A Capoeira e Os Mestres

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTECENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRA E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

    DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS

    A CAPOEIRA E OS MESTRES

    ILNETE PORPINO DE PAIVA

    Natal2007

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    ILNETE PORPINO DE PAIVA

    A CAPOEIRA E OS MESTRES

    Tese apresentada ao Programa de ps-graduao em Cincias Sociais, rea deconcentrao: cultura e representaes, daUniversidade Federal do Rio Grande do Nortepara obteno do ttulo de doutora emCincias Sociais, sob a orientao do Prof. Dr.Edmilson Lopes Junior.

    Natal2007

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    Catalogao da Publicao na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

    Biblioteca Setorial Especializada do Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

    Paiva, Ilnete Porpino de.A capoeira e os mestres / Ilnete Porpino de Paiva. Natal, RN, 2007.166 f.

    Orientador: Prof.Dr. Edmilson Lopes Jnior.

    Tese (Doutorado em Cincias Sociais) Universidade Federal do Rio Gran-de do Norte. Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes. Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais. rea de Concentrao: Cultura e Representa-

    es.

    1. Tradio Tese. 2. Capoeira Mestres Tese. 3. Cultura Tese. 3. Cul-tura popular - Tese. 4. Sociologia da cultura Tese. II. Lopes Jnior, EdmilsonIII. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. IV. Ttulo.

    RN/BSE-CCHLA CDU 39SNBSE-CCHLA

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    ILNETE PORPINO DE PAIVA

    A CAPOEIRA E OS MESTRES

    Aprovada em ___/___/___

    BANCA EXAMINADORA

    Prof Dr. Edmilson Lopes Junior UFRN (Orientador)

    ________________________________________________

    Prof Dr. Marcos Ayala UFPB (1 Examinador Externo)

    ________________________________________________

    Prof Dr. Pedro R. J. Abib UFBA (2 Examinador Externo)

    _________________________________________________

    Prof Dr. Luiz Carvalho de Assuno (Examinador Interno)

    ________________________________________________

    Prof Dr. Edmundo Marcelo M.Pereira UFRN (2 Examinador

    Externo)

    ________________________________________________

    Prof Dr. Alexsandro Galeno A. Dantas UFRN (1Suplente

    Interno)

    _________________________________________________

    Prof Dr Norma Missae Takeuti UFRN (2 Suplente

    Interno)

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    Dedico

    A Raul, meu filho, que a cada dia meensina a ser aprendiz.

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    AGRADECIMENTOS

    - Quero expressar minha gratido, especialmente, aos Mestres deCapoeira, que de forma generosa me acolheram, me permitiram invadiras suas vidas.

    - Ao professor Dr Edmilson Lopes Jnior, orientador que com sua calmaconseguiu estar ao meu lado, ao mesmo tempo em que me fazia

    caminhar com minhas prprias pernas.

    - Ao professor Dr Joo Bosco Arajo da Costa, auto declarado ateu-filhode Oxossi que me abriu os caminhos para a escolha do tema de estudo.

    - A Base de Cultura Popular pela acolhida que me proporcionou momentossingulares de apreenso do conhecimento.

    - A todos os professores do programa da ps-graduao que lecionaramas disciplinas de maneira a tornar o tempo de estudo um prazer.

    - banca de qualificao, professora Dr Terezinha Petrscia Nbrega eprofessor Dr. Luiz Assuno pelas valiosas observaes, que mefacilitaram tecer o resultado final do trabalho.

    - A Cyro Almeida, pela prestatividade com que fez o abstract.

    - A Hilanete Porpino, minha irm que, como em tantas outrascaminhadas, me deu beijo e abrigo; dessa vez pela dedicao com quefez a reviso do trabalho.

    - A minha me, Ivonete que com fora e simplicidade tornou mais leve osmomentos que se anunciavam difceis.

    - As amigas Isabel, Ksia, Patrcia, Cidinha que a maneira de cada uma,me deram fora e incentivo para continuar a caminhada.

    - A amiga Jaquilene Linhares por ter me acolhido em sua residnciadurante a minha estada em Salvador.

    - Ao Coco Maracaj, especialmente a Cacau Arcoverde, por ter mepossibilitado experimentar no corpo atravs dos ritmos, danas e cantos,a Cultura Popular. Momentos de incentivo e prazer, que me ajudaram naconstruo do conhecimento terico.

    - A CAPES, pela concesso da bolsa durante 3 anos e meio do curso.

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    A TODOS aqueles que de vrias formas deram sua ajuda para a realizaodeste trabalho nas diversas fases.

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    RESUMO

    A Capoeira, considerada uma manifestao da Cultura Popular - heranade povos africanos - uma prtica cultural e social presente no Brasildesde a poca colonial. Este estudo dedicado Capoeira e seusmestres. Trabalhamos a Capoeira como um campo social na perspectivaterica da Sociologia de Pierre Bourdieu. Procuramos apreender aconstruo social do mestre, a legitimidade do seu saber, as disputas eas representaes que elaboram no espao redefinido pelas mudanasmateriais e simblicas ocorridas com a Capoeira nas ltimas dcadas.As noes operatrias de campo social, habitus, capital e tradio forampertinentes para pensar os jogos de poder, as relaes sociais e astramas simblicas no campo da Capoeira. Do ponto de vistametodolgico, embora as entrevistas com os mestres e a observaodireta tenham tido um lugar especial na pesquisa, outras estratgiasforam utilizadas: pesquisa em jornais, revistas temticas,documentrios, composies musicais e trabalhos acadmicos. Aatuao dos mestres no processo de reinveno de tradies temredefinido o seu lugar social em relao s geraes anteriores. Estesso percebidos como atores sociais responsveis pela manuteno,dinamicidade, afirmao, divulgao e expanso da prtica capoeirstica.

    Palavras-chave: Capoeira - Mestres - Cultura Popular CampoCapoeirstico - Tradio

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    ABSTRACT

    The Capoeira considered as a manifestation of the Popular Culture -inheritance of African peoples - is a cultural and social practice presentin Brazil since the colonial time. This study is dedicated to the Capoeiraand its masters. We work the Capoeira as a social field through thetheoretical perspective of the Sociology of Pierre Bourdieu. We try toapprehend the social construction of the master, the legitimacy of hisknowledge, the disputes and the representations that theyve elaborated

    over the space which was redefined for material and symbolic changesthat occurred with the Capoeira through the last decades. The operatingnotions of social field, habitus, capital and tradition had been pertinentto think the power games , the social relations and the symbolic plots inthe Field of Capoeira. From the methodological standpoint, although theinterviews with the masters and the direct observation have had aspecial place in the research, other strategies had been used:researches in newspapers, thematic magazines and periodic, musicalcompositions and academic works. The performance of the masters inthe process of reinvention of traditions has redefined their social place inrelation to the previous generations. These are perceived as socialactors responsible for the maintenance, dynamicity, affirmation,spreading and expansion of the capoeirstic practice.

    Key words: Capoeira Masters Popular Culture Capoeiristic field Tradition.

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    SUMRIO

    INTRODUO............................................................................11

    CAPTULO 1: A TRAJETRIA DA CAPOEIRA: ENTRE A TRADIO

    E A MODERNIZAO .................................................................42

    1.1. A ORIGEM DA CAPOEIRA: O DEBATE CONTINUA .......................44

    1.2. A NECESSIDADE A ME DA INVENO .................................48

    1.3. CONTANDO HISTRIAS DE CAPOEIRA .....................................50

    1.4. DA GINGA DA CAPOEIRA AO PASSO DO FREVO........................ 521.5.CAPOEIRA E CAPOEIRAS.........................................................54

    1.6. CAPOEIRA ANGOLA: CADA UM CADA UM ..............................56

    1.6.1. Centro Esportivo de Capoeira Angola Joo Pequeno de

    Pastinha.................................................................................. 57

    1.6.2. Grupo de Capoeira Angola Pelourinho

    GCAP........................................................................................62

    1.6.3. Escola de Capoeira Angola IrmosGmeos....................................................................................66

    1.7.CLASSIFICANDO A CAPOEIRA.................................................67

    1.8. REDEFINIES MARCAM A CAPOEIRA - ALGUMAS NOTAS SOBRE A

    CAPOEIRA REGIONAL...................................................................69

    CAPTULO 2 : A CAPOEIRA E OS DESLOCAMENTOS

    SOCIOCULTURAIS.....................................................................81

    2.1. A CAPOEIRA E OS ESPAOS SOCIAIS OCUPADOS: RUAS,

    ACADEMIAS, ESCOLAS E UNIVERSIDADES......................................83

    2.1.1. A capoeira e a rua ..........................................................85

    2.1.2. A Capoeira e as academias.............................................89

    2.1.3. A Capoeira e as escolas ..................................................92

    2.1.4. A Capoeira e a universidade ...........................................96

    2.2. TEM MULHER NA RODA: A PRESENA FEMININA NA

    CAPOEIRA...................................................................................99

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    2.3.DA BAHIA PARA O MUNDO: A EXPANSO DA CAPOEIRA............103

    2.4. A CAPOEIRA TAMBM PROFISSO .....................................111

    2.5. A CAPOEIRA E SEUS MESTRES: UMA APROXIMAO TERICA .113

    CAPTULO 3: A CONSTRUO SOCIAL DO MESTRE DE

    CAPOEIRA...............................................................................119

    3.1. MESTRES DA CAPOEIRA: MESTRES DA CULTURA POPULAR.......122

    3.2. O MESTRE E A CAPOEIRA ....................................................129

    3.3. RECONHECIMENTO E LEGITIMAO: O TTULO DE MESTRE E A

    COMUNIDADE .......................................................................... 134

    3.4. COMO TORNAR-SE UM MESTRE DE CAPOEIRA ........................137

    3.5. O TEMPO E A CONSTRUO DO MESTRE ...............................140

    3.6. AS GRADUAES NO SO IMUTVEIS ................................143

    3.7. AS ACUSAES AOS FALSOS MESTRES.................................149

    3.9. A CAPOEIRA NA VIDA DO MESTRE ..................................151

    CONSIDERAES FINAIS ......................................................154

    REFERNCIAS..........................................................................160

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    INTRODUO

    Eu louvo os mestres das danas,lhes dou todo meu carinho.Pastinha e Z Alfaiate,Capoeira e Caboclinho.Eu louvo Mateus Guariba,do meu Cavalo-Marinho.

    Antonio Nbrega e Wilson Freire

    Mais do que homenagem, a composio Sambada dos Mestres1

    uma louvao aos mestres. Sejam eles, poetas, msicos, danarinos,

    cantadores, atores. So mestres de diferentes saberes, linguagens e

    expresses da Cultura Popular. Cada um com sua histria. Celebrada

    como dana, na Capoeira a saudao para Vicente Ferreira Pastinha

    (1889-1981), o Mestre Pastinha, consagrado como um dos

    representantes maior da Capoeira Angola.

    oportuno ressaltar que at os anos 20 no se falava em

    Capoeira Angola. Era apenas Capoeira. Esta, considerada por

    praticantes como a Capoeira Me, aCapoeira Primeira. Na dcada de

    30Manoel dos Reis Machado (1900-1974), o Mestre Bimba, cria2a luta

    regional baiana -conhecida como a Capoeira Regional - uma espcie

    de modalidade ou estilo de Capoeira idealizada a partir da Capoeira

    que existia. Os capoeiristas que escolheram permanecer fiel Capoeiraque praticavam, no se envolvendo com a novidade proposta por

    Mestre Bimba; possivelmente pr uma questo poltica, passaram a

    1Versos de uma faixa do CD de Antnio Nbrega intituladoMadeira que cupim nori, gravado em 1997.2 O mrito de criao da Capoeira Regional atribudo ao Mestre Bimba. No

    entanto, h trabalhos questionando essa exclusividade. A esse respeito, ver SrgioLuiz Vieira, em Capoeira: Matriz Cultural para uma Educao Fsica Brasileira; e AndrLuiz Lac Lopes em Capoeiragem no Rio de Janeiro.

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    acrescentar ao nome Capoeira, o termo Angola, demarcando uma

    identidade, uma singularidade, uma diferena.

    Pesquisar Capoeira um desafio. So sculos de histria. Quem

    construiu e como foi construda? Qual era o seu sentido? Que prticas

    a constituram e a constituem? Que usos foram feitos dela no passado?

    E hoje, onde se insere? Onde se situa o mestre nessa histria? So

    questes que inspiram a criao de uma narrativa sobre Capoeira,

    contribuindo para compor mais um fragmento da sua histria.

    Capoeira, relacionamos fatos, acontecimentos, histrias. Ao

    longo da sua existncia, ela tem desempenhado papis: social, poltico

    e cultural. Ora identificada/identificados (capoeira e capoeiristas) com

    a ordem, ora com a desordem. Ora lutando pelos seus, ora do lado de

    l. Estudos dedicados Histria do Brasil e Capoeira confirmam a

    presena dos capoeiras em episdios como a Revolta dos Mercenrios3

    (1828) a Guerra do Paraguai4 (1865-1870). Estiveram envolvidos na

    disputa do poder entre monarquistas e republicanos (segunda metadedo sculo XIX), na Revolta da Vacina5 (1904). Nessas ocasies, com

    exceo do ltimo episdio, eram cooptados para servir aos interesses

    da classe dirigente do pas - uma histria pouco explorada ou quase

    no mencionada.

    corrente a idia de que Capoeira sinnimo de resistncia ao

    opressor, a uma ordem escravista. De fato, isso ocorreu; porm,

    importante relativizar um pouco o peso dessa representao elevarmos em conta o quanto tal resistncia , em certo sentido, uma

    construo idealizada do passado para justificar e legitimar prticas

    presentes.

    3 A respeito da Revolta dos Mercenrios ver Eduardo M. da Silva, em o ImprioSubterrneo do Rio de Janeiro no sculo XIX, 2006.4Sobre a Guerra do Paraguai, ver Soares emA negregada instituio: os capoeiras

    no Rio de Janeiro, 1850-1890.5Sobre a Revolta da Vacina, ver Jos Murilo de Carvalho, em Os bestializados: o Riode Janeiro e a Repblica que no foi. So Paulo: Companhia das Letras, 1987.

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    Nesse sentido, vale a pena levar em conta as elaboraes que

    apontam para o envolvimento da Capoeira por grupos polticos e

    sociais dominantes.Em determinadas situaes, os capoeiras serviam

    aos interesses destes, o que afasta a idia de a Capoeira ser apenas

    smbolo de resistncia. Conforme Soares6 (2004), em poca de

    eleies os capoeiras eram convocados por polticos conservadores

    para serem seus capangas.

    (...) ao mesmo tempo em que enfrentavam o aparatopolicial e a ordem escravista, o capoeira participavaativamente das lutas polticas dentro dos gruposdominantes, como capangas dos senhores da Crte, emesmo incorporava termos e trejeitos do vocabulrio

    pedante de juzes e doutores da poltica da poca(SOARES, 2004, p.17).

    Esses fatos no circulam no meio capoeirstico. So pouco

    conhecidos. H capoeiristas que no tm interesse em divulgar

    determinadas passagens da sua histria. como se estas viessem

    diminu-la. Estudos voltados para o fenmeno da Capoeira tm

    desconstrudo algumas histrias, questionado verdades e evidenciando

    fatos omitidos. No se trata de privilegiar a histria encontrada em

    livros, teses, dissertaes mesmo porque h limites em detrimento

    da histria contada pelos capoeiras, mestres ou no, histrias que eles

    ouviram, algumas j escritas. Histrias de um tempo distante,

    passadas atravs da oralidade. Histrias que tm alimentado teses.

    Para compor o presente trabalho, um dos caminhamos

    percorridos foi o de realizar leituras de obras que tratassem da

    Capoeira. Um jeito brasileiro de aprender a ser,estudo realizado por

    6Soares historiador que se dedicou ao estudo do fenmeno da Capoeira no Rio deJaneiro do sculo XIX.

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    Csar Barbieri7 em 1993, foi uma delas. L, encontrei a fala de um

    mestre que contribuiu para a definio deste estudo. Tratava-se da

    resposta do Mestre Joo Grande8a respeito do que ser um mestre de

    Capoeira. A partir da, decidi entrar na Roda, e jogando com as

    palavras, construir um estudo, no conclusivo, mas que tivesse a

    pretenso de ser revelador da Capoeira, com ateno especial para a

    figura do mestre.

    A construo das representaes que o mestre tem de si

    enquanto mestre sugere que h uma relao de dependncia entre a

    Capoeira e o mestre. como se a Capoeira s existisse porque tem o

    mestre. Eles contam que so eles os responsveis pela preservao da

    Capoeira atravs do tempo. Diante desse fato e em meio ao contexto

    em que a Capoeira se encontra, veio o interesse em compreender o

    papel do mestre na histria da Capoeira. Como tudo comeou? Quem

    produziu os mestres? Como se forma um mestre? Qual o lugar do

    mestre no campo da Capoeira e fora dela? A Capoeira sobrevive sem afigura do mestre? Algumas dessas questes mereceram ateno

    especial ao longo da construo do trabalho.

    Os mestres no esto ancorados apenas na Capoeira. As

    manifestaes da Cultura Popular so depositrias deles. Mestre de

    Boi, Mestre de Maracatu, Mestre de Cavalo-Marinho, Mestre de

    Caboclinho, Mestre de Coco, Mestre de Capoeira. So os mestres

    7 Csar Barbieri graduado em Educao Fsica (1973) com doutorado emEducao (2003). Atualmente professor titular da Faculdade Cenecista de Braslia.Em 1993 o autor publicou Um jeito brasileiro de aprender a ser, um estudodedicado Capoeira.8Joo Oliveira dos Santos (1934), um dos alunos do Mestre Pastinha que se tornouJoo Grande para diferenci-lo do outro Joo o Joo Pequeno de Pastinha. Mestrede Capoeira Angola, deixou Salvador em 1990 para se dedicar Capoeira em NovaYork. Em 1995, atravs de seu trabalho com a Capoeira, recebeu o ttulo de doutor

    Honoris Causa da Universidade de Upsala, Nova Jersey. (Revista PraticandoCapoeira,ano 1, n 9, 2000, p.18).

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    brincantes9 fazedores de cantos, danarinos e atores populares.

    Portadores de uma imaginao criadora, esses guardies de um saber

    e de uma tradio, reinventam com msica, dana e teatro o seu

    mundo; tradio compreendida aqui no como coisa cristalizada, mas

    viva e dinmica. um erro imaginar a tradio dissociada da

    mudana. Portadora de sentido e significado, ela se encontra em

    constante estado de transformao. Nenhuma tradio se mantm

    imvel. Como nos diz Georges Balandier (1997), seu prprio

    dinamismo alimentado pelo movimento e pela desordem, aos quais

    ela deve finalmente se subordinar (BALANDIER, 1997, p. 94).

    Ordem e desordem, continuidade e descontinuidade,

    permanncia e ruptura, tradio e transformao termos geralmente

    apresentados como antagnicos; contudo, em se tratando de tradio,

    aqui so vistos como complementares.Lidar com tradio exige que se

    atente no apenas permanncia, mas tambm mudana. Essa

    questo pode ter relao com o eterno processo de criao e recriao.As estruturas se repetem, mas ao mesmo tempo na repetio

    que se tem a adequao, a recriao e a adaptao. Paul Zumthor

    (1997) afirma que para manter a tradio tem de existir possibilidade

    de reelaborar-se, readaptando-se. A Capoeira hoje existe num

    contexto que no mais aquele do sculo passado. A dinmica da

    sociedade possibilita um novo contexto, que por sua vez provoca

    adaptaes no campo capoeirstico. O que antes era diverso, hoje

    tambm trabalho.

    9Brincantes termo presente no universo da Cultura Popular. Aquele que brinca abrincadeira, o brinquedo. por exemplo, a pessoa que se veste para brincar:Mateus no boi de reis; o Mestre Ambrsio, no Cavalo-Marinho, so os personagensdo pastoril, os danarinos de um Coco de Zamb. So tambm os tocadores ecantores da brincadeira. A atribuio da palavra brinquedo s manifestaesculturais tem relao com a viso que tinha as elites das prticas culturais dosnegros. Vistas como um folguedo, um momento de diverso. Conforme Ivaldo

    Marciano, historiador e mestre do Maracatu Nao Cambinda Estrela, essasmanifestaes vo mais alm: recriar o mundo africano em terras distantes.Informaes colhidas no encarte do CD Maracatu Nao Cambinda Estrela.

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    Escolher a Capoeira como objeto de reflexo partiu,inicialmente,

    de um interesse pelos bens e manifestaes prprios da Cultura

    Popular. Primeiro, na condio de apreciadora de uma dana, de uma

    musicalidade, de uma encenao e de uma histria, que carregam os

    tambores das bandas de Congo da Barra do Jucu/ES; a dana dos

    galantes com seus arcos enfeitados no espetculo da brincadeira de

    Cavalo-Marinho na Zona da Mata Norte pernambucana; a chama

    aquecedora do Zamb de Mestre Geraldo, em Cabeceiras - Tibau do

    Sul, litoral potiguar; as las tiradas por Mestre Pedro no Boi de Reis da

    Vila de Ponta Negra. E, nesse terreno de prticas culturais, como no

    se encantar com a leveza e a agilidade de homens e mulheres, nas

    rodas de Capoeira!

    De apreciadora das brincadeiras motivao em compreender

    parte dessa diversidade que ocupa o campo da Cultura Popular,

    terreno de sabedoria, conhecimento e arte. Um campo de reflexo

    frtil e de possibilidades de interlocuo nos domnios os maisvariados. A Capoeira tem despertado o interesse de pesquisadores

    nas diversas reas do conhecimento, como a Sociologia, a

    Antropologia, a Histria, a Educao, a Arte, a Psicologia e a Educao

    Fsica. Precisamente, a partir das ltimas dcadas, nacionais e

    estrangeiros, praticantes de Capoeira ou no, tm se dedicado a dar

    visibilidade a esse fenmeno social, evidenciando uma contribuio na

    construo de um campo discursivo que confluiu para o processohistrico de formao e consolidao dos estudos sobre a Capoeira.

    De fato, a Capoeira, na condio de objeto de anlise, tem

    estado presente, de maneira significativa, na produo intelectual

    brasileira. A diversificada literatura resultante das vrias facetas que

    compem e substancializam a singularidade dessa manifestao que

    se inscreve na cultura brasileira h mais de trs sculos. Deve-se

    deixar claro, entretanto, que,a periodizao uma problemtica nos

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    estudos sobre Capoeira. uma misso difcil perceber o momento do

    seu surgimento, nascimento ou aparecimento. Diante da escassez de

    provas, mais seguro trabalhar com hiptese.

    As pesquisas nos mostram a Capoeira a partir de diferentes

    abordagens. No custa lembrar que h muito a Capoeira se fazia

    presente em obras de nomes representativos da Literatura Brasileira:

    Machado de Assis, Manuel Antnio de Almeida e Jorge Amado; no

    campo capoeirstico, com os escritos dos mestres Noronha e Pastinha.

    No Campo folcloristas, nomes como os de Edson Carneiro e CmaraCascudo tambm se dedicaram Capoeira.

    A respeito das pesquisas sobre Capoeira, sem a preocupao de

    identificar as mais importantes e representativas, decidimos de forma

    breve, apresentar algumas informaes. Em 1968 temos a primeira

    dissertao que resultou na publicao do livro Capoeira Angola um

    ensaio scio cultural, de Waldeloir Rego. Uma reflexo no campo da

    Antropologia, considerada referncia para quem se dispe a estudar

    Capoeira.

    Conforme Vieira (2004) entre os anos setenta e meados dos

    anos oitenta, a Educao Fsica tomou de conta dos estudos da

    Capoeira, priorizando os aspectos bio-mecnicos, cinesiolgicos e

    fisiolgicos. Da, at o final da dcada de oitenta, despertou interesse

    na Educao. A relao Capoeira, Educao Fsica Escolar e Educaoera o enfoque dos pesquisadores.

    A partir dos anos noventa, a Capoeira chama a ateno de

    socilogos, antroplogos e historiadores. A maioria da produo

    acadmica foi escrita por brasileiros e praticantes de Capoeira. O Rio

    de Janeiro o campo de referncia maior para os estudos, seguido por

    Salvador. Mais da metade dos trabalhos tem como referncia a

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    Capoeira nas ltimas dcadas. O levantamento10 realizado apontou

    que a presena da Capoeira na condio de objeto de reflexo

    recente.

    At a dcada de noventa eram poucas as pesquisas envolvendo

    a temtica. A partir desse perodo, quando a Capoeira se expande de

    forma considervel pelo Brasil e por outros pases, elas foram

    intensificadas. importante ressaltar que aumentou o interesse

    acadmico pela Capoeira, porm estudos sobre o mestre so

    praticamente ausentes. Voltar ateno para o lugar do mestre torna-serelevante para enriquecer a reflexo sobre a Capoeira e ampliar a

    perspectiva de anlise acerca dos mestres e suas manifestaes

    culturais.

    Sendo assim, levando em considerao a presena e,

    especialmente, o papel desempenhado pelos mestres nas

    manifestaes populares, possvel de perceber atravs da dedicao

    na afirmao e propagao de sua arte, convm o interesse em

    estud-los, priorizando o campo da Capoeirapor estar diante de um

    tema estimulante e desafiador, em vista das mudanas materiais e

    simblicas que vm passando, especialmente, a partir das trs ltimas

    dcadas do sculo XX, perodo ao qual um olhar focado para a

    compreenso da dinmica da Capoeira na contemporaneidade

    direcionado.

    Trabalhamos com a idia de campo capoeirstico, partindo do

    pressuposto de que a Capoeira um campo social na perspectiva

    terica da Sociologia de Pierre Bourdieu. Isso significa que falar de

    campo entend-lo como um microcosmo - um pequeno mundo social

    relativamente autnomo que faz parte do grande mundo social - o

    macrocosmo social. Cada campo seja ele poltico, religioso,

    10Em 2005, ano da realizao da pesquisa em Salvador, tive oportunidade de fazero mapeamento de trabalhos sobre Capoeira no arquivo do historiador Frede Abreu.

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    jornalstico, artstico, esportivo - sua maneira, tem regras, leis,

    propriedades, relaes, aes, jogos e pessoas aptas a jogar o jogo.

    So atores significativos do campo capoeirstico: os mestres e seus

    aprendizes (contramestre, professores, instrutores e alunos).

    A institucionalizao da Capoeira como esporte, a sua expanso

    para alm do territrio brasileiro, o crescimento do nmero de

    praticantes e mestres de diferentes camadas sociais, a sua presena

    nas escolas e cursos de Educao Fsica, a relao com o mercado, os

    estudos acadmicos, o aparecimento de uma imprensa especfica de

    circulao ampla, a forma de a sociedade represent-la, a produo de

    um discurso centrado na profissionalizao da Capoeira e dos Mestres,

    o crescimento da Capoeira Angola, bem como a formao de novos

    representantes so sinais de visibilidade que fazem parte das

    mudanas recentes11.

    Mestre, figura determinante na afirmao e propagao da

    Capoeira, arroga o discurso expresso pelos mestres. A relao entre oMestre e a Capoeira faz parte de uma histria recente. Se a Capoeira

    hipoteticamente tem cerca de trs sculos, o Mestre est presente nela

    h menos de um. Nesse sentido, cabem aqui algumas indagaes; a

    saber: Como nasce o ttulo de Mestre? Quem os criou? Qual o

    interesse na sua criao? Que jogos estavam envolvidos? Como era a

    Capoeira antes do aparecimento desse ttulo? Por que o ttulo de

    Mestre um dos temas mais debatidos atualmente no campo

    capoeirstico? Como se d a construo social do mestre de capoeira?

    Essas questes se tornaram foco de ateno da pesquisa.

    O trabalho, tomando o Mestre como questo central, teve a

    pretenso de elucidar a complexidade dos jogos que se institui na

    Capoeira. Incorporados seletivamente, os aportes tericos da

    11Mudanas recentes so aquelas ocorridas a partir dos anos 70 do sculo XX.

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    Sociologia de Pierre Bourdieu - habitus, campo social e capital - foram

    tomados como referncia. Trata-se, portanto, de compreender o lugar

    do Mestre, apreendendo a sua construo; a legitimidade do saber

    desses Mestres, as representaes que elaboram no espao redefinido

    pelas mudanas, as disputas e os jogos de interesses. A nossa misso

    iniciar uma discusso ainda no realizada. Nas pesquisas sobre

    Capoeira, o aparecimento do Mestre de forma descritiva, superficial e

    perifrica.

    Nesse momento, oportuno um exerccio de auto-objetivao,

    ou seja, o que Bourdieu chama de objetivao participante. A

    objetivao da relao do pesquisador com o seu objeto

    uma objetivao que no seja a simples viso redutora,parcial, que se pode ter, no interior do jogo,(...), mas aviso global que se tem de um jogo passvel de serapreendido como tal porque se saiu dele (Bourdieu, 1989,

    p. 58).

    pertinente, portanto, responder questo: Como cheguei at a

    Capoeira? O primeiro contato, o interesse, a motivao para pratic-la

    e a escolha como objeto de estudo so pontos de partida para o

    traado percorrido. Para comear, filtro da memria cenas e

    momentos que me levaram a ter uma relao com a Capoeira.

    O interesse pelo estudo sobre Capoeira resultado de um

    processo que se iniciou em 1988, quando conheci Fbio, na poca,

    contramestre12do Grupo de Capoeira Beribazu13, de Vitria ES. Ele

    estava em Natal na condio de aluno da especializao em Educao

    Fsica Escolar, promovida pelo Departamento de Educao Fsica da

    12 Contramestre: a graduao que antecede ao ttulo de Mestre. Esse termo usado pela maioria dos grupos ou escola de Capoeira.13 Beribazu: Grupo de capoeira fundado no ano de 1972 pelo mestre Zulu, nacidade de Braslia. Atualmente est presente em vrios estados do Brasil e noexterior.

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    Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Como a maioria

    dos capoeiristas que cursaram o ensino superior e decidiram investir

    no campo acadmico, dedicando-se a ampliar o quadro de

    conhecimento sobre a Capoeira, no causa surpresa saber que o

    estudo de Fbio foi voltado Capoeira. A atuao de capoeiristas,

    mestres ou quase mestres, formados e legitimados em dois diferentes

    campos - o acadmico e o capoeirstico - uma situao presente na

    Capoeira, mas compartilhada por um nmero pouco expressivo de

    praticantes - aqueles que tiveram condio de concluir o ensino

    superior -, e que viram na Capoeira um horizonte.

    Grfico 1:Escolaridade dos capoeiras mestres

    Fonte: Pesquisa de Campo

    maneira de Bourdieu, estamos diante da idia de capital social,

    acmulo de capital, investimento. A participao em qualquer

    mercado exige que os capitais relacionados a ele devam ser

    alimentados, regados. Regamos os nossos capitais para usufruir o

    mximo os benefcios que a sua posse permita. A respeito da

    Capoeira, por exemplo, quem capoeirista investe no corpo, no

    conhecimento dos fundamentos da Capoeira, na voz para tirar as

    cantigas, nos instrumentos para saber tocar, nas relaes com outros

    grupos, nas relaes com outros mercados. Esses capitais circulantesvo beneficiar a distribuio, a insero do Capoeira no espao

    mestres Escolaridade

    O3 Ensino Superior

    O5 Ensino Mdio

    05 Ensino Fundamental03 Ens. Fund. Incompleto

    02 Analfabeto

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    especfico. Em outras palavras, o acmulo de capital tem muito valor

    para o mercado de bens capoeirstico.

    Na certeza de que as nossas escolhas restringem e potencializam

    outras, posso dizer que a partir do momento em que me dispus a ouvir

    algum falar de Capoeira, vislumbrei a possibilidade de conhec-la. A

    fala apaixonada de Fbio sobre a Capoeira me seduzia. Fiquei tomada

    pelo desejo de vir a ser uma capoeirista. Percebi que fui ganha para

    Capoeira. Isso ficou evidente no final de 1988, quando conheci, em

    Vitria/ES a Capoeira da qual ouvia Fbio falar. Nesse momento, a

    relao que estabeleo de admirao. Quando retornei a Natal,

    procurei um lugar para praticar Capoeira.

    Em 1989 comecei a fazer aula com o Mestre Iranir, no Clube

    Camana. Na poca, ele no tinha o ttulo de mestre. Nos anos oitenta

    e noventa as referncias de Capoeira em Natal eram duas escolas

    (estilos) a do Mestre Marcos, identificada com a Capoeira Angola; e a

    do Mestre ndio, voltada para o estilo Regional. A maioria doscapoeiristas que trabalha com Capoeira em Natal foi formada por um

    ou outro.

    Ao saber que na Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

    em 1991 tinha Capoeira, deixei as aulas do Mestre Iranir e passei a

    freqentar a Capoeira que acontecia no Centro Acadmico de

    Histria/UFRN. Quem as ministrava era o contramestre Robson,

    atualmente, mestre do Grupo Corpo Livre, que igualmente ao Mestre

    Iranir, pertence linhagem do Mestre ndio. Na poca, eu no assumia

    uma postura de vinculao com um grupo ou outro, ou mesmo mestre.

    O interesse era praticar Capoeira, onde fosse mais conveniente. No

    entanto, isso mudou. Havia Capoeira a alguns metros de casa e eu no

    conseguia me desvincular do Mestre Robson.

    Inserir-se num grupo criar relaes, afetos, cumplicidades,

    laos, interesses. No campo capoeirstico, isso acontece com

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    freqncia. Em 2006 parei de freqentar o Grupo do Mestre Robson.

    Resolvi conhecer a Capoeira Angola, uma capoeira parecida com a que

    vi em Salvador. Integrantes do Grupo Aba de Capoeira Angola

    (Aracaju - SE) resolveram ministrar oficina de Capoeira Angola em

    Natal com a possibilidade de criar um ncleo de extenso do Grupo.

    Aps a minha participao na oficina, decidi praticar Capoeira Angola.

    A motivao que tinha para ir s aulas do Mestre Robson j no existia

    mais. Acreditava ser difcil freqentar as duas ao mesmo tempo. As

    diferenas eram visveis na movimentao, na msica, na roda. O

    discurso dos angoleiros de que no dava para fazer as duas capoeiras

    reforava esse sentimento. O referido discurso, usando as palavras de

    Bourdieu, identificado como o exerccio de violncia simblica.

    O desafio que fao aqui consiste no exerccio de auto-objetivao

    de meus sentimentos em relao s modalidades da Capoeira. A

    oportunidade que tive de experiment-las foi significativa para a minha

    condio de praticante e pesquisadora. Tomada por um momento dereflexo - a partir das minhas observaes e das conversas que ouvia -

    revi minhas posies a respeito de freqentar as duas Capoeiras.

    Voltar Academia do Mestre Robson j se colocava, mas sem deixar a

    Capoeira Angola. A insistncia dos angoleiros ao afirmar que angoleiro

    que angoleiro no para praticar outra capoeira suscitava

    questionamentos. Por que o praticante de Capoeira Angola levado a

    no freqentar outra Capoeira? O que est por trs desse discurso?Interfere no aprendizadodo capoeirista que pratica a Capoeira Angola,

    dificultando-o; foi uma das justificativas que ouvi. Como interfere, se

    somos capazes de aprender uma diversidade de movimentos lentos

    e rpidos? Andamos e corremos. Aprendemos a danar Coco de

    Zamb, Coco de Roda, Maracatu, Pastoril, Cavalo-Marinho, Samba,

    Frevo e tantas outras prticas. Qual a dificuldade que se coloca na

    Capoeira? A meu ver, essa questo no tem relao com tcnica.

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    Trata-se do jogo prprio de um campo as disputas, os interesses, a

    concorrncia e a prpria estrutura e funcionamento criados pelos

    capoeiristas.

    Retornemos ao momento em que a minha relao com a

    Capoeira era apenas a de praticante. Como tal, chamava-me ateno

    no s a movimentao, a musicalidade, mas a histria da Capoeira.

    Sobre ela, procurava ler, ficar atenta; tudo me interessava: as falas,

    como foram ditas as coisas, os gestos, os silncios, o tom da voz, at

    o que no me foi possvel ouvir dos capoeiristas, especialmente,

    mestres e quase mestres com quem tive contato. Queria conhecer

    mais do que o treinamento para executar os movimentos da Capoeira.

    A condio de praticante, que antecede a de pesquisadora,

    pressups uma sistemtica observao da Capoeira. Deixando-me

    envolver pelas tramas, construo expectativas em conhecer de perto

    algo que fazia parte do meu cotidiano, familiarizando-me cada vez

    mais com um cdigo peculiar Capoeira. Isso significava ir mais almdo que meus olhos podiam ver. Um passo para chegar condio de

    praticante e pesquisadora. Ter a Capoeira como tema para estudo era

    um projeto que se colocava minha disposio.

    De posse de um aparato conceitual, a que Bourdieu chama de

    capital terico, disponibilizado e distribudo, atravs do contato com as

    disciplinas, especificamente, a Antropologia, a Histria e a Sociologia,

    posso dizer que o olhar domesticado pela teoria, conforme Cardoso deOliveira (1998) permite-me situar a Capoeira como uma manifestao

    da Cultura Popular.

    Dentre tantas definies que o termo propicia, optamos pela

    definio de Cultura Popular, construda por Stuart Hall (1997), que

    considera como sendo as formas e atividades cujas razes se situam

    nas condies sociais e materiais de classes especficas

    (HALL,1997,p.257). So as prticas culturais construdas pelas classes

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    menos favorecidas economicamente, as classes subalternas; prprias

    das camadas populares. Considerada reminiscncia de antigas prticas

    relacionada ao passado escravista, a histria social da Capoeira nos

    revela que ela tem sua gnese no territrio popular.

    Sobre essa questo, a pesquisa mostrou que dentro do campo

    capoeirstico, relacionar Capoeira Cultura Popular no uma posio

    unnime.Possivelmente, isso tem relao com a dicotomia que passou

    a tomar conta do discurso no campo capoeirstico a partir da primeira

    metade do sculo XX, com a criao da Capoeira Regional. Os adeptosda Capoeira Angola no relacionam a Capoeira Regional Cultura

    Popular. Em Salvador, encontrei mestres que, ao me questionarem

    sobre o tipo de Capoeira que eu estudava: se era a Capoeira Angola ou

    Capoeira Regional, antes de eu responder alguma coisa, diziam:

    porque a regional, sabe moa, no tem nada a ver com Cultura

    Popular.

    Na viso desses mestres, pertencer Cultura Popular tem uma

    valorizao positiva. Eles se identificam como fazendo parte dela.

    Capoeira Regional, que convencionou chamar de toda Capoeira que

    tem como modelo a escola de Mestre Bimba, para esses mestres a

    Capoeira da elite, a Capoeira da burguesia etc. Por trs dessa

    bipolaridade identificada no discurso construdo pelos capoeiristas -

    mestres ou no -, o dado emprico nos tem revelado que nem tudo

    que no Capoeira Angola Capoeira Regional. Estamos diante de

    entendimento e vises que permitem apreender as relaes de

    conflitos no campo.

    A discusso que segue diz algo sobre as inquietaes, as

    dificuldades, os desafios e as surpresas encontradas no processo da

    pesquisa; e que, sem dvida, vivenciada por aqueles que se dedicam

    a esse mtier, mas que pouco se comenta ou mesmo se deixa

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    registrado em suas teses. Normalmente, os pesquisadores no falam o

    caminho das pedras. Escrever sobre esse processo, colocando os

    percalos, as dificuldades, as angstias louvvel. Bourdieu (1989) j

    dizia: nada mais universal e universalizvel do que as dificuldades

    (BOURDIEU, 1989, p.18).

    As inquietaes aparecem na escolha do tema. Uma delas diz

    respeito situao do pesquisador envolvido diretamente com o objeto

    de pesquisa: o sujeito enquanto capoeirista, pesquisar Capoeira.

    Quando temos previamente um envolvimento com o objeto, oscuidados para conduzir um trabalho de investigao cientfica so

    afirmados e cobrados o tempo todo. Ora, essa uma situao que se

    coloca, mas que por outro lado, o lugar de praticante, de quem tem

    uma experincia, de quem j tinha de certa forma conhecimento

    acumulado, pois j estava familiarizado com o que se pretendia

    pesquisar, tomando os cuidados necessrios, permite ao pesquisador

    estar mais vontade para voltar a sua ateno na construo de umfenmeno passvel de ser (re) escrito.

    Inicialmente, o terreno de investigao privilegiado para o

    estudo da Capoeira compreendia a segunda metade do sculo XX. No

    entanto, houve a necessidade de estender esse perodo; isso porque, a

    criao da figura do mestre antecede aos anos cinqenta. Como o

    mestre a questo central, a idia era que, a pesquisa de campo

    pudesse ser realizada em qualquer cidade que tem mestre de

    Capoeira.Presente em todos os estados do Brasil e, em todo lugar do

    mundo, como nos contam com orgulho os mestres. No podemos

    negar que o campo emprico amplo.

    Diante das limitaes em dar a volta ao mundopara realizar o

    trabalho de campo, decidimos priorizar algumas cidades a partir de

    critrios pertinentes histria da Capoeira naquela cidade, como por

    exemplo, se uma histria de sculos ou recente. Prioriz-las no

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    invalidou a ida quelas que no estivessem entre as selecionadas. Foi

    o caso de So Paulo. No constava em nossos planos ir l. Recuos nas

    decises iniciais, mudana de caminhos e estratgias so aes

    presentes no trajeto do pesquisador. As cidades contempladas com a

    pesquisa foram Natal, So Paulo, Recife, Olinda e Salvador.

    Escolher Salvador como um dos campos emprico para a

    pesquisa tem relao com o fato de a cidade ter sidoum dos principais

    centros onde a Capoeira se desenvolveu l, ela tem sculos de

    histria sobretudo, por ter sido foco de resistncia cultural durante

    um perodo em que a Capoeira constava no cdigo penal como crime.

    Segundo Barbieri (1999)

    Salvador considerada no Brasil e no exterior, a fonte deonde se origina e preserva-se a capoeira enquantotradio, autenticidade e manifestao cultural(BARBIERI, 1999, p. 69).

    A literatura sobre a Capoeira, quando trata da sua histria mais

    recente, no que diz respeito a sua expanso, apresenta a cidade de

    Salvador como um plo irradiador de sua prtica. Foi dessa cidade que

    migraram capoeiristas para trabalhar com Capoeira em outros estados

    e pases; inclusive para centros urbanos onde existia Capoeira, mas

    que sob o efeito do cdigo, estava silenciada. Refiro-me ao Rio de

    Janeiroe Recife.

    A relao entre Capoeira e Salvador apareceu com freqncia no

    depoimento dos mestres. Falando-me de sua experincia ao deixar

    Recife, disse-me Mestre Piraj14:

    14Mestre Piraj nasceu em 1948. Tem como nome Marcondes Luiz. consideradopela comunidade capoeirstica local como o mais antigo mestre de Recife.

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    Ento em 66 eu fui embora daqui de Recife pra Salvador,conheci os grandes velhos mestres da poca: O MestrePastinha, Mestre Caiara, Canjiquinha. Todo esse pessoalda Bahia, at porque ns devemos muito aos velhosmestres de Salvador, da Bahia pelo fato deles terem

    preservado essa nossa cultura (Mestre Piraj).

    A viso do Mestre Piraj - um dos representantes de uma

    gerao de velhos mestres de Capoeira; sendo o nico nessa situao

    na cidade de Recife - seguida pela comunidade capoeirstica queuniformemente reconhece o papel desempenhado pelos mestres

    soteropolitanos na preservao da Capoeira. Assumida pelo mestre

    como brasileira,ela passa a ser uma ddiva dos mestres baianos que,

    com o tempo, passaram a ser conhecidos como os grandes velhos

    mestres. O discurso unnime em ressaltar que a histria mais

    recente da Capoeira tem relao com a Bahia, especialmente com a

    cidade de Salvador.

    Todo capoeirista tem que visitar Salvador, conhecer a Capoeira

    l. Salvador a Meca para os capoeiristas. Estas so frases

    pronunciadas por mestres e capoeiristas em todo o mundo; uma

    imagem construda pela comunidade capoeirstica baiana. Para muitos

    capoeiristas, foi l que a Capoeira surgiu e expandiu-se. Diante desse

    significado que passou a ter a cidade de Salvador, ela foi transformada

    em palco central para os eventos anuais regulares, de carter nacional

    e internacional promovidos por grupos, fundaes, associaes e

    escolas de Capoeira.

    A ttulo de ilustrao, entre os meses de julho e agosto de 2005

    perodo da pesquisa de campo - foram realizados em Salvador: o

    Encontro Internacional de Capoeira, promovido pela Associao de

    Capoeira Mestre Bimba, por ocasio dos 30 anos da Associao, noperodo de 27 de junho a 03 de julho; o Encontro Internacional da

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    Academia Joo Pequeno de Pastinha entre os dias 12 e 18 de julho;

    em seguida, na primeira semana de agosto acontecia o XI Encontro

    Internacional de Capoeira, organizado pela Fundao Internacional de

    Capoeira Angola.

    Se h uma nfase das pessoas envolvidas com Capoeira em

    evidenciar a importncia dos capoeiristas conhecerem Salvador,

    diramos que, para um pesquisador capoeirista, essa viagem torna-se

    imprescindvel. Nas aulas de Capoeira, algumas vezes manifestei

    vontade de conhecer uma roda de Capoeira Angola. L em Salvador

    voc encontra;diziam-me os mestres.

    Salvador significava no somente a possibilidade de ver a

    Capoeira dos Mestres considerados referncias na Capoeira Angola -

    Joo Pequeno de Pastinha, Boca Rica, Moraes, Cobrinha Mansa, Curi -

    ; mais do que isso, a capital baiana representava a possibilidade de

    ouvir o que eles tinham a nos dizer. Ainda sobre a escolha de

    Salvador, tem o fato de os mestres consagrados como as duas maioresreferncias de Capoeira - o Mestre Pastinha e o Mestre Bimba terem

    construdo suas histrias l. Esses critrios justificam a escolha da

    capital baiana como uma cidade importante para a natureza do

    trabalho.

    Alm de Salvador, a cidade de Recife foi um dos lugares

    selecionados para fazermos a pesquisa. A escolha tem relao com

    alguns fatos. Um deles, que, assim como Salvador, Recife foi um doscentros urbanos onde a Capoeira existia desde a poca colonial.

    Porm, por ocasio da represso aos capoeiras, sofreu uma baixa. A

    sua especificidade que, diferente de Salvador, deixa de existir no

    incio do sculo XX. A Capoeira de Pernambuco teve um vazio - do

    incio do sculo passado at o final da dcada de sessenta - quando

    Marcondes Luiz - o Mestre Piraj - que tinha passado um tempo em

    Salvador praticando Capoeira, de volta a Recife, decide dar incio a um

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    trabalho de retornar e integrar a prtica da Capoeira quela cidade.

    Essa histria contada pelos mestres de Pernambuco, com quem tive

    contato. O que tambm nos chamou a ateno para nos guiar at

    Recife foi o discurso propalado por capoeiristas pernambucanos de que

    a Capoeira teria nascido em Pernambuco.

    H uma produo discursiva elaborada para legitimar essa idia

    que se contrape de que a Capoeira da Bahia. evidente que no

    por acaso que histrias e memrias so construdas e para isso,

    recorre-se ao perodo do Brasil Colnia. Portanto, torna-se oportuno

    registrar aqui a fala de Mestre Americano.

    (...) a Capoeira nasceu aqui. Depois daqui ela foi praBahia, a da Bahia, porque a Bahia muito rica. Ai prontoimplantou (...) porque l s tem gringo. Bahia no temnada a ver no. Capoeira foi daqui de Pernambuco.Quilombo dos Palmares no era capitania de Pernambuco?E a Capoeira era de l do Quilombo. A Capoeira no veio

    de l de fora. Ela foi daqui pra l. (Mestre Americano15).

    Contrariando o discurso dos capoeiristas baianos, e configurando

    disputa, a fala do Mestre menciona o Quilombo de Palmares como o

    lugar onde a Capoeira teria se originado. Na poca, o Quilombo

    pertencia capitania de Pernambuco. Essa histria, contada e

    recontada por mestres pernambucanos, se propaga no imaginrio dos

    capoeiristas. A esse respeito, a historiografia sobre Capoeira diz no

    haver indcios que provem a verso de que a Capoeira fora criada nos

    Quilombos.

    Quando o Mestre Americano explica o fato de a Capoeira, numa

    poca determinada, ter se desenvolvido em Salvador em detrimento

    de Recife, no tom de sua fala, percebe-se sutilmente a rivalidade entre

    15Mestre Americano Carlos Fortunato da Silva (1964). Nascido em Igarassu PE. Reside em Recife e desenvolve o trabalho com Capoeira junto ao Projeto DaruMalungo.

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    Bahia e Pernambuco. Bahia muito rica, diz o mestre. A pronto,

    implantou. Porque l s tem gringo. Aqui estamos nos referindo a sua

    histria mais recente.

    Desvendar por que riqueza e gringo teriam uma importncia na

    implantao da Capoeira na Bahia, na viso do mestre, supe uma

    imagem da riqueza associada aos atrativos culturais, diversidade e

    singularidade que fazem com que a Bahia (e Bahia aqui Salvador)

    exera uma atrao forte para o turismo, portanto, para a presena de

    gringos. No entanto, quando se percorre a histria e a vida cultural de

    Pernambuco, de Recife, percebemos o quanto de riqueza essa terra

    oferece. Com efeito, a justificativa do mestre torna-se simplria,

    limitada.

    Para finalizar os motivos que nos levaram a escolher Recife,

    apontamos a relao entre a Capoeira e o Frevo. A ginga movimento

    bsico da Capoeira - transforma-se no passo do frevo. Como tive

    referncias de Mestres de Capoeira localizados em Olinda,aproveitando a proximidade entre esta e a capital pernambucana, foi

    oportuno procur-los.

    Com vistas a considerar o fato de morar numa cidade onde a

    Capoeira uma realidade, por si, j justifica a escolha de Natal.

    Considerando as singularidades da Capoeira em cada lugar,

    observandoo contexto histrico e a situao em que ela se encontra,

    essa cidade um parmetro para tantas outras; isso pelo fato de quea sua chegada em Natal coincide com o mesmo perodo em que ela se

    torna presente em outras cidades do pas.

    A especificidade, com relao s cidades que foram citadas, a

    de que em terra potiguar, conforme os registros orais obtidos junto a

    mestres de Capoeira de Natal, sua prtica era inexistente at incio dos

    anos sessenta, perodo em que situamos o processo de expanso da

    Capoeira pelo pas.

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    Para contemplar o nosso objeto numa dimenso ampla,

    abrangendo as diversidades de um pas como o Brasil; com suas

    particularidades regionais e locais, fizemos escolhas, muito embora

    uma inquietao se fizesse presente: o que poderamos fazer para

    ampliar o universo com diferentes sotaques? A idia seria aproveitar

    os eventos regulares de carter nacional e internacional, promovidos

    por grupos, associaes e fundaes de Capoeira, realizados em Natal

    ou em cidades mais prximas; um momento oportuno para encontrar

    mestres que atuam em diferentes estados e pases.

    Para as reflexes pretendidas, a inteno foi de trabalhar com

    material relevante ao desenvolvimento do estudo. A pesquisa envolve

    um levantamento de dados que possibilitam compreender:

    1. As classificaes, hierarquias, cdigos, rituais e relaes de

    poder entre os mestres. Como so institudos, que novas

    tramas sociais so estabelecidas e como os diversos

    segmentos que compem o campo da Capoeira (mestres,contramestres, professores, instrutores, alunos) se situam

    diante da realidade social construda.

    2. A criao do ttulo de mestre, como se d a construo

    social do mestre de Capoeira e o seu lugar na Capoeira.

    3. O que representa para o mestre de Capoeira a

    profissionalizao dessa prtica, compreendida por alguns,

    como uma prtica cultural e por outros como uma prticaesportiva; ou como uma prtica cultural e esportiva.

    4. As percepes dos mestres diante das mudanas mais

    gerais ocorridas com a Capoeira.

    Quando decidimos compreender os novos significados que a

    Capoeira assume, numa dinmica de posicionamento entre os

    mestres, o que nos impe de imediato descobrir uma estratgia que

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    nos permita dar conta do que estamos propondo. Segue-se da as

    nossas escolhas com o que nos foi possvel trabalhar.

    Pesquisamos em jornais e revistas, principalmente as de

    Capoeira; documentrios, informaes vinculadas Internet.

    Utilizamos as composies musicais, presena imprescindvel na

    Capoeira. O negro, a Capoeira, o mestre e o grupo so alguns dos

    temas presentes nas cantigas entoadas nas rodas.

    Para construir um quadro de anlise sobre a Capoeira,

    trabalhamos com a reviso da literatura existente. So as pesquisas

    produzidas pela academia, as obras elaboradas por capoeiristas; para

    ver e ouvir, o trabalho de campo. A observao direta e as entrevistas

    tm um lugar especial. O trabalho de campo, atravs da observao

    direta, aconteceu nos lugares onde os capoeiristas marcam presena.

    Atravs da observao direta, foram vistas as formas exteriores

    das mudanas ocorridas com a Capoeira e como os mestres se

    localizam e se comportam no novo cenrio. A participao em eventospromovidos e organizados pelos grupos de Capoeira como os

    batizados, troca de cordas e formatura; os encontros de carter

    nacional e internacional; as rodas de Capoeira; as competies

    esportivas em que a Capoeira participa isolada ou em conjunto com

    outras modalidades, como o caso do JERNS Jogos Escolares do Rio

    Grande do Norte foram relevantes no processo de observao.

    Com as entrevistas - instrumento privilegiado para a obtenode dados da pesquisa - a inteno foi alcanar as informaes

    necessrias para o que nos propusemos atingir. Na compreenso de

    que o resultado de uma pesquisa de campo depende da relao

    pesquisador/pesquisado, optamos por estabelecer com os Mestres de

    Capoeira uma relao dialgica, de confiana, na inteno de construir

    uma anlise com o que for possvel ver e ouvir deles.

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    Para as entrevistas, escolhemos os mestres representativos que

    atuam na Capoeira. So os mestres antigos, reconhecidos com

    admirao e orgulho como os velhos mestres de Capoeira, e os

    mestres novos. Alm dos mestres, foram ouvidos os discpulos dos

    mestres que ainda no tm o ttulo de mestre. Os mais prximos na

    hierarquia - contramestres, professor, trenel16.

    Diante da tarefa de escolher os mestres pesquisados, uma das

    preocupaes foi a de no somente ter como interlocutores aqueles

    que esto presentes na maioria das pesquisas - as grandes referncias

    - aqueles que tm um lugar de honra; mas tambm fazer aparecer os

    mestres que tm uma trajetria dedicada Capoeira e que so poucos

    conhecidos. A inteno foi de no ter uma viso cristalizada; limitada

    a um conjunto de atores e agentes, que por reconhecimento social

    lhes dado mais poder de uma falaautorizativa sobre a Capoeira. A

    idia foi ir alm; inclusive porque no temos uma viso idealizada do

    campo como se houvesse uma homogeneidade e no houvessehierarquia. Ao contrrio, uma imerso no campo percebe-se que existe

    hierarquia, lugar social, interesses, disputas.

    Para a pesquisa de campo, a estratgia adotada foi de realiz-la

    em perodos descontnuos; porque desde o primeiro ano do doutorado

    (2003) as oportunidades de viagens que surgiram (encontros

    cientficos, carnaval, entre outros) eram tambm momentos de entrar

    em campo, seja realizando entrevistas com os mestres ou tomandonotas.

    As entrevistas foram realizadas com 18 mestres e 02 no

    mestres. Caracterizando o perfil dos entrevistados, quanto ao sexo,

    16Trenel comum na Capoeira, especialmente, na Capoeira Angola, o mestre terentre os seus alunos o trenel. Ele aquele que tem condio de auxiliar o mestreno ensino da Capoeira. Recordando o dia em que chegou para ser aluno do Mestre

    Pastinha, contou-me o Mestre Joo Pequeno: o mestre me botou logo como trenel.Porque eu j era capoeirista. Explica o mestre: trenel aquela pessoa encarregada de treinaros alunos novos que vo chegando.

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    escolaridade, etnia, faixa etria, Capoeira a que est vinculado,

    de onde so e se vivem da Capoeira, temos um quadro: todos so do

    sexo masculino; com relao escolaridade, 04 concluram o ensino

    superior (02 formados em Educao Fsica, 01 em Letras e 01 em

    Medicina), 06 concluram o ensino mdio, 04 completaram o ensino

    fundamental, 04 no completaram o ensino fundamental e 02 deles se

    declararam analfabetos. Quanto etnia, temos 15 negros e 05

    brancos. No tocante a faixa etria, temos 05 que se encontram entre

    30 e 40 anos, 06 deles esto entre os 40 e 50 anos, e acima de 50

    anos, tivemos 09 mestres.Dos entrevistados, 50% disseram trabalhar

    com Capoeira Angola. Os demais se identificaram com a Capoeira

    Regional e com a Capoeira Contempornea. Quanto ao lugar onde

    residem os entrevistados, 50% em Salvador; os demais esto

    distribudos entre Natal, Recife, Olinda, Aracaju e So Paulo. A

    maioria dos entrevistados vive de Capoeira. Dois no trabalham com

    Capoeira e dois tm outro trabalho alm da Capoeira.Para compreendermos as percepes dos mestres sobre as

    modificaes materiais e simblicas que tm acontecido com a

    Capoeira, especialmente, a posio e o papel deles nesse espao

    social, foram consideradas a idade, a escolaridade, a condio em que

    vivem; enfim, os valores e modos de vida.

    Antes de finalizar essas consideraes iniciais, com a

    apresentao da estrutura da tese, decidimos descrever algumas

    surpresas reveladas no processo da pesquisa. So trs: a do mestre

    que no quer ser mais chamado de mestre, a do mestre que faz

    questo de ser chamado de mestre, muito embora seus pares no o

    reconheam porque ele no trabalha e nunca deu aula de Capoeira. A

    ltima situao a de um mestre que me cobrou pela entrevista.

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    Gostaria de comear com as investidas para entrevistar um

    Mestre de Olinda conhecido como Mestre Sapo17. Ele no quer mais ser

    chamado de Mestre. Em 2003 fui at a sua academia para fazer o

    primeiro contato e agendar uma entrevista. A pintura de uma zebra no

    muro do espao sinalizava que o Mestre de Capoeira Angola. A zebra

    simboliza a origem da Capoeira. Para os angoleiros, ela tem relao

    com o ngolo (dana da zebra) - uma prtica cultural de Angola. No

    local onde acontece a Capoeira, havia uma turma de jovens danando

    Cavalo-Marinho. Um deles me atendeu. Ao me apresentar, perguntei

    pelo Mestre, o rapaz informou que iria saber se ele podia me receber.

    No pde. Ele pediu para que eu voltasse outro dia. Peguei o nmero

    do telefone do Mestre para marcar um encontro. Nesse momento, tive

    a primeira surpresa no campo: que ao escrever o nome Mestre, de

    imediato o rapaz disse: no, Mestre no porque ele no quer que o

    chame mais de Mestre. Tal fato aguou a minha curiosidade e a

    determinao de encontr-lo.O encontro foi um ano depois. Novamente fui pega de surpresa.

    Sapo no permitiu que eu gravasse a entrevista. Ele no aceita que

    faam filmagens, tirem fotos da sua academia e gravem a sua fala.

    Perguntei por que ele no permitia a gravao da entrevista. Disse-me

    que no confia. E assim afirmou: quem me garante que voc no

    passe essa fita para outros mestres. Expliquei por que seria

    importante a gravao, mas o mesmo se recusou. Diante da negativa,

    perguntei se podia tomar nota no caderno do que ele me falava. O

    mesmo autorizou.

    A segunda situao, a do Mestre que faz questo de ser

    chamado de mestre, muito embora alguns de seus contemporneos

    17Sapo Nascido em Olinda no ano de 1957. Seu nome de batismo Humberto F.Mendona. uma referncia na Capoeira de Pernambuco. Capoeira Angola Me onome do seu Grupo quefica em Olinda-PE.

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    no o reconhea. Nesse caso, ele no o nico. Ser Mestre de

    Capoeira,no para qualquer um. Essa a viso dos descendentes

    diretos dos Mestres Pastinha e Bimba. Para ser Mestre precisa ter

    condies, e isso significa o capoeirista ter passado por um longo

    processo de aprendizado, um conhecimento produzido pelo exerccio

    da prtica capoeirstica passada pelo Mestre.

    Na concepo dos Mestres com os quais tive contato, para ser

    Mestre preciso aprender a movimentao, cantar, tocar os

    instrumentos, conhecer a histria da Capoeira. No campo capoeirstico preciso acumular uma quantidade de capital cultural. Alm desse

    conhecimento, precisa dar aulas de Capoeira. Diferentemente da

    situao anterior, o Mestre, pelo fato de eu no ter escrito o nome

    mestre anterior ao seu nome, pegou a agenda da minha mo e

    escreveu. Esse gesto podia passar despercebido se antes eu no

    tivesse informaes para pensar que aquela ao tinha um significado

    que passa pela posse do ttulo de mestre, e que por sua vez, temrelao com reconhecimento, legitimao, valorizao, status e disputa

    no campo capoeirstico.

    No importa se os Mestres de Salvador reconheam ou no a

    titulao destes. Ter sido aluno e bem prximo do Mestre Pastinha j

    suficiente para garantir o ttulo, mesmo que o reconhecimento no

    seja unnime, isso porque a quantidade de capital cultural acumulada

    na Capoeira, nesse caso, no teve peso para a definio do ser

    mestre.

    Por ltimo, descrevo a terceira surpresa revelada no processo da

    pesquisa: o encontro com o Mestre Curi, que cobrou pela entrevista.

    Um dos mestres que no podia deixar de encontrar. Soube da sua

    existncia no documentrio: Pastinha, uma vida pela Capoeira,

    produzido em 1999. difcil para um pesquisador desse campo no ter

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    curiosidade em conhec-lo. Um mestre que a todo instante enfatiza a

    firmeza das suas convices e posturas com relao Capoeira, que

    diz no ter medo de falar o que pensa. A indignao com a

    universidade e com o Brasil por no tratar a Capoeira como ela de fato

    mereceest expressa no seu tom de voz.

    O trecho que segue a fala do Mestre, no documentrio:

    Eu fui a um debate na universidade que eles me disseram

    que o camarada para ensinar uma capoeira nauniversidade tinha de ter curso de Educao Fsica e tinhade ser universitrio e eu debati porque eles dizem que eusou analfabeto. Eu sou analfabeto. Posso ser na leitura,mas na Capoeira, quando vier discutir comigo, se segure.

    A gente, para conseguir alguma coisa, tem que sair daqui(Mestre Curi).

    Em 11 de junho de 2005, com os endereos das academias eescolas de Capoeira localizadas no Pelourinho, em mos, a prioridade

    foi de estabelecer o primeiro contato com o Mestre Curi. Dirijo-me a

    Rua Gregrio de Matos, onde fica a Escola de Capoeira Angola Irmos

    Gmeos - a escola do Mestre. Ao chegar ao porto de acesso s

    escadas que me conduziriam ao seu endereo, uma placa de aviso com

    os horrios das aulas chama ateno. que ali tambm uma mestra

    leciona Capoeira, a Mestra Jararaca. Eu j tinha ouvido falar a seu

    respeito. O espao estava fechado. Ao checar o horrio e as

    informaes do quadro de aviso, resolvi esperar; pouco tempo faltava

    para comear sua aula. No tardou, chegam os dois. O mestre pede

    para que eu suba, e o acompanhe at uma sala que fica vizinha ao

    salo onde a Capoeira acontece.

    Penso que essa cena deve ter se repetido na vida do Mestre.

    Outras pessoas j tiveram ali na condio de pesquisadoras. O que me

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    levaria at l foi primeira pergunta que o mestre fez. Eu me

    apresento e falo da pesquisa que estou fazendo sobre Capoeira. Em

    seguida, ele pergunta que Capoeira essa que eu estou estudando.

    Diz o mestre: Capoeira Regional no cultura, t fora. Para ele, no

    tem nenhuma relao com a Cultura Popular.Agora a capoeira Angola,

    essa sim. Esse comeo de conversa deu-se dessa forma porque, no

    momento da minha apresentao, sinalizo que pretendo estudar os

    Mestres de Capoeira, entendendo-a como uma manifestao da

    Cultura Popular.

    Em seguida, comeo a ouvir um discurso meio ressentido,

    reafirmando a fala dele no documentrio, a saber: a Universidade o

    preocupava porque no abre as portas para Mestres como ele que tm

    mais de meio sculo de experincia; a Educao Fsica usa a Capoeira

    sem dar nada em troca, pois eles, os mestres legtimos detentores de

    um saber no esto na universidade. Esse era o seu discurso.

    Nesse momento, para no esquecer as palavras ditas pelo

    Mestre pego o lpis e comeo a tomar nota. De imediato, ele pergunta

    o que voc est escrevendo a? No podia fazer aquilo. Parei e fiquei

    atenta a sua fala que me parecia um desabafo. Alm de mim, nessa

    ocasio, estavam presentes duas pessoas: um jovem Mestre e a

    Mestra Jararaca. Ambos ouviam a palavra do Mestre com dedicao e

    faziam gestos de concordncia com o que ele dizia.

    Ao apresentar o jovem Mestre, que no dia seguinte estava

    viajando a Paris para trabalhar com Capoeira, o Mestre Curi disse:

    esse um jovem mestre. Capoeira no t na idade. Essa fala me

    chamou a ateno porqueesse mestre tem o perfil que se aproxima

    dos mestres que assumem uma posio crtica com relao aos

    mestres jovens.No campo capoeirstico notria a queixa proveniente

    de mestres no jovens endereada formao de mestres jovens.

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    Na Capoeira, a relao entre tempo e formao do mestre uma

    questo presente, e densa. Essa discusso ser oportunamente

    desenvolvida no captulo trs.

    Continuando sua fala, o Mestre disse que l em sua academia -

    iam pessoas de fora. Especificou: estrangeiros pagos pelas

    universidades, para conversar com eles. O que a Capoeira ganha com

    isso? Insistia o Mestre. Em seguida, falou que eu no ia ter controle

    quando fosse entregar a tese na universidade porque pessoas podiam

    usar a fala dele. Posteriormente, ele comentou sobre direitos autorais.

    Ressentido, disse que teses so publicadas custa dele e que ele no

    ganha nada em troca.

    Aps ouvi-lo, questionei a possibilidade de encontr-lo em outro

    momento para uma conversa. Ao comunicar-lhe que se tratava de

    uma entrevista, ele disse: pra gravar entrevista, s pagando. Se eu

    quisesse 45 minutos, eram 400 reais, mas podia negociar. Sua fala

    pegou-me de surpresa. Como era sexta-feira, dia de roda, convidou-me para eu passar l noite. Nesse mesmo horrio, outra roda de

    Capoeira acontecia no Pelourinho: a roda organizada pela Associao

    de Capoeira Angola. Logo cedo, os mestres da Associao me

    chamaram para eu assistir a roda. Decidi conhecer a Roda de Capoeira

    do Mestre Curi.

    Na semana seguinte estive com o Mestre para dizer que no

    podia pagar pela entrevista. L, encontrei com a Mestra Jararaca e

    com o Mestre P de Chumbo, discpulo do Mestre Joo Pequeno.

    Depois que fiz o comunicado, o Mestre justificou a cobrana pela

    entrevista. Disse que vivia da Capoeira, precisa pagar as despesas do

    espao. Novamente falou que a universidade no abre as portas para

    eles. Indignado, comentou: como pode esse pessoal de Educao

    Fsica ter seis meses de aula de Capoeira e assumir aula nauniversidade! Para o Mestre Curi os verdadeiros Mestres no so

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    valorizados, no tm o reconhecimento que merecem. Cita os mestres

    que morreram na misria. O Mestre mencionou uma pessoa da

    Inglaterra que teria lanado um livro contendo falas dele. As pessoas

    esto a ganhando dinheiro com a gente e a gente s sendo usado.

    O que pude entender do que ouvia que esses mestres se

    sentem explorados. Alguns deles no concordam com as normas da

    universidade que, para dar aula de Capoeira, preciso ter a

    escolarizao exigida. Os mestres, no todos, no vem legitimidade

    para outros que no sejam eles - a exemplo do Mestre Curi - com aexperincia de tempo assumir um trabalho com Capoeira.

    Dias depois, quando estava tomando notas das teses e

    dissertaes existentes no acervo do historiador Frede Abreu,

    encontrei uma dissertao defendida em 2002 pelo Programa de Ps-

    Graduao em Artes Cnicas da Universidade Federal da Bahia,

    intitulada Capoeira Angola como treinamento para o ator. Esta teve

    como campo emprico a Escola Capoeira Angola Irmos Gmeos, do

    mestre Curi.

    Para finalizar a introduo, cabe descrever aqui a estrutura da

    tese. Trabalhamos trs captulos. A trajetria da Capoeira: entre a

    tradio e a modernizao; Os deslocamentos scio-culturais da

    Capoeira; A construo social do Mestre de Capoeira.

    No primeiro captulo, situaremos a Capoeira na histria. Sem

    grandes pretenses e de forma sucinta, apresentaremos aspectos da

    origem da Capoeira. Em seguida, trataremos do processo histrico da

    Capoeira, sua classificao e escolas, dando destaque para os Mestres:

    Pastinha e Bimba na construo da histria da Capoeira.

    No segundo captulo, trataremos da Capoeira com ateno

    especial aos anos setenta em diante; contexto em que osdeslocamentos quanto ao espao, ao discurso, aos novos segmentos e

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    novas finalidades vo se dando, afirmando as mudanas materiais e

    simblicas. Nesse captulo, tambm dedicaremos ateno

    aproximao dos aportes tericos da Sociologia de Pierre Bourdieu:

    campo social, hbituse capital, com o nosso objeto emprico.

    No terceiro captulo, abordaremos a construo social do Mestre

    de Capoeira, enfatizando a idia do mestre de Capoeira como Mestre

    da Cultura Popular, destacando a hiptese sobre a sua gnese, a

    formao do Mestre em diferentes escolas; o que ser mestre na

    viso dos Mestres; a relao Mestres antigos e novos Mestres; e arepresentao da Capoeira na vida do Mestre.

    CAPTULO I - A TRAJETRIA DA CAPOEIRA: ENTRE A

    TRADIO E A MODERNIZAO

    Na diversidade da capoeiragem reside suafora e beleza. Nenhum estilo poderrepresentar Capoeira como um todo enenhum mestre poder ser considerado odono da capoeiragem. Se assim fosse, a

    Capoeira seria muito chata. Capoeira oconjunto de todos ns, com nossas

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    interpretaes, verdades e diferenas (MestreAcordeon, Revista Capoeira, 1999).

    Impossvel falar de Capoeira e no perceber a dimenso do

    tempo como uma referncia recorrente nas narrativas. Tempo para

    contar o que passou, para avaliar o que existe e para especular o que

    vem depois. Tempo para dizer que em determinada poca, a Capoeira

    era de um jeito, se apresentava de tal forma, tinha um sentido de ser,de existir. O tempo da Capoeira no Brasil Colonial um, que j se

    distanciou ao do sculo XIX, e que, no o mesmo da Capoeira do

    sculo seguinte, de agora, e que no ser o de amanh.

    Os fatos, os nomes, as lembranas, as histrias de ontem e de

    hoje o que se viu e o que se ouviu anuncia: Capoeira que, h

    exatamente, um sculo era crime a polcia prendia quem a

    praticasse - hoje considerada smbolo de cultura; faz parte da

    identidade brasileira. Tornou-se produto brasileiro de exportao. Na

    viso dos capoeiristas, representa diverso e trabalho, cultura e

    esporte, terapia e filosofia de vida.

    Quem poderia imaginar, nas primeiras dcadas do sculo XX,

    que a Capoeira pudesse chegar a ocupar o lugar que tem hoje? De

    repudiada, perseguida, proibida e reprimida, como aconteceu com

    prticas da religiosidade africana as casas de Candombl na Bahia,

    as de Tambor de Mina no Maranho, as casas de Xang em Recife - e,

    manifestaes populares, como o Maracatu, o Samba, o Tambor de

    Crioula - herana da cultura africana - passa a ser aceita e construda

    como um dos cones da identidade nacional; e motivo de orgulho.

    Em 1953 o presidente Getlio Vargas nomeia a Capoeira de

    Esporte Nacional Brasileiro. E, tempo depois, entre tantas

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    representaes atribudas a ela, passa a ser modalidade esportiva em

    instituies escolares e produto de consumo turstico.

    O estudo com os mestres de Capoeirasugeredar uma ateno

    especial aos fatos ocorridos a partir dos anos trinta do sculo XX. Isto

    porque este momento ancora muitas narrativas sobre a Capoeira.No

    entanto, sem grandes pretenses e de forma um tanto sucinta,

    apontamos alguns momentos da construo e emergncia da

    Capoeira. Para isso, necessrio recuar no tempo. Sendo assim,

    situemo-nos, de incio, na Histria do Brasil Colnia, perodo em que

    os protagonistas da Capoeira viviam como escravos.

    Para comear, examinemos, brevemente,o debate em torno da

    sua origem, um dos caminhos que nos leva a conhecer parte de sua

    histria. Em seguida, acompanharemos os caminhos, por onde a

    Capoeira percorreu - do cdigo de represso at a sua entrada numa

    fase que vou chamar de modernidade. Nesse contexto, o destaque

    consiste em dois estilos de Capoeira que passaram a existir a partirdos anos 30 a Capoeira Angola e a Capoeira Regional - bem como as

    duas maiores referncias da Capoeira - os consagrados mestres Bimba

    e Pastinha.

    1.1. A ORIGEM DA CAPOEIRA: O DEBATE CONTINUA ...

    H quatro sculos a alma africana tem sido o motorda inquietao, da resistncia, da transgresso.(...) O negro sempre quis fugir da opresso fazendohistria, ganhando o mundo com estilo. assim quea alma sobrevive em todo novo continente (...) Mas o ariano que ignora o africano, ou o africanoque ignora o ariano. Ao sul o africano fez nascer omaracatu, o afox, o choro, o samba, o baio, ococo, a embolada entre outros os Jaksons e os

    Ferreiras, os Gonzagas e os Pexinguinhas ...(Mundo Livre SA, CD Carnaval na Obra, 1998)

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    A respeito da origem da Capoeira, temos um problema. As

    perspectivas de anlise tm, na sua maioria, expressado a dificuldade

    de precisar uma data, um local e uma autoria. Quando tudo comeou?

    A Capoeira veio da frica ou a sua gnese brasileira? Quem teria

    feito os primeiros movimentos? A respeito dessa questo,

    encontramos no campo capoeirstico duas linhas de pensamento. Uma,

    diz respeito criao brasileira; a outra, criao africana.

    Praticantes e estudiosos (Reis, 1993; Vieira, 1990; Soares,

    1994e Pires, 1996) concordam com a hiptese de que a Capoeira foi

    criada no Brasil, pelos negros bantos, naturais de Angola. Entre os

    sculos XVI e XIX, O Brasil recebeu milhes de negros escravizados,

    vindos de diversas regies da fricapara alimentar o sistema colonial.

    A escravido era uma prtica social presente na frica.

    Destinados a cruzar o Atlnticopara morar em terras distantes, nadalhes era permitidolevar. A sua cultura, impressa no corpo, na alma, na

    memria era para ser apagada, esquecida, conforme lembra uma cena

    do documentrio Atlntico Negro, na rota dos Orixs: esta gira em

    torno de voltas que mulheres e homens eram obrigados a dar ao redor

    de uma rvore. Era um procedimento realizado antes do embarque.

    Uma forma de os responsveis pela migrao forada de homens e

    mulheres se prevenirem de pragas ou maldies proferidas pela bocadaqueles que eram obrigados a deixar sua terra, sem possibilidades de

    retorno.

    Todo escravo que ia ser embarcado era obrigado a darvoltas em torno da rvore do esquecimento. Os escravoshomens deviam dar nove voltas em torno dela. As

    mulheres sete voltas. Depois disso supunha-se que osescravos perdiam a memria e esqueciam seu passado,

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    suas origens e sua identidade cultural (DocumentrioAtlntico Negro, na rota dos Orixs, 1998).

    O fato que, seja no Brasil, em Cuba, Venezuela, Caribe ou em

    qualquer outra terra, o esquecimento do seu passado, da sua

    memria, da sua histria, evidentemente, no acontecia. Quando

    chegavam nas novas e estranhas terras, em meio aos obstculos,

    esses povos recriavam seus traos, suas marcas identitrias, sua

    cultura. Era, portanto, uma maneira de imprimir significado e sentido nova realidade a que estavam submetidos. Com eles, para c vieram

    os ritmos, as canes, as crenas, as idias e as formas de se

    relacionar com a vida. No toa que, no Brasil, a presena africana

    forte na dana, na msica, na religiosidade, na comida, no

    vocabulrio e nos gestos de uma parcela significativa da sociedade

    brasileira.

    Com efeito, a histria da Capoeira se insere nesse contexto,possivelmente, como uma mistura de danas, lutas e instrumentos

    musicais de diferentes culturas africanas, conforme avalia Nestor

    Capoeira (1981) em O pequeno manual do jogador de capoeira. Na

    sua concepo, o Brasil foi o palco onde essa sntese se deu.

    A tese da brasilidade da Capoeira no encontra unanimidade no

    campo capoeirstico. Os mestres antigos, principalmente, os adeptos

    da Capoeira Angola pensam o contrrio dessa verso. Afirmam que a

    Capoeira africana.Eles se apiam no argumento dena frica existir

    danas, rituais com caractersticas semelhantes Capoeira, como o

    ngolo Jogo da Zebra. Cmara Cascudo (1993) registrou essa prtica

    no Dicionrio do Folclore Brasileiro, como uma luta que fazia parte de

    um ritual em que os negros lutavam e os vencedores tinham como

    prmio meninas da tribo que ficavam moas, podendo casar sem

    pagar dote. Antigos mestres angoleiros, discpulos do Mestre Pastinha,

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    outras prticas culturais inseridas na sociedade brasileira, como foi o

    caso da Capoeira.

    A questo referente ao fato de a Capoeira ter surgido no Brasil

    ou na frica no est resolvida. Dizer que a Capoeira foi criada no

    Brasil porque a maioria dos autores concorda com essa tese, como faz

    VIEIRA, posicionamento insustentvel. Portanto, vale sinalizar

    algumas indagaes: as pesquisas foram satisfatrias para

    fundamentar tal concluso? Quando e onde foram realizadas? As

    fontes foram suficientes para tratar do problema? Se nas pesquisas

    no encontraram lutas semelhantes Capoeira fora do Brasil, no

    poderiam elas terem existido e na poca das pesquisas no terem sido

    encontradas18, devido a represso s prticas culturais negras, como

    aconteceu no Brasil?

    1.2. A NECESSIDADE A ME DA INVENO

    O mesmo p que dana osamba se preciso, vai luta, capoeira.

    (Marcos Vale, 1983)

    Prticas culturais prprias de um tempo, ocorridas em outros

    espaos e pocas nunca so as mesmas. Ora, novas situaes

    engendram novas experincias. A opresso vivida pelo negro

    18 Algumas manifestaes da Cultura Popular passam por um processo dedesaparecimento e reaparecimento.

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    possibilitou a ressignifio do uso de seus movimentos corporais.

    Antes usado para um fim ritualstico, em terras distantes, passa a ser

    arma de defesa. A experincia nova compreensiva. Poderia ela ter

    convivido com a anterior (o ngolo)? No resta dvida; a resposta

    negativa. Para compreender a questo indispensvel saber que a

    condio do africano no Brasil era outra. Portanto, no cabia o ngolo.

    Em terras brasileiras, traos da ancestralidade africana passaram

    por processos de adaptao. A movimentao corporal que o negro

    executava em rituais na frica no se perdeu porque foi para outro

    continente, mesmo que a prtica ritual no mais se fazia presente. Ela

    tem outros sentidos e intenes, outros significados. Sendo assim,

    uma questo se coloca: a ressignificao do uso dos movimentos

    antes ritualstico, agora de defesa - ocorrido no Brasil, suficiente

    para firmar o carter de nacionalidade atribudo Capoeira, se o negro

    trouxe consigo a manifestao dessa linguagem em seu corpo?

    importante compreender por que o autor afirma que a Capoeira brasileira e perceber de onde parte esse discurso.

    As anlises sobre a origem da Capoeira tm dificuldade de

    precisar data, local e autoria. Em A capoeira escrava e outras

    tradies rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), o historiadorCarlos

    Eugnio Lbano Soares explicita o nascimento das verses produzidas

    sobre a possibilidade de a Capoeira ser brasileira e ser africana. A

    polmica notadamente conhecida no campo da Capoeira e entrepesquisadores.

    Para o historiador, a questo da nacionalidade brasileira

    encontra-se no pensamento de Plcido de Abreu, um imigrante

    portugus que em 1886, construiu a verso da origem nacional.

    Convergindo numa direo oposta verso da nacionalidade brasileira,

    tem a verso de Hermeto Lima, que em 1925 escreveu um artigo

    intitulado Os capoeiras, na Revista da Semana,e dizia os africanos

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    que para aqui vieram escravizados e que a usavam como esporte,

    como hoje se usa o boxe, jogavam-se ao som do tambor (LIMA apud

    SOARES, 2004, p. 41). Como vemos, a questo sobre a origem da

    Capoeira permanece sem soluo.

    1.3. CONTANDO HISTRIAS DE CAPOEIRA

    A Capoeira tem sculos de histria, e muitas foram as mudanas

    ocorridas com ela. Tomando como referncia o estudo de Reis (1993),

    Vieira (1998), Soares (2004), Karash (2000), entre outros, a Capoeira,

    inicialmente foi arma dos negros escravizados. Possivelmente, era

    praticada em senzalas e quilombos. Pesquisas sobre a Capoeira nosculo XIX, fazem aluso de que ela era praticada, especialmente, nas

    ruas dos centros urbanos do Rio de Janeiro, Salvador, Recife, So Luiz

    e Par. Nesse perodo, a Capoeira era considerada um problema de

    segurana pblica. No Rio de Janeiro no se restringia apenas a negros

    e pobres, estendendo-se tambm aos brancos de diferentes classes e

    imigrantes estrangeiros. Contudo, o nmero desses capoeiras era uma

    presena menos significativa. Com o advento da Repblica, a Capoeira marcada por perseguio e represso. O Cdigo Penal Brasileiro de

    11 de outubro de 1890 associa a prtica da Capoeira criminalidade.

    O decreto n. 487 do Cdigo estabeleceu no captulo XIII que tratava

    dos Vadios e Capoeiras:

    Art. 402 Fazer nas ruas e praas pblicas exerccios de

    agilidade e destreza corporal, conhecidos pela denominao de

    capoeiragem, andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes

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    de produzir uma leso corporal, provocando tumulto ou desordens,

    ameaando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor ou algum mal:

    Pena de priso celular de dois a seis meses.

    Pargrafo nico considerada circunstncia agravante

    pertencer o capoeira a algum bando ou malta. Aos chefes ou cabeas

    se impor a pena em dobro.

    Em nome da defesa da ordem pblica, autoridades justificavam a

    represso aos negros capoeiras, tidos como um bando de desordeiros.

    Pegos em flagrante, eram presos por praticarem Capoeira. Anterior ao

    cdigo, quando a Capoeira ainda no era crime, os capoeiras j eram

    perseguidos. Vtimas da ao repressiva da polcia sofriam severas

    punies como receber 300 aoites. Com o cdigo, as prises, os

    trabalhos forados, a expulso de capoeiras do Rio de Janeiro, na

    poca capital Federal do pas, com o desterro para a Ilha de Fernando

    Noronha eram freqentes19.

    Durante meio sculo, a Capoeira permaneceu na ilegalidade,deixando de ser crime em 1937, quando, por interesses conjunturais e

    polticos, o Presidente da Repblica - Getlio Vargas - decide tirar a

    Capoeira da ilegalidade, concedendo-lhe uma liberdade vigiada atravs

    de normas e regras para o seu funcionamento; a saber: ser praticada

    em lugar fechado, enfatizando o carter esportivo e folclrico. A

    abordagem folclrica e ou esportiva passou a ser uma exigncia oficial

    a partir do governo Vargas para que as aulas de Capoeiraacontecessem (Esteves, 2004, p. 78).

    Na primeira dcada do sculo XX poca em que o efeito da

    represso Capoeira era sentido em todo territrio brasileiro que

    respirasse Capoeira, destacou-se a produo de um fenmeno

    resultado da represso, ocorrido, particularmente, na cidade de Recife.

    Trata-se do nascimento do frevo. Quando o assunto perseguio ao

    19Ver Soares, 2004; Vieira, 1998 e Rego, 1968.

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    capoeira, imediatamente, a minh