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  • Patrimnio, Cincia e Tecnologia: Inter-relaes

    Marcus Granato*

    Roberta Nobre da Cmara**

    Introduo

    As relaes entre a Cincia, a Tecnologia e o Patrimnio so diversas. Nesse texto,

    faremos algumas reflexes sobre a temtica do patrimnio e suas correlaes com a

    cincia e a tecnologia, lembrando sempre que, na era virtual, necessrio conviver com

    o dinmico, o instvel, o mutvel. Sero priorizadas as questes relacionadas

    preservao do patrimnio da cincia e da tecnologia (C&T), a interseo entre

    conservao-cincia-tecnologia e, a partir de uma seleo de parte desse patrimnio,

    apresentado um panorama atual, na viso dos autores, de sua preservao.

    Inicialmente, cabe definir o que consideramos Cincia, Tecnologia e patrimnio e, a

    seguir, discutir alguns dos vrios pontos de cruzamento e tangncia, inclusive o que

    potencialmente poderia constituir o patrimnio da Cincia e Tecnologia.

    Cincia o conjunto de conhecimentos e de investigaes com um suficiente grau de

    generalidade para resultar em convenes concordantes e relaes objetivas baseadas

    em fatos comprovveis.1 Tecnologia o estudo dos processos tcnicos, naquilo que

    eles tm de geral e nas suas relaes com o desenvolvimento da civilizao.2 Na

    * Formado em Engenharia Metalrgica e de Materiais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1980), iniciou a vida profissional no Centro de Tecnologia Mineral, onde desenvolveu e coordenou projetos de pesquisa tecnolgica. Em 1993, obteve o ttulo de Mestre em Cincias (M.Sc) pelo Programa de Ps-graduao da Escola de Engenharia Metalrgica (Coppe/UFRJ). Transferiu-se para o Museu de Astronomia e Cincias Afins (Mast) em 1996, onde atuou como Chefe do Departamento de Museologia por quatro anos, tendo coordenado diversos projetos de preservao de patrimnio e divulgao cientfica. Em 2003, obteve o ttulo de Doutor em Cincias (D.Sc) pelo mesmo programa citado (Coppe/UFRJ), sendo sua tese sobre Restaurao de Instrumentos Cientficos Histricos. A partir de 2004, volta a coordenar a rea de Museologia no Mast e, a partir de 2006, torna-se professor e assume a vice-coordenao do Mestrado em Museologia e Patrimnio, desenvolvido em parceria pela Unirio e pelo Mast. Atualmente, coordenador de Museologia do Mast, pesquisador do CNPq e lder de grupo de pesquisa na rea de Preservao de Bens Culturais. ** Formada em Histria pela Universidade Federal Fluminense (1996), mestranda do Programa de Ps-graduao em Museologia e Patrimnio (Unirio/Mast). Prestadora de servios do Museu da Vida, Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz), desde 1997, onde vem trabalhando na mediao e divulgao cientfica e nas exposies. 1 Cf. LANGLOIS; SEIGNOBOS, apud LALANDE, Andr. Vocabulrio tcnico e crtico da Filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 1993. 2 LALANDE, Andr. Vocabulrio... Op. cit. p. 1.111 (Verbete Tecnologia).

  • verdade, esses conceitos, tambm apresentados em publicao anterior,3 foram escolhas

    dentre diversos, pois a cincia e a tecnologia apresentam uma centena de definies e

    abordagens. Ana Maria Ribeiro, historiadora do Museu de Astronomia e Cincias Afins

    (Mast), em seus estudos para elaborao de sua tese de doutoramento, aborda a

    complexidade desses conceitos:

    (...) ningum duvida da complexa diferenciao e interao entre cincia e tecnologia, e que a discusso sobre a distino entre as mesmas parece ser insolvel. (...) muito embora a distino entre cincia e tecnologia parea insolvel e bizantina para especialistas, ela reincidente. O expediente habitual tem sido inventar uma definio (quase sempre baseada nas diferenas formais da cincia e da tecnologia socializarem os resultados) e depois no mais us-la. Assim, a cincia seria o que se faz a fim de ser divulgada sob a forma de artigo cientfico, em revistas especializadas, e tecnologia, a investigao cujo produto principal no um artigo, mas um artefato ou processo inovador. 4

    Analisando os diversos matizes que C&T podem assumir, Staudenmaier5 fez um

    levantamento dos artigos publicados no peridico Technology and Culture, entre 1959 e

    1980, e algumas afirmaes genricas puderam ser depreendidas sobre esses conceitos:

    - o motivador da atividade cientfica a curiosidade, enquanto a busca pela

    soluo de problemas a fora propulsora da tecnologia;

    - o objetivo a ser alcanado na Cincia um modelo terico, enquanto o

    conhecimento est a servio do objetivo a ser alcanado na Tecnologia;

    - a Cincia estimula a criatividade tecnolgica e racionaliza a prtica

    tecnolgica existente;

    - a Tecnologia contribui para a Cincia pela colocao de problemas

    cientficos, criando instrumentos e novos modelos conceituais;

    - as atividades cientficas e tecnolgicas desenvolvidas pelo homem,

    geralmente, influenciam as interaes entre a Cincia e a Tecnologia;

    - a Tecnologia Cincia aplicada.

    3 BITTENCOURT, Jos Neves; GRANATO, Marcus; BENCHETRIT, Sarah Fassa (orgs.). Museus, Cincia e Tecnologia. Rio de Janeiro: Museu Histrico Nacional, 2007. 4 ANDRADE, Ana Maria Ribeiro de. O encontro do mson- com a poltica. Memorial apresentado para o exame de qualificao. Niteri, RJ: Programa de Ps-graduao em Histria/Universidade Federal Fluminense, 1996. p. 60-61. 5 STAUDENMAIER, John M. Technologys Storytelleers: Reweaving the Human Fabric. Baskerville: The Massachusetts Institute of Technology, 1985.

  • Percebemos, portanto, que o terreno dessas definies vasto e pleno de diferentes

    entendimentos, mas, em resumo, podemos depreender que a cincia est muito

    relacionada ao mundo das idias e conceitos; enquanto a tecnologia relaciona-se

    prtica, soluo de problemas prticos.

    Quanto ao conceito de patrimnio, o Comit de Terminologia da Quebec Association

    for the Interpretation of the National Heritage, estabelece:

    () the combined creations and products of nature and man, in their entirety, that make up the environment in which we live in space and time. Heritage is a reality, a possession of the community, and a rich inheritance that may be passed on, which invites our recognition and our participation.6

    Consideramos patrimnio cultural como aquele conjunto de produes materiais e

    imateriais do ser humano e seus contextos sociais e naturais que constituem objeto de

    interesse a ser preservado para as futuras geraes. Scheiner,7 no contexto das novas

    formas de comunicao e do universo virtual, considera o patrimnio no mais como

    um conjunto de valores atribudos ao espao geogrfico e aos produtos do fazer

    humano, mas como um valor plural, ao qual esto sendo atribudas novas

    significaes.8

    Em relao ao que constitui patrimnio de C&T, consideramos o conhecimento

    cientfico e tecnolgico produzido pelo homem, alm de todos aqueles objetos que so

    testemunhos dos processos cientficos e do desenvolvimento tecnolgico, aqui includas

    as construes arquitetnicas produzidas e com a funcionalidade de atender s

    necessidades desses processos e desenvolvimentos. Cabe esclarecer que reas diversas

    podero estar representadas, algumas nas quais a contribuio para o patrimnio de

    C&T ser maior, como a Matemtica e a Fsica, e outras de forma mais relativa, por

    exemplo, a Sade. Como j mencionado, por ser a rea de patrimnio dinmica e

    mutvel, novos bens podero ser considerados, por exemplo, o material gentico; em

    nossa opinio classificado como patrimnio de C&T.

    6 (...) as realizaes e produtos combinados da natureza e do homem, em sua integralidade, que constituem o ambiente em que vivemos, no tempo e no espao. Patrimnio uma realidade, um bem da comunidade e um rico legado que pode ser repassado e que convida nossa participao e reconhecimento (Traduo minha). Disponvel em . ltimo acesso em 12 nov. 2007. 7 SCHEINER, Teresa. Polticas e diretrizes da Museologia e do patrimnio na atualidade. In: BITTENCOURT, Jos Neves; GRANATO, Marcus; BENCHETRIT, Sarah Fassa (orgs.). Museus... Op. cit. p. 31-48. 8 SCHEINER, Teresa. Polticas... Op. cit. p. 36.

  • No que tange ao patrimnio intangvel em C&T, recentemente, em evento no Mast,9

    discutiu-se esse aspecto; em princpio, poderamos considerar a produo de

    conhecimento, assim como os processos de elaborao desse conhecimento, seja pelo

    vis da cincia, seja pelo vis do desenvolvimento tecnolgico, como formas a serem

    preservadas. A proteo do patrimnio intangvel vem em socorro daquelas formas de

    expresso ameaadas de desaparecimento e, no caso do patrimnio de C&T, a produo

    do conhecimento j registrada por meio de suas diversas formas de publicao

    (relatrios, artigos cientficos, cadernetas de trabalho, pareceres etc.) e no necessitaria,

    assim, de outra forma de proteo. No entanto, no caso da Tecnologia, como vimos

    anteriormente, o conhecimento gerado poucas vezes registrado e disseminado

    publicamente, permanecendo, na maioria das vezes, em relatrios de acesso restrito. Por

    outro lado, tanto em Cincia e como em Tecnologia, o que publicado ou registrado em

    forma de documento, normalmente constitudo somente dos resultados positivos da

    pesquisa quando, sabe-se bem, o erro faz parte do processo criativo, mas quase no

    documentado. Haveria, portanto, uma outra face da Histria da Cincia e da Tecnologia,

    a histria dos fracassos, cujos testemunhos intangveis ou no, no estariam sendo

    considerados e, assim, perdendo-se irremediavelmente.

    Nos itens seguintes, ser realizada uma discusso sobre a proteo do patrimnio e, em

    especial, daquele relativo Cincia e Tecnologia. Em seguida, ser abordada uma

    relao profcua entre a rea de patrimnio e a de C&T: a conservao e restaurao;

    finalmente, ser apresentado um panorama sobre a situao das colees de objetos de

    C&T e do patrimnio gentico no pas.

    1. A preservao do patrimnio de C&T

    Os objetos mais facilmente identificados ao patrimnio de C&T so os denominados

    instrumentos cientficos, desde que fizeram parte intrinsecamente das atividades

    realizadas em laboratrios cientficos e de tecnologia aplicada. No entanto, instrumento

    cientfico quem sabe seja um termo complexo e que s se aplica em perodo histrico

    determinado (sculo XIX e incio do sculo XX); podemos utilizar talvez aparatos

    9 Mast Colloquia ciclo de palestras mensais que, desde 2003, organizado pela Coordenao de Museologia do Mast. Em 2007, o tema geral foi Documentao em Museus.

  • cientficos e tecnolgicos, incluindo aqui as montagens de laboratrio. De forma mais

    geral, utilizaremos objetos de Cincia e Tecnologia.10

    A Profa. Helosa Costa, no seminrio ocorrido no Museu Histrico Nacional que deu

    origem organizao deste livro, lanou um questionamento perturbador e decisivo:

    Com qual patrimnio nos preocupamos?, discutindo a atribuio de valor aos objetos

    culturais em geral. Vamos aproveitar essa provocao e lev-la para a rea de C&T.

    Mas talvez seria mais produtivo fazer alguns questionamentos anteriormente:

    Preocupamo-nos com o patrimnio de C&T? Quem se preocupa com esse patrimnio?

    A sociedade se preocupa com esse patrimnio?

    Antes de nos determos sobre essas perguntas, vejamos como o patrimnio integral, ou

    universal, est sendo protegido e como o patrimnio de C&T a se insere. No plano

    internacional, os bens culturais esto protegidos pela Conveno sobre a Proteo do

    Patrimnio Mundial Cultural e Natural, aprovada pela Conferncia Geral da

    Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (Unesco), em

    sua dcima stima reunio em Paris, em 16 de novembro de 1972. O Brasil aderiu

    Conveno em 12 de dezembro de 1977, pelo decreto 80.978. Para os fins da

    conveno, so considerados patrimnio cultural:

    - Monumentos: obras arquitetnicas, de escultura e pintura ou de pintura

    monumentais, elementos ou estruturas de natureza arqueolgica, inscries,

    cavernas e grupos de elementos, que tenham um valor universal excepcional

    do ponto de vista da Histria, da Arte ou da Cincia;

    - Conjuntos: grupos de construes isoladas ou reunidas que, em virtude de

    sua arquitetura, unidade ou integrao na paisagem, tenham um valor

    universal excepcional do ponto de vista da Histria, da Arte ou da Cincia;

    - Lugares notveis: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da

    natureza, bem como as zonas, inclusive lugares arqueolgicos, que tenham

    valor universal excepcional do ponto de vista histrico, esttico, etnolgico

    ou antropolgico.

    Como vemos, aqui se percebe a meno Cincia, mas no Tecnologia, e, de qualquer

    forma, no de maneira integral. No entanto, conforme dispe o art. 216 da Constituio

    10 GRANATO Marcus et al. Objetos de cincia e tecnologia como fontes documentais para a Histria das Cincias: resultados parciais. In: ODONE, Nanci (org.). Anais do VIII Encontro Nacional de Pesquisa em Cincia da Informao. Braslia: Ancib, 2007. p. 1-15.

  • Federal de 1988,11 constituem patrimnio cultural brasileiro os bens de natureza

    material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referncia

    identidade, ao, memria dos diferentes grupos formadores da sociedade

    brasileira. Podem ser formas de expresso: os modos de criar, fazer e viver; as criaes

    cientficas, artsticas e tecnolgicas; as obras, objetos, documentos, edificaes e demais

    espaos destinados s manifestaes artstico-culturais; os conjuntos urbanos e stios de

    valor histrico, paisagstico, artstico, arqueolgico, paleontolgico, ecolgico e

    cientfico.

    Na carta magna est prevista a salvaguarda do patrimnio de C&T, no que concerne

    tanto s suas criaes (objetos, documentos, edificaes relacionadas) como queles

    conjuntos naturais ou construdos que tenham valor cientfico. O patrimnio cientfico e

    tecnolgico, obviamente, est includo no mbito do patrimnio cultural.

    Um dos instrumentos mais importantes da proteo do patrimnio o tombamento.

    Tombar um bem declarar o seu valor cultural e inscrev-lo em um dos livros de

    Tombo existentes no Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Iphan) ou

    rgo congnere em nvel estadual ou municipal, que efetuar o tombamento. O Iphan

    mantm os seguintes livros de Tombo:

    - Livro do Tombo Arqueolgico, Etnogrfico e Paisagstico, no qual se

    inscrevem as coisas pertencentes s categorias de arte arqueolgica,

    etnogrfica, amerndia e popular, bem como os monumentos naturais, stios e

    paisagens.

    - Livro do Tombo Histrico, no qual se inscrevem as coisas de interesse

    histrico e as obras de arte histricas.

    - Livro do Tombo das Belas Artes, no qual se inscrevem as coisas de arte

    erudita, nacional ou estrangeira.

    - Livro do Tombo das Artes Aplicadas, no qual se inscrevem as obras que se

    inclurem na categoria de artes aplicadas, nacionais ou estrangeiras.

    Como vemos, no h um livro de tombo para objetos e monumentos relacionados

    Cincia e Tecnologia e, assim, seu patrimnio, quando tombado, recai no item

    histrico ou natural. 11 BRASIL. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organizao do texto: Juarez de Oliveira. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 1990. 168 p. (Srie Legislao Brasileira).

  • No que tange ao patrimnio intangvel, o Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000, criou o

    Programa Nacional do Patrimnio Imaterial e instituiu o Registro de Bens Culturais de

    Natureza Imaterial que constituem patrimnio cultural brasileiro e podem ser inscritos

    nos seguintes livros do Iphan, aps aprovao do Conselho Consultivo do Patrimnio

    Cultural:

    - Livro de Registro de Saberes, onde so inscritos conhecimentos e modos de

    fazer enraizados no cotidiano das comunidades;

    - Livro de Registro das Celebraes, onde so inscritos rituais e festas que

    marcam a vivncia coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento

    e de outras prticas da vida social;

    - Livro de Registro de Formas de Expresso, onde so inscritas manifestaes

    literrias, musicais, plsticas, cnicas e ldicas;

    - Livro de Registro dos Lugares, onde so inscritos mercados, feiras,

    santurios, praas e demais espaos onde se concentram e reproduzem

    prticas culturais coletivas.

    Aqui, verifica-se que no h um livro para tombamento do legado intangvel da C&T.

    Por outro lado, a situao do que consideramos patrimnio intangvel em C&T poderia

    explicar essa situao, j que, como mencionado, esse patrimnio j seria objeto de

    registro sistemtico, inclusive em suas cerimnias tpicas, como o caso, no Brasil, das

    reunies anuais da Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia (SBPC).

    Retomando os questionamentos anteriormente apresentados, verifica-se que, a partir das

    atividades desenvolvidas pelo Mast nos ltimos anos, o panorama sobre a situao atual

    do patrimnio de C&T de interesse histrico preocupante. Esse panorama ser

    apresentado em mais detalhes, para colees de objetos de C&T, em item posterior

    deste trabalho. Mas a percepo que se tem, a partir disso, a da urgncia em elaborar e

    implementar medidas imediatas para a proteo do que resta do patrimnio da Cincia e

    da Tecnologia no Brasil.

    Em recente trabalho de pesquisa, realizado para sua tese de doutoramento, Maria Celina

    de Mello e Silva,12 servidora do Mast, visitou uma srie de laboratrios de diversos

    12 SILVA, Maria Celina Soares de Mello e. Visitando laboratrios: o cientista e a preservao de documentos. Tese de doutorado. So Paulo: Programa de Ps-graduao em Histria Social/Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, 2007.

  • centros de pesquisa pertencentes ao Ministrio da Cincia e Tecnologia (MCT),

    entrevistando cientistas no sentido de estudar a relao que os mesmos mantm com os

    documentos produzidos nos laboratrios cientficos e tecnolgicos. Seu propsito, com

    o extenso e detalhado trabalho realizado, foi buscar elementos que contribussem para a

    elaborao de um programa de preservao de arquivos de C&T. No entanto, uma das

    consideraes do trabalho, apresentada a seguir, mostra a amplitude do problema.

    No h clareza sobre quais documentos oriundos da prtica cientfica devem ser preservados. To pouco h clareza, por parte de cientistas, de administradores e de historiadores, do que seja documento de arquivo. Muitas vezes, nem os prprios arquivistas possuem um ntido entendimento do que seja documento de arquivo no meio cientfico.13

    Falta conscincia e conhecimento sobre o assunto, mesmo por parte dos profissionais

    que rotineiramente lidam com o patrimnio, no caso arquivstico, mas o estudo permite,

    certamente, estender para os demais itens do patrimnio de C&T, como, por exemplo,

    objetos em geral e construes funcionais.

    A responsabilidade pela preservao do patrimnio de C&T, em princpio, seria

    atribuio do Ministrio da Cultura (MinC), pois se trata de item relacionado ao

    patrimnio cultural brasileiro e, como verificado no Decreto n. 4.805,14 de 12 de agosto

    de 2003, que aprova a estrutura regimental do MinC, uma de suas competncias a

    proteo do patrimnio histrico e cultural brasileiro. No entanto, percebe-se, inclusive

    pela anlise dos livros de tombamento, que so rarssimas as iniciativas de proteo

    efetuadas nessa rea. Uma delas o tombamento15 do conjunto arquitetnico do

    Observatrio Nacional, onde, desde 1985, situa-se o Mast, bem como de diversos outros

    itens, entre eles a coleo de instrumentos cientficos histricos sob guarda do museu.

    Por outro lado, responsvel pela formulao e implementao da Poltica Nacional de

    Cincia e Tecnologia, o Ministrio da Cincia e Tecnologia tem suas aes pautadas nas

    disposies do Captulo IV da Constituio Federal de 1988 e foi criado em 15 de

    maro de 1985, pelo Decreto n. 91.146, como rgo central do sistema federal de

    Cincia e Tecnologia.16

    13 Idem. p. 22. 14 Disponvel em . ltimo acesso em 08 nov. 2007. 15 BRASIL. Bens Mveis e Imveis Inscritos nos Livros do Tombo do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Livro Histrico, Processo n. 1009-T-79/Iphan, v. 1, folhas 94-97, inscrio 509, de 14/08/1986. Iphan/Depto. de Promoo, 1994. 16 Disponvel em . ltimo acesso em 08 nov. 2007.

  • O surgimento do MCT, alm de expressar a importncia poltica desse segmento,

    atendeu a um antigo anseio da comunidade cientfica e tecnolgica nacional. Sua rea

    de competncia abriga: o patrimnio cientfico e tecnolgico e seu desenvolvimento; a

    poltica de cooperao e intercmbio concernente a esse patrimnio; a formulao e

    implementao da Poltica Nacional de Cincia e Tecnologia; a coordenao de

    polticas setoriais; a poltica nacional de pesquisa, desenvolvimento, produo e

    aplicao de novos materiais e servios de alta tecnologia.

    Em 2003, no mbito do MCT, foi elaborada uma proposta de Poltica Nacional de

    Memria da Cincia e da Tecnologia,17 como resultado do trabalho de uma comisso

    especial constituda por portaria (116/2003) do presidente do Conselho Nacional de

    Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), rgo da estrutura do MCT. Esse

    trabalho, sobre o qual apresentaremos algumas informaes, comentrios e reflexes,

    trata-se, talvez, da primeira iniciativa formal do Estado brasileiro no sentido de

    formalizar uma poltica de preservao de vestgios da memria da Cincia e da

    Tecnologia brasileira. No entanto, padece de um problema fundamental em sua

    concepo que se reflete em todo o seu desenvolvimento, restringe-se apenas ao

    patrimnio arquivstico. Em nenhum momento, mencionam-se os diversos outros itens

    que compem o patrimnio de C&T e que tambm tm relao com a memria desses

    setores.

    O relatrio finaliza com dez recomendaes para a elaborao de uma Poltica Nacional

    de Memria da Cincia e da Tecnologia,18 apresentadas aqui de forma resumida:

    1. Elaborao de um Programa Nacional envolvendo todos os mbitos da

    administrao pblica (federal, estadual e municipal), bem como setores da

    sociedade civil, sob a responsabilidade do Ministrio da Cincia e Tecnologia, por

    meio do CNPq;

    2. No criar um rgo novo ou fortalecer algum existente para coordenar a PNMCT, e

    sim formar uma Comisso Nacional da Memria da Cincia, com representatividade

    interinstitucional, cuja operacionalidade seria efetuada por meio de uma Secretaria

    Executiva abrigada no Centro de Memria do CNPq;

    17 BRASIL. Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico. Poltica Nacional de Memria da Cincia e da Tecnologia: relatrio da comisso especial constituda pela Portaria 116/2003 do presidente do CNPq, em 4 de julho de 2003. Braslia, DF, 2003. 11p. 18 Idem. p. 9.

  • 3. Criao de um grupo, no mbito do Conselho Nacional de Cincia e Tecnologia,

    encarregado de inserir a memria da Cincia nas diretrizes da Poltica Nacional de

    C&T;

    4. A Poltica Nacional de Memria da C&T deve estimular as atividades de

    preservao, de pesquisa e de difuso por meio de editais peridicos;

    5. Infra-estrutura adequada e pessoal especializado para a preservao dos acervos de

    cada instituio envolvida na produo do conhecimento cientfico e tecnolgico e

    desenvolvimento de seus prprios arquivos ou centros de memria;

    6. Criao de uma Rede Nacional de Histria da Cincia e da Tecnologia formada

    pelos centros de pesquisa, ensino, documentao, arquivos e museus dedicados

    pesquisa histrica e preservao de acervos, para intercmbio e referncia de

    informaes;

    7. Identificao e qualificao de acervos pblicos e privados referentes memria da

    Cincia e da Tecnologia;

    8. Estabelecimento de programas de formao de pessoal qualificado para a

    preservao do patrimnio cientfico e tecnolgico, fortalecendo centros de

    documentao e museus existentes e incentivando a criao de outros em todas as

    unidades da federao;

    9. Aventa a possibilidade de utilizao dos mecanismos existentes (bolsas, apoio a

    projetos, eventos e publicaes etc.), nas agncias de fomento, para o estmulo

    pesquisa em Histria da Cincia;

    10. Multiplicao das aes de disseminao e divulgao, por meio de publicaes,

    exposies e filmes relativos memria da C&T.

    A anlise dessas recomendaes mostra que praticamente nenhuma delas foi

    implementada at o momento. Houve apenas uma iniciativa diretamente relacionada ao

    tema da preservao do patrimnio de C&T: um edital do CNPq, aberto em setembro de

    2003, possivelmente em decorrncia do referido relatrio. O Edital

    CTINFRA/MCT/CNPq 003/2003 destinava-se a projetos de apoio infra-estrutura de

    preservao e pesquisa da memria cientfica e tecnolgica brasileira, mas aqui ocorreu

    uma ampliao interessante do conceito de patrimnio, considerado pela comisso

    mencionada anteriormente, pois entendia-se acervos documentais de forma mais ampla,

    incluindo arquivos, colees, bibliotecas, instrumentos e outros que tivessem valor

    inquestionvel para o estudo da produo do conhecimento cientfico brasileiro.

  • Naquele mesmo momento, foi lanado um outro edital MCT/SECIS/CNPq 007/2003

    que se destinava a apoiar especificamente museus e centros de cincias. O vis aqui

    era claramente de divulgao cientfica, pois se relacionava melhoria da qualidade do

    ensino das cincias e difuso e popularizao da cultura cientfico-tecnolgica junto

    sociedade brasileira. Por um lado, apoiavam-se projetos relacionados preservao do

    patrimnio e, por outro, projetos e instituies que propiciassem um trabalho decisivo

    para a memria e a preservao do patrimnio de C&T, a conscientizao da populao

    sobre a importncia e o envolvimento da Cincia e da Tecnologia no dia-a-dia das

    pessoas.

    Posteriormente, em 2006, foi lanado novo edital pelo CNPq voltado para a divulgao

    cientfica. No entanto, o que se observa que as atividades de divulgao cientfica que

    so propostas e apoiadas nos editais no esto vinculadas, ou muito raramente,

    conscientizao do valor do patrimnio de C&T para a sociedade e, mais raramente

    ainda, a iniciativas de preservao. Na verdade, observa-se nos ltimos anos, um

    aumento na conscincia, por parte de setores do MCT, de que a divulgao cientfica

    fator importante para a educao cientfica da sociedade, mas isso no ocorreu em

    relao preservao do patrimnio de C&T.

    Uma outra iniciativa do CNPq, que talvez tenha razes nos trabalhos dessa Comisso,

    a criao do seu Centro de Memria,19 ocorrida em 13 de abril de 2004. O Centro de

    Memria responsvel pela organizao, preservao e divulgao do acervo histrico

    do CNPq, que conta com documentos em diversos suportes papel, fotografias,

    microfilmes, negativos e fitas cassetes, alm de um acervo bibliogrfico especializado

    em poltica e Histria da Cincia e Tecnologia. Atualmente, o acervo est em fase de

    organizao e parcialmente disponvel ao pblico para consulta. Possui uma ao de

    coleta e recebimento de acervos relacionados Histria do CNPq e, portanto,

    relacionados ao patrimnio de C&T brasileiro. No entanto, claro que no est sendo

    implementada uma poltica ampla de preservao dos vestgios da memria da C&T.

    Alis, seria preciso antes elaborar essa poltica.

    Os autores esto convencidos de que s por meio da formao ampla e consciente dos

    cidados, por meio da alfabetizao cientfica e cultural, advinda da educao

    proporcionada pelo uso social do patrimnio, se conseguir evitar a perda irreversvel

    do patrimnio material brasileiro relacionado C&T. No entanto, imprescindvel ter

    19 Disponvel em . ltimo acesso em 09 nov. 2007.

  • uma poltica clara, ampla e desenvolver aes e programas que tenham o objetivo de

    preservar esse patrimnio, que est se perdendo.

    2. Cincia, tecnologia e conservao

    Tradicionalmente, um setor que tem possibilitado intercmbios produtivos entre a

    Cincia, a Tecnologia e o patrimnio o de procedimentos para conservao e restauro

    dos bens culturais. Nessa relao, diversas pesquisas e desenvolvimentos tecnolgicos

    tm sido realizados, a partir da interao entre profissionais da conservao e cientistas

    e tecnlogos, propiciando instrumentos que auxiliam para a melhor compreenso e

    entendimento dos objetos e para o diagnstico de conservao dos mesmos.

    A introduo dos mtodos cientficos na rea de colees museolgicas, monumentos e

    arte teve incio no sculo XVIII, com o trabalho do estudioso alemo Friedrich

    Klaproth,20 que analisou a composio de moedas metlicas pertencentes a acervos de

    Numismtica. No sculo XIX, outras iniciativas ampliaram o corpo do trabalho

    realizado na rea; o qumico Michael Faraday,21 em 1850, estudou o efeito da proteo

    de pinturas com vidro, na London National Gallery, e o metalurgista Ernst von Bibra

    escreveu um compndio sobre anlise de metais, baseado em um estudo sobre colees

    museolgicas. A inteno desses cientistas inclua uma busca por um melhor

    entendimento sobre materiais, o desenvolvimento de conhecimento sobre tecnologias

    antigas em arte, uma habilidade crescente em atribuir perodos histricos e grupos a

    objetos e autenticao de objetos. Esse esforo foi parte do movimento europeu

    voltado para a Cincia.

    A conservao com base cientfica se inicia no sculo XIX, representando um momento

    especial para a relao cincia-conservao-patrimnio. Destacam-se os trabalhos de Sir

    Humphrey Davy, presidente da Royal Society, a pedido do rei George IV, em 1820,

    estudando os papiros de Pompia e realizando estudos sobre as causas de sua

    degradao; de C.J. Thomson, no Museu Nacional de Copenhague, desenvolvendo

    tcnicas para conservar objetos arqueolgicos; e com Friedrich Rathgen, em 1888, ao

    20 TAGLE, Alberto de. Science at the GCI. The Getty Conservation Institute Newsletter, v. 14, n. 1, 1999. Disponvel em . ltimo acesso em 05 nov. 2007. 21 EASTLAKE Charles L.; FARADAY, Michael; RUSSEL, Willian S. In: Report from the Select Committee on the National Gallery; together with minutes of evidence, appendix, plans, and index.

    Parliamentary Papers (House of Commons Sessional Papers) 1850 XV 612: 1-123 [i-viii, 1-110].

  • assumir um posto no Museu Real de Berlim.22 Este ltimo criou um laboratrio e

    desenvolveu uma srie de tratamentos de conservao, produzindo, em 1898, um dos

    primeiros livros sobre o tema,23 quando a conservao tornou-se uma disciplina

    profissional. Ainda nesse sculo, temos o advento da Cincia como caminho para a

    revelao da verdade e para anlise da realidade, alm da ampliao do acesso pblico

    cultura e arte. Entre o final do sculo XIX e o incio do XX, uma base terica foi

    estabelecida, especialmente por meio dos esforos de Cesare Brandi.24

    No decorrer do sculo XX, algumas teorias e concepes sobre a conservao

    coexistiram. Entre elas, a partir de meados desse sculo, destacamos a chamada Nova

    Conservao Cientfica, que foi mais uma atitude em prol de tcnicas e metodologias

    cientficas de conservao do que propriamente uma teoria da conservao. Nenhum

    esforo terico foi realizado para validar essa abordagem, mas verifica-se um conjunto

    de idias e crticas que a caracteriza e vm sendo desenvolvido de forma fragmentada.

    Nessa concepo, os cientistas e a metodologia cientfica passam a ser determinantes

    para o processo da preservao de acervos e, em funo dos bons resultados alcanados,

    essa abordagem torna-se, no final do sculo XX, a forma reconhecida de lidar com a

    preservao de acervos. Essa fase constitui um perodo de grande efervescncia para a

    relao cincia-tecnologia-conservao. No entanto, restringe-se ao desenvolvimento e

    utilizao de metodologias cientficas e de tecnologias no processo de conservao do

    patrimnio cultural. J recentemente, Salvador M. Vas25 faz uma crtica s teorias da

    conservao anteriores, consideradas clssicas, e prope uma teoria contempornea da

    conservao, na qual o interesse primrio est nos sujeitos, e no mais nos objetos. A

    objetividade na conservao, fundamento da abordagem cientfica prevalente a partir do

    final do sculo XX, seria substituda por uma forma de subjetivismo.

    A Carta de Olinda, elaborada pelos participantes do I Simpsio de Tcnicas Avanadas

    em Conservao de Bens Culturais, em dezembro de 2002, estabelece que:

    22 GILBERG, Mark. Friedrich Rathgen: the father of modern archaelogical conservation. Journal of the American Institute for Conservation, Washington, v. 26, n. 2, p. 105-120, 1987. 23 RATHGEN, Friedrich. Die Konservierung von Altertumsfunden. Berlim: W. Spemann, 1898. 24 Cesare Brandi no era um conservador praticante nem um arquiteto, era historiador da arte. Dirigiu o Istituto Centrale del Restauro Italiano, entre 1939 e 1961. Publicou em 1963 a Teoria do Restauro, texto que defende a relevncia de um fator quase sempre negligenciado na conservao cientfica: o valor artstico do objeto. Em sua viso, os valores estticos so da maior importncia e devem ser levados em considerao nas decises sobre a conservao. Brandi o terico do restauro esttico e considerado o autor do corpo terico mais consistente da conservao. BRANDI, Cesare. Teoria de la restauracin. Madri: Alianza, 2000. 25 VIAS, Salvador Muoz. Contemporary Theory of Conservation. Oxford: Elsevier, 2005.

  • A contribuio da Cincia e Tecnologia para a conservao-restaurao de bens culturais fator primordial para o sucesso das aes de preservao, uma vez que os problemas enfrentados envolvem o desenvolvimento e a aplicao de mecanismos apropriados para o estudo material dos objetos e sua tecnologia de produo, alm da compreenso de sua importncia e valores histricos, culturais e sociais. A rea de Cincia e Tecnologia voltada para a conservao de bens culturais estuda a natureza material destes bens, desenvolvendo mtodos de anlise, datao e de avaliao de tcnicas e processos de interveno, possibilitando, portanto, materiais e mtodos para o entendimento e o tratamento das degradaes e suas manifestaes, contribuindo ainda para estratgias de conservao preventiva de bens culturais.26

    Verifica-se que a participao da Cincia e Tecnologia, segundo esses moldes,

    restringe-se ampliao do conhecimento sobre o objeto a conservar e sobre produtos a

    serem utilizados nesse processo. Na verdade, possvel ampliar essa participao e a

    teoria apontada por Vias caminha nessa direo.

    Uma etapa fundamental da preservao diz respeito discusso sobre a filosofia de

    interveno e, como bem destacado por Beatriz Khul no seminrio que deu origem a

    este livro,

    [...] apesar das especificidades que comportam os variados tipos de bens culturais que exigem meios e tcnicas distintos quando se passa parte operacional , existe uma unidade de preceitos tericos e de aproximao metodolgica ao tema, fundamentada nas Cincias Humanas, e objetivos comuns.27

    Aqui se amplia a contribuio da Cincia para a conservao do patrimnio, passando

    da discusso de metodologias e tcnicas para o prprio mago da questo. No entanto,

    os cientistas das chamadas cincias hard no parecem ter se apropriado dessa

    possibilidade e no tm aberto espao em seus eventos para o dilogo com e entre os

    cientistas das Cincias Humanas e Sociais, como verificamos em diversas

    oportunidades, nos eventos realizados no pas, inclusive no mais recente, em 2007.28 As

    temticas abordadas so sempre relacionadas s metodologias de diagnstico, de

    conservao e certificao. Seria importante introduzir nesses fruns espaos de

    26 Disponvel em . ltimo acesso em 31 out. 2007. 27 Informao verbal obtida na palestra Unidade conceitual e metodolgica no restauro hoje, realizada no dia 02/10/2007, no auditrio do Museu Histrico Nacional, como parte do Seminrio Internacional Um Olhar Contemporneo sobre a Preservao do Patrimnio Material. 28 Lasmac 2007 1o Simpsio Latino-Americano sobre Mtodos Fsicos e Qumicos em Arqueologia, Arte e Conservao de Patrimnio Cultural, So Paulo, Museu de Arte de So Paulo, 11 a 16/06/2007.

  • discusso terica e filosfica, dos quais participassem cientistas de diversas formaes e

    conservadores.

    Vrios so os projetos, mesmo no Brasil, que envolvem a parceria entre Cincia,

    Tecnologia e conservao, entre eles temos os trabalhos desenvolvidos no Museu de

    Astronomia e Cincias Afins,29 na Fundao Casa de Rui Barbosa,30 no Museu

    Histrico Nacional31 e em tantos outros. Por outro lado, o pas ainda no possui um

    centro de pesquisas voltado para a pesquisa em preservao de bens culturais, como, por

    exemplo, o que se verifica na Frana, com o Centre de Recherche e de Restauration des

    Muses de France, e no Canad, com o Canadian Conservation Institute. O que pode

    ocorrer, sem uma instituio como essas, que se debruce sobre esses problemas de

    forma continuada, um processo de atividades pleno de interrupes, muitas vezes

    determinadas pela descontinuidade das fontes de financiamento.

    3. As colees de objetos de Cincia, Tecnologia e ensino no Brasil: um breve

    panorama

    O patrimnio material da Cincia e da Tecnologia no Brasil est, em sua grande

    maioria, para ser descoberto. O conhecimento atual sobre o tema restrito e, em

    especial, os objetos de Cincia e Tecnologia brasileiros j podem ter sido objeto de

    modernizaes ou descarte, na maioria das vezes em prol de uma busca pelo

    instrumento ou aparato mais recente, mais atual. Cabe ressaltar que as universidades

    so, potencialmente, grandes fontes desse patrimnio, ao qual poderiam se incluir

    tambm objetos e instrumentos de ensino. Instituies que tm por funo preservar

    esses acervos so raras e tm um trabalho rduo, em funo da escassez de

    29 Cf. GRANATO, Marcus; SANTOS, Leandro Rosa dos; MIRANDA, Luiz Roberto M de. Restaurao de um teodolito astronmico da coleo do Museu de Astronomia e Cincias Afins Mast (Brasil). In: GRANATO, Marcus (org.). CONGRESSO LATINO-AMERICANO DE RESTAURAO DE METAIS, 2, 2005, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Mast, 2005. p. 273-295; GRANATO, Marcus; DUARTE, Jusselma; SUZUKI, Cristiane. Restaurao do Pavilho, Cpula Metlica e Luneta Equatorial de 32 cm: Conjunto Arquitetnico do Museu de Astronomia e Cincias Afins Mast. Anais do Museu Paulista, So Paulo, v. 13, n. 1, p. 273-314, jan./jun. 2005; e GRANATO, Marcus et al. Restaurao do crculo meridiano de Gautier e reabilitao do pavilho correspondente Museu de Astronomia e Cincias Afins. Anais do Museu Paulista, So Paulo, v. 15, n. 2, ago./dez. 2007. 30 CARVALHO, Claudia S. Rodrigues de; JOLLY, Maria Cristina; TAVARES, Lais. House of Rui Barbosa Museum: a preventive conservation plan based on an environmental control strategy. In: Triennial Meeting Icom Committee for Conservation, 13, 2002, Rio de Janeiro. Proceedings Rio de Janeiro: Icom/Committee for Conservation, 2002, v. 1. p. 86-89. 31 VIEIRA, Rejane M.L. et al. A coleo de numismtica do Museu Histrico Nacional. Em busca de condies ideais de acondicionamento. In: GRANATO, Marcus (org.). CONGRESSO LATINO-AMERICANO DE RESTAURAO DE METAIS, 2, 2005, Rio de Janeiro. Anais... Op. cit. p. 319-334.

  • financiamentos e de profissionais capacitados. No entanto, algumas iniciativas merecem

    destaque.

    O Museu de Astronomia e Cincias Afins possui uma coleo de instrumentos

    cientficos considerada das mais significativas no pas. Todos esses objetos constituem

    parte do patrimnio cientfico sob a guarda do museu e tm sido alvo de um amplo

    plano de preservao. No texto introdutrio desse livro, referente ao Mast, informaes

    mais detalhadas so apresentadas sobre a coleo, que possui hoje 2.000 objetos, dos

    quais 1.600 so tombados pelo Iphan e pelo Instituto Estadual do Patrimnio Cultural

    (Inepac).

    Alm do trabalho com suas colees, o Mast tem desenvolvido parcerias com diversas

    instituies; algumas dessas iniciativas tem sido voltadas para a preservao de acervos

    de Cincia e Tecnologia. Alguns resultados dessas parcerias foram a identificao e o

    registro de conjuntos de objetos que constituem parte do patrimnio de C&T brasileiro,

    como as 236 peas do Instituto Nacional de Tecnologia (INT), as 298 peas

    relacionadas Histria da Energia Nuclear no Brasil, identificadas em diversos centros

    de pesquisa da rea nuclear (Instituto de Pesquisas Energticas e Nucleares Ipen,

    Instituto de Radiodosimetria IRD, Instituto de Engenharia Nuclear IEN, Centro de

    Desenvolvimento de Tecnologia Nuclear CDTN, Centro Brasileiro de Pesquisas

    fsicas CBPF), e publicadas na forma de um inventrio,32 os 300 objetos doados ao

    Mast pelo IEN e 35 peas pelo Centro de Tecnologia Mineral (Cetem).

    Cabe tambm destacar as pesquisas do Mast em parceria com o Museu de Cincia da

    Universidade de Lisboa, identificando outras fontes possveis de acervos relacionados,

    como o Colgio Pedro II (Rio de Janeiro) e o Colgio Culto Cincia (Campinas), este

    ltimo em iniciativa de preservao e pesquisa desenvolvida pela Universidade Estadual

    de Campinas (Unicamp).

    Outros acervos relacionados Cincia e Tecnologia esto, em grande nmero, nas

    universidades brasileiras, muitas vezes em museus, mas outras vezes sendo guardados

    por funcionrios que prezam pela memria do local onde trabalham. Alguns exemplos

    sero apresentados a seguir. Uma dessas instituies, que possui uma coleo de

    destaque, o Museu de Cincia da Escola de Minas (Universidade Federal de Ouro

    Preto MG). Criado no sculo XIX, rene expressivo acervo de uma das mais antigas

    escolas de Engenharia do Brasil, contando com cerca de 400 objetos das reas de

    32 SANTOS, Claudia Penha dos; BRASIL, Zenilda F. Panorama histrico da energia nuclear no Brasil: inventrios dos objetos de C&T. Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Cincias Afins, 2007.

  • Astronomia, Desenho, Eletro-tcnica, Metalurgia e Topografia. Os objetos esto, em

    sua maioria, em bom estado de conservao e registrados, mas a instituio parece

    carecer de maior quantitativo de pessoal especializado, para desenvolver todo o trabalho

    necessrio em torno desse importante patrimnio.

    Em situao similar est uma outra coleo de interesse, sob guarda do Centro de

    Memria da Engenharia (Belo Horizonte). Trata-se de uma iniciativa da Associao dos

    Ex-alunos da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

    e que tem como objetivo primordial recuperar, reunir e manter o acervo tcnico-

    cientfico e cultural dessa escola, de seus funcionrios e ex-alunos, preservando a

    memria da instituio em seu contexto histrico. Por meio de doaes diversas, reuniu-

    se um acervo de mais de 900 objetos, no qual se destacam: teodolitos, trnsitos e nveis;

    antigas balanas analticas; rguas de clculo, calculadoras manuais e eltricas, e

    computadores; ampermetros, wattmetros, oscilgrafos e galvanmetros; dentre outros.

    Uma parte do acervo, devidamente catalogada e classificada, est exposta ao pblico.

    No mbito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foram identificadas

    quatro instituies de interesse, a saber: o Museu Nacional, o Museu da Escola

    Politcnica, o Observatrio do Valongo e o Museu da Qumica Professor Athos da

    Silveira Ramos.

    O Museu Nacional rene os maiores acervos cientficos da Amrica Latina, laboratrios

    de pesquisa e cursos de ps-graduao. As peas que compem as exposies abertas ao

    pblico so parte dos 20 milhes de itens das colees cientficas conservadas e

    estudadas pelos Departamentos de Antropologia, Botnica, Entomologia, Invertebrados,

    Vertebrados, Geologia e Paleontologia. Em 2006, durante a estada da Dra. Marta

    Loureno33 no Rio de Janeiro, foi possvel identificar um grupo de instrumentos

    cientficos nessa instituio. Os objetos no esto catalogados e encontram-se em um

    ambiente inadequado para sua conservao.

    O Museu da Escola Politcnica34 foi inaugurado em 1977 e conta com um acervo de

    mais de 600 itens que revelam a histria da mais antiga escola de engenharia do pas.

    So documentos, fotografias, telas, mobilirio e instrumentos remanescentes dos

    laboratrios de antigas instituies de ensino de Engenharia, como a Academia Real

    Militar, a Escola Central, a Escola Polytechnica, a Escola Nacional de Engenharia e a

    33 Pesquisadora do Museu de Cincias da Universidade de Lisboa (MCUL) e coordenadora, pela parte portuguesa, de projeto de cooperao internacional entre o MCUL e o Mast. 34 Disponvel em . ltimo acesso em 06 nov. 2007.

  • Real Academia de Artilharia, Fortificao e Desenho, esta ltima, criada em 1792 pelo

    vice-rei D. Luiz de Castro, foi bero do ensino de Engenharia Civil e Militar no pas.

    Os objetos encontrados nesse museu no esto organizados de forma sistemtica, mas

    esto, em sua maioria, em bom estado de conservao e em exposio em uma grande

    sala do prdio da Escola de Engenharia. A coleo necessita de um processo de

    documentao, mas est minimamente protegida.

    No Observatrio do Valongo,35 podem ser encontrados cerca de 30 instrumentos, a

    maioria de Astronomia, feitos entre 1880 e 1920, por importantes fabricantes europeus

    (Cook&Sons; Salmoiraghi; Nardin; Zeiss; Bamberg; Hughes&Son; Favarget etc.). Seu

    estado de conservao bom, mas necessitam ser organizados, registrados e

    catalogados. O Mast iniciou, em 2007, um projeto de cooperao com o objetivo de

    registrar e documentar esses objetos, alm de pesquisar sua histria, de forma que

    possam ser utilizados em uma exposio comemorativa do aniversrio do Observatrio

    em 2008. Um instrumento merece destaque, um telescpio refrator, fabricado por Jose

    Hermida Pazos,36 (QUAL A REFERNCIA CORRETA? NO PODE HAVER

    DUAS NOTAS COM O MESMO NMERO, MAS UMA NOTA PODE REMETER A

    OUTRA...) ESSA NOTA REMETE OUTRA. NO REMETE. A NOTA 30 NADA

    TEM A VER COM ESTA DESCULPE PRECISO INCLUIR UMA OUTRA NOTA,

    NUMA DAS MODIFICAES ESSA REFERNCIA SE PERDEU NUMA DAS

    VERSES DO TRABALHO, INCLUO ENTO UMA NOVA NOTA AQUI.. em

    1880.

    O Museu da Qumica Professor Athos da Silveira Ramos37 foi inaugurado em 13 de

    maro de 2001 e tem como objetivo a preservao dos vestgios da Histria da Qumica

    no Brasil. O nome dado ao museu uma homenagem a um dos fundadores do Instituto

    de Qumica da UFRJ. Sua sede provisria est aberta a visitao, no Centro de

    Tecnologia, e conta com uma sala destinada reserva tcnica. O acervo contm hoje

    cerca de 22.500 peas, provenientes das ltimas dcadas do sculo XIX e de todo o

    sculo XX. A coleo principal a de reagentes, por meio da qual se tem uma noo da

    evoluo das embalagens, dos rtulos e da quantidade de produtos disponveis

    35 Disponvel em . ltimo acesso em 06 nov. 2007. 36 ROBERTY, Helosa Maria Boechat; VIDEIRA, Antonio Augusto Passos. Imagens da astronomia na Cidade do Rio de Janeiro: os 120 anos do Observatrio do Valongo. Rio de Janeiro: Observatrio do Valongo/Universidade Federal do Rio de Janeiro, p. 49, 2003 37Disponvel em . ltimo acesso em 06 nov. 2007.

    Excludo: 30

    Excludo: .

  • comercialmente. Compem tambm o acervo aparelhagens de vidro, equipamentos

    destinados s aulas prticas, bem como livros, fotografias e documentos.

    A Universidade de So Paulo a maior instituio de ensino superior e de pesquisa do

    Pas, com seis campi situados na capital e em cinco cidades do estado de So Paulo.

    Criada em 1934, no mbito dessa universidade dois museus apresentam acervos que

    podem ser de interesse, o Museu Tcnico do Laboratrio de Topografia e Geodsia

    LTG,38 da Escola Politcnica, e o Museu de Computao Prof. Odelar Leite Linhares,39

    do Departamento de Cincias de Computao e Estatstica. O primeiro apresenta uma

    seleo dos instrumentos usados no ensino dos alunos, desde 1893, quando da fundao

    da Escola Politcnica. O acervo conta com teodolitos, taquemetros, nveis de preciso,

    planmetros, dentre outros instrumentos, que esto registrados, organizados em vitrinas

    e em bom estado de conservao.

    O segundo museu, criado em 1978, est regularmente aberto ao pblico e conta com

    mais de 200 objetos, entre mquinas de calcular, rguas de clculo, computadores e

    outros artefatos computacionais obsoletos. O acervo do museu foi formado a partir de

    doaes de vrias instituies de ensino, comerciais e at mesmo de pessoas fsicas.

    Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), situada na cidade de Porto

    Alegre, destaca-se um grupo de 40 objetos pertencentes ao Instituto de Fsica,

    originrios do Observatrio Central.40 Essa instituio iniciou suas atividades em 24 de

    janeiro de 1908. Nos anos 1960, a visitao pblica foi iniciada e, hoje, o observatrio

    aberto ao pblico duas vezes na semana. Sua coleo tpica de instituies voltadas

    para o estudo da Astronomia, apresentando instrumentos utilizados para a determinao

    da hora local, na cidade de Porto Alegre, em estudos de Sismologia e no mapeamento

    magntico do territrio; destacam-se um telescpio equatorial de 190 mm, um crculo

    meridiano de 75 mm, ambos fabricados por Gautier,41 e um crculo meridiano feito por

    Repsold.42 Desde 2006, o Mast desenvolve um projeto de preservao dessa coleo,

    38 Disponvel em . ltimo acesso em 06 nov. 2007. 39 Disponvel em . ltimo acesso em 06 nov. 2007. 40 Disponvel em . ltimo acesso em 06 nov. 2007. 41 Trata-se de Paul Ferdinand Gautier (1842-1909), fabricante francs que, na segunda metade do sculo XIX, juntamente com a famlia Brunner, tornou-se o representante mais importante da indstria francesa de preciso. 42 A Casa Repsold, fabricante de instrumentos cientficos, foi criada por Johann Georg Repsold (1771-1830). Aps seu falecimento, seus filhos Georg e Adolf e, posteriormente, seus netos Johann, Adolf e Oskar deram continuidade aos trabalhos da casa. Repsold introduziu melhoramentos fundamentais no projeto dos crculos meridianos.

  • em parceria com o Observatrio Central, que dever inaugurar uma exposio

    comemorativa em 2008, utilizando grande parte desses objetos.

    Um museu de interesse nessa mesma universidade o Museu de Informtica,43 cujo

    acervo, de mais de cem peas, conta com rguas de clculo, bacos, equipamentos de

    hardware (computadores e seus acessrios), meios de armazenamento de dados (discos,

    fitas, cartes etc.), livros, revistas, catlogos e folhetos. O museu foi criado na dcada

    de 1990, dentro do Instituto de Informtica da UFRGS, e, situado na biblioteca desse

    instituto, est aberto a visitao.

    Os exemplos aqui apresentados podem ser considerados como a ponta de um iceberg a

    ser desvendado. Outras colees de objetos que so representativos do ensino e do

    desenvolvimento cientfico brasileiro devem estar guardadas ou ameaadas de descarte,

    em outros campi universitrios e instituies relacionados. Um desses casos j

    identificado a Universidade Federal da Bahia (UFBA), na cidade de Salvador. Ali, na

    Escola Politcnica, existem algumas colees que so de interesse e que sero objeto de

    avaliao em visita prxima ao local.

    A partir desse panorama sucinto sobre as colees de objetos de Cincia e Tecnologia,

    apresentaremos, a seguir, um outro breve panorama, agora relativo ao patrimnio

    gentico no Brasil. O tema, de desenvolvimento muito recente, engloba um conjunto de

    colees cientficas biolgicas que consideramos parte do patrimnio cientfico e que

    pouco discutido.

    4. O patrimnio gentico no Brasil

    Aqui veremos, inicialmente, o seqenciamento de cartas, documentos e convenes que

    versam sobre o patrimnio ambiental, uma vez que a partir do conceito desse tipo de

    patrimnio que se inicia a discusso sobre patrimnio gentico. Em seguida, veremos o

    caminho da patrimonializao gentica no Brasil, com seus conceitos, instrumentos de

    preservao e, principalmente, suas controvrsias. Nosso ponto de partida ser a

    Declarao de Estocolmo44 ou Declarao sobre o Ambiente Humano, produto da

    Conferncia Geral das Naes Unidas, realizada em junho de 1972.

    A Declarao de Estocolmo versa sobre a importncia da preservao do meio ambiente

    para geraes futuras. Destacam-se entre os 23 princpios da declarao menes

    poluio, ao esgotamento de recursos no renovveis e ao fomento de pesquisas

    43 Disponvel em . ltimo acesso em 06 nov. 2007. 44 CURY, Isabelle (org.). Cartas patrimoniais. 3 ed. aum. Rio de Janeiro: Iphan, 2004.

  • desenvolvimentistas para questes ambientais. No entanto, apesar de redigida em um

    perodo de guerra e logo aps as sucessivas disputas de petrleo no Oriente Mdio, a

    declarao no se refere preservao ambiental em momentos de conflito,45 apesar do

    ineditismo do seu escopo, preocupado com pases em desenvolvimento e com o legado

    s geraes futuras.

    Meses depois, na Conveno sobre a Salvaguarda do Patrimnio Mundial, Cultural e

    Natural, que ocorreu em Paris em novembro de 1972, define-se o que patrimnio

    natural. Citamos aqui a definio consagrada na conveno:

    Art. 2 Para os fins da presente conveno sero considerados como patrimnio natural: Os monumentos naturais constitudos por formaes fsicas e

    biolgicas ou por grupos de tais formaes, que tenham valor universal excepcional do ponto de vista esttico ou cientfico;

    As formaes geolgicas e fisiogrficas e as zonas nitidamente delimitadas que constituam o habitat de espcies animais e vegetais ameaadas e que tenham valor universal excepcional do ponto de vista da cincia ou da conservao;

    Os stios naturais ou zonas naturais estritamente delimitada, que tenham valor universal excepcional do ponto de vista da Cincia, da conservao ou da beleza natural.46

    Na Declarao de Nairbi,47 elaborada durante a Conferncia das Naes Unidas sobre

    Ambiente Humano (1982), comemorativa dos dez anos da Declarao de Estocolmo,

    fica claro que poucos avanos foram realizados a partir dessa progressista declarao de

    1972. Se o documento feito na Sucia denunciava a fragilidade do planeta, a Declarao

    de Nairbi evidenciava que os resultados da conveno de 1972 eram pouco

    satisfatrios e que o esgotamento dos recursos naturais representava um desafio para a

    preservao do planeta. Temas como a diminuio da camada de oznio e chuva cida

    so mencionados no documento como conseqncias do desequilibro ambiental, assim

    como a poluio martima e o aumento do dixido de carbono na atmosfera. Tambm

    encontramos na declarao o desejo de uma atmosfera de paz, livre das ameaas de

    guerra, especialmente da ameaa nuclear.48

    45 Essa questo s ser vista 20 anos mais tarde na Conferencia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento: Princpio 25: A paz, o desenvolvimento e a proteo do meio ambiente so interdependentes e inseparveis (Idem. p. 317). 46 Idem. p. 179. 47 Idem. p. 259. 48 Em 1986, o mundo presencia o acidente na usina nuclear de Chernobyl, na Ucrnia.

  • O evento seguinte, no que se refere proteo ambiental, acontece em terras brasileiras.

    Com base na Declarao de Estocolmo e a partir da convocao da Assemblia Geral de

    1989,49 ocorre no Rio de Janeiro, em 1992, a Conferncia das Naes Unidas sobre

    Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), mais conhecida como Rio 92. A

    reunio contou com mais de 170 pases e resultou nos seguintes acordos: a Declarao

    do Rio, a Conveno de Mudanas Climticas, a Declarao de Princpios sobre o Uso

    das Florestas, a Agenda 21 e a Conveno de Diversidade Biolgica (CDB).

    A Carta do Rio, ou Declarao do Rio,50 reafirmava a importncia do desenvolvimento

    sustentvel, apontada antes pelo relatrio Nosso Futuro Comum51 e reconhecia a

    importncia das populaes indgenas e do saber local. Vale aqui citar trecho da Carta

    do Rio, pois veremos que o princpio nele contido aparecer fortemente nas questes

    que concernem ao patrimnio gentico, nosso foco de interesse.

    As populaes indgenas e suas comunidades, assim como outras comunidades locais, desempenham um papel fundamental no planejamento do meio ambiente e no desenvolvimento, devido aos seus conhecimentos e prticas tradicionais. Os Estados deveriam reconhecer e aprovar devidamente sua identidade, cultura e interesses e tornar possvel sua participao efetiva na obteno do desenvolvimento sustentvel.52

    Foi reconhecido o saber autctone, mas no era mencionado o termo patrimnio

    gentico ao longo do documento, que ter seu lugar na Conveno de Diversidade

    Biolgica, a qual ser vista posteriormente neste texto.

    No que concerne Conveno de Mudanas Climticas, o objetivo era estabilizar a

    emisso de gases sobre a Terra, o que ser reafirmado no Protocolo de Quioto, discutido

    em 1997 e ratificado em 2005. Quanto Declarao de Princpios sobre o Uso de

    Florestas, sua orientao principal era garantir a soberania dos Estados para uso

    sustentvel de suas florestas.

    A Agenda 21 foi um dos mais importantes documentos produzidos durante a Rio 92.

    Trata-se de um plano de ao a ser adotado mundial e localmente, por organizaes da 49 Os antecedentes da conferncia do Rio esto presentes no prembulo da Agenda 21, que faz meno a uma assemblia convocatria, tal como podemos observar: Essa associao mundial deve partir das premissas da resoluo 44/228 da Assemblia Geral de 22 de dezembro de 1989, adotada quando as naes do mundo convocaram a Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, e da aceitao da necessidade de se adotar uma abordagem equilibrada e integrada das questes relativas a meio ambiente e desenvolvimento. Disponvel em . ltimo acesso em 5 out. 2007. 50 CURY, Isabelle. Cartas... Op. cit. p. 311. 51 Em 1987, foi produzido o Relatrio Nosso Futuro Comum, ou Relatrio Brudtland, quando definido o que desenvolvimento sustentvel. 52 CURY, Isabelle. Cartas... Op. cit. p. 316.

  • Organizao da Naes Unidas (ONU), governos e sociedade civil, para um

    desenvolvimento sustentvel mundial. Cabe dizer que cada pas signatrio da Agenda

    21 tem sua Agenda 21 Nacional e Local. Dentre os 40 captulos da Agenda 21 Global, o

    tema referente a biotecnologia e sustentabilidade est presente no Captulo 16, sobre

    Manejo Ambientalmente Saudvel e Biotecnologia. Os princpios que foram acordados

    internacionalmente afirmavam a importncia de aplicar o manejo ambientalmente

    saudvel da biotecnologia. Afirma-se tambm no documento que a biotecnologia

    poderia contribuir para a conservao de recursos, por meio de tcnicas ex-situ, ou seja,

    a conservao de componentes da diversidade biolgica fora de seus habitats

    naturais.53

    Vejamos agora como o patrimnio gentico se situa na Conveno de Diversidade

    Biolgica, a CDB (1992). Vrios aspectos interessantes e que se relacionam com o tema

    devem ser destacados da conveno, a saber: o reconhecimento da soberania dos

    Estados; um dicionrio dos termos usados na conveno e o reconhecimento do saber

    local. Em relao ao reconhecimento da soberania dos pases sobre seu patrimnio

    gentico, buscava-se preservar a biodiversidade de pases em desenvolvimento, frente

    aos pases detentores de tecnologia, como podemos verificar:

    Artigo 15. Acesso a Recursos Genticos

    1. Em reconhecimento dos direitos soberanos dos Estados sobre seus recursos naturais, a autoridade para determinar o acesso a recursos genticos pertence aos governos nacionais e est sujeita legislao nacional.54

    Outro ponto importante da Conveno o que destacam Zanirato e Ribeiro:

    Um ponto alto da Conveno sobre Diversidade Biolgica ocorreu quando se buscaram polticas destinadas a garantir os direitos dos povos indgenas e das populaes tradicionais sobre os recursos genticos, haja vista a estreita relao entre a preservao desses recursos e os conhecimentos, costumes e tradies dessas populaes. Foi nesse contexto que emergiu uma outra compreenso do patrimnio natural, com o reconhecimento da importncia dos conhecimentos tradicionais para a conservao e o uso sustentvel da diversidade biolgica.55

    53 BRASIL. Conveno sobre Diversidade Biolgica, 1992. Disponvel em . ltimo acesso em 26 nov. 2006. 54 Ibidem. 55 ZANIRATO, Silvia Helena; RIBEIRO, Wagner Costa. Patrimnio cultural: a percepo da natureza como bem no renovvel. Revista Brasileira de Histria, So Paulo, v. 26, n. 51, p. 251-262, 2006.

  • Reconhecendo que o saber local e o saber cientfico fazem parte de um debate sobre a

    construo do conhecimento e sobre o que diferencia o local do cientfico, como

    podemos ver em Murdoch e Clark,56 a conveno bastante progressista. Reafirma a

    importncia da garantia dos direitos dos povos indgenas e das populaes tradicionais,

    reconhecendo o saber local e sua importncia para a sustentabilidade, uma vez que

    lidam com patrimnio em condies in-situ,57 de forma harmnica e sustentvel, por

    centenas de anos, garantindo a preservao de espcies para geraes presentes e

    futuras.

    Como nosso foco de estudo se relaciona ao patrimnio ex-situ, vale aqui ilustrar como

    se situa a conservao ex-situ na utilizao dos termos da CDB.

    Cada parte contratante deve, na medida do possvel e conforme o caso, e principalmente a fim de complementar medidas de conservao in-situ: a) Adotar medidas para a conservao ex-situ de componentes da diversidade biolgica, de preferncia no pas de origem desses componentes; b) Estabelecer e manter instalaes para a conservao ex-situ e pesquisa de vegetais, animais e microorganismos, de preferncia no pas de origem dos recursos genticos; c) Adotar medidas para a recuperao e regenerao de espcies ameaadas e para sua reintroduo em seu habitat natural em condies adequadas; d) Regulamentar e administrar a coleta de recursos biolgicos de habitats naturais com a finalidade de conservao ex-situ de maneira a no ameaar ecossistemas e populaes in-situ de espcies, exceto quando forem necessrias medidas temporrias especiais ex-situ de acordo com a alnea (c) acima; e) Cooperar com o aporte de apoio financeiro e de outra natureza para a conservao ex-situ a que se referem as alneas (a) a (d) acima; e com o estabelecimento e a manuteno de instalaes de conservao ex-situ em pases em desenvolvimento.58

    Posta a definio do termo ex-situ, que nos interessa por englobar as colees

    cientficas, destacamos alguns artigos da CDB, a saber: o artigo 15, referente ao Acesso

    dos Recursos Genticos, que define claramente a autonomia das partes assinantes no

    que concerne o acesso ao patrimnio gentico; o artigo 16, que relativo ao Acesso

    Tecnologia e Transferncia de Tecnologia; e o artigo 18, alusivo Cooperao Tcnica

    e Cientfica. Citamos aqui esses artigos especificamente porque eles foram de grande

    56 MURDOCH, Jonathan; CLARCK, Judy. Sustainable knowledge. Geoforum, Londres, v. 25, n. 2, p. 115-132, l994. 57 A expresso condies in-situ significa as condies em que recursos genticos existem em ecossistemas e habitas naturais e, no caso de espcies domesticadas ou cultivadas, nos meios onde tenham desenvolvido suas propriedades caractersticas. Ver BRASIL. Conveno... Op. cit. 58 Idem nota 52.

  • importncia na formulao de uma medida provisria do governo brasileiro a respeito

    do patrimnio gentico, como veremos a seguir.

    4.1. O advento do Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico

    A patrimonializao gentica no Brasil apresenta um caminho similar ao da

    decodificao dos milhares de genes do Projeto Genoma Humano.59 Veremos a seguir

    alguns desafios, os caminhos desse percurso e a elucidao de algumas questes.

    Quando pensamos em patrimnio gentico, a imagem mais freqente associada ao

    termo a dupla hlice bailarina de DNA,60 de Watson, Crick e Wilkens.61 No entanto, o

    conceito de patrimnio gentico no restrito, como podemos ver em Caldeira:

    O conceito de patrimnio gentico considera no somente genes e molculas de DNA/RNA, mas tambm compostos bioqumicos, biomolculas sintetizadas a partir dos genes, produzidas pelo metabolismo, isoladas ou presentes em extratos dos seres vivos ou mortos, assim como a informao presente nessas molculas. Alm disso, nosso patrimnio gentico envolve tambm cultivares, linhagens, raas e organismos utilizados como reatores bioqumicos em processos industriais, tratamento de resduos ou controle biolgico.62

    No Brasil, de forma vanguardista, anos antes da CDB, o reconhecimento da importncia

    do patrimnio gentico est presente na constituio de 1988, no captulo concernente

    ao meio ambiente, como podemos verificar:

    Art. 225. Todos tm direito ao meio ambiente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Pblico e coletividade o dever de defend-lo e preserv-lo para as presentes e futuras geraes. 1 Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Pblico:

    59 Iniciado na dcada de 90, com o objetivo de determinar a ordem ou seqncia das bases do nosso DNA, assim como criar uma base de dados para pesquisas. Liderado por Watson foi um projeto de entidades pblicas, com vrios pases participantes, entre eles o Brasil. Paralelamente, a empresa norte-americana Celera anuncia suas conquistas no campo do mapeamento gentico com conquistas simultneas s do grupo do Projeto Genoma Humano. 60 DNA, em ingls deoxyribonucleic acid, em portugus, cido desoxirribonucleico, ou ADN. 61 A estrutura tridimensional da molcula de DNA a dupla hlice foi descoberta em 1953, por Francis Crick, James Watson e Maurice Wilkins, quando trabalhavam em Cambridge, no Reino Unido. Eles construram modelos de cartolina e arame para entender e descrever o DNA, e o resultado foi publicado em duas pginas da revista Nature, em 25 de abril de 1953, h pouco mais de 50 anos (A descoberta do DNA e o Projeto Genoma. Rev. Assoc. Md. Bras., So Paulo, v. 51, n. 1, 2005. Disponvel em . ltimo acesso em 8 out. 2007. 62 CALDEIRA, Maria Teresa. O papel da instituio fiel depositria e critrios para o seu credenciamento. In: Simpsio Nacional de Colees Cientficas I, 2005, Rio de Janeiro. Anais. Rio de Janeiro, IOC, 2005. p. 29-32.

  • II preservar a diversidade e a integridade do patrimnio gentico do Pas e fiscalizar as entidades dedicadas pesquisa e manipulao de material gentico.63

    No entanto, apenas posteriormente, em 2001, foi definida uma legislao mais

    especfica, que define os papis das instituies de salvaguarda do patrimnio gentico

    nacional.

    Explicitada a importncia da CDB, apresentaremos um de seus desdobramentos, a

    Medida Provisria n. 2.186-16/0164( INCLUI UMA NOVA NOTA AQUI) e o Decreto

    n. 3945/01,65 que a regulamentam. A MP cria, no mbito do Ministrio do Meio

    Ambiente (MMA), o Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico (CGPG). Com isso,

    novas obrigaes e procedimentos foram adotados no que se refere ao acesso e controle

    do patrimnio gentico nacional. Segundo a definio da MP, patrimnio gentico :

    Informao de origem gentica, contida em amostras do todo ou de parte de espcime vegetal, fngico, microbiano ou animal, na forma de molculas e substncias provenientes do metabolismo destes seres vivos e de extratos obtidos destes organismos vivos ou mortos, encontrados em condies in-situ, inclusive domesticados, ou mantidos em colees ex-situ, desde que coletados em condies in-situ no territrio nacional, na plataforma continental ou na zona econmica exclusiva.61 (REFERE-SE A QUAL NOTA EXATAMENTE? ESTA EST REPETIDA.) REMETE NOTA 61. NO REMETE. TAMBM NO TEM NADA A VER.DESCULPE ME ENGANEI, NO REVI A NOTA, FIQUEI COM ESSE NMERO NA CABEA QUE SE REFERE A UMA OUTRA VERSO DO TRABALHO, ESSA NOTA REMETE NOTA.63 (que se perdeu em uma das verses)

    Responsvel pela manuteno do conhecimento tradicional do patrimnio gentico e

    pelo acesso tecnologia para sua conservao, bem como para sua utilizao, o

    Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico composto por representantes de

    instituies pblicas, como a Fundao Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Empresa Brasileira

    de Pesquisa Agropecuria (Embrapa) e o Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos

    Naturais (Ibama), de ministrios (MCT e MinC, entre outros) e de representantes da 63 BRASIL. Constituio (1988). Op. cit. 64 _______. Medida Provisria no 2.186-16, de 23 de agosto de 2001. Disponvel em http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/fraWeb?OpenFrameSet&Frame=frmWeb2&

    Src=%2Flegisla%2Flegislacao.nsf%2FViw_Identificacao%2Fmpv%25202.186-16-2001%3FOpenDocument%26AutoFramed. ltimo acesso em 15 set. 2007. 65 _______. Decreto n. 3.945, de 28 de setembro de 2001. Define a composio do Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico e estabelece as normas para o seu funcionamento, mediante a regulamentao dos arts. 10, 11, 12, 14, 15, 16, 18 e 19 da Medida Provisria n. 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, que dispe sobre o acesso ao patrimnio gentico, a proteo e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartio de benefcios e o acesso tecnologia e transferncia de tecnologia para sua conservao e utilizao, e d outras providncias. Disponvel em . ltimo acesso em 15 set. 2007.

    Cdigo de campo alterado

    Formatado

    Formatado

    Excludo: 6

  • sociedade civil, como a SBPC. Est organizado nas seguintes cmaras temticas:

    Conhecimento Tradicional Associado, Repartio de Benefcios, Procedimentos

    Administrativos e de Patrimnio Gentico mantido em Coleo Ex-situ. Na pgina

    institucional do Ministrio do Meio Ambiente66 da internet, na rea que se define quais

    so as Cmaras Temticas, encontramos os seguintes trechos da CDB: (...) proteger e

    encorajar a utilizao costumeira dos recursos biolgicos de acordo com prticas

    culturais tradicionais compatveis com as exigncias de conservao ou utilizao

    sustentvel (artigo 10 c);67 e (...) apoiar populaes locais na elaborao e aplicao

    de medidas corretivas em reas degradadas onde a diversidade biolgica tenha sido

    reduzida (artigo 10 d).68

    Os trechos acima no s determinam as misses das cmaras temticas, como tambm

    reafirmam a importncia da CDB.

    Quando nos detemos em uma leitura cuidadosa da extensa MP, vemos que ela

    bastante complexa no que se refere coleta e ao uso do patrimnio gentico.

    Percebemos tambm que, durante a gesto da ministra Marina da Silva (de 2003 at a

    presente data), a MP vem sendo revista e muitos decretos tem sido inseridos, tornando-a

    bastante dinmica.

    Vale dizer que alguns conceitos na MP so dbios e confusos, por exemplo: os

    conceitos de acesso e de remessa. Vejamos o primeiro exemplo: o termo usado na MP

    o de obteno e foi compreendido por muitos pesquisadores como coleta. Veremos a

    seguir um trecho do captulo II, das definies dos termos: IV acesso ao patrimnio

    gentico: obteno de amostra de componente do patrimnio gentico para fins de

    pesquisa cientfica, desenvolvimento tecnolgico ou bioprospeco, visando a sua

    aplicao industrial ou de outra natureza.69 No que se refere remessa, o termo foi

    compreendido por transporte: X Autorizao de Acesso e de Remessa: documento

    que permite, sob condies especficas, o acesso amostra de componente do

    66 Disponvel em . ltimo acesso em 2 nov. 2007. 67 BRASIL. Conveno... Op. cit. 68 Ibidem. 69 BRASIL. Medida Provisria n. 2.186-16, de 23 de agosto de 2001. Regulamenta o inciso II do 1o e o 4o do art. 225 da Constituio, os arts. 1o, 8o, alnea j, 10, alnea c, 15 e 16, alneas 3 e 4 da Conveno sobre Diversidade Biolgica, dispe sobre o acesso ao patrimnio gentico, a proteo e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartio de benefcios e o acesso tecnologia e transferncia de tecnologia para sua conservao e utilizao, e d outras providncias. Disponvel em . ltimo acesso em 7 nov. de 2007.

  • patrimnio gentico e sua remessa instituio destinatria e o acesso a conhecimento

    tradicional associado.70

    Devido complexidade dos termos, foram criadas, entre 2003 e 2005, cinco orientaes

    tcnicas, sendo a primeira71 a que Esclarece os conceitos de acesso e de remessa de

    amostras de componentes do patrimnio gentico, datada de 24/09/2003. Veremos o

    esclarecimento dado pela orientao tcnica no que diz respeito a acesso e coleta.

    O CONSELHO DE GESTO DO PATRIMNIO GENTICO, no uso das competncias que lhe foram conferidas pela Medida Provisria n 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, e pelo Decreto n 3.945, de 28 de setembro de 2001, e tendo em vista o disposto no art. 13, inciso IV, de seu Regimento Interno, considerando a necessidade de se esclarecerem expresses cuja indeterminao vm dificultando a exegese e aplicao da Medida Provisria n 2.186-16, de 2001, resolve: Art. 1 Para fins de aplicao do disposto no art. 7, inciso IV, da Medida Provisria n 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, entende-se por obteno de amostra de componente do patrimnio gentico a atividade realizada sobre o patrimnio gentico com o objetivo de isolar, identificar ou utilizar informao de origem gentica ou molculas e substncias provenientes do metabolismo dos seres vivos e de extratos obtidos destes organismos. Art. 2 Para fins de aplicao do disposto na Medida Provisria no 2.186-16, de 2001, e demais atos normativos dela decorrentes, entende-se por remessa: I a remessa propriamente dita: envio, permanente ou temporrio, de amostra de componente do patrimnio gentico, com a finalidade de acesso para pesquisa cientfica, bioprospeco ou desenvolvimento tecnolgico, no qual a responsabilidade pela amostra transfira-se da instituio remetente para a instituio destinatria; II o transporte: envio de amostra de componente do patrimnio gentico com a finalidade de acesso para pesquisa cientfica, bioprospeco ou desenvolvimento tecnolgico, no qual a responsabilidade pela amostra no se transfira da instituio remetente para a instituio destinatria.72

    Pode haver acesso ao patrimnio gentico sem coleta, como nas colees ex-situ. A

    coleta visa obteno de material biolgico, j o acesso identifica e utiliza as

    informaes contidas nos organismos coletados. Aps a compreenso dos termos, fica

    mais claro quais as instituies responsveis para cada fim. Se a finalidade do acesso for

    pesquisa cientfica, a chancela concedida pelo Ibama. Se o objetivo tiver fins

    econmicos, a autorizao concedida pelo Conselho de Gesto do Patrimnio

    Gentico (CGPG). Vale dizer tambm que instituies que realizam coleta de material

    para fins de pesquisa sem envolvimento de acesso ao patrimnio gentico, por exemplo,

    70 BRASIL. Orientao Tcnica n. 1. Ministrio do Meio Ambiente, Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico. 24 de setembro de 2003. Disponvel em . ltimo acesso em 5 nov. de 2007. 71 Ibidem. 72 Ibidem.

  • a taxonomia clssica, podem continuar suas coletas e depsitos, como vm fazendo h

    dcadas em museus, herbrios e laboratrios de universidades.

    Outra questo problemtica a complexidade acerca da anuncia de coleta em terras

    indgenas, ribeirinhas ou comunidades quilombolas. Se a finalidade for pesquisa

    cientfica, no necessria a anuncia prvia das comunidades, contudo isso no

    dispensa esclarecimentos sobre a coleta e a autorizao informal dos residentes do local.

    De difcil compreenso, a MP fomentou a criao de cartilhas73 para pesquisadores e

    para populaes indgenas e comunidades locais, sobre acesso e remessa de amostras do

    patrimnio gentico.74 Na leitura da cartilha elaborada pelo Ibama, verificamos que as

    autorizaes para acesso, coleta, remessa e transporte do patrimnio gentico se

    alternam entre o Ibama e o CGPG.

    4.2. Instituies fiis depositrias

    Outro importante passo, no que se refere ao patrimnio gentico, dado a partir da MP,

    o credenciamento de instituies fiis depositrias, como vemos a seguir.

    O credenciamento de fiel depositria tem como objetivo conservar o material testemunho (subamostras) proveniente das atividades de acesso ao componente do patrimnio gentico, garantir identificao taxonmica correta em instituio reconhecida pelo governo brasileiro e permitir o rastreamento do patrimnio gentico acessado por instituio devidamente autorizada.75

    Citaremos aqui o Artigo 11 do Decreto-lei de setembro de 2001:

    Art. 11. Para o credenciamento de instituio pblica nacional de pesquisa e desenvolvimento como fiel depositria de amostra de componente do Patrimnio Gentico de que trata a alnea f do inciso IV do art. 11, da Medida Provisria no 2.186-16, de 2001, o Conselho de Gesto dever receber solicitao que atenda, pelo menos, os seguintes requisitos: I comprovao da sua atuao em pesquisa e desenvolvimento nas reas biolgicas e afins; II indicao da infra-estrutura disponvel e capacidade para conservao, em condies ex-situ, de amostras de componentes do Patrimnio Gentico; III comprovao da capacidade da equipe tcnica responsvel pelas atividades de conservao;

    73 O Calendrio Informativo 2006 foi lanado no dia 3 de junho, em Recife, na oficina Plantas Medicinais: polticas de acesso biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais, visando, com uma linguagem acessvel, apresentar o que a legislao brasileira estabelece sobre o assunto. 74 Cartilha elaborada pelo Ministrio de Meio Ambiente. Disponvel em . ltimo acesso em 10 jun. 2007. 75 CALDEIRA, Maria Teresa. O papel... Op. cit.

  • IV descrio da metodologia e material empregado para a conservao de espcies sobre as quais a instituio assumir responsabilidade na qualidade de fiel depositria; V indicao da disponibilidade oramentria para manuteno das colees.76

    A solicitao do credenciamento feita junto ao Ministrio do Meio Ambiente e os

    formulrios a serem preenchidos esto disponveis na internet e devem ser

    encaminhados ao Departamento de Patrimnio Gentico. As primeiras deliberaes que

    credenciam instituies fiis depositrias so de 2002.77 O formulrio, disponvel na

    pgina oficial do MMA, direcionado s instituies; no entanto, nem todas as colees

    de uma instituio so fiis depositrias de amostras do patrimnio gentico. Por outro

    lado, esse credenciamento temporrio, o que nos permite depreender que a noo de

    patrimnio aqui utilizada diversa da que consideramos para a preservao em prol das

    futuras geraes.

    Atualmente, encontramos no Brasil cerca de 180 fiis depositrios do que constitui o

    patrimnio gentico nacional, entre instituies e suas colees, distribudas em todas as

    regies do pas e concentradas na regio Sudeste. So herbrios, institutos de

    Agronomia, departamentos de universidades e museus os responsveis pela guarda e

    manuteno de colees cientificas, que propiciam o estudo de parte da nossa

    diversidade.

    J est bem difundida a noo de que o desenvolvimento deve ser feito de forma

    sustentvel. Para isso, preciso informaes detalhadas sobre os componentes da

    biodiversidade. Nesse sentido, reforamos aqui a importncia das colees cientficas, o

    que implica polticas de coleta, conservao e sistematizao de informaes, na

    verdade parte de uma poltica de proteo em amplo espectro. Reforamos, no entanto,

    que os moldes atuais de preservao desse patrimnio necessitam complementao,

    utilizando, para tal, a viso de patrimnio relacionada aos bens culturais em geral.

    Consideraes finais

    76 BRASIL. Decreto n. 3.945, de 28 de setembro de 2001. Define a composio do Conselho de Gesto do Patrimnio Gentico e estabelece as normas para o seu funcionamento, mediante a regulamentao dos arts. 10, 11, 12, 14, 15, 16, 18 e 19 da Medida Provisria n. 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, que dispe sobre o acesso ao patrimnio gentico, a proteo e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartio de benefcios e o acesso tecnologia e transferncia de tecnologia para sua conservao e utilizao, e d outras providncias. Disponvel em . ltimo acesso em 15 set. de 2006. 77 As primeiras instituies credenciadas so o Museu Paraense Emilio Goeldi e o Museu de Zoologia da Universidade de So Paulo, em 8 de julho de 2002.

  • A partir do panorama apresentado, percebe-se a necessidade de atuao imediata, e a

    longo prazo, para possibilitar a preservao do patrimnio de C&T. O que j foi perdido

    no tem salvao, mas itens que esto sendo gerados, mediante uma poltica adequada,

    podero constituir material inestimvel a ser repassado s geraes futuras.

    imprescindvel um entendimento amplo entre as diversas instncias do poder pblico

    envolvidas de forma que as diversas vises sobre o tema possam ser harmonizadas e

    mesmo esclarecidos alguns pontos, que hoje ainda permanecem obscuros entre os

    profissionais da Cincia e da Tecnologia.

    A situao do patrimnio gentico diversa. Fica claro, pelo exposto, que esse

    patrimnio, pelo grande interesse econmico e cientfico relacionado a ele, possui toda

    uma legislao que regulamenta a sua preservao. Vrios ministrios esto envolvidos

    nessa discusso, mas o MMA, aparentemente, possui a tutela desse patrimnio, que em

    parte (ex-situ) de C&T. Um passo importante no processo de patrimonializao do

    material gentico para estudos cientficos seria fazer o tombamento daquelas colees,

    talvez usando como ponto de partida as colees fiis depositrias. Essa chancela no

    permanente e, portanto, no protege de forma adequada esse patrimnio. Sugere-se que,

    aps a certificao de uma coleo como fiel depositria, automaticamente seja iniciada

    a avaliao para seu possvel tombamento.

    Em ambos os casos, a viso de patrimnio preconizada pelos profissionais da rea da

    preservao muitos deles pertencentes ao Ministrio da Cultura, mas no

    exclusivamente precisa ser absorvida por outros profissionais que esto relacionados

    proteo patrimonial no pas. S assim poderemos desenvolver aes eficazes e

    focalizadas que sejam complementares, e no contraditrias.

    Algumas medidas poderiam ser propostas para minimizar o processo de perda de

    patrimnio de C&T em andamento. Uma delas seria identificar ou criar um rgo no

    MCT que fosse responsvel pela implementao de uma poltica de preservao em

    amplo espectro, que inclusse todas as tipologias desse patrimnio existentes. Esse

    rgo necessitaria ter o dever e a tarefa de centralizar as aes de proteo e ser

    responsvel por isso, fiscalizando a atuao das instituies e a implementao da

    poltica de preservao a ser definida. Fundamental seria uma parceria estreita com as

    reas do Ministrio da Cultura relacionadas ao tema e que os profissionais, ou parte

    deles, que atuassem nessa nova instituio possussem conhecimento sobre a teoria da

    preservao e do patrimnio, alm de outros com experincia em acervos de C&T.

  • Acreditamos que, como instrumento de poltica de preservao, seria interessante criar

    um Livro de Tombo para o patrimnio de C&T, pois isso se constituiria em marco

    poltico a ser usado para estimular as instituies a desenvolver processos de proteo

    de seu patrimnio relacionado Cincia e Tecnologia.

    Quanto aos acervos, o que propomos seria a tutela partilhada. No caso do patrimnio de

    C&T em geral, seria partilhada pelo MCT e pelo MinC; no caso do patrimnio gentico,

    seria partilhada pelo MMA, MCT e MinC. Assim como nas diversas esferas de

    competncia do poder pblico (federal, estadual e municipal) nas quais os bens

    patrimoniais podem estar protegidos em vrios nveis , na proteo partilhada

    prevaleceria o instrumento de preservao mais protetor.

    Um desafio ainda maior do que os que aqui foram discutidos j est colocado para a

    preservao do patrimnio. Trata-se da memria digital. No caso da Cincia e da

    Tecnologia, o problema acentua-se de forma incomensurvel. Alm dos prprios

    arquivos digitais e das revistas eletrnicas, que contm, muitas vezes, resultados de

    pesquisa, ressaltamos a troca de mensagens realizada via correio eletrnico, que contm

    grande quantidade de informaes. A maior parte dessas mensagens eliminada

    periodicamente pelos autores/receptores. Essa troca de correspondncia documenta os

    processos de intercmbio de idias e, algumas vezes, constitui parte importante da

    histria do desenvolvimento cientfico e tecnolgico. Felizmente, existem grupos que

    esto se debruando sobre essa rea da preservao e esperamos que, em breve,

    possamos ter instrumentos socializados para orientar as aes em prol do salvamento

    desses documentos.