma viso da Histria

    institucional. Para nos aproximarmos mais do ambiente vivido nessa poca,

    peguemos nalguns dos factos apontados e visitemo-los luz doutros

    documentos. Em relao ao facto de o governo portugus confiar em que

    Nehru no avanaria para a violncia, encontrmos uma refernca terica, de

    Scholberg (1985):

    (...) Salazar (...) was also hoping that Nehrus passion forpeaceful settlement of international disrupts could avoid

    armed confromtation. (1985: 830)

    Mais recentemente, Rodrigues (2002), falando das relaes luso-

    americanas neste processo, indica que h uma incerteza relativamente s

    intenes de Nehru, j no segundo semestre de 1961, patente nas

    conversaes entre os dois pases. Por um lado, Portugal tinha indicaes de

    que o governo indiano utilizaria a fora, motivadas pelos discursos de Nehru,

    mas os Estados Unidos, por outro lado, acreditavam ainda que Goa no seria

    ocupadapela fora, baseando-se num discurso do ministro do interior indiano

    (Rodrigues 2002: 68-71).

    Todavia, so os jornais na altura da anexao que nos ajudam a

    verificar os limites dessa confiana. Se o governo colonial foi acreditando, ao

    longo da dcada de 50, na ideologia pacifista, mais junto anexao de Goa,

    Damo e Diu h referncias que revelam um certo desapontamento, associado

    j conscincia da inevitabilidade dos factos. Nos primeiros dias de Dezembro

    de 1961 o governo portugus recorre, por um lado, autoridade dos jornais

    estrangeiros para mostrar o apoio doutros pases questo da anexao. No

    prximo excerto critica-se antecipadamente Nehru caso ele recorresse

    ocupao militar:

    As intenes de Nehru de atacar a ndiaPortuguesa condenadas pelo jornal Daily Mail

    Porque o senhor Nehru usa, literalmente, o chequebranco da virtude e o Dr. Oliveira Salazar de Portugal ochapu preto do colonialismo, Nehru encontrar apoionos meios habituais e Salazar a condenao no litgio de

    Goa - escreve hoje, em Editorial, o Daily Mail. E

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    continua: Neste caso, porm, os chapus deviam sertrocados. As pessoas razoveis diro que Nehru oagressor e Salazar o defensor dos territrios que soportugueses h perto de 450 anos e a ningumameaam.55

    No Dirio de Loureno Marques, tambm um artigo de opinio vai no

    mesmo sentido, embora j referindo nas entrelinhas a ameaa dos

    movimentos de libertao moambicanos:

    (...) o pregador pacifista ser sempre o agressor (...).Isto que acabamos de dizer a respeito de Nehru, podemos,infelizmente, repeti-lo a respeito de outros, que tal comoo chefe indiano, queriam que Portugal se mantivesse

    inactivo, perante agressores de toda a sorte (...)56

    J no que toca ocupao dos enclaves de Dadr e Nagar Aveli,

    escolhemos o relato de um autor da poca, que ilustra o acontecimento e a

    valorizao feita pela populao catlica da pertena portuguesa daqueles

    territrios:

    Dadr, Fevereiro de 1954.

    Aqui estou, acompanhando minha me (...) Misso deS. Francisco, a participar numa novena, em prol da paz aquina regio. Movimentos muito suspeitos por parte das forasmilitares da Unio Indiana, junto das nossas fronteiras, tmposto em constante alerta as foras portuguesas. E sempreaquela emisso da All India Radio, dizendo que desta...

    (...)aquela era uma tarde triste para todos ns. (...)Era a ameaa da invaso (...) [e] a impossibilidade deacorrer e socorro de Dadr e Nagar Aveli, alvo dos satyagrs[sic] mobilizados pela United Front of Goans(...) (Azevedo,1994: 23-5)

    No resumo dos acontecimentos da dcada de 50 feito anteriormente,

    Rosas defende que os portugueses no fizeram nada apesar de terem

    conhecimento das provocaes. Fomos procura delas. Encontrmo-las (pelo

    menos parte delas) nos Relatrios mensais57 do Comando Militar da ndia

    55Dirio de Lisboa, n 14002, 6.12.1961, pg.1.56Dirio de Loureno Marques, 15573, 5.12.1961, pg. 7.57

    Resta saber se os relatrios so mensais apenas neste perodo (no o descobrimos),provavelmente na sequncia da obrigatoriedade de prestar informaes s Naes Unidas. O

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    Nehru no dia 15 de Agosto de 1960, em cuja manh se hastearam duas

    bandeiras da ndia em Goa61. O excerto da declarao de Nehru revelador e

    fala por si:

    (...) Deixo que o mundo se lembre que esta parteda ndia, Goa, est sempre no nosso pensamento e nonosso corao e pertence inteiramente nossa corageme no nossa fraqueza (...). Temos este problema ehavemos de lidar com o mesmo. (...) aqueles quedominam Goa no tenham iluses acerca disto: que andia resolver este problema e Goa ser livre dedominao estrangeira. (...)

    Nas concluses, o tom das palavras reflecte j o receio de no haver

    retorno na evoluo do processo que culminaria na invaso de Goa, Damo eDiu: (...) O perigo consiste em que, por detraz [sic] de umas dezenas de

    bandidos (...) existe uma organizao poltica em actividade (...). Porm, o

    conhecimento da continuidade das provocaes no era, como hoje bvio,

    completo. Voltemos, por isso, a Diu. Em relao a este territrio temos uma

    quase completa ausncia de informaes. No Arquivo Histrico Ultramarino (

    semelhana dos outros arquivos consultados) encontrmos sobretudo

    informaes sobre a administrao colonial em geral e, quando asinformaes recaem sobre a ndia, o enfoque, ou a preocupao maior feito

    em relao a Goa, em detrimento de Damo e Diu. Quanto ao trabalho de

    campo, onde procurvamos encontrar as memrias de uma resistncia ao

    poder colonial e, nesse sentido, descries de como teriam ajudado alguns

    diuenses no processo da libertao, tambm no o logrmos. H contudo uma

    compilao de dados realizada por Shirodkar (1986; 1990) sobre os freedom

    fighters e os satyagrahis envolvidos na libertao de Goa, Damo e Diu.Posteriormente, contudo, foi ainda numa memria pessoal do mdico

    Antnio Lima62 - que, sem prever, dei conta dessa resistncia. Mais tarde,

    essa descrio achava-se solitria em face das recorrncias encontradas na

    documentao reunida. Ainda assim, alm de um bom ponto de partida para

    uma pesquisa mais aprofundada, requerendo uma estada de terreno maior do

    61Idem, pg.3.62

    Lima, 1997 (obra citada anteriormente). de referir que o autor apenas edita esta obra dememrias escritas na 3 pessoa, 35 anos depois da anexao.

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    que a que dispus, constitui-se como uma aproximao ao ambiente de Diu no

    final da dcada de 50. O excerto que abaixo citamos reporta-se a uma

    conversa do mdico, autor e relator da obra, com um amigo hindu.

    Em todas as fronteiras existe um ambiente prprio(...). Uma coisa a poltica de cada pas, outra coisa apoltica aqui, ao nvel da fronteira. (...)

    Porque a fronteira no est fechada. Ou melhor estfechada para os metropolitanos [da UI]. Mas no est paraos dienses [sic] que trabalham na Unio Indiana e quequerem vir a Diu, ou para os que vivem em Diu e tmnegcios na Unio Indiana.

    O contacto que no pode ser estabelecidodirectamente entre polcias dos dois lados, feito por

    intermdio de pessoas que so consideradas de confiana,por eles e por ns. claro que alm dos recados que fazem, para tratar

    dos assuntos que lhes diz respeito, que nos interessam,tambm trazem informaes de interesse poltico oumilitar. Trazem e levam claro. Mas o que eles podem dizerde Diu, que toda a gente no saiba? Normalmente soescolhidas pessoas bem colocadas socialmente, com boarepresentao e influncia local, que garantam a paz esossego nessa zona.

    Aquela rapariga que fotografou uma delas. Vive em

    Bunxivar, professora de escola. Metade da famlia vivena Unio Indiana. Inclusivamente o marido dela trabalha l.De dois em dois meses ou vai l ela, ou vem c o marido.(...)

    Mas que rica espia! Aposto que Karim outro. No ?J agora conte-me tudo. H mais algum que eu conhea?

    O doutor no faa uso disto. uma daquelas coisasque toda a gente aceita, compreende, mas no fala. (Lima1997: 82-3)

    Mas o conhecimento incompleto da situao tambm se denota nos

    actos legislativos da administrao portuguesa. Regressando ao AHU, o

    Parecer acerca de um Projecto de Reforma do Quadro Administrativo

    Ultramarino63 revela uma anlise dos factos e uma percepo de que o

    estado colonial estava posto em causa, tanto nos outros pases europeus como

    nas, agora, Provncias Ultramarinas. Contudo, a situao na ndia no

    analisada, apesar da proximidade temporal apenas dois meses - da

    63AHU Srie 184 Reformas da Legislao Ultramarina, Parecer, de 14.10.1961.

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    anexao. Nesse Parecer64 fala-se do condicionalismo poltico, social e

    administrativo ultramarino, na altura em que foi promulgada a RAU;

    descreve-se a situao poltica de 1933, quando do primeiro diploma em que

    no havia ainda sentimentos nacionalistas (...). Os autores no referem65a

    independncia da ndia quando descrevem as modificaes sofridas pelo

    condicionalismo (...) nos ltimos 27 anos66, constatando-se depois neste

    mesmo Parecer a existncia de (...) campanhas anticolonialistas. Mais

    adiante, uma referncia a que (...) apareceram movimentos dirigidos contra

    a soberania portuguesa e regista-se j alguma agitao interna67. A lacuna

    mais evidente para ns em relao aos incidentes na ndia, demonstrando

    deste modo os limites do conhecimento do que se passava. Isto , apesar dos

    relatrios do Comando Militar que evidenciam a ateno que o governo

    portugus dava s provocaes por parte dos nacionalistas indianos, esses

    dados so negligenciados num Parecer que d relevo a atitudes anti-

    colonialistas nas ento chamadas provncias ultramarinas.

    Em termos tericos, no seio da anlise antropolgica ps-colonial, o

    nico apontamento que encontrmos no que toca a este assunto, o de Perez

    e Fruzzetti (2002), onde dizem que mesmo em 1947, quando da

    independncia da ndia, o regime de Salazar no prestou ateno aos apelos

    de Gandhi (Perez e Fruzzetti 2002: 43). A ausncia de dilogo comeava j

    nesta altura.

    O conhecimento mais ou menos incompleto da situao tem, todavia,

    uma segunda valncia, que se adivinha nos excertos dos relatrios escolhidos:

    um receio em crescendo, da perda do Estado Portugus da ndia.

    1.6. O medo daperda

    64Idem, pg. 70, ponto 1.3.1.65Idem, pg. 74.66

    Isto , de 1933 a 1960.67Idem, pg. 89.

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    Os momentos mais prximos da anexao e, por isso, do fim do domnio

    colonial portugus sobre territrios indianos so caracterizados por atitudes

    desesperadas por parte da administrao portuguesa. Em primeiro lugar,

    denota-se uma postura assertiva no que toca ao direito de Portugal possuir os

    territrios de Goa, Damo e Diu. Damos relevo a uma citao de Fernando

    Nogueira, ento ministro dos Negcios Estrangeiros, nO Sculo68, num registo

    coerente com o nacionalismo exacerbado (Alexandre 1999: 140) que ento se

    fazia sentir:

    Desde que a Unio Indiana adquiriu o estatuto deEstado e se tornou nao independente, reivindicou Goacomo se este territrio fosse ou tivesse sido alguma vez

    indiano. Em que fundamenta o governo indiano o direito,que se atribui, de anexar Goa? Numa nica e exclusivarazo: Goa geogrficamente contgua da Unio Indianae, consequentemente, deve ser parte integrante daUnio. (...) Como evidente, o argumento no vlido(...).

    H longo tempo, muito antes de a Unio Indiana terexistido, Goa tornou-se no que hoje. No umacolnia: um territrio perfeitamente integrado naNao Portuguesa.

    Em seguida, j muito prximo da invaso, o Dirio de Lisboa69

    apresenta a resposta portuguesa nota indiana enviada ONU - que

    procurava obter licena para transferir os territrios de Goa, Damo e Diu

    para a Unio Indiana, por aqueles fazerem necessariamente parte do recente

    estado-nao:

    (...) O Governo Portugus no tem conhecimentode que a UI por se haver tornado independente doReino Unido, tivesse ao mesmo tempo adquirido por talfacto um direito natural de incorporar no seu territriooutros territrios que no dependiam na altura nemnunca haviam dependido da soberania britanica[sic].(...)

    5. classifica o Governo Indiano como colnias ostrs territrios (...). Escapa ao Governo portugus apossibilidade de compreender por que razo asoberania portuguesa empresta a um territrio a

    68

    O Sculo, n 28615, 7.12.1961, pg. 1.69Dirio de Lisboa, n 14013, 17.12.1961, pg. 8.

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    qualidade de colnia enquanto a soberania indiana(...) lhe tira automaticamente tal carcter. Emqualquer caso, o Governo portugus rejeita firmementeaquela classificao. (...)

    7. (...) Finalmente, no reconhece o Governo

    portugus a menor autoridade moral ao Governoindiano para solicitar a qualquer pas o cumprimento dequaisquer resolues enquanto o Governo indiano nocumprir, por sua parte, a sentena do TribunalInternacional da Haia, de 12 de Abril de 1960, quereconhece a legitimidade da soberania portuguesa emGoa, Damo e Dio [sic](...).

    Enfim, a portugalidadedos territrios acima de tudo, num excerto do

    Dirio de Loureno Marques70:

    Ns, filhos de uma ptria livre, nuncapoderemos tolerar uma absoro pela Unio Indiana

    duma parcela do nosso Portugal.

    Em segundo lugar, as atitudes desesperadas do governo portugus

    denotam-se nas tentativas de mostrar populao em geral que o governo

    indiano estava a agir de m f, mentindo sobre os acontecimentos blicos

    ocorridos nas ltimas semanas antes da anexao. Entramos aqui num ponto

    que se reveste de dvidas quanto veracidade dos factos. O estado portugus

    preocupava-se, ento, em desmentir as notcias veiculadas pelo governo

    indiano sobre a actuao das tropas portuguesas. Tendo em conta a censura,

    no possvel avaliar, atravs dos jornais71, de que lado vem a mentira, muito

    embora, ao contrrio da ideia que se pretende transmitir nestas notcias, os

    portugueses tenham sido de facto os primeiros a abrir fogo sobre os indianos.

    Nota oficiosa do Ministrio do Ultramar, sobre asinformaes falsas dos rgos de informao indianos.(...) que soldados portugueses violaram as fronteiras daUnio Indiana e dispararam contra a sua populao, queas igrejas de Goa e de Diu esto a ser utilizadas comoquarteis ou paiois (...) (...) em contrapartidaregistaram-se sobrevoos ilegais no nosso territrio por

    70Dirio de Loureno Marques, n 15584, 17.12.1961, pg. 1.71

    Veremos, adiante, o que dizem os militares, aproximando-nos um pouco mais da verdadepretendida, muito embora no confirma nem desminta os factos aqui expostos.

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    avies ainda no identificados e concentraes de tropase blindados perto da nossa fronteira (...).72

    Numa notcia de uma reunio do Servio Nacional deInformao no Palcio Foz, sobre (...) problemas de

    informaes decorrentes da grave situao criada noEstado Portugus da ndia (...)73

    Do Ministrio do Ultramar recebemos a seguintenota oficiosa: -os rgos de informao dependentesdo governo da Unio Indiana lanaram uma campahadestinada a confundir a opinio pblica internacionalem relao com a poltica agressiva que aquele governoh anos adoptou para com o Estado Portugus dandia.74

    Por ltimo e em terceiro lugar, tambm significativa a quantidade denotcias sadas nos jornais que demonstram que as autoridades portuguesas