A Cidade e o Pensamento Político de Leon Battista Alberti No de Re Aedificatoria e Outros Escrito

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUITETURA E URBANISMO

    ROBERTO SILVA DE OLIVEIRA

    A CIDADE E O PENSAMENTO POLTICO DE LEON BATTISTA ALBERTI NO DE RE DIFICATORIA E OUTROS ESCRITOS

    Salvador 2010

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    ROBERTO SILVA DE OLIVEIRA

    A CIDADE E O PENSAMENTO POLTICO DE LEON BATTISTA ALBERTI NO DE RE DIFICATORIA E OUTROS ESCRITOS

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Arquitetura, rea de concentrao em Urbanismo.

    Orientador: Prof. Dr. MRIO MENDONA DE OLIVEIRA.

    Salvador 2010

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    ROBERTO SILVA DE OLIVEIRA

    A CIDADE E O PENSAMENTO POLTICO DE LEON BATTISTA ALBERTI NO DE RE DIFICATORIA E OUTROS ESCRITOS

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Arquitetura, rea de concentrao em Urbanismo.

    Aprovada em 8 de novembro de 2010

    BANCA EXAMINADORA

    _________________________________________________________ Prof. Dr. Mrio Mendona de Oliveira Orientador

    Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia

    _________________________________________________________ Prof. Dr. Antnio Heliodrio Lima Sampaio

    Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia

    ________________________________________________________ Prof. Dr. Francisco de Assis da Costa

    Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia

    ________________________________________________________ Prof. Dr. Grayce Maire Bonfim Souza

    Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

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    Ao Prof. Dr. Mrio Mendona de Oliveira que gentilmente me franqueou sua biblioteca particular, sem a qual no teria conseguido realizar este trabalho.

    minha amada esposa pela dedicao nos momentos mais adversos.

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    AGRADECIMENTOS

    Brenda, Iago e Ariel que souberam suportar, com muita pacincia, meu isolamento e mau

    humor.

    Ao casal Rodrigo e Carine que me acolheu em sua casa, sempre com muito carinho, e aos

    quais espero, algum dia, retribuir com a mesma generosidade e nobreza de esprito.

    Jlia, essa pequena flor, com quem muito disputei a TV durante os telejornais.

    Aos meus amigos Espedito e Meire, Luiz e Rita, Cau e Selma, Avaldo e Aldair, Alexandre e

    Claudia pelas festas que ajudaram-me a tolerar os finais de semana, cruis e incomensurveis.

    Dona Maria e Aline pelo socorro que me prestaram no momento mais absurdo que vivi

    neste mestrado.

    Aos professores Dr. Antnio Heliodrio Lima Sampaio, Dr. Francisco de Assis da Costa e

    Dr. Grayce Mayre Bonfim pelas preciosas orientaes que muito contriburam para a

    realizao desta pesquisa.

    Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo da

    Universidade Federal da Bahia que contriburam de modo significativo para minha formao.

    Aos secretrios do Programa, Silvandira e Telmo que muito tm me ajudado a vencer as

    amarras da burocracia.

    Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, pela concesso da Bolsa de Mestrado, sem a

    qual seria impossvel a realizao desta pesquisa.

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    Em vo retesa o arco quem no tem para onde dirigir a seta (Alberti, De pictura, I, 23).

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    RESUMO

    Considerado o Vitrvio Florentino, Leon Battista Alberti legou Modernidade extensa obra

    de carter filosfico, poltico e tcnico, em que se destaca o De Re dificatoria, ou o Tratado

    de Arquitetura, como ficou mais conhecido. Sob a influncia da Antiguidade Clssica,

    especialmente das obras de Vitrvio, Plato, Aristteles e Ccero, o De Re dificatoria

    constituiu-se no marco fundamental da arquitetura na Idade Moderna. Objetiva-se com este

    trabalho analisar o pensamento arquitetnico e urbanstico de Alberti assim como suas

    implicaes polticas no mbito do humanismo cvico do sculo XV. Foram utilizados para o

    exame da obra os conceitos de representaes sociais, de prticas culturais e de

    identidade/alteridade. Em termos metodolgicos, a referncia o Estruturalismo gentico de

    Lucien Goldmann, que orientou a organizao do trabalho em trs captulos, sendo o primeiro

    uma exposio do contexto histrico no qual Alberti e sua obra tiveram origem; o segundo,

    uma apresentao da tradio literria que fundamentava as discusses polticas do

    humanismo da poca; e o terceiro, uma anlise do discurso apresentado por ele no De Re

    dificatoria. Estas partes articuladas permitem verificar que o discurso albertiano prestou

    importante contribuio arquitetura, ao urbanismo e filosofia poltica do Mundo Moderno.

    Palavras-chave: Alberti, De Re dificatoria, Humanismo, Renascimento, Arquitetura e Poltica.

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    ABSTRACT

    Considered the Florentine Vitruvius, Leon Battista Alberti left Modernity an extensive

    work of philosophical, political and technical character, among which stands out De Re

    dificatoria or the Treaty of Architecture, as it became better known. Under the influence of

    Classical Antiquity, especially the works by Vitruvius, Plato, Aristotle and Cicero, De Re

    dificatoria constituted the cornerstone of architecture in the Modern Age. This work aims at

    analyzing Alberti's urbanistic and architectural thought as well as its political implications in

    the context of fifteenth-century civic humanism. In order to examine the work, the concepts of

    social representations, cultural practices and identity/alterity were used. In methodological

    terms, the reference is Lucien Goldmann's genetic Structuralism, which guided the

    organization of the work into three chapters, the first being an exposition of the historical

    context in which Alberti and his work had their origin; the second, a presentation of the

    literary tradition which underlay the political debates of the humanism of that time; and the

    third, an analysis of the discourse presented by him in De Re dificatoria. These articulated

    parts enable verifying that Albertis speech provided a significant contribution to the

    architecture, urbanism and political philosophy of the Modern World.

    Key-words: Alberti, De Re dificatoria, Humanism, Renaissance, Architecture and Politics.

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    LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1. A morte no perdoa nem bispo nem nobre. Guyot Marchant, La Danse Macabre, 1485. Paris................................................................................................................................26

    Figura 2. La Tavola Strozzi su Napoli. Rosselli, F. (?), 1483. Npoles...................................28

    Figura 3. Planta em perspectiva de Npoles. Duperac E. A. Lafrery, 1566. Npoles...........28

    Figura 4. Vulcano e Eolo. Piero di Cosimo, 1505. National Gallery of Canada, Ottawa.........43

    Figura 5. Detalhe esquerdo da construo da casa. Piero di Cosimo........................................44

    Figura 6. A construo de um palcio. Piero di Cosimo, 1515 1520. Ringling Museum of Art, Sarasota, Flrida, Estados Unidos.....................................................................................45

    Figura 7. Cpula da Catedral de Florena. Brunelleschi, F. Florena, 1420-1436.................46

    Figura 8. Capela Pazzi. Brunelleschi, F. Florena, 1429..........................................................47

    Figura 9. Santa Maria Novella. Alberti, L. B. Florena, 1456.................................................48

    Figura 10. Bramante, D. San Pietro de Montorio. Roma,1502...............................................49

    Figura 11. Bramante, D. Baslica de So Petro. Roma, 1506..................................................49

    Figura 12. Benevolo, L. Vista da Praa de So Pedro. Roma, 1935.......................................50

    Figura 13. Donatello. Monumento equestre de Gattamelata. Pdua, 1453..............................55

    Figura 14.Verrocchio, A. Monumento equestre de Bartolommeo Colleoni. Veneza, 1479.....56

    Figura 15. Detalhe da cabea de Bartolommeo Colleoni.........................................................57

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    SUMRIO

    INTRODUO:......................................................................................................................12

    CAPTULO 1: A DINMICA DA MODERNIZAO.....................................................22

    1.1. A EMERGNCIA DO MUNDO MODERNO...............................................................................22

    1.2. RENASCIMENTO E HUMANISMO: etiquetas cmodas ou processo civilizatrio?................30

    1.3. ARTE, CINCIA E SABER TCNICO NA RENASCENA............................................................43

    1.4. AS FUNES SOCIAIS DA ARQUITETURA NA RENASCENA..................................................58

    1.5. ALBERTI: tempo, espao, vida e obra.................................................................................62

    1.6. O DE RE DIFICATORIA......................................................................................................71

    CAPTULO 2: AS FUNDAES DA FILOSOFIA POLTICA DO SCULO XV.......79

    2.1. RIQUEZA, RETRICA E LIBERDADE NAS ORIGENS DO REPUBLICANISMO MODERNO..............79

    2.2 OS TEMAS E AS ABORDAGENS DO REPUBLICANISMO NO SCULO XV....................................84

    2.2.1 Dante Alighieri: monarquia versus repblica..................................................................85

    2.2.2 Marslio de Pdua: a lei como fundamento da paz..........................................................91

    2.2.3. Petrarca: a educao cvica............................................................................................96

    2.3.4. Coluccio Salutati: Invectiva contra Antonio Loschi de Vicenza...................................106

    2.3.5. Leonardo Bruni: Dilogo a Pier Paolo Vergerio.........................................................112

    2.3.6. Poggio Bracciolini: Carta para Leonardo Arentino.....................................................121

    2.3.7. Leon Battista Alberti: O destino e a fortuna.................................................................124

    2.4. OS ELEMENTOS DA QUESTO............................................................................................131

    CAPTULO 3. POLTICA E PODER NO DE RE DIFICATORIA.............................136

    3.1. A LINGUAGEM DA POLTICA E DO PODER...........................................................................148

    3.1.2. As origens da filosofia poltica moderna......................................................................149

    3.1.3. A natureza, o homem e a cidade no De Re dificatoria..............................................163

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    3.1.4. A cidade albertiana no De Re dificatoria..................................................................195 CONCLUSO.......................................................................................................................221 FONTES E BIBLIOGRAFIA..............................................................................................226

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    INTRODUO

    O perodo que vai de Dante Alighieri a Nicolau Maquiavel, respectivamente do sculo

    XIV ao XVI, legou ao mundo moderno parte das formas de saber, de organizao social e

    poltica que conhecemos. A Itlia constituiu-se no bero principal desse processo, um

    estranho laboratrio para homens de Estado (BRAUDEL, 1995a, p. 19) e principal centro

    irradiador de saber e de cultura (Idem., 2007, p. 19, 27 e 85). Nela, o desenvolvimento

    precoce de uma economia de mercado produziu um dinamismo social que precipitou a

    dissoluo das estruturas feudais e a construo do mundo moderno. Novas fronteiras tnicas,

    subsumidas lgica das pretenses burguesas, foram erguidas como estratgias de poder no

    campo da ao social, da poltica e da cultura. O aparelhamento dessas novas identidades

    possibilitou o desenvolvimento de um tipo de saber voltado, fundamentalmente, s questes

    prticas e ordinrias da vida cotidiana. Este novo saber, gestado a partir da retrica, da

    gramtica, da histria e da literatura, enfim, dos estudos das humanidades, (studia

    humanitatis)1 fez surgir o intelectual burgus, engajado no processo de re-significao do

    mundo e das relaes nele produzidas. Estes homens se tornaram essenciais administrao

    das cidades, integrando-se s chancelarias e s cortes principescas.

    A defesa da liberdade ante as violncias cvicas e as ameaas (internas e externas) deu

    azo a uma aguda conscincia do valor que deveria ser devotada s coisas pblicas. Em seu

    desenvolvimento, os studia humanitatis, originados margem das academias, primaram pela

    formao do bom cidado e do homem completo (BIGNOTTO, 2001, p. 160). A produo

    humanstica, principalmente no sculo XV, estava centrada na construo de uma conduta

    1 Movimento que se firmou como uma viso nova do homem e do mundo, amadurecida margem das

    academias, voltado valorizao dos aspectos humanos e racionais. Os studia humanitatis promoveram uma dessacralizao da cultura e uma profunda alterao na forma de compreenso do homem e suas relaes com a natureza. Em termos educacionais, os studia humanitatis centravam-se no estudo da gramtica, da retrica, da histria, da potica e da filosofia moral em detrimento do corpo de disciplinas que compunha a escolstica: trivium (gramtica, retrica e dialctica) e quadrivium (aritmtica, msica, geometria e astronomia).

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    cidad, operacionalizada pela reconstruo histrica dos valores cvicos, pela necessidade de

    proteo e de preservao da integridade dos homens no espao urbano. A busca pela

    organizao das instituies e das funes pblicas os reconduziu s fontes do pensamento

    clssico. A descoberta de autores como Plato, Aristteles, Tcito, Tucdides, Plutarco,

    Vitrvio e, em principal, Ccero deu fundamento a uma nova viso de homem e de mundo,

    superou o imobilismo da teologia medieval e estabeleceu as bases de uma vida ativa no

    espao urbano. A virtude (virtus) foi incorporada ao discurso poltico como instrumento de

    aferio de valor s aes pblicas. A educao cvica, alada ao desenvolvimento da

    eloquncia, da retrica, tornou-se a meta da cultura humanista. Assim, mais que produzir

    homens capazes de desempenhar adequadamente certas funes materiais, o humanismo do

    sculo XV buscou formar cidados virtuosos, capacitados s funes que a sociedade exigia.

    Neste sentido, podemos afirmar que o humanismo foi um movimento de recuperao do

    discurso de valorizao do homem e da cidade. O conceito de homem, integrado a essa nova

    orientao poltico-pedaggica, torna-se dinmico, pois se fundamenta nas relaes que este

    estabelece com o ambiente social urbano. Isso levou a urbanista italiana Donatella Calabi a

    afirmar que, apesar do sculo XV ter sido um perodo de profunda depresso, de prosperidade

    limitada, a organizao dos espaos fsicos e dos ambientes edificados produz, naquele

    sculo, um novo tipo de cultura urbana (CALABI, 2008, p. 17).

    De fato, os programas arquitetnicos, os monumentos histricos, os templos, as

    praas, as ruas, as esttuas, os arcos, as pontes etc., so evidncias desse processo de

    racionalizao da vida e da territorializao2 do poder. As incipientes tentativas de

    organizao das atividades urbanas lastreadas na revalorizao desses elementos instituram

    prticas e estratgias para alm de suas caractersticas meramente fsicas ou espaciais, porque

    se constituram em instrumentos estruturantes da prpria realidade social. Nesta perspectiva,

    os tratados de urbanismo se configuram como desdobramento da cultura humanista uma vez

    que preservam uma determinada tradio poltica. As normas construtivas e o ordenamento

    urbano proposto por seus autores, embora se prendam tradio filosfica de Plato e

    Aristteles os quais pensaram a cidade como espao natural da realizao humana

    refletem as premncias sociais e culturais do perodo.

    O De Re dificatoria, ou como ficou mais conhecido, o Tratado de Arquitetura de

    Leon Battista Alberti, escrito em 1452, foi a primeira obra do gnero a ser publicada na Idade

    Moderna, mais precisamente em Veneza, no ano de 1485. Esta obra teve como referncia o

    2 O termo define o acesso diferenciado ao espao e as relaes de poder que orientam seu uso e sua apropriao

    no mbito das prticas sociais (GOMES, 2002, p.139).

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    De Architectura Libri Decem (Dez livros sobre a Arquitetura) de Vitrvio, que a escreveu por

    volta do sculo 1 a.C. (VITRVIO, 2006, p. 12). No entanto, a obra de Leon Battista Alberti

    vai alm de Vitrvio medida que busca estabelecer-se como critrio universal da arte de

    construir (ars aedificandi). Em suas observaes, a beleza das construes pblicas e privadas

    deveria ligar-se utilidade, funcionalidade e ao deleite de seus habitantes (firmitas, utilitas e

    venustas). As questes prticas ligadas ao devir cotidiano das cidades, tais como o traado das

    ruas, as disposies sociais dos indivduos, as condies climticas e topogrficas, a

    circulao do ar, a limpeza, o abastecimento, a diviso social das atividades produtivas, a

    separao dos espaos por ordem de funo privados ou pblicos , a comunicao

    territorial das classes, a adequao da cidade aos diferentes tipos de governo etc., foram

    amplamente analisadas e comentadas. Para Alberti, essas condies eram fundamentais

    segurana social e ao bom andamento das funes concernentes ao espao pblico. Nesta

    perspectiva, a localizao da cidade era de suma importncia. Ela deveria localizar-se em

    una zona pianeggiante situata in montagna o un rialzo in pianura (ALBERTI, 1966a, IV,

    2, p. 278) no seu ponto central, de onde fosse possvel a visualizao de toda a rea

    circundante; estar apta a contemplar as oportunidades e preparada, sempre que a necessidade

    se apresentasse, para defender-se ou atacar. Em seu texto, Alberti afirma que a cidade precisa

    situar-se convenientemente para que os feitores (fattori) e os cultivadores (coltivatori)

    possam conduzir-se aos campos quando quiserem e retornar em seguida transportando a

    colheita (Ibid., p. 278). O controle epidmico, a limpeza e o esgotamento sanitrio so traos

    marcantes que reforam, assim, o sentido de preservao e da segurana pblica (Ibid., 7, 322

    e 324), j h muito integrados tradio filosfica dos antigos.

    A anlise do De Re dificatoria nos revelou duas fases distintas da obra: a primeira

    compreende os cinco livros iniciais, caracterizados por um posicionamento tcnico,

    racionalista e onde a influncia de Plato e Aristteles pode ser percebida nas referncias

    diretas e transcries, ipsis litteris, de trechos de suas obras. O carter normativo da obra de

    Alberti sustentado mediante o uso e a apropriao da teoria da origem do homem e da

    sociedade j amplamente discutido em A Repblica e em A Poltica. Todas as etapas do

    desenvolvimento social e poltico, assim como suas conquistas artsticas e materiais, so

    apresentados como produtos da necessidade e da capacidade do homem para inventar e

    reinventar a vida. Nesta perspectiva, a arquitetura se torna smbolo maior desta conquista

    dado expressar os valores essenciais da cidade e dos cidados; a segunda parte do De Re

    dificatoria trata das questes concernentes beleza, ao ornamento e harmonia, cujos

    pressupostos de utilidade e convenincia naturais conferem significado virtude, honra e

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    glria como fundamentos da vida civil. Tal princpio, sustentado como lei natural ou de

    natureza por Alberti, recebeu o nome de concinnitas termo proveniente do latim que

    expressa o sentido de composio, disposio, regularidade e simetria, mas que, em Alberti,

    encontra uma correspondncia poltica e social. Deste modo, pode-se afirmar que esta parte da

    obra est intimamente identificada com o pensamento poltico de Ccero e com o

    neoplatonismo (BRANDO, 2000, p. 62) comum ao humanismo cvico entre os sculos XIV

    e XVI. Sob vrios aspectos estas ligaes podem ser observadas: primeiro, pela identificao

    com as formas e as instituies pblicas da cidade antiga herdadas dos etruscos e dos

    romanos; depois que, ao eleg-la como cidade ideal, o mito de Roma revivido e defendido

    por ele de forma idntica ao que era sustentado pelos humanistas daquele perodo; pela

    apropriao do civismo ciceroniano; e, por ltimo, pela busca de um princpio de regularidade

    e equilbrio social com base nos conceitos de harmonia de Plato. Tudo isso fez com que,

    segundo Franco Borsi, o texto de Alberti se tornasse o pioneiro desse gnero na Idade

    Moderna, influenciando, direta ou indiretamente, autores como Filarete, Francesco di Giorgio

    Martini, Leonardo da Vinci, Philibert de lOrme e Albrecht Drer (1996, p. 344 349).

    No obstante, a extensa reflexo acerca da cidade e suas prticas fomentadas em

    diversas reas da cincia, s recentemente esta se tornou o tema preferido dos historiadores.

    Tradicionalmente, a Histria, enquanto disciplina, evidencia o espao urbano apenas como

    palco dos grandes eventos polticos, econmicos e sociais, quando no afere a este, munida de

    um marco terico j esgarado pela emergncia dos novos paradigmas, uma smula

    totalizante de todos os processos de desenvolvimento urbano. Outrossim, esta mesma

    historiografia identifica a teoria poltica moderna apenas com os trabalhos exponenciais de

    Nicolau Maquiavel, Jean Bodin, Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu e Jean Jacques

    Rousseau sem levar em considerao a vasta documentao que, atualmente, pe em

    desacordo muitas das certezas acerca das origens da teoria poltica moderna. Ora, a descoberta

    de registros notariais de preos, salrios e rendas, assim como de livros de recordaes

    (ricordi) e de conselhos, manuais de comrcio, panegricos, peas de retrica, cartas etc., ps

    em evidncia o perfil das rendas, os comprometimentos fiscais de seus cidados e a existncia

    de um apurado controle administrativo (WOLFF, 1988, p. 253 254). Tais documentos pem

    em contradio a originalidade da teoria poltica moderna com base nos autores supracitados.

    Sob vrios aspectos esse material evidenciou uma ruptura, mas, tambm, uma continuidade

    entre as concepes polticas da Idade Mdia e do mundo moderno. A partir dos elementos

    apresentados nesses documentos foi possvel observar que uma sociedade bastante adiantada

    em termos de poltica, economia e sociedade se revelava por entre as estruturas persistentes

  • 16

    do mundo medieval. Essas mesmas fontes permitiram uma ampliao dos quadros de

    referncias polticas, no mais pautadas, unicamente, nos textos de filosofia, mas tambm nos

    tratados de arquitetura e urbanismo. Estes, na medida em que versam sobre as formas de

    organizao do espao social, apresentam-se como instrumentos de afirmao poltica, como

    produtos ampliados das necessidades de produo social da riqueza e de domnio territorial

    GARIN, 1996, p. 60 61).

    Nesse novo cenrio de descobertas, os desafios Histria e aos historiadores se

    tornaram mltiplos e variados, pois a cidade deixou de ser pensada apenas como locus

    privilegiado da produo e da ao poltica para ser apreendida como fenmeno complexo

    que se realiza ao longo da histria suscitando vises e explicaes sob perspectivas variadas.

    Noutras palavras, passou a ser explicada a partir das representaes que nela so produzidas e

    que se objetivam nas prticas sociais cotidianas. Todavia, dado que a cidade no se

    caracteriza pela homogeneidade social, nem pode ser explicada universalmente, de forma

    inequvoca, a natureza das representaes que dela emana se prende realidade e fico de

    quem as elabora. Logo, implica que toda tentativa de definio da cidade uma representao

    que, como tal, se articula com a posio que cada indivduo ou grupo ocupa no tecido social.

    A cidade, portanto, se resolve num misto de realidades vividas, sonhadas e imaginadas, s

    evidenciadas pelas prticas, tendncias e perspectivas das representaes sociais (CERTEAU,

    1994, p. 172 175). , portanto, nesta perspectiva que buscamos apreender o sentido do De

    Re dificatoria, de Leon Battista Alberti, ou seja, como tentativa de respostas aos problemas

    originais de sua poca. Cumpre-nos, portanto, como objetivo principal, analisar a forma pela

    qual o urbanismo albertiano se conectou ao humanismo cvico do sculo XV e, por sua vez,

    tradio literria de pensadores como Plato, Aristteles e Ccero, marcos originais da teoria

    poltica moderna.

    Assim, delimitada a pesquisa, impe-nos estabelecer seu marco terico e

    metodolgico. No entanto, por entender que toda obra, tenha ela um carter cientfico,

    artstico ou literrio, constitui-se numa representao que, como tal, figura uma poro do

    objeto representado ou do universo de seu produtor; que toda obra estabelece uma imagem,

    um signo, uma entidade cognitiva passvel de leitura e interpretao, que toda representao

    tem como fundamento ltimo afirmar princpios de legitimidades individuais e/ou coletivos

    como fundamentaes vlidas (CHARTIER, 1990, p. 13 28), evidenciando prticas e

    perspectivas cientficas, polticas e sociais, elegemos como instrumentos operadores os

    conceitos de representaes e prticas culturais de identidade e alteridade.

  • 17

    Os conceitos de representaes e prticas culturais sero trabalhados na perspectiva

    terica de Roger Chartier. Esta nos pareceu ser a que melhor se ajusta aos propsitos de nossa

    pesquisa. Para o historiador francs o discurso uma construo social que nasce a partir das

    prticas ordinrias da realidade que o circunscreve, assim como as prticas de leitura e

    escritura que constituem as aes efetivas dos indivduos e grupos situados historicamente.

    Em suas palavras, a histria cultural tinha

    por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social construda, pensada, dada a ler. [] As representaes do mundo social assim construdas, embora aspirem universalidade de um diagnstico fundado na razo, so sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam (Ibid., p. 16 17).

    Entretanto, para no incorremos no erro de fazer do conceito de representao o

    epifenmeno das lutas sociais, destituindo seus agentes da capacidade de perpetrar aes

    conscientes e voluntrias, contrabalancearemos a teoria de Chartier com a Psicologia social de

    Serge Moscovici.

    Para a Psicologia social as representaes tm origem nos indivduos e nas relaes

    que eles mantm com as estruturas do mundo no qual esto inseridos; surgem da interao

    entre os indivduos, ou grupos, como produto das aes e comunicaes que orientam as

    percepes. Sua aplicabilidade, seu uso, pode variar em funo das discrepncias comuns ao

    organismo social, mas sempre facultam as percepes da realidade, sejam determinando-a, ou

    sendo por ela determinada (MOSCOVICI, 2003, p. 34 e 41). Assim, para Moscovici,

    afirmar que nossas mentes so pequenas caixas pretas, dentro de uma caixa preta maior, que simplesmente recebe informao, palavras e pensamentos que so condicionados de fora, a fim de transform-los em gestos, juzos, opinies, etc.; assegurar que grupos e pessoas esto sempre e completamente sob o controle de uma ideologia dominante, que produzida e imposta por sua classe social, pelo estado, igreja ou escola e que o que eles pensam e dizem apenas reflete tal ideologia. Em outras palavras, sustenta-se que eles, como regra, no pensam, ou produzem nada de original por si mesmos: eles produzem e, em contrapartida, so produzidos. Descobrimos aqui, quer gostemos ou no, a metfora da caixa preta, com a diferena que agora ela est composta de ideias j prontas e no apenas com objetos. Pode ser esse o caso, mas ns no o podemos garantir, pois, mesmo que as ideologias e seu impacto tenham sido amplamente discutidos, elas no foram extensivamente pesquisadas. O que estamos sugerindo, pois, que pessoas e grupos, longe de serem receptores passivos, pensam por si mesmos, produzem e comunicam incessantemente suas prprias e especficas representaes e solues s questes que eles mesmos colocam. Os acontecimentos, as

  • 18

    cincias e as ideologias apenas lhes fornecem o alimento para o pensamento (Ibid., p. 44 45).

    Isso implica dizer que as observaes feitas por Alberti podem agregar no apenas os

    traos gerais e culturais daquela sociedade, mas tambm as particularidades da camada social

    na qual ele estava inserido, ou mesmo seus posicionamentos particulares, idiossincrticos.

    J os conceitos de identidade/alteridade sero evidenciados na opo terica

    correspondente antropologia social de Fredrik Barth e Tomaz Tadeu da Silva.

    Para Barth, a sociedade o campo de manifestao da concorrncia entre os grupos

    etnicamente constitudos. Estes se reinvestem de autoridade por meio da identificao cultural

    e estabelecem as fronteiras reais de poder. Para este autor a sociedade formada por um

    conjunto de microestruturas de carter cultural que interagem pelas relaes que mantm com

    uma estrutura maior definidora de aes e comportamentos (BARTH In: POUTIGNAT &

    STREIFF-FENART, 1998, p. 124). Dele extramos o conceito de fronteiras de poder que ser

    til anlise do contedo da obra de Alberti.

    Para Silva, identidade e alteridade so conceitos focados na relao entre os grupos

    operada por meio de discursos em virtude de uma prtica social de poder. Deste modo, toda

    identidade relacional e contingente.3 Tanto num como noutro autor, a identidade e a

    diferena (alteridade) representam uma necessidade fundamental de promoo da distino,

    do pertencimento sociocultural e do direito de propriedade dos meios de produo. Com base

    nas definies da sociedade moderna, estratificada, cuja mobilidade corresponde ao

    imperativo categrico do capital, consenso entre os autores que a identidade e a diferena

    perfazem uma necessidade que inerente ao sistema social de poder (BARTH, 2000, p. 47

    54); uma condio sine qua non, sem a qual as sociedades no conseguiriam estabelecer seu

    frgil equilbrio. Temos que a antropologia social de Fredrik Barth e Tomaz Tadeu da Silva

    nos possibilitar identificar as proposies urbansticas de Alberti com os princpios

    humanistas de seu tempo, assim como contrap-las ao conjunto da sociedade no qual ele

    estava inserido.

    3 A identidade e a diferena tm que ser ativamente produzidas. Elas no so criaturas do mundo natural ou de

    um mundo transcendental, mas do mundo cultural e social. Somos ns que as fabricamos, no contexto de relaes culturais e sociais. [] So outras tantas marcas da presena do poder: incluir/excluir (estes pertencem, aqueles no); demarcar fronteiras (ns e eles); classificar (bons e maus; puros e impuros; desenvolvidos e primitivos; racionais e irracionais); normalizar (ns somos normais; eles so anormais) (SILVA, 2003, p. 76 e 83).

  • 19

    Em termos metodolgicos, adotamos o Estruturalismo gentico de Lucien Goldmann

    por entender que seu mtodo de investigao histrica complementa as teorias de Chartier e

    de Moscovici. Logo, para Goldmann,

    o conhecimento dos fatos empricos permanece abstrato e superficial enquanto no for concretizado por sua integrao ao nico conjunto que permite ultrapassar o fenmeno parcial e abstrato para chegar a sua essncia concreta, e, implicitamente, para chegar a sua significao no cremos que o pensamento e a obra de um autor possam ser compreendidos por si mesmos se permanecermos no plano dos escritos e mesmo no plano das leituras e das influncias. O pensamento apenas um aspecto parcial de uma realidade menos abstrata: o homem vivo e inteiro. E este, por sua vez, apenas um elemento do conjunto que o grupo social. Uma ideia, uma obra s recebe sua verdadeira significao quando integrada ao conjunto de uma vida e de um comportamento (GOLDMANN, 1979, p. 7 8).

    E mais, que a conscincia coletiva s existe nas conscincias individuais, mas no a soma

    destas (Ibid., p. 20). Alm do mais, explica o autor, o prprio termo

    infeliz e se presta confuso; preferimos a ele o de conscincia de grupo acompanhado, sempre que possvel, da sua especificao: conscincia familiar, profissional, nacional, conscincia de classe, etc. Esta ltima a tendncia comum dos sentimentos, aspiraes e pensamentos dos membros da classe, tendncia que se desenvolve precisamente a partir de uma situao econmica e social que engendra uma atividade da qual o sujeito a comunidade real ou virtual, constituda pela classe social (Ibid., p. 20).4

    Como se pode constatar, suas observaes esto centradas nas aes factveis dos

    indivduos dentro de uma estrutura bsica de conhecimento e de percepo social. Deste autor

    utilizaremos os conceitos de estrutura englobante, significando o conjunto das interrelaes

    histricas e culturalmente constitudas; de estruturas significativas, ou seja, tudo aquilo que o

    autor faz figurar como essencial dentro da obra, como princpios negados e/ou sustentados por

    ele; e, por ltimo, o conceito de viso de mundo,5 como produto de um determinado

    4 Grifo do autor. 5 Para Lucien Goldmann, por viso de mundo se entende um conceito de origem dialtica empregado por

    Dilthey, mas de maneira vaga e pouco rigorosa. O mrito de sua preciso foi construdo, segundo Goldmann, por Georg Lukcs que o definiu como instrumento conceitual de trabalho indispensvel para compreender as expresses imediatas do pensamento de um autor. No preciso, entretanto, ver na viso de mundo uma realidade metafsica ou de ordem puramente especulativa. Ela constitui, ao contrrio, o principal aspecto concreto do fenmeno que os socilogos tentam descrever, h dezenas de anos, sob o termo de conscincia coletiva Ademais, conclui Goldmann, uma viso de mundo um ponto de vista coerente e unitrio sobre o conjunto da realidade []; o sistema de pensamento que, em certas condies se impe a um grupo de homens que se encontram em situaes econmicas e sociais anlogas, isto , a certas classes sociais (1979, p. 16, 17 e 73).

  • 20

    posicionamento individual diante dos fatos e do mundo, em outras palavras, um ponto de

    vista coerente e unitrio sobre o conjunto da realidade (Ibid., p. 73).6

    Ancorados nestes referenciais, organizamos o contedo de nosso trabalho em trs

    partes, sendo que na primeira buscamos delimitar as razes histricas da Idade Moderna e as

    abordagens conceituais com ou contra as quais, atualmente, se dialoga. Em seguida, tratamos

    de investigar a forma pela qual a arquitetura, a vida e a obra de Alberti se inseriram no

    contexto das novas relaes sociais de poder do sculo XV. No segundo captulo,

    apresentamos, em primeira instncia, as linhas de fora da poltica italiana a partir das

    descries feitas por Dino Compagni, Dante Alighieri e Marslio de Pdua. Posteriormente,

    no intuito de apreender o modo pelo qual as lutas polticas deram azo ao humanismo cvico,

    analisamos um amplo conjunto de fatos e obras que animaram o cenrio e o pensamento

    poltico num amplo recorte cronolgico entre os sculos XIII e XV.

    De igual modo, no intuito de conferir maior autenticidade pesquisa, optamos

    trabalhar com textos e autores originais do perodo. Nosso objetivo foi no somente atestar a

    existncia de uma tradio poltica anterior a Maquiavel, Bodin, Hobbes, Locke, Rousseau e

    Montesquieu, mas tambm incluir o pensamento albertiano na longa lista dos autores

    fundamentais teoria poltica moderna. Dentre esses autores analisados esto Dante Alighieri,

    Dino Compagni, Marslio de Pdua, Francesco Petrarca, Coluccio Salutati, Leonardo Bruni,

    Poggio Bracciolini e, claro, Leon Battista Alberti. Das obras desses autores sobressai grande

    variedade de temas e termos que fundamentam os interesses e as perspectivas polticas do

    humanismo cvico. A recorrncia a temas como a ilegitimidade do imprio ante a repblica, a

    valorizao da cultura dos antigos gregos e romanos, a defesa da liberdade e da soberania, a

    participao pblica dos cidados, a proeminncia da arte e da eloquncia na educao cvica,

    os limites civis da religio, a condio do homem entre causas e consequncias (como no

    opsculo Fatum et Fortuna) etc. Os usos e as apropriaes de termos como cidado, vida

    ativa, virtude, decoro, prudncia, magnanimidade, temperana e justia indicam uma

    retomada do estoicismo e do republicanismo de Sneca e Ccero. A estes foram coligidos

    termos como liberalidade, engenho, arte e funcionalidade autenticando, assim, o princpio da

    renovao (renovatio) auferida ideologia burguesa em ascenso, que compunha o ncleo da

    conscincia desse novo estamento e que foi, vigorosamente, defendida por Alberti.7

    6 Grifo do autor. 7 Os princpios dessa concepo burguesa de mundo se encontra difundida em diversas passagens da obra de

    Alberti, em especial no Della Famiglia, no De Pictura e no De Re dificatoria.

  • 21

    Na terceira e ltima parte, com base na compreenso de que a obra de Alberti a

    expresso de uma determinada viso de mundo fundamentada na cultura e nas premncias

    sociais, procuramos identificar o modo como a retrica albertiana, presente nas obras De Re

    dificatoria, Da pintura, Iciarchia e Profugiorum ab rumna libri III, reflete o humanismo

    de sua poca. Para tanto, aps a apresentao dos fundamentos da teoria poltica moderna,

    articulamos a filosofia poltica de Aristteles, Plato e Ccero ao contexto das obras

    supracitadas. Tal abordagem nos permitiu identificar os elementos discursivos e os esquemas

    narrativos do texto albertiano e, ao mesmo tempo, apreender a forma pela qual suas

    prescries se articularam com o contexto poltico, social e humanstico do sculo XV.

  • 22

    CAPTULO 1: A DINMICA DA MODERNIZAO 1.1. A EMERGNCIA DO MUNDO MODERNO

    O reaparecimento das cidades8 no Ocidente Medieval a partir do sculo XI realizou

    uma etapa importante no desenvolvimento poltico e social. Um dinamismo sem precedente

    nas relaes de produo fez-se acompanhar de uma mutao social que fundamentou, no

    campo e nas cidades, os espaos de contestao das ordens senhoriais. Todo esse impulso ao

    crescimento se encontra radicado no melhoramento das condies de existncia promovido

    pelo fim das invases, o aumento das reas produtivas e o incremento das tcnicas de

    produo agrcola. Embora se admitam variaes de uma regio para outra, a partir do sculo

    XII o aumento da taxa demogrfica se torna expressiva e continua aumentando at seu

    declnio por volta do sculo XIV (PIRENNE, 1982, p. 72).

    A concorrncia territorial entre prncipes e senhorios, senhores e vassalos, radicada

    nos princpios da hereditariedade, abriu margem futura centralidade poltica (BLOCH, 1987,

    8 As origens das cidades a partir do sculo XI no Ocidente europeu se tornaram um assunto polmico entre os

    historiadores. O debate teve incio com o economista ingls Maurice Dobb que, em 1946, publicou o livro Studies in the Development of Capitalism, traduzido para o portugus com o ttulo de A Evoluo do Capitalismo. Nesta obra, dentre as muitas questes discutidas sob o vis marxista, Dobb questiona o historiador belga Henri Pirenne que em seu livro Histria Econmica e Social da Idade Mdia, de 1926, defendeu a tese de que as cidades ressurgiram no sculo XI a partir da revitalizao do comrcio internacional. Para ele, nos cruzamentos das rotas das caravanas que vinham do Mediterrneo, surgiram feiras que, posteriormente, transformaram-se em cidades. Dobb rejeita esta tese e afirma existir muitas vises a respeito desse processo. Para ele, o comrcio internacional no explica a causa do surgimento das cidades medievais. Disso resulta que, em suas palavras, por fora de coerncia, deve-se contentar por enquanto com uma explicao ecltica do surgimento das cidades medievais (DOBB, 1987, p. 55). Esta perspectiva foi durante criticada principalmente por Paul Sweezy que reafirmou a teoria de Pirenne. J Lewis Mumford, defendeu a tese de que o nascimento das cidades medievais esteve ligado muito mais necessidade de proteo que propriamente de comrcio, segundo ele, uma atividade pouco regular. Mas ele parece concordar com Maurice Dobb quando afirma que esse movimento urbano que nasceu da insegurana e desordem da Europa romnica, teve uma existncia dividida em partes: marchava sob vrias bandeiras, nasceu de diferentes circunstncias e produziu resultados diversos (MUMFORD, 1998, p. 272 277). Do debate em questo, originaram-se vises nem sempre concordes e termos dos mais variados sentidos como surgimento, reaparecimento, revitalizao, renascimento etc.

  • 23

    p. 399). Por meio de lutas intestinas, de concesso e reverso de direitos, os reis foram,

    paulatinamente, estabelecendo seus poderes sobre seus territrios (ELIAS, 1993, p. 88 89.

    2v).9 Os elementos visuais confirmadores dessa ordenao social, grosso modo, era o castelo,

    as igrejas, a catedral com suas torres em caso de cidades maiores , a abadia ou o convento

    e, envolvendo tudo isto, a muralha smbolo singular das cidades no Medievo. O traado

    dessas cidades, embora parea obedecer mais s necessidades cotidianas do que a um

    planejamento orgnico, apresenta linhas que convergem a um ponto determinado. Trata-se,

    portanto, de um sistema rdio-concntrico representado por ruas curvas que, segundo

    Mumford, contornavam o ncleo central da cidade e davam mais segurana e proteo a seus

    habitantes (MUMFORD, 1998, p. 326 332).

    O mecanismo de dominao e a expanso territorial criaram as condies para a

    consolidao dos poderes da realeza. Nos quadros polticos destas monarquias eram gestados

    os novos Estados Nacionais. Esses, geralmente sediados em uma cidade-capital, despontavam

    como instrumentos plausveis de afirmao das novas foras produtivas. As transformaes

    econmicas, polticas e sociais da Baixa Idade Mdia foraram o aparecimento de novos

    mecanismos de controle social que punham em cheque as prerrogativas senhoriais. As novas

    foras produtivas em desenvolvimento lastrearam o surgimento de uma sociedade mais

    complexa, escalonada pela diviso das atividades laborativas.

    A revitalizao das prticas comerciais promoveu o aparecimento de novas cidades

    junto aos castelos, igrejas, mosteiros e abadias (BLOCH, 1987, p. 415 416). O tecido

    urbano, resultante dessas matrizes funcionais supracitadas, passou a refletir as exigncias da

    nova ordem. Um investimento de energia e capital movimentou a construo de cais,

    mercados, pontes e igrejas paroquiais (PIRENNE, 1982, p. 59). A expanso do comrcio

    descreve um itinerrio que toma como ponto de partida a simplicidade das carroas ou das

    tendas ao ar livre, nos cruzamentos de rotas, junto aos muros e portas das fortificaes, at os

    amplos espaos internos da cidade (LOPEZ, 1988, p. 62). As cidades se tornaram ilhas de

    liberdade que, em certa medida, absorviam o excedente populacional campestre.

    O trao mais notvel das alteraes da ordem espacial urbana foi dado pela mudana

    do eixo poltico da catedral (centro natural de encontro dos cidados), para o palcio pblico

    com suas funes administrativas e judiciais. O ncleo bsico dessa ruptura foram as

    9 Um exemplo notvel dessa dinmica foi a luta entre o rei Lus VI, herdeiro de Roberto Capeto e a famlia

    Montlhry. O rei Roberto em 1015 doou aos Montlhry uma vasta rea em torno de Paris e Orlans. Acrescido a esse territrio foi concedido a esta famlia o direito de construo de um castelo. Em pouco tempo os Monthlry j dominavam toda a rea circundante, impondo sobre ela a autoridade de senhores independentes, restringindo a comunicao entre Paris e Orlans. O resultado final dessa disputa foi uma luta de conquista que consumiu boa parte do reinado de Lus VI.

  • 24

    corporaes de mestres e ofcios. Essas corporaes, medida que se faziam imprescindveis

    ao desenvolvimento da cidade, impunham limites aos direitos tradicionais. O jus mercatorum

    o exemplo evidente dessa nova configurao de poder.10 A essa evoluo acompanhou-se

    um incremento das leis de regulagem das atividades sociais de produo.

    As magistraturas, o desenvolvimento de um sistema centralizado de poder, os

    privilgios dele decorrentes, a acumulao de funes administrativas acentuaram as

    rivalidades entre os grupos. Na Itlia, onde esse modelo comunal parece comportar certa

    regularidade, essas lutas foram intensificadas a partir do sculo XIII. As disputas entre as

    famlias abastadas representavam um desafio ao bom andamento das funes pblicas. A

    ascenso material de indivduos provenientes das camadas baixas da populao e sua busca

    por prerrogativas polticas aprofundaram as divergncias entre os novos ricos e as classes

    senhoriais. Famlias como a dos Alberti, dos Medici, dos Albizzi, dos Strozzi e outras,

    sobressaram dos estratos mais baixos da sociedade do fim da Idade Mdia e ganharam

    projeo social no Mundo Moderno (Ibid., p. 33 e 58).

    As lutas polticas se tornaram a base do processo de emancipao dessas classes e,

    como consequncia, fundamentaram a autonomia dos centros urbanos aos quais pertenciam.

    Amparados na riqueza e no mecanismo que ela movimentava numa esfera maior de poder,

    esses novos ricos (nouveaux riches) conseguiram, por meios da instituio de direitos

    urbanos, restringir, ou mesmo proibir, o acesso da nobreza ao poder. Em outras palavras, no

    era to somente a conquista de privilgios que arregimentavam os novos ricos, mas tambm

    o privilgio territorial inerente ao solo urbano (PIRENNE, 1982, p. 57). As medidas

    restritivas impostas pela comuna, no somente aos nobres, mas tambm s classes populares,

    fizeram da excluso social a norma de preservao do prprio sistema (MUMFORD, 1998, p.

    450). O ar que tornava os homens livres na cidade no era o mesmo que os tornavam

    cidados. A bem dizer, era o ar do mercado que lhes conferia tal estatuto. A participao na

    dinmica mercantil daquelas praas exigia que o indivduo nela residisse por, no mnimo, um

    ano e um dia e fosse admitido pelo sistema corporativo da cidade. Como at as sociedades

    mais prsperas e organizadas tm seus mendigos, seus invlidos, seus bbados, marginais de

    todos os tipos polticos e religiosos , os centros urbanos medievais e mesmo os modernos

    no eram diferentes. Neles a riqueza de alguns contrastava com a misria de outros tantos

    tomados de acoite pelo advento das relaes pr-capitalistas.

    10 Segundo Pirenne, essa talvez seja a origem dos tribunais que o direito ingls designa de courts of piepowders,

    ou seja, tribunais dos ps poeirentos.

  • 25

    As segregaes cotidianas tornavam o ambiente citadino instvel e perigoso. A maior

    parte dos trabalhadores dessas cidades existia em separado do mercado de trabalho. Eram

    poucos os que dispunham de um lugar no sistema produtivo das comunas. Segundo o

    historiador Jacques Le Goff, o percentual de trabalhadores alocados formalmente nas

    corporaes de Paris, no sculo XIII no superava o ndice de 30%. Os demais indivduos

    orbitavam em torno de trabalhos temporrios como prestadores de servios. Os mais

    afortunados, segundo ele, podiam conseguir contratos semanais. Nestas condies de misria

    multiplicava-se o nmero de excludos (mendigos, punguistas, ladres) assim como as

    agitaes e revoltas. As reivindicaes dos midos eram seguidas de grandes

    demonstraes de fora por parte das classes dirigentes. O estatuto de Douai de 1245 nos

    evidencia esta situao: Ningum deve ter a audcia nesta cidade, s ou acompanhado,

    homem ou mulher da classe baixa, de comear uma greve. Se algum a empreender, pagar

    uma multa de 60 libras e ser banido da cidade, estar sujeito mesma multa, qualquer que

    seja o seu ofcio (LE GOFF, 1998, p. 233). Ainda segundo Le Goff, as convulses sociais

    em Paris e Douai no parece contrastar com outras praas, a exemplo das cidades italianas do

    mesmo perodo. O movimento comunal na Itlia impunha um sistema de excluso social que

    operava por meio do afastamento das classes tradicionais e a proteo vigorosa ao lucro. O

    resultado dessa poltica mercantil foi evidenciado nas contestaes inorgnicas, espasmdicas

    e, em certos sentidos, espontneas das classes populares, a exemplo da revolta de Siena em

    1355 e dos revoltados de Ciompi em 1378.

    O sculo XIV foi marcado pelo emperramento dos mecanismos de produo social. A

    crise do sistema feudal ocorrida neste perodo se abateu sobre as cidades e as demais

    estruturas da sociedade europeia. As fomes, as pestes e as guerras promoveram uma

    verdadeira hecatombe. Ningum estava livre da Peste. Nas cidades e nos campos a Peste

    imps a destruio (PEDRERO-SNCHEZ, 2000, p. 193). Os corpos eram amontoados nas

    ruas e os vivos, de fato, quase no conseguiam enterrar os mortos, ou os evitavam com

    horror (Ibid., p. 194). Extensas zonas foram evacuadas. Muitos edifcios, grandes e

    pequenos, caram em runas nas cidades, vilas e aldeias, por falta de habitantes, de maneira

    que muitas aldeias e lugarejos se tornaram desertos, sem uma casa ter sido abandonada neles,

    mas tendo morrido todos os que a viviam (Ibid., p. 197). Entre 1347 e 1349, o cronista

    sienense Agnolo di Tura de Grasso escreveu: Tantos morreram que todos acreditam tratar-se

    do fim do mundo (RICHARDS, 1993, p. 25). Neste sentido, no parece estranho que as

    tentativas de resoluo, as mais variadas, tenham sido feitas com o propsito de recuperar a

    ordem pretrita do mundo. Procisses de flagelantes, exploses selvagens de violncia cata

  • 26

    de um bode expiatrio (Ibid., p. 26), tarantismo, massacres e perseguies s minorias

    consideradas disseminadoras de males como prostitutas, homossexuais, judeus, bruxas e

    hereges tiveram a cidade como cenrio.

    Fig. 1. A morte no perdoa nem bispo nem nobre. Guyot Marchant, La Danse Macabre, 1485. Paris.

    Os ataques da Peste se repetiram ao longo de todo o sculo XIV e posteriormente a

    ele, chegando mesmo ao sculo XVIII (WOLFF, 1988, p. 17 19). Na maioria das vezes, a

    organizao formal das cidades dificultava o combate epidemia. Ruas circulares, estreitas,

    com baixa luminosidade, pouca ventilao e a falta de higiene tornavam os ambientes

    insalubres, facilitando o contgio da doena. Segundo o historiador francs Jean Delumeau,

    a peste, nas ruas estreitas e sujas das cidades desse tempo, propagava-se como fogo. Os contemporneos deram, sobre as vtimas da doena, nmeros comparveis queles que foram j possvel obter em relao a Florena ou Albi no tempo da Peste Negra: 600 mortos por dia em Constantinopla (1466), 230 000 falecimentos em Milo no tempo de Ludovico, o Mouro, 50 000 em Veneza entre 1575 e 1577, 40 000 em Messina entre 1575 e 1578, 60 000 em Roma (1581). Estes nmeros, naturalmente, sero exagerados, mas indicam, sem erro possvel, que um quarto ou um tero de uma cidade podia desaparecer bruscamente numa poca em que os conhecimentos de higiene e de medicina no davam defesa contra o contgio. E concordam com todas as narraes j lidas, com a descrio de ruas juncadas de mortos, da carroa que passava diariamente cheia de cadveres empilhados uns sobre os outros, em to grande nmero que j no se podia dar-lhes sepultura (DELUMEAU, 1994, p. 256. 1v).

  • 27

    Por muito tempo, esta foi a forma como a historiografia caracterizou o sculo XIV, e

    parte do XV: um perodo de estagnao, de depresso, de crise, marcados pelas fomes, as

    epidemias e as guerras. Todavia, a partir de 1950 as pesquisas realizadas em histria

    demogrfica e econmica expuseram uma extensa documentao sobre o perodo, a exemplo

    dos registros notariais de preos, salrios e rendas, assim como a descoberta do catasto

    florentino de 1427 (WOLFF, 1988, p. 253 254)11 registro de bens das pessoas tributveis

    de Florena e das cidades sob seu domnio. Os cruzamentos dos dados do castato puseram em

    evidncia no apenas os gastos da Repblica,12 o comprometimento fiscal de seus cidados

    o que comprova a tese dos defensores da ruptura e a existncia de um sofisticado aparelho

    burocrtico, mas tambm um quadro social dinmico e bastante complexo. No obstante todas

    essas descobertas, afirma Philippe Wolff, ainda resta muito a ser analisado e compreendido.

    preciso levar em considerao o carter fragmentado dessas fontes e a multiplicidade de

    cenrios discordantes que, vez por outra, surgem entre documentos analisados. Contudo,

    possvel afirmar que estes sculos tambm se evidenciam pelas grandes descobertas e

    invenes, pela extensa produo intelectual e pelo incremento das atividades econmicas,

    polticas e sociais. Os sculos XIV e o XV, portanto, para Philippe Wolff, se mostra como

    termo mdio entre o mundo feudal e o moderno. Assim, se a designao de outono da Idade

    Mdia, tal qual os caracterizou Jan Huizinga, legtima, tambm o defini-lo como a

    primavera dos novos tempos, segundo Wolff. Em qualquer dos casos, notrio que se trata

    de um perodo instigante, de transio, de transformaes rpidas e tentaculares, que imps

    Europa uma nova viso de uma nova civilizao, mais urbana que rural, ou, como afirmou

    poeticamente o historiador Jacques Le Goff, uma nova civilizao que desabrochava sobre o

    cheiro de sangue e rosas (1992, p. 235).

    Em termos urbansticos, este perodo tambm apresenta um duplo carter: por um lado

    significou uma cristalizao do tipo medieval de cidade, por outro, a superao desse modelo,

    o alvorecer de uma nova cultura urbana, mais regular e mais articulada s circunstncias

    polticas de cada lugar. Mesmo no se tratando de um perodo de paz e de grandes

    prosperidades, exceto em alguns casos, o sculo XV foi marcado por profundas e

    intermitentes transformaes do tecido urbano. Segundo Donatella Calabi, possvel observar 11 Publicado em 1978 por Christiane Klapisch e David Herlihy, o catasto florentino mudou, por completo, os

    conhecimentos a respeito da demografia medieval daquela regio. Composto em 1427, o catasto traz em si, de forma muito bem preservada, segundo Philippe Wolff, um retrato bastante detalhado das rendas, das tenses sociais, das relaes entre Florena e as pequenas cidades por ela anexadas, das dimenses territoriais, do nmero de famlias e de indivduos (pelo menos os tributveis), das propriedades e dos bens dos florentinos. O catasto, juntamente com toda a documentao produzida nos sculos XIV e XV, corresponde, de acordo com Wolff, a uma verdadeira revoluo intelectual.

    12 Por Repblica entende-se aqui a cidade de Florena.

  • 28

    quatro linhas de tendncias consoantes s quais se deu a renovao das cidades europeias:

    primeiro, um investimento de capital na melhoria da rede viria. Ruas mais largas, retas,

    convenientes ao trfego de pessoas e mercadorias so observadas em boa parte das cidades.

    Fig. 2. La Tavola Strozzi su Napoli. Rosselli, F. (?), 1483. Museu de S. Martino, Npoles.

    Todavia, embora exista a tendncia regularizao do traado, muitas dessas ruas

    continuaram correspondendo natureza do lugar e s intervenes do poder pblico.

    Fig. 3. Planta em perspectiva de Npoles. Duperac E. A. Lafrery, 1566. Npoles

  • 29

    As pontes foram tambm ampliadas e aparelhadas conferindo suporte e sentido nova

    estrutura viria de produo e comrcio (CALABI, 2008, p. 57 62);13 segundo, a realizao

    de novos tipos edilcios, resultante da abertura de ruas, bairros e praas, impe mudanas

    fundamentais ao funcionamento dos mesmos. As praas, geralmente retangulares, passaram a

    abrigar funes cada vez mais complexas e especializadas, identificando-se com as

    necessidades religiosas, governamentais e de mercado (Ibid., 67 89); terceiro, a ampliao

    dos bairros, em consequncia do adensamento demogrfico, teve um impacto importante na

    hierarquia funcional de algumas cidades. O aumento considervel do nmero de palcios e

    edifcios (pblicos e privados) dotou as cidades de um carter mais dinmico e policntrico,

    incidindo sobre a administrao pblica. Um novo esquema tipolgico de residncia, mais

    conveniente s exigncias funcionalistas, se imps no tecido urbano (casas para os

    mercadores, para os artfices, para os senhores; casas para moradias e aluguis etc.); uma rede

    de novos equipamentos se destacou nessa paisagem urbana, tais como bibliotecas, hospitais,

    leprosrios (tambm chamados de hospital dos lzaros), tribunal de justia, casas de crdito,

    cmbio, bolsa e, no menos importantes, igrejas e catedrais, cujas obras de ampliaes e

    renovaes estilsticas conferiram-lhes um carter monumental e poltico, destacando-as

    como novos pontos de convergncia visual da cidade; quarto, a elaborao terica e o

    aperfeioamento dos modelos de referncia.

    Antes mesmo que o primeiro tratado moderno de arquitetura viesse a lume, j a

    preocupao com a organizao social do espao, em cidades constantemente abaladas pelo

    antagonismo poltico-social e pelas exigncias ordinrias das classes dirigentes, faz-se

    presente nos tratados de poltica, nos panegricos, cartas e crnicas. O De Re dificatoria, de

    Leon Battista Alberti, foi a primeira obra do gnero a fulgurar no horizonte ps-medieval e a

    prestar, sem sombra de dvidas, uma importante contribuio ars aedificandi e formao

    do homem moderno. Escrita em 1452 e publicada em 1485, esta obra no apenas props

    solues aos problemas urbanos e sociais de sua poca, como tambm objetivou preservar e

    rediscutir o pensamento dos antigos. Embora para alguns estudiosos Alberti repita as formas e

    esquemas da cidade medieval, no se pode negar que, pela primeira vez no mundo moderno,

    uma obra logrou traduzir, em regras e endereos, a organizao dos conhecimentos

    construtivos at ento transmitidos pelos costumes e ordenanas das municipalidades. Assim

    13 As pontes construdas ou reformadas no sculo XV se destacam na paisagem urbana pela grande quantidade

    de funes que desempenham. Serviam como instrumento de defesa, impedindo a aproximao de embarcaes nas proximidades de cidades beira-mar, como posto de pedgio, de fiscalizao aduaneira e como depsitos, alm de abrigar uma grande quantidade de atividades de produo e comrcio especializados como joias, porcelanas, quadros, armas, tecido, chapus, papis, artigos em couro, remdios, perfumes, tapetes etc.

  • 30

    como Alberti, tambm se destaca, a partir de ento, o Trattato di Architettura de Filarete; o

    tratado de Architettura Civile e Militare de Francesco di Giorgio Martini; I Quattro Libri

    dellArchitettura de Andrea Palladio; A Arte de Fortificar as Cidades e as Cidadelas de

    Albrecht Drer; LIdea della Architettura Universale de Vincenzo Scamozzi, dentre outros.

    Isso posto, possvel afirmar que a cultura humanstica surgida nas cidades italianas entre os

    sculos XIV e XVI manifestou-se, tambm, nos tratados de arquitetura (GARIN, 1996, p. 10,

    passim). Este novo campo de saber, s voltas com a realidade concreta do social, permitiu a

    ampliao do espao de discusso poltica. centralidade da cultura, fundamentada sob o

    signo da revalorizao da Antiguidade Clssica greco-romana, produziu o fenmeno

    sociocultural denominado risorgimento, posteriormente Renascena ou Renascimento.

    1.2. RENASCIMENTO E HUMANISMO: etiquetas cmodas ou processo civilizatrio?

    Os estudos acerca do Renascimento ou Renascena foram marcados por uma longa

    srie de controvrsias, ambiguidades e imprecises. A primeira e mais longa das controvrsias

    orbitou em torno da continuidade ou da ruptura entre Idade Mdia e Idade Moderna.

    A concepo do Renascimento como ruptura remonta aos sculos XIV, XV e XVI,

    quando, na tentativa de impor uma viso de mundo oposta ao teocentrismo medieval, os

    humanistas o afirmaram como risorgimento ou conforme se verifica na obra de Giorgio

    Vasari, como ressurreio das artes. Sculos mais tardes, j no XIX, o velho conceito

    reaparece agora problematizado pelas concepes de Michelet e Jacob Burckhardt, mas ainda

    sob o prisma da novidade, do risorgimento.14

    Nas primeiras dcadas do sculo XX, mais precisamente no ano de 1942, quando, no

    Collge de France, Lucien Febvre ministrou seu curso intitulado Michelet et la Renaissance,

    deu-se incio ao debate entre continustas e defensores da ruptura. Contrapondo-se ideia de

    que a Renascena significou um aperfeioamento da personalidade, um despertar da

    conscincia e da individualidade tese defendida por Burckhardt15 , Febvre afirmou ser a

    Idade Mdia e a Moderna rtulos, etiquetas cmodas (FEBVRE, 1995, p. 34) que, fixadas

    14 A anlise de como o Renascimento chegou Frana de Lus XI, descrita por Michelet, evidencia a forma

    como o historiador pensou esse movimento. Em suas palavras, um acontecimento bem grandioso se cumpria. O mundo estava mudado. No havia um Estado europeu, mesmo dos mais atrasados, que no se encontrasse envolvido num movimento totalmente novo (FEBVRE, 1995, p. 199).

    15 Para Arnold Hauser, as percepes de Michelet e Burckhardt foram regidas pela ideologia do liberalismo do sculo XIX. Em suas palavras, a descoberta da natureza pela Renascena foi uma inveno do liberalismo do sculo XIX, que colocou o deleite renascentista na natureza em contraste com a Idade Mdia, a fim de desferir um golpe na filosofia romntica da Histria (HAUSER, 1998, p. 275).

  • 31

    sobre tais contextos histricos, tinham a pretenso de melhor design-las. Segundo ele, no

    era possvel determinar onde terminava a Idade Mdia e comeava a Idade Moderna.

    Ademais, era um erro conceber o Renascimento como um individualismo sem freio e a Idade

    Mdia como um comunitarismo sem sal (Ibid., p. 33); um equvoco:

    imaginar que um toque de varinha mgica, despertando as individualidades adormecidas, assim como nos contos de fadas o jovem cavalheiro desperta hspedes que dormem no palcio da Bela Adormecida, tenha podido transformar em alguns anos aquele mundo dormente num mundo de indivduos exaltados e furiosos puerilidade ainda. No, certamente, no se trata de perodos. A histria no feita de fatias alternadas nas quais se possa grudar alternativamente duas etiquetas: individualidade coletividade. Qualquer desenvolvimento de civilizao mostra ao observador uma dupla srie de efeitos (Ibid., p. 437).

    Na dcada de 1950, depois da publicao do livro Lumanesimo italiano, do

    historiador, tambm italiano, Eugenio Garin, o debate entre os defensores da continuidade

    entre Idade Mdia e Idade Moderna, e aqueles que advogavam em favor de uma ruptura

    radical , foi reiniciado. Os continustas, ou medievalistas, atestavam que as disciplinas e

    conhecimentos adquiridos por meio dos documentos antigos j faziam parte da realidade do

    homem medieval e que, portanto, os humanistas quase nada tinham acrescentado tradio do

    Medievo. A tese principal dos defensores da continuidade, originalmente postulada pelo

    historiador Paul Oskar Kristeller, destitua a Renascena do seu carter poltico, cientfico,

    para dot-lo de caractersticas puramente intelectuais, sem qualquer efeito prtico.

    O humanismo italiano do Renascimento foi um humanismo que no era nem verdadeiro nem integral, nem Cristo, nem cientfico no sentido corrente da palavra. Ele era simplesmente (o que no pouco) uma orientao cultural em direo ao estudo das lnguas, da literatura, da histria e da filosofia da antiguidade grega e latina e uma renovao da poesia e da prosa oratria, da historiografia e do pensamento moral tudo isso buscando inspirao, tanto na forma quanto no contedo, nos modelos fornecidos pelos autores antigos (KRISTELLER apud BIGNOTTO, 2001, p. 21).

    Garin rebateu esta tese ao afirmar o humanismo como um movimento original de

    ideias que fundamentou a Renascena e permeou todas as estruturas da vida civil. Em suas

    consideraes:

  • 32

    o arteso florentino foi na Europa o primeiro a participar da cultura cientfica. [] A vista e a mo prepararam os primeiros elementos da cincia do intelecto e todo o pensamento se pe ao servio, no da especulao soberba e estril, mas daquilo que, tempos depois, Bacon chamaria de scientia activa (GARIN, 1994, p. 16).

    Ademais, acusou os defensores da continuidade de formular hipteses partindo de uma

    esquematizao das prticas sociais em categorias estanques como se no houvesse qualquer

    articulao entre elas.16

    Para Garin, a Renascena foi um movimento cultural complexo, de mltiplas faces e

    variantes intercambiveis (Ibid., p. 11). Suas observaes mudaram o foco da discusso

    acerca do humanismo. Enquanto os historiadores, defensores da continuidade, viam no

    humanismo renascentista uma sntese cultural verticalizada nas relaes com os valores da

    Antiguidade Clssica, Garin o percebeu como instrumento de afirmao de uma nova ordem,

    de outra conduta diante dos fatos e da vida. Para ele, o humanismo no era somente um

    exerccio de erudio, orientado magnificao das elites da poca, mas uma prtica social

    difundida em todas as camadas da sociedade (Ibid., p. 16). Em suma, o autor defende a

    existncia de uma cincia, de uma poltica e de uma cultura prprias do Renascimento; no

    nega as permanncias, as continuidades, mas afirma as inovaes do perodo como as mais

    pertinentes ao desenvolvimento das prticas sociais modernas. Na esteira desse debate

    iniciado por Garin em 1947, Paul Kristeller em 1950 e Hans Baron em 1955, vieram

    estudiosos como Quentin Skinner, Jean Delumeau, Lewis Mumford, Arnold Hauser, Jacques

    Le Goff, dentre outros. Alis, este ltimo, eminente historiador francs, defendeu

    recentemente a tese de uma longa Idade Mdia entre os sculos V e o XIX.

    Contudo, em torno ao debate da continuidade e da ruptura, surgiu como mais um

    ponto de controvrsia entre os grupos a polmica acerca do carter poltico do humanismo

    italiano identificado por Hans Baron com o nome de humanismo cvico.

    Em 1955, a partir da anlise criteriosa de Garin que destacou o perfil intelectual da

    Itlia e o desenvolvimento de um novo esprito cvico,17 Baron considerou que o significado

    16 Segundo Eugenio Garin, um nmero demasiado grande de historiadores, ou que acreditam s-lo, por uma

    exigncia de continuidade cada vez mais exasperada (the cancerous growth of the continuity), esfora-se para apresentar a cincia do sculo XVII como o ltimo pargrafo do saber medieval, esvaziando a importncia de parte da obra dos sculos XV e XVI, unicamente por no conseguir inclu-la nos esquemas do passado. No percebem a armadilha implcita nessa maneira de compreender a continuidade, confinada, em ltima anlise, aos limites de uma linearidade fixada segundo classificaes escolsticas. Dessa maneira fecham toda via de acesso aos momentos da histria em que a ordem se dilua e o novo ainda no se afirmara. As novas concepes, e as revolues que lhe so solidrias e as fazem triunfar, no se explicam dentro dos quadros do passado, em relao aos quais representam um desvio (GARIN, 1996, p. 9).

  • 33

    poltico de autores como Francesco Petrarca, Coluccio Salutati, Leonardo Bruni dentre outros,

    era muito mais expressivo do que at aquele momento havia sido verificado. E interpretou

    essa outra fase dos studia humanitatis como sendo uma nova forma de compreenso da vida

    social, denominando-a de humanismo cvico. A tese de Baron, em pari passu com a de Garin,

    centrou-se na ideia de uma mudana de perspectivas polticas entre o Medievo e a

    Renascena. Na viso de Baron, o humanismo cvico foi um instrumento ideolgico que se

    originou na Itlia a partir do sculo XIV no mbito das lutas civis, da guerra contra o papado

    e, principalmente, da poltica expansionista do senhor de Milo, Gian Galeazzo Visconti,

    entre os anos de 1385 e 1402.

    As crticas ao conceito de humanismo cvico de Baron e, por consequncia direta, de

    Garin, comeam a aparecer j na dcada de 1960. O ncleo principal das discusses era a

    ideia de ruptura sustentada por ele. Para os estudiosos que se contrapunham a Garin e Baron,

    os humanistas do Quattrocento no haviam acrescentado qualquer novidade cincia,

    retrica e nem mesmo aos estilos j existentes na Idade Mdia. Ao contrrio, estes se

    limitaram a repetir as frmulas medievais h muito utilizadas. Nem mesmo a defesa de certos

    valores republicanos lhes foi original, uma vez que diversos autores, seguidores de Toms de

    Aquino, assim j o faziam nas lutas contra as tiranias do sculo XIII. Todavia, na dcada de

    1970, Baron reafirmou seu ponto de vista acerca da ruptura e asseverou que no desconhecia

    a existncia desses elementos nas concepes do Medievo, mas que, o essencial para ele, era a

    forma como, no final do sculo XIV, esses conhecimentos passaram a ser utilizados.

    17 Em seu livro Cincia e Vida Civil no Renascimento Italiano, escrito na dcada de 1960, Garin reafirmou os

    princpios defendidos em seu LUmanesimo Italiano da seguinte forma: A cultura humanstica que desabrochou nas cidades Italianas entre os sculos XIV e XV, manifestou-se principalmente no campo das disciplinas morais []. Concretizou-se nos mtodos educativos adotados nas escolas de gramtica e de retrica; atuou na formao dos dirigentes das cidades-Estado, oferecendo-lhe tcnicas polticas mais refinadas. Serviu no apenas para a compilao eficaz do epistolrio oficial, mas tambm para formular programas, compor tratados, definir ideias, elaborar uma concepo da vida e do significado do homem na sociedade. As palavras de um passado com o qual se pretendia estabelecer uma continuidade de tradio nacional, os livros de autores dos quais todos se proclamavam herdeiros contriburam para uma auto-conscincia e para a formao de uma viso de conjunto da histria do homem (Ibid., p.10). Grosso modo, na perspectiva historiogrfica de Eugenio Garin, o humanismo cvico, ou, com ele o designou, sua vocao cvica, foi o resultado de um desdobramento circunstancial dos Studia humanitatis a partir dos estudos das artes, da lgica e da retrica. Sua interface com os campos da moral e da poltica traz as marcas de uma conjuntura especfica, a saber, a guerra dos florentinos contra o papa Gregrio XI, a tentativa de domnio de Gian Galeazzo Visconti e, por ltimo, os Tumultos dos Ciompi. Construdo s margens das ctedras universitrias e dos tericos das cortes refinadas, esse humanismo, inaugurado por Petrarca, surgiu, segundo Garin, no Pallazo dei Signori de Florena, com os chanceleres Coluccio Salutati, Leonardo Bruni, Carlo Marsupini, Poggio Bracciolini, Benedetto Accolti e Bartolomeo Scala. Estes, especialmente Salutati e Bruni, ergueram Florena categoria de legtima defensora da liberdade, herdeira inconteste do passado glorioso da antiga Roma republicana. A funo poltica desses homens junto municipalidade teve um papel importante na renovao do saber que recebeu de Petrarca.

  • 34

    Dentre as principais crticas dirigidas ao humanismo cvico, enquanto pressuposto de

    uma ruptura com as concepes medievais de vida pblica, encontra-se o trabalho do

    historiador ingls Quentin Skinner. Este dedicou nove dos dezoito captulos de seu livro As

    Fundaes do Pensamento Poltico Moderno para provar que as razes de muitas teorias

    utilizadas pelos humanistas do Quattrocento j faziam parte do Medievo porque derivaram do

    estoicismo romano. Portanto, para este autor, negar a teoria republicana e a valorizao da

    doutrina cvica de Ccero como inexistentes no perodo medieval se constitui um grave

    equvoco, pois, parte dos elementos dessa conscientizao poltica teve sua origem na

    escolstica francesa, importada para a Itlia cerca de um sculo antes. Em suas palavras,

    havia,

    porm, dois fatores ambos centrais numa leitura do humanismo renascentista que nos obrigam a questionar a exposio de Baron. O primeiro que, tratando a crise de 1402 como um catalisador que fez emergir novas ideias Baron ignorou em que medida tais ideias no eram novas em absoluto, mas, antes, um legado das cidades-repblicas da Itlia medieval. O outro problema que, enfatizando as qualidades especficas do humanismo cvico, Baron deixou de considerar a natureza dos elos que havia entre os escritores florentinos de incio do quatrocentos e o movimento, mais amplo, do humanismo petrarquiano, que j desenvolvera no correr do sculo XIV (1996, p. 93).

    Para Skinner, a descoberta e traduo dos textos de Aristteles, a partir dos sculos

    XII e XIII, alm de ter conferido as bases da escolstica francesa, tambm contribuiu para o

    surgimento do humanismo renascentista na Itlia. Textos como a tica a Nicmaco, traduzido

    parcialmente por Hermannus Alemannus em 1243, seguida de uma traduo integral, ainda na

    dcada de 1240, feita por Guilherme de Moerbeke, o mesmo que, pouco depois de 1250

    tambm realizou a primeira traduo de A Poltica, alm de influenciar profundamente as

    obras de eminentes doutores da Igreja, autores do quilate de Alberto Magno e Toms de

    Aquino, tambm serviram de esteio aos pr-humanistas. Seus receptores italianos foram Joo

    de Viterbo, Brunetto Latini, Dino Compagni, Bonvesin della Riva, Marslio de Pdua, Bartolo

    de Saxoferrato etc (Ibid., p. 71).

    Em linhas gerais, Skinner afirma que o problema da teoria de Baron, ou seja, do seu

    conceito de humanismo cvico, foi desconsiderar em que medida os humanistas do

    Quattrocento se serviram da produo dos dictatores medievais. Como se pode observar,

    Skinner no nega o desenvolvimento de uma conscincia cvica entre os humanistas do sculo

    XV. Ao contrrio, assegura que partir de uma perspectiva muito limitada quem

  • 35

    considerando explicar o humanismo com base apenas numa histria interna sua, se dispuser

    por isso a descartar completamente as explicaes externas, como as de Baron (Ibid., p.

    124). E conclui afirmando que mesmo sua tese da ruptura no pode ser descartada em sua

    totalidade, pois seria um equvoco enorme concluir pela existncia de elos igualmente fortes

    entre os humanistas e os expoentes da filosofia escolstica (Ibid., p. 125). Dos escolsticos

    os humanistas herdaram a filosofia moral e suas virtudes cardeais (prudncia,

    magnanimidade, temperana e justia). Todavia, os humanistas do Quattrocento cristalizaram

    sua diferena em relao aos escolsticos ao estabelecer o uso prtico da filosofia na vida

    social e poltica.

    Alberto Tenenti, por sua vez, percebe o humanismo como um trao de uma cultura

    burguesa em ascenso que buscou, por meio de uma conduta menos dogmtica, mais

    autnoma, afirmar uma posio poltica e social. Sua concepo de humanismo, orientada

    pelos princpios da luta de classe, radica no plano da expanso das atividades econmicas com

    amplos alcances socioculturais. No plano artstico, o autor destaca Dante Alighieri, Francesco

    Petrarca e Giovanni Boccaccio como esplendidos frutos, marcos de uma nova civilizao

    surgida nos dois primeiros teros do sculo XIV. No plano poltico, destaque para Coluccio

    Salutati, Leonardo Bruni, Leon Battista Alberti, Giannozzo Manetti, Matteo Palmieri e

    Alamanno Rinuccini, autores que compunham a elite do pensamento poltico de Florena,

    bero do humanismo e de sua precpua vertente cvica. Deste modo, o humanismo italiano do

    perodo se apresenta como produto de nova sensibilidade, de gosto renovado, refletido no

    apenas nas artes, mas em todos os campos da vida prtica cotidiana. Tudo, absolutamente

    tudo, diz Tenenti, medido e calculado. o comportamento de uma humanidade diferente

    daquela que fora concebida at ento pela civilizao do Ocidente (TENENTI, 1973, p. 56).

    Identificado como um instrumento de luta, como a ideologia de uma classe rica,

    designada de popolo grasso, ou magnati, o humanismo descobre que o pathos republicano e

    libertrio de certos autores latinos lhes convm maravilhosamente na luta mantida contra o

    tirano Joo-Galeazzo Visconti [sic.], que ameaava sufocar a cidade (Ibid., p. 59). Munidos

    de um saber tcnico, prtico, condizente com as necessidades operantes do ambiente burgus

    em ascenso, esses humanistas, aos poucos, foram ocupando os cargos (embaixadas,

    chancelarias, direo de escolas superiores, ctedras etc.) que antes eram reservados aos

    telogos, aos pregadores e aos eclesisticos de modo geral. Nessa conjuntura, os humanistas

    se tornam arautos da liberdade. Todavia, ressalta Tenenti, o humanismo no foi um

    movimento politicamente popular. A liberdade reclamada por esse movimento no se estendia

    ao conjunto da populao, mas apenas aos cidados cultural e economicamente afortunados.

  • 36

    Em outras palavras, a liberdade humanista era restrita ao popolo grasso, ao mercador, ao

    letrado e, quando necessrio, ao artista. Em suma, o humanismo foi, para Tenenti, a investida

    eficiente de uma classe amadurecida que soube forjar seus prprios valores e, como eles,

    uma nova civilizao.

    Deste modo, possvel observar que Tenenti, mesmo abstendo-se de tomar partido na

    polmica em torno da legitimidade conceitual do humanismo cvico, entende que o civismo

    que animou os humanistas no sculo XV foi fruto de um novo contexto social, poltico e

    cultural. E, como Hans Baron, afirma que o movente desse retorno vigoroso liberdade

    republicana dos Antigos foi a expanso dos Visconti. Todavia, mesmo aceitando parte da tese

    de Baron e Garin, Tenenti faz ressalvas quanto ao que chamou de engajamento enrgico e

    deliberado dos humanistas na vida poltica de seu tempo (Ibid., p. 132). Para ele, nem todos

    os humanistas do sculo XV participaram da poltica quanto fazem crer as teorias acerca do

    carter civil do humanismo (Ibid., p. 132). Em suas palavras,

    certo que essa problemtica do humanismo civil, no sentido poltico independente com base na cultura antiga, no vai longe e quanto mais se quer alargar-lhe a ressonncia e a zona de esplendor, mais se corre o risco dos desmentidos das realidades poltico-sociais italianas e at florentinas (Ibid., p. 133).

    De fato, preciso considerar que a bandeira da liberdade h muito havia sido

    desfraldada nas principais cidades da Toscana. Outrossim, que o humanismo se prestou a

    diversos papis tanto no plano religioso, como no literrio, artstico, ou mesmo no poltico, o

    que significa afirmar que, sendo a sociedade florentina do sculo XV to rica em contraste,

    seria, portanto, um equvoco considerar apenas a existncia de um tipo nico de relao entre

    os intelectuais humanistas e o restante da sociedade. Por outro lado, tambm no seria justo

    afirmar o humanismo apenas como um exerccio de erudio, um simples retorno ao passado

    sem qualquer implicao poltica e social. Ao contrrio, um empreendimento como esse seria

    inconcebvel sem a necessidade e a aquiescncia de todo um meio socialmente estruturado.

    Como se observa, a polmica extensa e nem de longe pensamos em esgot-la. Nosso

    propsito aqui foi apresentar, por meio de seus aspectos principais, sua definio e a

    problemtica que envolve tal conceito. Sua emergncia est circunscrita a um conjunto de

    fatores: a revolta operria dos Ciompi de 1378; as pretenses polticas da Igreja; a expanso

    milanesa de Gian Galeazzo Visconti que, em 1390, sitiou diversas cidades no norte da Itlia e

    declarou guerra a Florena; a guerra contra Ladislau, rei de Npoles, entre 1412 e 1414; a

  • 37

    retomada da expanso de Milo feita pelo filho de Gian Galeazzo, Filippo Maria Visconti

    entre os anos de 1420 e 1423 e a ascenso dos dspotas que, no caso de Florena, se deu com

    a chegada dos Medici ao poder em 1434. Embora, em linhas gerais, estes fatos paream

    restringir-se unicamente a Florena, seus alcances foram bem mais amplos, envolveram

    grande nmero de cidades, tais como Brescia, Forli, Arezzo, Pisa, Cortona, Livorno, Roma,

    Siena, Verona, Vinceza, Luca, Assis, Perugia, Parma, dentre outras. A partir disso, possvel

    afirmar que o humanismo cvico, embora tivesse Florena como ncleo, no lhe foi restrito.

    Ao contrrio, estendeu-se por um grande nmero de cidades no norte da Itlia com

    caractersticas comuns e variadas de acordo com as circunstncias polticas de cada uma

    delas.

    Paralelo a esse debate, desenvolvia-se, tambm na dcada de 1950, a polmica

    marxista em torno da transio do feudalismo para o capitalismo entre os sculos XIV e o

    XVI. O debate teve origem nas crticas feitas pelo economista norte-americano Paul Sweezy

    obra A Evoluo do Capitalismo do tambm economista, o britnico Maurice Dobb,

    publicada em 1946. Nesta obra, Dobb afirmava a necessidade de se reexaminar as relaes de

    produo no interior do sistema feudal, pois, segundo ele, a tese sustentada pelo historiador

    belga Henri Pirenne, de que o comrcio foi a causa do declnio do feudalismo, no era

    suficiente para elucidar a questo. Para Dobb, a causa da dissoluo do feudalismo devia ser

    buscada nas contradies internas do prprio sistema, na sua ineficincia enquanto modo de

    produo e na necessidade crescente de renda por parte da classe senhorial. Em suas palavras,

    a necessidade de renda adicional promoveu um aumento da presso sobre o produtor a um

    ponto em que se tornou literalmente insuportvel (DOBB, 1987, p. 32).

    Sweezy, por sua vez, pondera que, tanto o feudalismo quanto o capitalismo deveriam

    ser analisados como processos distintos e no como movimentos contguos, imbricados por

    relao de pertena. Para ele, este perodo entre o sculo XIV e o XVI deveria ser entendido

    como intermedirio, uma fase de preparao que teve a acumulao primitiva de capital,

    promovida pelo comrcio, como a mola mestra do colapso feudal. A este perodo o

    economista estadunidense resolveu chamar, tal qual Marx, de pr-capitalista. No que concerne

    s cidades onde o drama da acumulao primitiva de capital foi encenado, Dobb afirmou ser

    insuficiente a explicao que vinculava seu surgimento revitalizao do comrcio como

    havia sustentado Pirenne. Para Dobb, era provvel que os ncleos urbanos medievais tenham

    surgido de formas e circunstncias muito variadas. Assim, sugeriu que, enquanto no se

    chegasse a uma soluo plausvel, convinha aceitar uma explicao ecltica para esse

    processo. Esta via explicativa aceitava como hiptese o fato de que muitas cidades se

  • 38

    desenvolveram a partir dos stios das antigas cidades romanas, que outras tantas tiveram suas

    origens a partir do adensamento populacional em reas rurais e que outras nem chegaram a

    desaparecer, como foi o caso de Gnova e Veneza. Todavia, Sweezy advertiu que Dobb, em

    sua teoria, no conseguiu ver que a ascenso das cidades estava ligada ao comrcio e que,

    dificilmente, poderiam se desenvolver numa economia de tipo feudal. A vida urbana, afirmou

    Sweezy, foi uma consequncia direta do crescimento do mercado e da dissoluo das

    estruturas do mundo feudal.

    Outra interpretao desse fenmeno histrico foi dada por Lewis Mumford. Crtico da

    tese de Pirenne, Mumford defendeu, em seu livro A Cidade na Histria, a tese de que a nfase

    no papel aglutinador do mercado na promoo da cidade era um exagero, uma vez que para

    haver comrcio, segundo ele, fazia-se necessrio, como condio fundamental, uma produo

    de excedente populacional e de produtos rurais. Igualmente, a defesa do comrcio

    internacional como gerador de cidades, tambm no se sustenta uma vez que este era muito

    transitrio e tinha sua ocorrncia, quase sempre, ligada ao calendrio de festas religiosas que

    aconteciam em determinadas cidades no mximo quatro vezes por ano. Quando muito, este

    tipo de comrcio pode ter favorecido o crescimento de algumas cidades como Veneza,

    Gnova, Milo, Bruges etc. Na opinio de Mumford, a revivescncia do comrcio,

    principalmente o internacional, e o surgimento de boa parte das cidades medievais foram

    muito anteriores ao sculo XI. Em contrapartida, o comrcio interno, realizado,

    no raro, duas vezes por semana, sob a proteo do bispo ou abade, era um instrumento de vida local, no o comrcio internacional. Assim, no deve surpreender que, j em 833, quando o comrcio a longa distncia, em sua maior parte, ainda no existia, Lus, o Pio, na Alemanha, desse a um mosteiro permisso para cunhar moedas para um mercado j existente. A revivescncia do comrcio, no sculo XI, portanto, no foi o acontecimento crtico que lanou as bases do novo tipo medieval de cidades: como j mostrei, muitas novas fundaes urbanas antecedem quele fato, e novas provas poderiam ser acrescentadas (MUMFORD, 1998, p. 278 279).

    Mas, voltando s questes que nortearam o debate sobre o Renascimento, h outros

    fatos que precisam ser considerados, tais como as ambiguidades e imprecises que o termo e a

    cronologia desse perodo comportam. Como conceber que uma cultura considerada extinta

    possa retornar, como a fnix da mitologia, vida, com nimos e alegrias renovadas? O que

    caracterizou, de fato, o Renascimento? Em que espao se desenvolveu originalmente? Qual

    foi sua abrangncia social?

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    Os historiadores divergem quanto aos limites cronolgicos do Renascimento. H

    aqueles que o limitam ao sculo XII, como fez Le Goff e Mumford; outros, como Burckhardt,

    Garin e Wolff, que preferiram circunscrev-lo aos sculos XIV e XVI. Mas h tambm

    aqueles que o querem entre o XV e o XVII, como preferiu Braudel; ou mesmo entre o XIII e