Ana María Matute - planeta.pt · Ana María Matute 14 Contudo, o sapateiro – segundo ouvi, já...

23
Ana María Matute A Torre de Vigia 4as A Torre de Vigia.indd 3 11/09/15 21:54:46

Transcript of Ana María Matute - planeta.pt · Ana María Matute 14 Contudo, o sapateiro – segundo ouvi, já...

Ana María Matute

A Torre de Vigia

4as A Torre de Vigia.indd 3 11/09/15 21:54:46

Ana María Matute

A Torre de Vigia

Sérgio CoelhoTradução

4as A Torre de Vigia.indd 5 11/09/15 21:54:50

Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito

1200 ‑242 Lisboa • Portugal

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor

© 1971, Ana María Matute © 2011, Planeta Manuscrito

Título original: La torre vigía

Revisão: Eulália Pyrrait

Paginação: Lígia Pinto

1.ª edição: Setembro de 2011

Depósito legal n.º 332 785/11

Impressão e acabamento: Guide – Artes Gráficas

ISbn: 978 ‑989 ‑657 ‑226‑6

www.planeta.pt

4as A Torre de Vigia.indd 6 11/09/15 21:54:52

Índice

Capítulo 1A árvore de fogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Capítulo 2Cavaleiro solitário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

Capítulo 3 O lagar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

Capítulo 4Justas bélicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

Capítulo 5Histórias de ogres . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

Capítulo 6Os deuses perdidos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103

Capítulo 7 O vento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121

Capítulo 8 O reverso do ódio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141

Capítulo 9Homens errantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179

Capítulo 10Cavaleiro sem regresso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201

4as A Torre de Vigia.indd 7 11/09/15 21:54:53

9

Capítulo 1

A árvore de fogo

Nasci num recanto do Grande Rio, durante as celebrações das vindimas. O meu pai, pequeno proprietário fundiário e de escassa educação, era já idoso quando vim ao mundo, pelo que, de início, suspeitei da autenticidade do nosso parentesco. No decurso dos meus primeiros anos de vida, vi-me vítima do seu desprezo, mas chegaria o dia em que as minhas feições, ao tornarem-se mais defi-nidas, acabariam por lhe devolver um reflexo da sua própria infân-cia: se os meus irmãos exibiam olhos pretos reluzentes e tez pálida, como a minha mãe, apresentava-me a seus olhos tão ruivo como ele o fora e de olhos tão azuis como os seus. Esqueceu-se então da suposta afronta, permitindo-me ser baptizado.

Remontava tão-somente ao meu avô a época em que o barão Mohl decidira enobrecer a nossa linhagem. Não o fez por motivos sentimentais ou por uma qualquer predilecção, mas pela grande urgência do senhor em questão em se apoderar de uma manada tão bem nutrida e amestrada, para além de poder passar a contar com pessoas capazes de lidarem com ela. Coisas de que, na verda-de, necessitava tanto quanto de ar para respirar.

Certo é que vivíamos num clima de incerteza e de ameaça; não tanto devido às ferozes incursões perpetradas nas nossas terras pelos povos equestres do outro lado do rio, o que não deixava de se verificar, mas, sobretudo, pela cobiça dos proprietários vizinhos.

4as A Torre de Vigia.indd 9 11/09/15 21:54:53

Ana María Matute

10

Tratava-se, na maior parte, de senhores de estirpe guerreira e tur- bulenta, tão ambiciosos como o próprio Mohl. O Grande Rei estava longe, tal como Roma, e, perante tal isolamento e distância, nenhum barão poderia evitar sonhar em converter os seus domí-nios num pequeno reino, se é que isso não se verificava já. Os seus maiores esforços focalizavam-se numa ânsia inesgotável por se arrebatarem mutuamente terras e vassalos. Sucediam-se inexorá-veis períodos de ultrajes e agressões, que prodigalizavam uns aos outros com maior frequência do que o bom senso aconselharia. De tudo isto, com facilidade se concluirá que a frágil paz em que vivíamos se via constantemente ameaçada. Desde que me lembro, fui testemunha e actor de um povo em alarme constante.

Comparado com o barão Mohl, ou com qualquer outro senhor abastado, o meu pai não passava de um homem pobre e sem ins-trução. Contudo, se fossem tidas em conta as choupanas dos cam-poneses que lhe pagavam tributo, o meu pai, bem vistas as coisas, não deixava de ser rico. Além do mais, também os seus hábitos eram faustosos.

Todas as noites, comíamos um ganso de tamanho médio, guar-necido com nabos ou outros acompanhamentos. O ganso em questão costumava ser repartido pelos seus filhos da seguinte for-ma: as coxas para os dois mais velhos, as asas para o mais novo. O repasto suscitava discussões constantes entre as três crianças, que defenderiam posições bem distintas acerca da equidade que se deveria verificar em tais situações e, assim, as divergências depressa assumiam proporções mais gravosas, atingindo limites perigosos. O meu pai divertia-se bastante com tais disputas e querelas; e ape-nas quando constatava que a sua prole estaria já demasiado exal-tada resolvia fazer ponto de ordem e pôr termo a tais litígios, afas-tando os filhos da mesa a bastonadas e a pontapés. Tão singulares regozijos eram, agora, a sua única distracção: com efeito, nos seus últimos anos, a sua vida tornara-se monótona e isenta de verda-deiros motivos de interesse. Os seus filhos eram ainda demasiado

4as A Torre de Vigia.indd 10 11/09/15 21:54:53

11

A Torre de Vigia

jovens para serem enviados para o castelo de Mohl, onde, segundo a tradição familiar, seriam instruídos e treinados para se tornarem verdadeiros cavaleiros. Além do mais, também não possuíam ainda a idade suficiente para, um dia, os entregar à custódia de um senhor vizinho, que lhes pudesse ministrar a sua primeira aprendizagem. Por outro lado, a idade avançada do meu pai e a sua progressiva perda de flexibilidade, agravada pela obesidade, impediam-no de participar nas escaramuças entre vizinhos: apenas de longe, vaci-lante sobre a sua montada e levantando a voz ao vento, chegava a presenciar uma ou outra manobra defensiva, improvisada pela sua ignorante milícia de camponeses armados. Tão deprimente espec-táculo, a que se acrescentava a ausência na família de um homem jovem e intrépido, levou-o a contratar – ou, pelo menos, a alojar em sua casa – velhos ex-mercenários, com a pele mais remendada do que os bombachos de um qualquer servo, guerreiros tristes e sem causa que erravam pelas margens do Grande Rio, aguardando que alguém se decidisse a confiar na sua experiência (já que a sua valentia ou eficácia não poderiam ser tidas em conta). Tais mise-ráveis e dispersos resquícios de glórias passadas – ou de deserções nunca confessadas, dado que de tudo se encontrava – chegaram a marcar presença em sua casa e a liderar a sua míngua tropa, na medida em que os longos Invernos de inactividade se lhe tornavam insuportáveis. E como carecia da inteligência necessária para dis-putar uma partida de damas sem a perder ou adormecer a meio, procurava, aqui e ali, uma qualquer distracção, mais ou menos divertida, capaz de animar a sua torpe existência. Ao que tudo indica, sovar os meus irmãos revelava-se a mais acessível.

Não obstante, beneficiara outrora de fama de valente, para além de temerário. Com frequência, ouvia a minha mãe referir-se com nostalgia a uma época em que o seu marido costumava aventu-rar-se para além das colinas, com vista à captura dos cavalos que, no decurso das refregas fronteiriças, perdiam os seus cavaleiros. Ao que parece, seria esse o segredo para que a nossa cavalariça apre-

4as A Torre de Vigia.indd 11 11/09/15 21:54:53

Ana María Matute

12

sentasse animais mais nutridos e de melhor qualidade do que a de senhores muito mais poderosos. No decurso de tais comentários, ouvi a minha mãe, e até algumas criadas, manifestarem a sua preo-cupação por detectarem em mim temeridade semelhante (ainda que, nele, parecesse agora longínqua) à que haviam reconhecido no meu progenitor. Ainda muito criança, a tal ponto que mal conse-guia correr sobre as pedras, e depois de ouvir tais augúrios acerca da minha pessoa, decidi observar o meu reflexo no regato, tentando descobrir na imagem devolvida sinais de tão violenta natureza. A água costumava, então, devolver-me o reflexo de um achatado ros-to de raposinho: o mesmo olhar reluzente, o mesmo assombro dos seus olhos nos meus. Quando o Sol me batia na nuca, caracóis de rebeldes mechas, quase brancas, alvoroçavam-se em torno da minha cabeça, como se se tratasse de um outro sol, ainda que menos apra-zível e mais revolto. Na sequência de tais contemplações, procurava o meu pai, vendo-o trotar sobre o seu cavalo, sem qualquer vestígio de galhardia ou de decência. Em tais ocasiões, a probabilidade de um dia me vir a assemelhar a ele fazia-me estremecer.

Na época do meu bisavô, a quinta familiar apresentava-se ladea-da por uma paliçada de madeira, qual muralha defensiva; junto à antiga moradia, foi também erigido um torreão, capaz de alojar o patriarca, a sua família e os seus pequenos dignitários e paraguer-reiros. Quando nasci, tudo permanecia igual: ninguém procedera a qualquer melhoria ou destruição (o que, dados os tempos em que agora vivíamos, se teria revelado suficiente). Entre as muitas qualidades que outrora o meu pai evidenciara, constava a de se ter revelado muito bom caçador. Assim, o chão do seu quarto, em vez de estar coberto de palha, apresentava-se revestido com todo o tipo de peles: das de cervo às de lobo, passando pelas de raposa e pelas de inúmeros predadores, para além das de muitos outros habitantes da floresta. E se isto acontecia com o chão, escusado será falar das paredes e do leito conjugal. O resto do torreão e das suas divisões apresentava-se bem mais lúgubre, despojado e sujo.

4as A Torre de Vigia.indd 12 11/09/15 21:54:53

13

A Torre de Vigia

No perímetro para além da quinta existia uma ferraria, cujo mestre forjou as armas do meu pai e as de todos os seus filhos; um moinho, um alpendre e uma oficina para curtume de peles, um estábulo, a cavalariça e algumas choupanas para alojar os encar-regados de todas estas incumbências. Entre os habitantes da nossa casa, aquele que mais se destacava era, sem margem para dúvida, um homem que o meu pai viria a nomear seu mestre de armas, e que desempenharia tais funções também para com os seus fi-lhos, enquanto ali vivemos. Surgiu, certo dia, com um dos tropéis de errantes que nos rondava: ex-guerreiro, derrotado na invencí-vel luta contra a velhice, linguarudo, astuto, trapaceiro (e talvez genuíno sobrevivente de glórias defuntas), foi a figura que mais se destacou na minha mais tenra infância. O seu rosto apresentava-se trespassado a meio por uma enorme cicatriz, o que lhe conferia um aspecto curioso, dado que os seus perfis, direito e esquerdo, pareciam pertencer a pessoas distintas. Terá sido por isso que, em determinada ocasião, e segundo contava, o terão considerado bru-xo; preparavam-se já para o queimar vivo quando, no derradei-ro instante, desceu dos céus o arcanjo Gabriel, resgatando-o das chamas perante o pasmo e veneração óbvios de todos quantos presenciaram tais maravilhas. Por vezes, como que estranhamente possuído, montava um dos cavalos das estepes do meu pai; depois, galopava exasperado, de lança em riste, rumo às dunas. Pareciam então formar um só corpo: o cavalo desvairado, que perdera o seu cavaleiro em batalha, e o decrépito ex-guerreiro, a quem apenas restava a ânsia de viver. Tais galopadas fantasmagóricas e frenéticas persistirão para sempre na minha memória.

O meu pai possuía também um rebanho de cabras bastante numeroso, recebendo de igual modo tributos relativos à lenha cortada pelos camponeses nas florestas da sua propriedade, a noroeste dos prados. Por sua iniciativa, criou-se na propriedade uma queijaria; ofereceu também alojamento e sustento a um sapateiro, com vista a calçar, daí em diante, as suas pouco poupadas hostes.

4as A Torre de Vigia.indd 13 11/09/15 21:54:54

Ana María Matute

14

Contudo, o sapateiro – segundo ouvi, já farto de remendar biquei-ras – faleceria antes de eu completar oito anos. Desde então, mais ninguém se ocuparia de tais encargos. Para além das botas de pele de cabra, dos ásperos tecidos fiados pela minha mãe e pelas mu-lheres que lhe prestavam assistência, dos tachos e do mobiliário, qualquer objecto ou tecido, tanto para vestir como para adornar a casa, revelava-se tão raro quanto exorbitante.

Para isso, contribuía sobremaneira a escassa simpatia com que o meu pai contemplava os mercadores e as suas caravanas. Em abono da verdade, diga-se que estes evitavam atravessar as nos-sas terras: com efeito, existia a suspeita de que o meu pai protegia grupos de salteadores, para, depois de estes despojarem os mer-cadores, com eles repartir o botim. Ou então, ordenava aos seus homens que lhes voltassem as carroças, dado que tudo o que fosse derramado em propriedade sua passava a ser considerado seu per-tence. Assim, tanto quanto me pude aperceber, as pessoas estavam bastante convencidas de que os famosos salteadores de carava-nas mais não eram do que a própria e singular tropa de ex-heróis desafortunados que o meu pai mantinha. De dia para dia, as roupas desgastavam-se e rompiam-se, esgaçavam e acabavam por ficar inutilizáveis: nenhuma peça de vestuário era remendada ou subs-tituída. Assim, as nossas vidas decorriam na mais extrema escassez e abandono.

Tais severidades e sofrimentos poderão justificar o ar amargu-rado da minha mãe, a frieza dos seus lábios sempre franzidos, a viperina fluidez da sua língua. Além do mais, e na maior parte do tempo, o meu pai vivia enredado numa agitada – ainda que letár-gica, nos seus últimos dias – promiscuidade com algumas jovens aldeãs, com quem gostava de se distrair. Assim, não deixava à mi-nha mãe, sempre muito criteriosa em tais assuntos, outro remédio senão ausentar-se com frequência tanto da sua mesa como do seu leito. Deste modo, para não ter de suportar tais companhias, ela acabou por acomodar o melhor que soube uma pequena divisão,

4as A Torre de Vigia.indd 14 11/09/15 21:54:54

15

A Torre de Vigia

nela se refugiando com as suas rocas e com as mulheres de que costumava rodear-se.

Contudo, todas estas coisas surgem bastante confusas na me-mória da minha tenra infância. Não poderia asseverar que ocorre-ram tal como as conto, sendo mais correcto dizer que foi assim que me foram contadas.

Tão grande era a distância, tanto em anos quanto em natureza, que me afastou da minha família e de todas estas gentes.

e

Era muito novo quando os meus irmãos partiram para o caste-lo de Mohl, e apenas me recordo deles como três tenebrosos cava-leiros, que costumavam galopar ao longo do Grande Rio. Se acaso se cruzavam comigo, contemplavam-me com pontapés, insultos e cuspidelas, pelo que cedo me fui apercebendo dos seus reais sen-timentos. Soube, mais tarde, que estavam a ser treinados para se tornarem nobres guerreiros e, se o viessem a merecer, quando che-gada a devida altura, virem a ser armados cavaleiros pelo próprio barão Mohl. «Na devida altura», costumava dizer-me a minha mãe, «também tu serás contemplado com idênticos destino e sorte.»

Mencionei já quase tudo a respeito da nossa casa e quinta, con-tudo, não referi que os mais valiosos bens das nossas propriedades eram as suas vinhas. Delas se produzia um vinho com uma tez entre o rosa e o dourado. O actual barão Mohl sentia por tal vinho fraqueza idêntica à dos seus antecessores, e, pelo Natal, o meu pai via-se obrigado a entregar-lhe um terço da sua colheita. Tratava-se de um direito a que nenhum Mohl alguma vez renunciou, tanto quanto saiba. Para além do seu poder, do carácter altivo e belicoso, das terras, dos homens e do temor dos seus semelhantes, os Mohl herdaram, invariavelmente e um após outro, idêntico apreço pelo sumo das nossas vinhas. Vindima após vindima, ouvia os mesmos ou semelhantes impropérios e maldições saírem dos lábios do meu

4as A Torre de Vigia.indd 15 11/09/15 21:54:54

Ana María Matute

16

pai, sempre vociferando contra tal obrigação para com o destina-tário em causa. Contudo, nunca dispôs da necessária determinação (ou da força das armas) para fazer frente a tão poderosa afronta, tendo de suportá-la o melhor que pôde até ao fim dos seus dias.

O seu mau humor e ressentimento são fáceis de compreender, dado que o meu pai apreciava aquele vinho límpido e aromático tanto ou mais quanto toda a linhagem dos Mohl. Tal vinho, que o meu progenitor degustava com uma conjugação de frenesim e desespero, não deixava de constituir a parte mais substancial do seu património.

Por uma conjunção de diversos factores, a época das vindimas distinguia-se por um clima de acentuada violência. Como se se tra-tasse de um caldeirão sobre fogo brando, ferviam no seu interior antigas histórias de humilhação e agravo e, acima de todas elas, uma certa ânsia em reivindicar ou recuperar esplendores perdi-dos (sempre num fundo de violência), de origem e significado obs-curos.

Estas violências mal reprimidas iam fermentando, ano após ano, no ventre da ira. E tal como as suspeitas relativas à minha ilegitimidade se tornavam presentes nessa época do ano, era tam-bém nessa altura que deflagrava um qualquer ódio mais ou menos reprimido, ou porventura recalcado na consciência de senhores e aldeãos. Em tais dias, esse ódio encontrava fáceis desculpas para explodir, sendo rápido e divulgado por todos quantos habitavam aquele pequeno mundo. A ave da vingança, com um voo rasante e lento, rondava a época das vindimas. E, depois de saciada, ver-dadeira ou aparentemente, a névoa que ascendia do Grande Rio, espécie de sonho difuso, cobria a região.

No dia seguinte, esquecidos já os últimos refugos da celebração das vindimas – que era sempre de grande exultação e desprovida de moderação –, costumava amanhecer um céu límpido, imerso na calma outonal. Uma calma que languescia lentamente até ao Inverno.

4as A Torre de Vigia.indd 16 11/09/15 21:54:54

17

A Torre de Vigia

e

Contudo, não se tratava de uma calma genuína. Num qualquer local profundo e desconhecido ardia ainda o borralho, mantendo as cinzas em brasa. Na nossa terra e gentes havia conhecimento de um qualquer culto, de uma devoção, de uma tradição nunca desa-parecida. Ritos e costumes, sacrifícios onde se derramava sangue, ainda que não fosse humano, subsistiam em honra dos nossos an-tigos e desaparecidos deuses; mesmo não passando estes já de uma mera recordação de uma qualquer religião perdida ou transviada. Os camponeses, na traseira dos seus casebres ou hortas, mantinham espetadas ressequidas e antiquíssimas estacas, com misteriosos sím-bolos gravados. Não poderei deixar de referir que o meu próprio pai mantinha no seu quarto – e, enquanto vivi em casa dele, sempre a conheci em tal sítio – uma velha e esquálida cabra, de origem desco-nhecida, à qual, todas as noites e madrugadas, dedicava uma espécie de oração ou ladainha, recitada numa língua que já nem ele próprio compreendia. Não obstante, aquilo não constituía qualquer entrave para que, no mesmo quarto, prestasse veneração a uma relíquia de Santo Arlão, ainda que modesta – as dos verdadeiros Padroeiros da Cavalaria estavam acima das suas possibilidades. E pedia graças a esse santo protector a qualquer momento e ocasião. Ainda que o meu pai não fosse particularmente devoto, mandara erigir uma capela no recinto da torre, para além de manter um capelão e de fazer doações frequentes ao convento dos Monges Silenciosos, próximo dali. Donativos que eram sempre superiores ao que seria de esperar da sua fortuna, o que lhe valeu fama de generoso e voluntarioso para com as pessoas de Deus.

e

No dia em que completei seis anos, a minha mãe resgatou-me ao sono com grande brusquidão. Ainda não me libertara da sua tutela

4as A Torre de Vigia.indd 17 11/09/15 21:54:54

Ana María Matute

18

– isso apenas aconteceria no ano seguinte – e, fosse devido à austera vida que se via obrigada a levar, fosse por o meu rosto e físico, de um modo geral, lhe recordarem demasiado o meu pai, certo é que não costumava mostrar-se terna ou alegre para comigo. Após a refeição, adormecera sobre o feno, quando me senti arrastado sem quaisquer veleidades. E foi ainda semiadormecido que me arrastou primeiro para fora da torre e, depois, para o exterior da paliçada.

Deteve-se, por fim, numa clareira elevada, de onde se avistava o lagar, as vinhas, parte do Grande Rio e, em suma, o panorama completo das vindimas. Ali chegado, e sacudido pelas suas mãos ossudas, não tardei a aperceber-me de que a minha mãe não me levara ali para presenciar qualquer celebração ou para contemplação alguma. Na verdade, pretendia que eu testemunhasse uma punição exemplar, para que esta ficasse bem gravada na minha memória e nunca mais a viesse a esquecer. «És teimoso», dizia-me, sem dei-xar de me bater e sacudir. «És tão selvagem, malparecido e furioso como o teu pai; contudo, convence-te de que acabarei por te incul-car na cabeça, a bastonadas, se preciso for, o respeito pelos bons costumes e o temor a Deus, nem que morra no intento.» Como sabia que ela não estaria disposta a morrer, nem por aquele jura-mento nem por qualquer outro, foi com um silêncio resignado que acatei as directrizes e imprecações do seu ímpeto educativo. Sabia que, naquela altura do ano, era costume tolerar aos servos e camponeses, bem como a qualquer criado da casa, os excessos e desmazelos próprios daqueles que se entregam por completo à bebida, e, assim sendo, não conseguia imaginar o tipo de exemplo ou de ensinamento que iria presenciar. Contudo, a minha mãe não me levara ali para observar uma punição, mas para participar, digamos, numa vingança colectiva, exultante e quase rejubilante.

Os alvos de tais sentimentos eram, como constatei de imediato, duas mulheres, mãe e filha, que viviam no limiar da floresta. Não dependiam de senhor algum, pelo que a sua vida de aldeãs livres não deixava de ser bastante mais árdua do que a do mais humilde

4as A Torre de Vigia.indd 18 11/09/15 21:54:55

19

A Torre de Vigia

servo. Possuíam apenas uma cabra, de cujo leite e queijos se ali-mentavam, costumando entregar-se ao corte e venda de lenha, para cuja recolha tinham de pagar tributo ao meu pai. Em épocas de revoltas ou tumultos, ou aquando de ataques às aldeias perpe-trados pelos bandos de foragidos que infestavam as nossas flores-tas, não tinham quem as abrigasse por detrás dos muros de um castelo ou mansão. Apenas o abade lhes concedia abrigo, no recin-to do mosteiro. Não obstante tão penosa existência, não desperta-vam qualquer compaixão nas outras pessoas, antes pelo contrário.

Não havia roubo de galinha ou de qualquer outro animal de que não fossem acusadas. Certo era que, de tais acusações ou juí-zos, nunca saíam sem serem maltratadas ou agredidas à paulada, e ainda me recordo do modo como, em determinada ocasião, dois camponeses, enfurecidos com a morte de uma cabra, cortaram à mais velha das mulheres três dedos da mão direita.

Naquela altura, eram acusadas de bruxaria, de mau-olhado e de pactos inconfessáveis com o Senhor dos Abismos, dado que, desde há algum tempo, se sucediam as desgraças nas nossas proprieda-des: uma epidemia desconhecida dizimara os rebanhos de cabras, uma chuva seca e amarelenta – que designavam por orvalho de Satanás – cobrira os cachos de uvas e, para cúmulo, no espaço de poucos dias, verificaram-se diversas mortes de crianças, total-mente inesperadas. Crianças ainda de berço, surpreendidas com tão fulminante destino.

Os ânimos ferviam de exaltação. Um sangue escuro, de cuja existência nunca duvidei, fluía no subsolo, por debaixo das vinhas, ameaçando jorrar e derramar-se sobre a terra a qualquer instante. Quem poderá dizer a que ardilezas e ameaças terão recorrido para levar as duas mulheres a assumir a culpa por tamanhos males? E foi isso que aconteceu.

De seguida, uma ferocidade sensual agitou aquela cerrada flo-resta de consciências. Julguei então ouvir o ruído de asas, surdo e inalcançável, a bater sobre aquela celebração das vindimas. Cem,

4as A Torre de Vigia.indd 19 11/09/15 21:54:55

Ana María Matute

20

duzentos dedos, rugosos e escuros como vides, apontaram para as duas mulheres. E a sentença não se fez esperar.

Mal a minha mãe me encaminhou – na verdade, quase me ati-rou dali abaixo – para o extremo da clareira, pareceu abater-se sobre aquele pacato início de tarde um vendaval tão insólito que apenas de olhos fechados se conseguiria sentir. Contudo, uma for-ça superior à minha própria vontade obrigou-me a abri-los. Veri- fiquei então que apenas assim o silêncio tornava a reinar sobre as vinhas, radiante e luminoso como o sol de Outono.

Os dias de celebração estavam a chegar ao fim. Como era cos-tume em tais dias, o vinho correra com abundância, toda a terra até ao rio se apresentava empapada, impregnada com o seu aroma. Uma voz ergueu-se sobre a tarde: gemia, como costumam fazer os cães em noites de luar; reconhecia em tal lamento a voz do mestre ferreiro do meu pai. Esse homem casara-se com uma menina vaga-bunda, e, não obstante esta não ter mais do que nove anos, fez-lhe um filho. Por aquilo de que me pude aperceber por entre os seus lamentos, tal criança fora vítima de súbitas convulsões e choros constantes, ao ponto de a vida neste mundo lhe ter sido arrebatada. Segundo aquilo que, entre soluços, o mestre ferreiro ia dizendo, ficara sem o filho devido a uma maldição lançada por aquelas duas harpias, rogando agora, desanimado, pela reposição da justiça e por que fosse feita vingança.

A estopa, a palha e as vides haviam já sido empilhadas sob os pés das duas bruxas, e o ferreiro suplicava agora que lhe permi-tissem atear a primeira chama, aquela que representaria o início do fim de tamanha malignidade. De quando em quando, a súplica via-se interrompida por uma espécie de gemido (mas talvez fosse essa a sua forma de chorar), que estremecia o ar até ao próprio rio. De seguida, pronunciava uma e outra vez o nome morto da criatura em questão. E aquele nome de criança, pronunciado com obsessão, foi visto a avançar de modo muito claro, a algumas nuvens dali, rumo às planícies.

4as A Torre de Vigia.indd 20 11/09/15 21:54:55

21

A Torre de Vigia

Não tardaram a conceder-lhe o privilégio que tão avidamente ansiava. De súbito, consciencializei-me de que conhecia, ou de que havia há muito conhecido (muito para além do firmamento ou de um rio sem margens, onde caía abatido, como ave alcançada, um nome de criança), aquela mesma vindima. Até o próprio fogo, ainda por atear; e ainda mais para além disso: inúmeras vindimas passadas ou ainda por acontecer, tingidas por uma cor e um aroma que se languesciam ou inflamavam sobre o sangue, ou porventura sobre um límpido e perfumado vinho.

Quando, por fim, o autorizaram, um júbilo invulgar cintilou nos olhos do ferreiro. Pronunciou então, muito lentamente (ignoro com que fim), os nomes das suas três cabras favoritas, pegou no archote, acendeu o restolho e aproximou-o da lenha. Depois, agitado por convulsões e delírios próprios de um homem ébrio de vinho ou de dor, deu início a uma série de saltos e gritos em torno da pira, no que seria imitado depois por muitos outros homens e mulheres, e julgo ainda recordar-me da presença de animais.

Por via de tais contemplações, soube que em mim jazia um suplício de muito remotas memórias, que com ele me confrontaria e que o experienciaria ainda por muitas mais ocasiões, através de muitos homens e de muitos tempos.

Um forte aroma a terra e uvas conjugou-se com o repicar do sino, que o padre fazia retinir na capela do meu pai. E não logrei determinar se o sino e o aroma e o sabor que sentia na língua recla-mavam misericórdia ou vingança. A todo o meu ser ascendeu um cheiro a vides queimadas, a céu molhado de chuva, a vinho. Envol-veu todo o meu corpo e vontade. Para mim, esse será, em todos os tempos, o sabor do dia em que nasci.

Tal como outras mulheres fizeram com os seus filhos, a minha mãe esbofeteou-me com frequência. Pelo que consegui perceber dos seus gritos, isso levar-me-ia a não me esquecer do castigo reservado aos que se afastam do bem e caem nos abismos da incle-mência, da heresia, da feitiçaria ou de qualquer outra iniquidade

4as A Torre de Vigia.indd 21 11/09/15 21:54:55

Ana María Matute

22

do género. Queria falar com ela: dizer-lhe que sentia dificuldade em esquecer muito remotas memórias, que, desde muitas vindi-mas anteriores ao meu nascimento, tão claras se me revelavam. Mas uma criança de seis anos sente dificuldade em expressar tais pensamentos. Pelo contrário, tornei-me um par de olhos enormes, tão esbugalhados que talvez pudessem alcançar o mais longínquo confim do mundo.

Todos os meus sentidos se fundiram num único: ver. E vi tão claramente como se apenas a corrida de um galgo pudesse separar o meu corpo do de uma mulher mais velha; tal como um daqueles odres esquecidos e vazios, que se empilhavam no fundo das adegas e que os rapazes usavam para fazer máscaras para o Dia de Finados. Na verdade, mais não era do que um odre. Mordido por cães famintos, cães sem dono que procuram, por onde for, qualquer alimento com que nutrir os seus velhos ossos; couro imundo, roído pelas ratazanas, com grandes manchas de verdume. Andrajos deploráveis, despojos inúteis, foram frequen-tes as diatribes infantis em que vi odres semelhantes, destinados a espantar, sob a forma de máscaras, o fantasma da morte ou do esquecimento. Ainda que o ar estivesse quente, senti a testa gelar-se-me. Vi então o vento. Diferente de todos os ventos que conhecia (e são muitos os que sopram nas nossas planícies). Não revolteava as ervas, nem as folhas, nem o cabelo ou a roupa das pessoas.

Tal como os odres, também o corpo da anciã carecia de rosto. Em seu lugar, uma tira de couro, semelhante às peles de esquilo a secar no alpendre, expunha-se à fúria geral. E vi o rugoso odre com todos os seus arranhões e misérias: dois úberes que lhe pendiam até ao ventre e, com as suas cores outonais, que iam do castanho à cor de malva, lhe roçavam o muito enrugado umbigo. Distingui, assim, o mísero contraste proporcionado pela longevidade daquele insólito nicho de pêlo vermelho (tal como o próprio fogo que esta-va prestes a devorá-la) sob o seu ventre; sobressaía ali de modo tão

4as A Torre de Vigia.indd 22 11/09/15 21:54:55

23

A Torre de Vigia

singular que não pude deixar de ficar surpreendido com a avidez das chamas, que tão depressa o atearam. Foi a primeira coisa nela a arder.

O vento quedo, de que me apercebi de imediato, levantou-se então. Um rugido múltiplo brotou das raízes das árvores, e julguei que cindiria a terra em duas partes. Foi o ventre que primeiro se abriu, grande e seco fruto oferecendo a visão das suas entranhas, envolvidas numa branquíssima e gordurosa luz: tão alva como o reluzir do relâmpago. Contudo, não fora um só, antes mil, os re-lâmpagos que ali haviam confluído. E um cheiro denso e agradável invadiu o ar que respirávamos, introduzindo-se sorrateiramente no meu nariz, na minha boca, nos meus olhos, levando-me a vomitar de tal modo que julguei que todo o meu corpo se reverte-ra, como se de um saco se tratasse.

A minha mãe sacudiu-me então por braços e pernas, ergueu--me a cabeça com os seus dedos frios e, por sua vez, também ela rugiu (porque, ali, qualquer voz se convertia em rugido):

– Recorda-te para sempre desta punição! Atónito, indaguei-me sobre aquilo que deveria recordar, que

pessoa ou acontecimento estaria em causa. E um novo grito, mais áspero e sonoro, ergueu-se sobre o exaltado clamor de horror, ou júbilo, ou vingança, envolvendo o fumo que enevoava a carne queimada.

Era o meu próprio grito, nascido de uma qualquer inexplorada gruta do meu ser. Mas apenas eu pude ouvi-lo, atravessado que me ficou na língua, sentindo-o ranger por entre os dentes como se de areia se tratasse.

Naquele instante, o velho odre estremeceu de cima a baixo, parecendo prestes a derreter, como se de banha de porco. Assumiu, depois, as cores do entardecer, enegreceu nas abas abertas, foi-se tornando violeta. Aqui e ali, realçavam-se esplendores de um verde fugaz e crepitante. Por fim, transformado já em árvore, com ramos chamejantes sobre um tronco calcinado, deformou-se.

4as A Torre de Vigia.indd 23 11/09/15 21:54:55

Ana María Matute

24

Apenas o fogo restou, distraindo-se por entre despojos parda-centos, ali onde outrora estivera tão suspeita alma. Pareceu-me, então, que a noite se tornava branca, e o dia negro; na verdade, porém, não havia dia nem noite sobre as vinhas. Apenas a tarde, cada vez mais distante.

Foi desse modo que, pela primeira vez, vislumbrei a cor branca e a cor preta que haveriam de me perseguir a vida inteira e que, na altura, julguei que cindiriam em dois o mundo.

Durante três dias, não conseguia fechar a boca. Em tão incómo-da manifestação julgou ver a minha mãe – e muitas outras pessoas a quem ela relatou a ocorrência, com os mais diversos pormenores – a confirmação do derradeiro sortilégio da bruxa. Na opinião de alguns dos presentes, a idosa não desviara os olhos de mim, en-quanto teve forças, alento (ou tão-somente olhos) para isso. Con-tudo, em momento nenhum reparei em tal olhar. Também não vi o seu rosto, e tão-pouco a sua filha, que ardia junto dela.

Perdi a voz durante algum tempo. Depois, a pouco e pouco – não sei precisar de que modo –, comecei a recuperá-la. Na minha memória, porém, permaneceu uma forte convicção: a idosa – bru-xa ou não – lançara-me uma maldição. Não o lamentava, dado que, entre todos os homens, mulheres, crianças e animais que pre-senciaram o seu tormento, me sabia objecto da sua eleição.

Andei melancólico e solitário durante muitos dias, sem convi-ver com outras crianças da minha idade ou, até mesmo, com quem quer que fosse. Evitava até a minha mãe. Depois, o Inverno veio interromper as minhas solitárias correrias em torno de vinhas e ade- gas. O frio manteve-me recluso no torreão, junto da minha mãe e das outras mulheres.

e

Com o passar do tempo, fui esquecendo – ou, pelo menos, relegando para a arca da memória – a certeza de que, entre a idosa

4as A Torre de Vigia.indd 24 11/09/15 21:54:56

25

A Torre de Vigia

e eu, existia um pacto, e de que aquele vento imóvel, que vi com os meus próprios olhos, me afastava para muito longe dos seres com quem convivia e entre os quais nascera.

Apenas em algumas ocasiões estremecia na presença de uma luz demasiado branca, junto de uma sombra demasiado escura; nessas ocasiões, uma espécie de luta, atroz e exasperada, desafiava os meus olhos. Julgo recordar que, em tais momentos, costumava rebolar- -me pelo chão, entre gritos. Não obstante, a minha mãe – que sem-pre viu em tais manifestações os resquícios do derradeiro mau- -olhado daquela maldita – chamava-me à razão mergulhando-me a cabeça numa tina de água (previamente benzida pelo bondoso capelão). Em alternativa, limitava-se a esbofetear-me com avidez.

Ainda por algum tempo a minha mãe e as restantes mulheres discutiram se deveriam obrigar a idosa a presenciar o suplício da filha, antes de ela própria o sofrer, ou se deveriam agir de forma contrária. As solteiras inclinavam-se para a última destas opções, enquanto as mulheres casadas e já com filhos mostravam prefe-rência pela primeira. Isto porque, segundo as sentenças proferidas por franzidos lábios maternos, nenhuma outra coisa no mundo, por pior que ela seja, poderá ser comparável ao tormento de uma mãe ao ter de ver morrer, ou padecer, o fruto do seu ventre. Ouvindo-a falar assim, enquanto cardava lã, fiava ou debulhava legumes, sen-tia uma grande estranheza por ser fruto do seu ventre. Imagina-va-me a mim próprio como um daqueles figos secos e engelhados conservados em melaço, com vista a adoçarem as nossas frias noi-tes de Inverno.

Reflectindo sobre tais coisas, sentia um enorme mal-estar.Por fim, as conversas femininas acabaram por derivar para

temas mais fúteis, ou mais proveitosos, em lugar das já tão gastas dis-cussões em torno de uma tortura e de uma fogueira. Empoleirado sobre uma arca, através das estreitas frestas existentes no quarto do meu pai, vislumbrei uma mancha, negra e gordurosa, sobre a terra. Sem razão alguma – de onde estava, não conseguia alcançá-la –,

4as A Torre de Vigia.indd 25 11/09/15 21:54:56

Ana María Matute

26

convenci-me tratar-se das cinzas do ódio e da fogueira. Dia após dia observei aquela mancha, até o vento invernal a apagar inexo-ravelmente. Assim, também aquele vestígio, real ou imaginário, foi devorado pelo tempo.

Mas tal não aconteceu em mim. Porque nunca o esquecimento conseguiria apagar da minha memória aquela humana árvore fogo, nem o grito colérico da vindima.

4as A Torre de Vigia.indd 26 11/09/15 21:54:56

27

Capítulo 2

Cavaleiro solitário

A partir do dia em que o barão Mohl ascendeu de condição nobiliárquica, os homens da minha família entregaram-se plena-mente ao serviço e à arte da guerra. Delegaram quaisquer outras preocupações e interesses ao cuidado dos seus criados, campone-ses e servos. Em troca, receberam títulos, propriedades fundiárias e direitos de herança.

Como ditavam os costumes, o meu pai alçou-me para o dorso de um cavalo mal tive idade suficiente para nele me equilibrar com certo aprumo. Pode inclusive dizer-se que, a partir de tal ocasião e momento, tal animal se constituiria como o meu único mestre, amigo e bem neste mundo. Dado que a vida do meu pai – bem como a sua rejeição de tudo o que não implicasse a satisfação dos seus apetites – se prolongou de modo invulgar, quando nasci, delapidara já quase a totalidade da sua fortuna. Os meus irmãos presenciaram os derradeiros, ainda que modestos, esplendores daquela casa. A mim, não me coube sequer uma mísera asa do gan-so do jantar.

Egoísta e afectado pelas doenças e pelos anos, preso a vícios incon- sequentes, gozados até à exaustão – tal como a senilidade costuma apresentá-los –, o meu progenitor pouca ou nenhuma atenção me dedicou; do meu valor e da sorte, apenas disso, dependeria o meu futuro e, até, a minha vida presente. No respeitante à minha

4as A Torre de Vigia.indd 27 11/09/15 21:54:56